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A traição da morte: figurações de Caim e dos seus duplos

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Academic year: 2020

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CAIM E ABEL: CONTO E RECONTOS

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A TRAIÇÃO DA MORTE: FIGURAÇÕES

DE CAIM E DOS SEUS DUPLOS

The Betrayal of Death: Representations of Cain and His Doubles

Maria Aline Ferreira

Universidade de Aveiro

PALAVRAS-CHAVE: CAIM, BYRON, MARY SHELLEY, ROMANTISMO, GEORGE BERNARD SHAW, SARAMAGO. KEYWORDS: CAIN, BYRON, MARY SHELLEY, ROMANTICISM, GEORGE BERNARD SHAW, SARAMAGO.

Caim, o primeiro ser humano a nascer de uma maneira tradicional e o primeiro a matar, segundo a narrativa Bíblica, deixou uma copiosa descendência literária e cultural, que continua a aumentar, demonstrando uma actualidade notável. Efectivamente, algumas das temáticas associadas a Caim mantêm-se inalteradas na sua pertinência, tais como a rebeldia contra Deus, que impôs a morte aos humanos como castigo pelo pecado original, assim como a ânsia de imortalidade.

Desde “The Wanderings of Cain” (1798)1, deixado incompleto por Samuel Taylor Cole-ridge, passando por Back to Methuselah (1921) de George Bernard Shaw e Caim (2009) de Saramago, a figura de Caim articula emoções ligadas à perda e expulsão do Paraíso: ver-gonha, culpa, revolta contra Deus, o anseio por uma vida mais longa. Nessa linhagem de descendentes de Caim situam-se também os protagonistas do romance Frankenstein (1818; 1831) de Mary Shelley e Cain: A Mystery (1821) de Lord Byron, uma peça que Shelley

admi-1 De acordo com John Livingstone Lowe a lenda do Judeu Errante constituiu uma importante fonte de

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rava. Tanto Frankenstein como Cain são por sua vez profundamente devedores do poema épico Renascentista de Milton, Paradise Lost, que William Blake, um confesso admirador de Cain de Byron, ilustrou profusamente, incluindo litografias de Caim. A personagem de Caim é especialmente popular nos poetas Românticos ingleses, tornando-se emblemá-tica da figura do poeta, solitário e errante, herético e rebelde, condenado a vaguear sem destino na esteira de outros viajantes tais como Victor Frankenstein e a sua Criatura. Aliás Albert Camus descreve a geração dos revolucionários românticos como “Filhos de Caim” (Camus, 1956, p. 26). A partir desta óptica, a condição humana pode ser descrita como a de nómada, itinerante, aparentemente sem rumo definido, tão comum no período Romântico, e muitas vezes apanágio dos heróis Românticos. Efectivamente, o Herói Romântico assume várias características comuns às personagens principais das obras mencionadas: a rebeldia contra Deus, a identificação com Lúcifer, o castigo da errância, a ambição de imortalidade e revolta contra a condição humana, agrilhoada a um corpo finito.

O JUDEU ERRANTE E A FANTASIA DE IMORTALIDADE

Com efeito, um tópico recorrente no Romantismo britânico é uma reflexão sobre a fantasia de imortalidade, o elixir da juventude e o prolongamento da vida. O romance St

Leon: A Tale of the Sixteenth Century (1799) de William Godwin, o pai de Mary Shelley, já

trata os temas da imortalidade e da itinerância eterna, tendo influenciado de forma deci-siva a escrita de Frankenstein. St Leon adopta a figura do Judeu Errante como inspiração para o protagonista da narrativa, que aprende dos Rosa Cruz o segredo da pedra filosofal e do elixir da juventude e da vida eterna. Significativamente, o tópico do Judeu Errante, tão próximo simbolicamente do de Caim, tanto em termos da temática da errância como da sugestão de imortalidade, é dramatizado repetidamente em vários autores britânicos desta época, do romance gótico ao Romantismo2, partilhando o herói Rosa Cruz e o Judeu Errante uma série de características.

O poema “The Wandering Jew” (1810)3 de Percy Shelley atesta o fascínio por esta per-sonagem, enquanto a figura do Judeu Errante e de Ahasuerus, uma incarnação daquele, surgem igualmente em “Queen Mab: A Philosophical Poem” (1813) e no drama em verso

2 Ver Anderson (1991, p. 181).

3 Significativamente, Percy Shelley considerou chamar ao poema “The Victim of the Eternal Avenger”, um título

que sugere mais uma vez a revolta contra um Deus tirano e omnipotente, um tópico recorrente no tratamento do Judeu Errante e narrativas sobre Caim, duas figuras intimamente interligadas.

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Hellas (1821), testemunhando a atracção de Shelley por esta constelação temática. Também

Matthew Lewis, em The Monk (1796)4, o único romance gótico em que o Judeu Errante é uma personagem importante, estabeleceu a relação entre a figura do “Wandering Jew” e Caim. Lewis é ainda responsável pela inclusão de uma marca em forma de cruz na testa do Judeu Errante, reforçando assim a interligação com Caim5. Significativamente, o Judeu Errante em

The Monk apresenta igualmente características evocadoras da criatura de Frankenstein, que

congrega várias destas linhas temáticas. Por sua vez, “The Rime of the Ancient Mariner” (1798) de Samuel Taylor Coleridge, um importante intertexto em Frankenstein, também convoca a figura do Judeu Errante na personagem do “Ancient Mariner”, impossibilitado de parar nas suas deambulações por períodos alargados6.

Melmoth the Wanderer (1820), o influente romance gótico de Charles Maturin, também

retrata o Judeu Errante, uma personagem tematicamente descendente de Caim. Melmoth recebe a dádiva do prolongamento da vida a partir do momento em que o seu retrato é pintado, um tema que Oscar Wilde, sobrinho-neto de Maturin, vai adaptar no seu romance gótico The Picture of Dorian Gray (1890). Tal como a Melmoth, também a Adonijah, outra figura que descende literariamente do Judeu Errante, foi concedido um prolongamento da vida, até acabar de transcrever um manuscrito que narra a história de Melmoth, que Ado-nijah quer dar a conhecer como um aviso. Significativamente e paradoxalmente, o Judeu Errante anseia pela chegada da morte que lhe permitirá finalmente descansar enquanto Caim, embora revoltado contra a injunção divina de percorrer o mundo sem a possibilidade de se instalar num lugar congenial durante um longo período de tempo, almeja pela vida eterna, sem a sombra da morte a pairar sobre ele.

Outros exemplos de narrativas sobre a ambição de prolongar a existência terrena, inspiradas por ideias da Ordem Rosa Cruz7, incluem o romance gótico St Irvyne: The

Rosi-4 Na sua introduçaõ ao poema de Shelley “The Wandering Jew” Dobell (1887, p. xxviii) sugere que o romance

The Monk poderá ter sido uma importante fonte de inspiração para Shelley.

5 A marca na testa de Caim, que parece estar a aumentar, estabelece uma ligação intertextual com Dorian

Gray, o protagonista do romance gótico de Oscar Wilde, The Picture of Dorian Gray (1890). Tal como Caim, Dorian anseia por imortalidade, enquanto o seu retrato vai ficando manchado e desfigurado à medida que comete actos censuráveis e criminosos, numa analogia com a marca de Caim.

6 Em The Gothic Wanderer: From Transgression to Redemption: Gothic Literature from 1794, Tichelaar (2012)

analisa a existência de variações na figura do Viajante Gótico, nomeadamente o Judeu Errante e o herói Rosa Cruz, e observa que o “Gothic Wanderer” se constitui como um “commentary on 19th century political and social concerns”, sendo “eternally damned for transgressing authority” (2012, p. 1).

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crucian (1810) de Percy Shelley, o marido de Mary Shelley, assim como The Last Man (1826)

de Mary Shelley e o conto desta “The Mortal Immortal” (1833). Nestas narrativas o prota-gonista, tipicamente imortal, tendo a sua longevidade sido conseguida através de recurso a métodos e fórmulas alquímicos, deambula pela terra à procura de uma justificação para a sua vida sem morte, caracterizada por taedium vitae. Neste contexto o Caim de Byron pode ser visto como mais um representante destes adeptos da Ordem Rosa Cruz, e ainda como uma refiguração do Judeu Errante, um peregrino em busca de sentido para uma vida que parece quase infinda.

CAIN DE BYRON, OU A TRAIÇÃO DA MORTE

O Caim de Byron é talvez o mais rebelde de todas as versões desta personagem, questionando a omnipotência e bondade de Deus, que Adão e Eva constantemente enfa-tizam, insurgindo-se contra o Senhor e as suas regras e em particular a imposição de mor-talidade, atribuindo a culpa aos seus pais por terem comido a fruta da Árvore da Vida e do Conhecimento.

Como Saramago, também Byron sofreu duras críticas em relação à alegada heresia e blasfémia de Cain, uma controvérsia que chegou inclusive aos tribunais, à Chancery Court8. Aliás, Cain de Lord Byron e Caim de Saramago têm bastantes semelhanças, na sua atitude herética contra Deus e no tratamento de Caim. Em ambos os textos Caim viaja no tempo, vendo o passado e o futuro9. Ao abarcar este alargado horizonte temporal Byron está a refe-renciar o trabalho do naturalista francês Georges Cuvier, um proponente do Catastrofismo geológico, que defendia a existência de sucessivas criações que ocorreriam após catastró-ficos eventos em que se verificava a extinção de espécies10. Embora Cuvier repudiasse a teoria da evolução de Lamarck, implicitamente também desacreditava a narrativa bíblica considerada literalmente, uma ideia que Darwin dentro de pouco tempo reforçaria, com o seu livro On the Origin of Species (1859). Byron subscreve e utiliza as teorias de Cuvier na sua abordagem à questão da (i)mortalidade em Cain. Também em Paradise Lost de John Milton, que influenciou Cain de Byron decisivamente11. Deus permite que o arcanjo Miguel

8 Consultar Cantor (1985, p. 135).

9 É de salientar aqui mais um paralelismo com o Judeu Errante, que repetidamente surge em locais históricos

afastados no tempo, tais como as cruzadas ou batalhas Napoleónicas.

10 Ver em particular Essay on the New Theory of the Earth, traduzido em inglês por Robert Kerr em 1813. 11 Como Byron explica no Prefácio, “Since I was twenty I have never read Milton; but I had read him so frequently

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mostre a Adão uma visão do futuro da humanidade, mas apenas até à época de Jesus. Em

Cain de Byron, por sua vez, é Lúcifer que funciona como mentor de Caim, tentando seduzir

este para o seu ponto de vista, em oposição a Deus, e mostrando-lhe um passado e um futuro que abarcam uma vastidão cósmica e uma infinitude temporal.

É relevante salientar que Caim mata Abel após lhe ter sido dada a ver por Lúcifer a aparente imensidão e indiferença do universo. O próprio Byron explica que Caim, aliás tal como o Caim de Saramago, mata Abel devido à sua “rage and fury against the inadequacy of his state to his conceptions”, um sentimento “which discharges itself against Life, and the author of Life, than the mere living” (Byron, 1973-1994, x, pp. 53-54). Como se lê em

Caim de Saramago, Caim explica a Deus: “matei abel porque não podia matar-te a ti, pela

intenção estás morto” (Saramago, 2009, p. 38). Na peça de Byron Caim identifica-se mais com Lúcifer, descrito como imortal, enquanto Deus surge como trazendo guerra, doença e morte à terra. Tal como em Caim de Saramago, o argumento em Cain de Byron é que o mal no mundo foi introduzido pelo seu Criador. Assim, Lúcifer pergunta a Cain: “Then who was the Demon? He/ Who would not let you live, or he who would/Have made ye live for ever, in the joy and power of Knowledge?” (Byron, 2008, p. 889). Por outro lado, como Cantor (1985, p. 140) nota, “seemingly against His will, Cain finds himself turning into a parody or mirror image of the God he hates: isolated, discontented, and destroying others to relieve his own frustration”, em suma, um tirano. Cain de Byron encena assim uma refle-xão filosófica entre o desejo de ultrapassar a condição humana de mortal e por outro lado a aceitação da vida com todos as limitações inerentes à existência terrena.

“DEATH IS IN THE WORLD” (BYRON, CAIN, 933)

Ironicamente e paradoxalmente, de uma perspectiva bíblica, foi Caim, o agricultor, que trouxe a morte ao mundo, assim como o primeiro a ver uma pessoa morta, o seu irmão Abel, pastor, habituado a matar e sacrificar ovelhas e bezerros. Por outro lado Caim recusa veementemente aceitar a sua condição mortal, apesar de constatar que a imortali-dade esbate a capaciimortali-dade de aproveitar a vida, diminuindo a possibiliimortali-dade de estabelecer afectos, já que todos serão perecíveis e transitórios de uma perspectiva terrena.

Como Cain reflecte: “I—who abhor/The name of Death so deeply, that the thought/ Empoisened all my life, before I knew/His aspect—I have led him here, and giv’n/My bro-ther to His cold and still embrace,/As if he would not have asserted His/Inexorable claim without my aid” (Byron, 2008, p. 933). Esta passagem estabelece mais um paralelismo entre o Caim de Byron e o de Saramago, na sua revolta contra o que interpretam como a

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não-bondade e indiferença de Deus em relação às suas criaturas, permitindo que a morte fizesse parte integrante da vida humana: “Eu não fiz mais que matar um irmão e o senhor castigou-me, quero ver agora quem vai castigar o senhor por estas mortes, pensou caim, e logo continuou, Lúcifer sabia bem o que fazia quando se rebelou contra deus, há quem diga que o fez por inveja e não é certo, o que ele conhecia era a maligna natureza do sujeito” (Saramago, 2009, p. 101)12.

Assim, o Caim de Byron “Vive para morrer” (“I live, But live to die”; Byron, 2008, p. 887), tendo a ideia da morte envenenado toda a sua vida uma vez que tornava tudo provisório, em contraste com a situação que Adão e Eva gozavam no Paraíso e que perde-ram13. Apesar disso, Lúcifer admite que “It may be death leads to the highest knowledge” (II.ii. 164), já que a sua imortalidade pode limitar a sua capacidade de julgar: “As I know not death,/ I cannot answer” (Byron, 2008, p. 892). É esta dicotomia fundamental entre a vontade de viver e a inescapável existência da morte que estructura não só o Caim de Byron, o protótipo do rebelde, mas também todas as narrativas que giram à volta desta personagem bíblica e os seus descendentes literários.

FRANkENSTEIN E OS SEUS DUPLOS

A imposição da morte e o abandono a que o Criador vota a sua Criatura, um tema recorrente na história de Caim, é de modo análogo crucial no romance Frankenstein de Mary Shelley. Frankenstein e Cain de Lord Byron foram escritos em grande proximidade temporal. De facto, a 30 de Novembro de 1821 Mary Shelley já tinha lido Cain de Byron, considerando-o “in the highest style of imaginative Poetry. It made a great impression upon me” como explica numa carta a Msr Gisborne (Shelley, 1994, p. 82). A primeira versão de

Frankenstein foi publicada em 1818 e subsequentemente substancialmente revista, tendo

sido uma nova versão publicada em 1831. Havia entre Mary Shelley e o seu marido, Percy Shelley, e Byron, uma amizade cultivada tanto em Inglaterra como em férias na Itália e na Suíça, sendo num verão passado nas margens do Lago Léman, em Genebra, em 1816, que a ideia para a escrita de Frankenstein foi lançada e germinou.

12 É relevante salientar nos romances bíblicos de Saramago a instanciação e dramatização do que Martins (2014,

p. 14) descreve como um “subtexto espiritual clandestinamente operativo” (itálico no original).

13 Segundo Paul A. Cantor, a grande ironia de Cain de Byron é que Cain “persists in craving immortality, even

though all the evidence he has suggests that immortality destroys the ability to enjoy life” (Cantor, 1985, p. 154).

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A personagem bíblica de Caim, forçado a deixar a sua família e vaguear em busca de sentido para a vida tem, como já referido, muitas semelhanças com o herói Romântico, condenado à solidão e a deambular à procura de realização pessoal. Este nexo de ideias, profusamente discutidas no círculo de poetas românticos, incluindo Byron, Mary Shelley e Percy Shelley, é dramatizado na sua produção artística. As semelhanças entre Victor Frankenstein, a sua Criatura e Caim são numerosas e significativas. Apesar de Caim não ser uma personagem de Frankenstein a sua sombra perpassa a obra de Mary Shelley com a sua tessitura de intertextos bíblicos. Caim, tal como Victor Frankenstein em relação à sua Criatura, não assume responsabilidade pela morte do seu irmão. Quando Deus lhe per-gunta onde está Abel, Caim responde dizendo “I don’t know. Am I my brother’s keeper?” (Gn 4, 9)14. Por seu lado, nesta teia de ecos e ressonâncias, Caim de Saramago interpela Deus directamente: “os deuses, e tu como todos os outros, têm deveres para com aqueles a quem dizem ter criado” (Saramago, 2009, p. 37), acusando Deus implicitamente pela morte de Abel. Tal como Caim de Saramago que mata Abel por não conseguir matar Deus, a Criatura é, embora indirectamente, responsável pela morte de Victor Frankenstein.

É particularmente significativo que Victor Frankenstein possa ser associado tanto ao Deus criador como à sua Criatura, o homem feito de partes humanas a quem dá vida no seu laboratório, mas também a Caim, revoltando-se os dois contra os seus respectivos criadores. Por sua vez, a Criatura e Cain apresentam muitas semelhanças, pois são ambos parcialmente rejeitados, abandonados e criticados pelos seus criadores, deambulando pelo mundo mas sempre, a intervalos, cruzando-se com Victor Frankenstein e Deus respectiva-mente. Por seu turno, Frankenstein e a sua Criatura podem ser vistos como Doppelgänger, tal como Caim e Abel, em particular em Caim de Saramago, já que os seus percursos se entrelaçam constantemente, um parecendo a sombra do outro, levando a sede de vingança da Criatura em relação àquele que o criou a matar os mais próximos de Frankenstein, de tal maneira que este se sente responsável pelas atrocidades perpetradas pelo seu “filho”, que acaba por levar o irmão William à morte, sentindo-se Victor moralmente responsável pela morte deste, tal com Caim mata o seu irmão Abel. Tanto Frankenstein como a sua Criatura e Caim se tornam nómadas errantes. Por outro lado, se Caim mata Abel, segundo Saramago, por não poder matar Deus, Frankenstein é moralmente responsável pela morte do seu pai às mãos da Criatura, enquanto esta causa a morte de Frankenstein, o seu “pai”,

14 Bloom (2006, p. 7) compara Frankenstein a Caim, comentando que “the irony of Frankenstein’s fate is that

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embora não o matando directamente. Édipo15 não andará longe16. No entanto, a ligação entre Caim e Abel permanece forte, de tal modo que no romance de Saramago Caim por vezes adopta o nome Abel, enfatizando a proximidade entre eles, quase como Duplos17. Assim, Frankenstein e a sua Criatura, tendo esta sido feita à imagem e semelhança do pri-meiro, são Deus e Adão, Caim e Abel, os seus percursos entrecruzados numa trajectória fatal. O irmão abandonado (ou morto) continua a fazer parte integrante da existência de Caim, metamorfoseando-se no seu alter ego18. Tal como Caim, a Criatura de Frankenstein, expulsa pelo seu criador que se comporta como Deus ao desejar desvendar os segredos da natureza e criar vida, também se transforma num homicida, matando as pessoas mais próximas de Victor Frankenstein.

Além disso, tal como o Caim de Byron que, assim como o Adão de Milton, não pediu para ter nascido, também a Criatura de Frankenstein se insurge violentamente contra o seu Criador, que o rejeita. O Caim de Byron questiona-se: “What had I Done in this? I was unborn;/I sought not to be born; nor love the state/To which that birth has brought me” (Byron, 2008, pp. 67-69). A Criatura de Frankenstein, por sua vez, revolta-se contra o seu Criador nos seguintes termos, retirados de Paradise Lost de John Milton:

Did I request thee, Maker, from my clay To mould me man? Did I solicit thee

From darkness to promote me? (Book X, linhas 743-745)

Como Criador e Criatura, a situação de Caim em relação ao seu Criador, Deus, é assim análoga à daqueles.

15 A este propósito, ver De Vleminck (2010), que analisa a quase total ausência de Caim na obra de Freud e

enfatiza a importância desta personagem bíblica para a teoria psicanalítica e para uma abordagem da vio-lência humana.

16 Significativamente, no contexto de uma panóplia imensa de ressonâncias intertextuais, John Polidori, o médico

de Byron, que participava nas visitas assíduas e conversas com Mary e Percy Shelley, entre outros, no verão de 1816, escreveu um romance, Ernestus Berchtold: The Modern Oedipus, publicado em 1819, cujo título e, em parte, também a temática, ecoa e presta homenagem a Frankenstein de Mary Shelley.

17 O próprio Caim refere que já se se chamou abel (Saramago, 2009, p. 98). Lilith, por seu turno, observa “tu,

caim, és também abel” (2009, p. 133). Martins vai mesmo mais longe quando considera Caim como “duplo ou doppelganger” (2014, p. 172) de Saramago.

18 Como Quinones (2014, p. 11) observa, o tema do irmão sacrificado tem grandes potencialidades para indicar

“a lost portion of the self, a self that is abandoned, sundered, the twin, the double, the shadowy other, the sacrificed other that must be gone and yet can never be gone”.

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Em Caim de Saramago Caim transforma-se na última pessoa à face da Terra, após o dilúvio, tendo matado Noé e toda a sua família na Arca, não deixando uma única mulher, negando assim a Deus, num desfecho inesperado, o seu desígnio de criar uma nova humani-dade, livre dos vícios da que fora castigada com a morte pelo dilúvio. Mais uma vez, e ironi-camente, Caim matou outros seres humanos enquanto, na verdade, pretendia atingir Deus. Também Frankenstein, quando confrontado pela sua Criatura que lhe pede para criar um outro ser do sexo feminino para sua companheira, embora inicialmente aceda e concorde parcialmente com a argumentação da Criatura, acaba por não ser capaz de levar a cabo essa obra e lança ao lago os restos da criatura do sexo feminino que, tal como Pigmalião e Prometeu, estava a moldar, destruindo assim o sonho de uma nova espécie, tal com fizera Caim de Saramago. Prosseguindo a complexa teia de ressonâncias e ecos que ligam estes textos, Caim transforma-se no “último homem” do romance de Mary Shelley The Last Man (1826), o único sobrevivente de um surto de peste que assolou a Europa, vagueando cada vez mais solitário até ficar completamente isolado, como Caim.

Por seu lado, Victor Frankenstein, ao conferir vida a um corpo inanimado, pode ser comparado, numa perspectiva subversiva e herética, a Jesus ressuscitando Lázaro. Pros-seguindo esta lógica, é a recusa de aceitar a mortalidade humana que une vários destes Cains a Victor Frankenstein e a uma certa húbris científica que ambiciona prolongar a vida humana. De facto, tanto Victor Frankenstein como Caim se recusam a aceitar a inevitabili-dade da morte, unidos numa longa linhagem de personagens que ambicionam descobrir o elixir da vida e contornar a fatalidade da morte.

BACk TO METHUSELAH: LONGEVIDADE DISTÓPICA

Back to Methuselah: A Metabiological Pentateuch (1921) de George Bernard Shaw é

uma peça de teatro profundamente interessada no tema da imortalidade. Methuselah, filho de Enoch, pai de Lamec e avô de Noé, é descrito como o homem que desde os primórdios do mundo viveu mais tempo, 969 anos segundo a Bíblia, tendo morrido sete dias antes do Dilúvio (Gn 5, 21-27). Segundo o livro do Génesis (5, 5) Adão teria vivido 930 anos. A primeira parte, “In the Beginning”, introduz Adão e Eva no Paraíso, começando precisa-mente com o primeiro encontro de Adão com a morte, na forma de um pequeno veado, e a posterior constatação por parte de Adão e Eva que Abel afinal não estaria a dormir. No II Acto, cuja acção se desenrola alguns séculos mais tarde, Caim surge como um caçador, belicoso e revoltado contra os seus pais e contra Deus.

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A possibilidade de viver para sempre é equacionada e descrita como assustadora devido ao tédio que supostamente essa quase imortalidade iria acarretar. Adão detesta a ideia de viver para sempre, mas mais especificamente de ter de viver consigo próprio para sempre, “the horror of having to be with myself for ever” (Shaw, 1921, p. 65), talvez numa aproximação ao destino de Titono, a quem foi concedida a dádiva da imortalidade mas por esquecimento não a da juventude, condenando-o assim a envelhecer para sempre. Como Adão repete: “If only there may be an end some day, and yet no end! If only I can be relieved of the horror of having to endure myself for ever!” (Shaw, 1921, p. 72). A ideia de revolta contra a condição humana, acorrentada a um corpo finito, que anseia iludir o envelope inescapável que é o seu corpo, sujeito às vicissitudes da vida e do envelhecimento, é analisada por Levinas (1935). Como reflecte Levinas: “[Is] the need for escape not the exclusive matter of a finite being? Would an infinite being have the need to take leave of itself? Is this infinite being not precisely the ideal of self-sufficiency and the promise of eter-nal contentment?” (1935, p. 56). Este paradoxo é articulado por Adão quando explica: “I am tired of myself. And yet I must endure myself, not for a day or may days, but for ever. That is a dreadful thought” (Shaw, 1921, p. 65). Também Caim, ao contrário do Caim de Byron, considera a vida demasiado longa. Referindo-se às centenas de anos que Adão e Eva ainda têm pela frente, Caim observa: “life is too long. One tires of everything. There is nothing new under the Sun” (Shaw, 1921, p. 90). Embora tanto Adão como Eva sintam alívio quando lhes é dito que não vão viver para sempre, já que entendiam a imortalidade como um fardo, mantém-se uma certa insatisfação inerente à sua condição humana de seres mortais, apesar de terem uma esperança de vida de cerca de mil anos. Neste con-texto, Eva interpela Caim, criticando-o por acreditar que “nothing but death or the dread of death makes life worth living” (Shaw, 1921, p. 91). No que poderia ser um diálogo crítico com Freud, para quem “the aim of all life is death” (1920, p. 311), ou seja, é a morte que dá sentido à vida, Caim especula que “death plays its part in life” (Shaw, 1921, p. 92). Ana-logamente, para Saramago a “vida precisa da morte” (2010, p. 182) enquanto “a finitude é o destino de tudo. O Sol, um dia, apaga-se” (2010, p. 184)19. Por seu turno, e numa veia mais próxima da do Caim de Byron, Caim questiona os seus pais sobre quem inventou a morte, atribuindo-lhes implicitamente a culpa pela sua condição de mortal. Enquanto Adão sublinha que experienciou o terror da eternidade e da imortalidade, utilizando mesmo a

19 Existe uma longa e complexa tradição filosófica em volta destas questões que por motivos de espaço não

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terminologia de Levinas quando exclama “there is no escape!” (Shaw, 1921, p. 92), confes-sando que ele próprio e Eva tinham sido responsáveis pela invenção da morte, mantém-se ainda assim esta contradição fundamental entre a ânsia pela imortalidade e o fardo de ter de se viver consigo próprio ad aeternum. Com efeito, de acordo com Levinas, “the paradox of being remains intact when we free ourselves of time and grant ourselves eternity. Eter-nity is just the intensification, or radicalization, of the fatality of that being, which is riveted to itself. And there is a deep truth in the myth that says that eternity weighs heavily upon the immortal gods (Levinas, 1935, pp. 70-71). Esta ideia do taedium vitae, o aborrecimento causado pela repetição ad infinitum da vida de um imortal é aliás uma ideia recorrente na literatura, e é dramatizada na última parte de Back to Methuselah, em que os Anciãos vivem centenas de anos, isolados e absortos nos seus pensamentos. Saramago, por seu turno, observa, no enquadramento desta discussão filosófica, que “viver eternamente nunca podia ser uma coisa boa” (2010, p. 183). Elaborando esta noção, Saramago considera que “o pior que poderia acontecer ao homem seria não morrer, porque uma vida eterna transfor-mar-se-ia numa velhice eterna” (2010, p. 185), como foi o caso de Titono. No contexto do romance As Intermitências da Morte (2005), Saramago revisita Freud quando reflecte que “temos que morrer para viver” (2010, p. 332).

Uma vida longa aliada a um estado físico de juventude e saúde seria certamente dese-jável, uma ambição que, embora operativa desde que os primeiros seres humanos surgiram, é cada vez mais premente na sociedade contemporânea, profundamnete narcísica e obce-cada com a obtenção da eterna juventude e do prolongamento da vida. A rebeldia contra Deus e a sua imposição de mortalidade, que a ciência tenta evitar, podem assim ser vistas, a partir deste prisma, como heranças de Caim, o caminhante eternamente insatisfeito.

CONCLUSÃO

Quais são então algumas das ressonâncias da história bíblica de Caim e Abel na socie-dade contemporânea? As duas que salientei e que me parecem profundamente relevantes são a rebeldia contra o poder estabelecido e entendido como tirânico e, por outro lado, a revolta contra outra tirania, a da morte. Neste contexto, uma das questões fundamentais abordadas nestas narrativas é a temática da liberdade do ser humano, que é repetida-mente questionada por Caim. A existência da morte pode ser interpretada como coartando fundamentalmente essa liberdade, visto que aquela introduz uma irrevogável finitude na

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duração da vida humana, governada pela opressão da morte imposta por Deus, segundo a narrativa bíblica20.

Desta perspectiva, como mitos criadores, com numerosos ecos em desenvolvimentos científicos actuais e antecipados, mitos esses que incluem uma ambígua relação com a pos-sibilidade do prolongamento da vida (uma extensão já parcialmente conseguida ou ima-ginada pela ciência) algumas destas histórias, como herança de Caim, possuem uma cada vez maior actualidade. De facto, o Caim de Byron pode ser visto como um trans-humanista

avant la lettre, um Ray Kurzweil ou Aubrey de Grey que defendem e incentivam o uso de

tecnologias emergentes para melhorar a saúde humana, aumentar substancialmente a esperança de vida e, no limite, atingir uma longevidade que poderá colmatar numa quase imortalidade. Deste ponto de vista, Caim, o vagabundo perenemente descontente, é assim uma personagem profundamente moderna, insurgindo-se contra o que ele entende como a punição inaceitável de um Deus “injusto”, a traição da morte, ambicionando a longevi-dade ou mesmo imortalilongevi-dade apanágio de Deus e dos anjos, um sonho que a ciência e a medicina se esforçam por realizar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Anderson, G. (1991). The Legend of the Wandering Jew. Providence, RI: Brown University Press.

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RESUMO

O objectivo deste ensaio é analisar algumas personagens que de várias maneiras descendem temática e simbolicamente de Caim, assim como dois tópicos intimamente relacionados com essas figuras: a imor-talidade e o Duplo.

Nessa linhagem de descendentes de Caim situam-se os protagonistas do romance Frankenstein (1818; 1831) de Mary Shelley e Cain de Lord Byron (1821), uma peça que Shelley admirava. Tanto Frankenstein como

Cain são por sua vez profundamente devedores do poema épico Renascentista de Milton, Paradise Lost,

que William Blake, um confesso admirador de Cain de Byron, ilustrou profusamente, incluindo litografias de Caim. A concentração da minha análise fundamentalmente em obras do período Romântico decorre do aumento de visibilidade e interesse na temática do Herói, que assume várias características comuns às personagens principais das obras mencionadas: a rebeldia contra Deus, a identificação com Lúcifer, a ânsia de imortalidade e revolta contra a condição humana, agrilhoada a um corpo finito. A presença de um Duplo, o castigo de ter de vaguear solitário, assim como o não assumir a responsabilidade pelos seus actos, abandonado aquele que se tornou na sua vítima são outros traços partilhados e salientes. As seme-lhanças entre Caim e Abel e os protagonistas de Frankenstein, Victor Frankenstein e a sua Criatura, também eles alternando entre Criador e Criatura, Deus e Lúcifer, irmãos e Duplos, são numerosas e significativas, assim como entre Cain de Byron e o Caim de José Saramago (a temática da Morte e do Duplo, de resto, atravessam e estruturam a obra saramaguiana).

Como mitos de criação, com numerosos ecos em desenvolvimentos científicos actuais e antecipados, mitos esses que incluem uma ambígua relação com a possibilidade do prolongamento da vida (uma extensão parcialmente conseguida ou imaginada pela ciência) estas histórias, como herança de Caim, possuem uma cada vez maior actualidade.

ABSTRACT

This essay analyses a number of characters that are literary descendents of Cain, as well as two topics inex-tricably connected with it: immortality and the Double. In this context Mary Shelley’s Frankenstein (1818; 1831) and Lord Byron’s Cain (1821), a play Shelley admired, are examined. In turn, both Frankenstein and

Cain were deeply influenced by Milton’s Paradise Lost, which William Blake, who also thought highly of

Byron’s Cain, profusely illustrated, including lithographs portraying Cain.

As a prototypical Romantic hero, Cain represents the wandering rebel, who defies God’s imposition of death on humanity, identifies with Lucifer and yearns for immortality. Cain’s similarities with Shelley’s Frankens-tein and his Creature are numerous and telling, including the rebellion against their Creator, who eschews responsibility by abandoning them, as well as their positioning as Doubles. In related vein, Saramago’s Cain shares a number of characteristics with Byron’s and George Bernard Shaw’s Cain.

As creation myths, these narratives of rebellion against the tyranny of death, seen as an act of betrayal by an omnipotent, despotic God, are profoundly contemporary and topical, articulating the wish for a longer life that scientific advances promise to deliver in the not too distant future. Cain can thus be seen as a very modern character, articulating the ambitions of transhumanists and others who envisage life extension and the permanent removal of death.

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