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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO MESTRADO EM TEATRO

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEATRO

MESTRADO EM TEATRO

PATRÍCIA DOS SANTOS SILVEIRA

O TEXTO QUE NASCE DO CORPO

Relações entre escrita e oralidade na construção do texto teatral

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PATRÍCIA DOS SANTOS SILVEIRA

O TEXTO QUE NASCE DO CORPO

Relações entre escrita e oralidade na construção do texto teatral

Dissertação apresentada à Universidade do Estado de Santa Catariana (UDESC), Programa de Pós-Graduação em Teatro – Linha de Pesquisa: Teatro, Sociedade e Criação Cênica – como requisito parcial e último para a obtenção do título de Mestre em Teatro.

Orientador: Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel

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PATRÍCIA DOS SANTOS SILVEIRA

O TEXTO QUE NASCE DO CORPO

Relações entre escrita e oralidade na construção do texto teatral

Dissertação aprovada como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre no Programa de Pós - Graduação em Teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina – UDESC, em 12 de março de 2012.

Banca Examinadora:

Orientador: ___________________________________________________ Prof. Dr. Stephan Arnulf Baumgärtel

Membro: ___________________________________________________ Profa. Dra. Beatriz Ângela Cabral

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família Vera, Getúlio e Gabriele pelo apoio para a realização dos meus estudos, assim como por todo o amor que sempre me dedicaram. Agradeço a Daniel Soares Duarte pelo apoio e amizade sem fins durante esse momento da minha vida. Agradeço ao Prof. Dr. Stephan Baumgärtel por ter sido meu orientador nesse trabalho de pesquisa, permitindo que eu aprendesse com suas reflexões, questionamentos e provocações sobre o papel da dramaturgia, principalmente em nosso tempo atual, ajudando a ampliar meu olhar sobre o texto teatral, assim como na experienciação de novas formas de pensar a palavra no

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RESUMO

SILVEIRA, Patrícia dos Santos. O texto que nasce do corpo: relações entre escrita e oralidade na construção do texto teatral. 180 fls. Dissertação (Mestrado em Teatro) – Universidade do Estado de Santa Catarina. Programa de Pós-Graduação em Teatro. Florianópolis, 2012.

O presente trabalho discute a relação entre escrita e oralidade na criação de dramaturgia. Analisa as características específicas de cada modo de utilizar a linguagem verbal, questionando os paradigmas estabelecidos nas formas de entender o texto teatral. Para isso, questiona o tratamento dado às criações orais dos atores em situações nas quais não contam com um texto escrito em sua origem para a construção do texto verbal. Entende que a escrita constitui uma forma de tecnologia para construção textual surgida ao longo da história e que, nesse sentido, não dá conta da totalidade da experiência com a linguagem verbal em sua totalidade. O objetivo é recolocar a criação oral do ator sob outro ponto de vista, entendendo suas características a partir da discussão sobre a oralidade e colaborar, desse modo, para uma melhor utilização desse recurso em processos que o utilizem para a construção do texto final ou texto espetacular. Os principais teóricos utilizados foram Walter Ong, que estuda as relações paradigmáticas entre escrita e oralidade, as quais, segundo ele, representam formas mentais e culturais distintas de relacionar-se com a linguagem verbal, o que conduz a procedimentos de criação verbal e características específicas para cada forma de textualidade; e Paul Zumthor, o qual reflete sobre essas diferenças no campo da arte, entendendo que a criação essencialmente oral pressupõe construção verbal e performance vocal na mesma instância de criação, dando-se, no caso da improvisação, no mesmo tempo e espaço da performance. A metodologia utilizada foi o levantamento e análise de fontes bibliográficas sobre escrita, oralidade e o texto no teatro, o acompanhamento dos ensaios e realização de entrevistas com um grupo teatral que baseia seu processo de construção de dramaturgia na improvisação do ator (Grupo teatral UTAUsina do Trabalho do Ator, da cidade de Porto Alegre); e descrição e análise de exercícios de improvisação, desenvolvidos numa experiência prática realizada durante a pesquisa, para a construção de dramaturgia. A partir dos dados observados e da prática desenvolvida, inicialmente, foi possível perceber que a escrita e a oralidade possuem formas distintas de serem experienciadas e produzidas pelo ator, o que reflete em certas diferenças na construção do texto teatral. Essas diferenças, mais do que determinarem resultados, referem-se a aspectos do processo de construção do texto verbal, modo como ele pode ser contextualizado e, consequentemente, experienciado enquanto obra teatral. Contudo, essas questões ainda não são completamente reconhecidas pela teoria do texto teatral, a qual oferece um entendimento sobre o signo linguístico no teatro como algo essencialmente ligado ao fenômeno da escrita. Além disso, foi visto que uma dramaturgia criada oralmente, sem a utilização da escrita enquanto técnica de composição textual, tende a colocar corpo e palavra como suportes um do outro, construindo uma unidade criativa para o ator. Esta criação verbal parte de uma relação sígnica constituída de todos os elementos teatrais envolvidos na elaboração cênica e, por isso, apenas nesse contexto pode assumir valor estético e formal de obra teatral. O reconhecimento das características e das diferenças entre escrita e oralidade na elaboração do texto de teatro pode orientar novas buscas para a construção de dramaturgia a partir do trabalho do ator, assim como trazer novas luzes ao papel do signo linguístico no evento teatral, amparando-se, para isso, na problematização e na criação de novos olhares sobre a relação entre corpo e palavra.

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ABSTRACT

I discuss here the relation between writing and orality in the process of creating a theatrical text. I analyze specific features of both modes of using human language, by calling into question established paradigms on how to understand a theatrical text. In order to do that, I focus on actors’ creative oral performances, in instances that do not have written texts as their point of origin to create verbal text. I understand that writing is a form of textual technology that has been developed throughout history and that, in this sense, it does not realize verbal language thoroughly. My purpose is to view the performers’ oral creation under a different light, by trying to understand the role of orality, thus working towards a better use of it as a resource, in processes that employ orality as main source for the final, theater text. The main theories used were those of Water Ong and Paul Zumthor. Ong deals with paradigmatic relations between writing and orality, which, according to him, represent mental, body and cultural distinct forms of relating to verbal language, and that leads to procedures for verbal creation and specific characteristics of each mode of textuality. Zumthor considers the aforementioned differences applied to art, and understands that a creation that is essentially oral presupposes verbal construction and vocal performance in the same creative instance, which means that they happen, as in the case of improvisation, at the same time and in the same space of that of performance. I have used three methodologies: assessment and textal analysis of works on writing, orality and text in theater; attending rehearsals and interviewing a theater company that grounds its dramaturgy on players’ improvisation (the company is called UTA - Usina de Trabalho do Ator, located in Porto Alegre); and description and analysis of improvisation exercises to develop a textual dramaturgy, which were created during research. From data obtained and from the practice developed, it was possible to see that writing and orality have distinct forms of being experienced and produced by the actor, which reflects in certain differences in the making of theater text. These differences, more than determining results, refer back to aspects in the process of the making of verbal text, on how it can be contextualized and, consequently, experienced as theater. However, these questions are still not completely acknowledged by theories on the contemporary theater text, which offers an understanding of linguistic sign in theater as something essentially tied to the phenomenon of writing. Besides, it was seen here that a dramaturgy created orally, without using writing as a technique for textual composition, tends to set body and word as mutual supports, making up a creative unity for the actor. This verbal creation starts from a signical relation, constituted by all dramatic elements that are involved in scene elaboration, thus only in that context it can take the aesthetic and formal value of play. Acknowleding characteristics and differences between writing and orality in text creation for theater can guide new research in creation of drama, based on the player. It can also bring new light on the role of linguistic sign in theater, based on problematizing and creating new perspectives on the relation between the actor's body and the spoken word.

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Sumário

Introdução...9

1 Oralidade e Escrita no texto teatral – Visões e paradigmas...21

2 A questão do texto...44

3 O texto verbal no 5 Tempos para a morte...58

4 Uma poética da oralidade...80

5 O texto que nasce do corpo...97

6 Jogos de linguagem – Oralidades possíveis e uma experiência prática...112

Considerações sobre a prática...130

7 Provocações e desafios da oralidade imediata no evento teatral...144

Considerações finais...160

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Até hoje perplexo ante o que murchou e não eram pétalas.

De como este banco não reteve forma, cor ou lembrança.

Nem esta árvore balança o galho que balançava.

Tudo foi breve e definitivo. Eis está gravado

não no ar, em mim, que por minha vez escrevo, dissipo.

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INTRODUÇÃO

Ao escrever, os pensamentos podem ser alinhados. Uma vez que, se não escritos e em si mesmo abandonados, movem-se em círculos. Esse circular dos pensamentos, em que cada um pode se voltar para o interior, chama-se em contextos específicos, de “pensamento mítico”. Os sinais gráficos são aspas oriundas do pensamento mítico transformado em um pensar alinhado linearmente. Denomina-se esse pensamento correto (…) de “pensamento lógico”. Os sinais gráficos são aspas para o pensamento lógico. Vilém Flusser. A escrita.

Este trabalho de pesquisa nasceu de um certo incômodo ao ouvir determinadas colocações feitas em salas de ensaio, corredores, entradas e saídas de espetáculos teatrais. Ouvi muitas vezes, em situações diferentes, pessoas falarem que todo texto teatral criado a partir da improvisação do ator era ruim. Contudo, ao mesmo tempo em que ouvia essas colocações, vinham à minha recordação cenas belas e transformadoras que já havia visto em sala de ensaio ou em apresentações de trabalhos, de forma que guardo imagens e sensações de já ter vivido experiências teatrais muito ricas com esse tipo de criação textual, seja como público ou como atriz.

Diante desse descompasso entre minha experiência como artista, espectadora e

estudante de teatro e as observações que ouvia sobre a dramaturgia construída pelo ator em cena, comecei a me perguntar o que podia explicar esse conflito de sentimentos e percepções. As colocações que ouvi sobre essa dramaturgia talvez não tivessem nenhuma importância intelectual, pois acredito que as pessoas que as fizeram não falaram baseadas em nenhum tipo de reflexão mais profunda sobre a linguagem no teatro. Foram observações baseadas no senso comum e sem critérios de julgamento. Contudo, esse conflito entre um tipo de visão e o sentimento questionador que ele me despertou me impulsionou a tentar entender o que poderia haver de especial nesse tipo de dramaturgia construída pelo ator.

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tempo de pesquisa, dei-me conta de que o elemento ausente nesse tipo de construção era a

escrita, enquanto recurso material e tecnológico para trabalhar sobre o signo linguístico. Por oposição a esse termo, a partir de leituras e reflexões, cheguei à palavra oralidade. A partir de

pesquisas bibliográficas encontrei então a possibilidade de situar essa problemática nas diferenças entre escrita e oralidade como fundamentos que podem organizar a diferença entre a criação de um dramaturgo e de um ator na elaboração do texto teatral. Para isso, utilizo aqui a noção de escrita utilizada por Paul Zumthor, para quem ela é definida como sendo todo “sistema visual de simbolização exatamente codificada e traduzível em língua”1. Dessa forma, na criação dramatúrgica do escritor e do ator, pode-se observar que se um se fundamenta essencialmente no trabalho com a escrita, o outro fundamenta-se no seu trabalho em cena. Se um pensa na palavra que escreve para que depois ela seja oralizada, o outro, estando em situação de improvisação teatral, só tem diante de si um objeto efêmero e ligado à situação teatral presente, sua fala. Desde então, essa diferença entre uma criação que se apoia na escrita (como fonte, recurso ou fim do texto verbal) e uma na oralidade que só existe enquanto

fala passou a guiar este trabalho de pesquisa.

A partir dessas percepções, o interesse está voltado no presente trabalho para as relações entre escrita e oralidade na construção do texto teatral. O objetivo principal é refletir sobre um aspecto referente à sua origem: um texto escrito (documentado e fixado em forma visual) ou um texto gerado a partir da improvisação do ator em cena (que não existe enquanto objeto linguístico fora do evento teatral. Essa discussão tem, então, como fundo essencial duas experiências distintas com a palavra no evento teatral: a experiência de ler um texto em formato de livro, manuscrito ou virtual, e em algum dia assistir sua encenação teatral (estabelecendo algum diálogo entre sua leitura e o evento teatral) e a de assistir uma

encenação cujo texto verbal só existe ali, no evento teatral, sem nenhum registro para o texto verbal fora de sua vocalização. Para o ator, isto representa também duas experiências específicas: de um lado, a de decorar um texto escrito e vocalizá-lo em cena, através de um complexo trabalho de performatização teatral e, de outro, a de compor – juntamente com sua criação corporal – o texto verbal que fará parte da cena. Neste caso, a palavra dita por ele nasce do conjunto de seu trabalho de atuação, do momento presente de sua improvisação, da relação que estabelece com os outros signos teatrais e da sua relação ficcional com os outros actantes e com o público (ainda virtual no momento de construção do espetáculo). Essas experiências marcam sobretudo formas distintas na origem do texto teatral e, consequentemente, significam processos particulares de criação e de relação com o signo verbal.

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Contudo, entendo que essas duas experiências podem coexistir em graus diversos, e não são necessariamente excludentes. Um texto verbal pode ser gerado a partir de um roteiro inicial e depois ser improvisado, ou pode ser improvisado e depois fixado na forma escrita,

variando infinitamente essa relação e esse movimento entre escrita e oralidade conforme o processo estabelecido. Além disso, uma vez iniciado o processo de construção da encenação e sendo ela apresentada ao público, essa origem (escrita ou oral) pode mesmo passar desapercebida e o público nem mesmo levá-la em consideração ao experienciar a obra teatral. Considero a discussão sobre essa origem do texto teatral importante para o aprofundamento do estudo do fenômeno linguístico no teatro, uma vez que ela constitui experiências verbais distintas, resultantes de processos específicos.

Este trabalho pretende, então, aprofundar o olhar sobre a palavra no fenômeno teatral quando ela não tem uma origem escrita. Afinal, que diferenças há entre uma encenação que tem um texto escrito na base do signo linguístico e uma que só existe oralmente? Como olhar para a fala do ator quando ela não tem nenhum tipo de registro quirográfico? Qual a natureza da palavra nesses dois tipos de origem verbal, uma escrita e uma exclusivamente oral? Como analisar, julgar e experienciar a palavra nesses dois tipos de relação com a fala? Há diferenças? Se ela existem, quais são? O que pode significar essas diferenças para o fazer teatral? Essas são as questões que movem o presente trabalho. O objetivo é refletir sobre sobre a experiência de ter diante de si uma fala que só existe ali, na efemeridade do evento teatral, que não pode ser revisitada a não ser pela memória de quem a ouviu sendo dita pelo ator, por sua voz e seu corpo únicos, naquele espaço e naquele tempo fugaz do acontecimento teatral.

Para isso, a oralidade é entendida a partir da classificação desenvolvida pelo teórico

Walter Ong no livro Oralidade e cultura escrita2. Segundo ele, a oralidade é dividida em dois

tipos: oralidade primária e oralidade secundária. A primeira corresponde às situações em que a criação linguística não utiliza a escrita como suporte para seu desenvolvimento – diz respeito principalmente a culturas não influenciadas pela escrita. A segunda, oralidade secundária, refere-se à produção linguística que tem a escrita como formadora dos parâmetros da linguagem verbal e, principalmente, utiliza a escrita em sua origem para criações que depois serão vocalizadas (ou seja, passarão do visual ao oral). Essa diferença estabelecida por Walter Ong interessa para relocar o entendimento da linguagem verbal em nossa cultura sob outro ponto de vista. Ela ajuda a pensar o uso da língua fora do paradigma desenvolvido ao longo da história pela escrita e a repensar as características de uma oralidade pura ou

essencial, aquela que não passou pelo pensamento e pela técnica quirográfica. Esses dois

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polos, contudo, podem ser vistos como os extremos de uma escala de cores, na qual identificamos opostos entre um extremo e outro, mas que na verdade constituem apenas uma variação entre um e outro, sem nunca excluírem-se totalmente. Em nossa cultura, uma forma

de usar a linguagem verbal não é, de forma alguma, excludente da outra, mas pode ser vista como variável em intensidades e influências de certas características.

Walter Ong deixa claro que há níveis de interferência entre a escrita e oralidade. Essa aparente oposição no uso da linguagem verbal ajuda, contudo, no que diz respeito ao teatro, a relativizar as formas de entender a fala do ator e a escrita do texto dramático, uma vez que faz ver a escrita como o uso de um tipo de técnica ou tecnologia específica e o dramaturgo/escritor como um especialista da escrita, ao passo que a fala essencialmente oral pode ser vista como uma criação com especificidades próprias, sem a visualidade e a perenidade da outra.

Em uma cultura letrada, como a nossa, as interferências e variações entre uma e outra forma de usar a linguagem verbal são infinitas, mas essa polarização, em um primeiro nível, ao apontar para a ausência ou presença da escrita, ajuda a desenvolver um outro olhar sobre a oralidade. Afinal, o que significa para o teatro criar sua dramaturgia a partir da criação oral do ator, sem a utilização da escrita como recurso para sua criação e, consequentemente, sem o trabalho de um especialista (o dramaturgo)?

A reflexão de Walter Ong sobre esses dois tipos de oralidade (primária e secundária) interessa para pensar o texto teatral porque colabora para o desenvolvimento de um olhar sobre a oralidade da língua fora dos paradigmas da escrita. Sua contribuição está principalmente em ajudar a desenvolver uma percepção capaz de entender a oralidade (nas situações em que não há um texto escrito em sua origem) como um fenômeno específico da

linguagem verbal, e que consequentemente possui circunstâncias de produção, recepção e representação teatral próprias. A consequência desse olhar leva a ver a improvisação oral do ator com outros valores, funcionando sob outras formas de elaboração cênica. Ao improvisar, ele cria uma palavra que só existe enquanto texto teatral na efemeridade da cena. Sua fala está por isso ligada a esse aqui e agora do processo e depende para sua significação de seu contexto de fala, aspectos que serão melhor desenvolvidos principalmente nos capítulos 5 e 6.

Paul Zumthor utiliza o termo oralidade imediata para se referir à criação verbal baseada nessa oralidade sem escrita da qual fala Walter Ong. Para ele os termos primária e

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aspecto circunstancial da fala sem escrita, sua ligação com o contexto existencial (real ou ficcional) do falante.

Tanto Paul Zumthor quanto Walter Ong utilizam esses termos para referir a culturas

que desconhecem a escrita e por isso possuem uma oralidade não influenciada por esta. Paul Zumthor critica em seus livros, A letra e a voz e Introdução à poesia oral, o binarismo de uma classificação que opõe oralidade e escrita. Porém, ainda que ele e outros autores que tratam do tema da oralidade critiquem essa divisão binária, seus objetos de estudos parecem não superar esse dualismo. Os temas comuns quando se trata da relação entre oralidade e escrita são normalmente estudos de etnografia em grupos que não conhecem a escrita, textos da cultura medieval ligados a uma cultura oral, educação e letramento de grupos analfabetos, entre outros. Há, dessa forma, uma grande escassez de estudos sobre a oralidade em nossa cultura ocidental, letrada e urbana do século XX e começo do século XXI3. Paul Zumthor tenta romper com essa oposição apontando para a música como um fenômeno atual de busca por um valor da voz e, consequentemente, da oralidade em nossa cultura. Contudo, não chega a aprofundar a análise da música com os elementos de nossa atualidade numa relação sincrônica, no interior da mesma cultura. Ele privilegia uma comparação da música atual, como o rock, por exemplo, com questões da oralidade na Idade Média ou em culturas sem escrita.

Na tentativa de ir um pouco mais além nessas questões, entendo que os termos oralidade primária, oralidade imediata e oralidade secundária podem ser utilizados para além dessa oposição entre culturas letradas e não-letradas. Afinal, tudo que eles apontam como sendo próprio de uma cultura sem escrita pode ser encontrado em nossa sociedade brasileira atual, coexistindo com formas mais influenciadas pela escrita, sem marcarem uma oposição

clara entre uma e outra. Para Ana Maria de Oliveira Galvão e Antônio Augusto Gomes Batista:

No caso brasileiro, assim como no de outros países de escolarização e de difusão da imprensa tardias, ganha relevância, desse modo, a investigação sobre o papel

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desempenhado por práticas intelectuais ainda ancoradas na oralidade, no uso do manuscrito, na memorização e que utilizam outros vetores além da escrita, como as sociabilidades das feiras, das peregrinações ou o rádio. Nesse sentido, há certamente um amplo programa de pesquisas ainda por ser feito, buscando compreender melhor as especificidades da construção de culturas escritas nos diferentes espaços e tempos no país4.

Nesse sentido, a oralidade, principalmente no contexto brasileiro, constitui um amplo campo de pesquisa a ser explorado, dada a diversidade de influências da escrita em nossa cultura, na qual coexistem em seu interior contextos completamente letrados e contextos que

ainda podem ser identificados como ligados a oralidade primária, sendo por isso, um contexto cultural complexo que ultrapassa essa dicotomia entre esses dois paradigmas. Ao lado disso, estudar essa relação entre escrita e oralidade num contexto artístico além de contribuir para o aprofundamento dessa problemática cultural, colabora para pensá-lo enquanto procedimento de criar diferentes relações com a linguagem verbal, apontando para diferentes tratamentos do signo linguístico, e, assim, transformando essa questão cultural numa questão estética.

Dessa forma, os termos primária, imediata e secundária permitem que seus princípios teóricos sejam recolocados de forma a colaborar para uma análise da oralidade em nossa cultura atual, complexificando essa relação. O termo primária, utilizado principalmente por Walter Ong, aponta para o princípio básico da linguagem que é sua oralidade fundamental, na qual a língua é primeiramente um fenômeno oral para somente depois ser escrita5. Com isso,

utilizar esse termo ressalta essa característica da linguagem que é sua oralidade básica. O termo imediata aponta para a ligação da oralidade com as circunstâncias de fala, característica presente em nossa cultura toda vez que falamos dentro um contexto presencial e eventual. Já o termo secundária, para tratar de uma oralidade influenciada pela escrita, serve para pensar nos muitos tipos de influência que ela pode ter sobre numa construção verbal (como modelo, origem, norma, ou recurso para transformação do objeto verbal). Dessa forma, ainda que os autores utilizem esses termos para diferenciar basicamente culturas não-letradas de culturas letradas, suas terminologias e definições podem ser aplicadas para entender fenômenos simultâneos da oralidade em nossa cultura, ou seja, sistemas de signos escritos e orais que

coexistem no mesmo tempo histórico e social no interior de um mesmo grupo social. Essas definições e termos não servem para pensar apenas a linguagem verbal em culturas distintas, mas a oralidade no seio de uma mesma cultura, por exemplo a nossa. Do ponto de vista cultural, fazemos parte de uma oralidade secundária, na qual a escrita interfere no uso da linguagem como um todo. Porém, dentro desse bloco apontado como de oralidade secundária, há movimentos e níveis dessa influência. Mesmo em parte de nossa cultura altamente

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influenciada pela técnica da escrita, não temos o modelo de valores e a experiência que ela proporciona como determinante de toda nossa experiência com a linguagem verbal. Não nos comunicamos apenas por texto gráficos, gravados em objetos visuais como papeis e telas. As

características de uma oralidade identificada e definida como pura, primária ou imediata

nunca deixaram de existir. Elas coexistem mesmo em meios altamente letrados e eruditos. É a partir do entendimento dessas questões que proponho uma reflexão sobre a origem do texto teatral quando ele tem uma origem essencialmente oral (sem um texto escrito na origem da improvisação do ator).

Paul Zumthor utiliza a teoria de Walter Ong para pensar especificamente a oralidade do ponto de vista artístico, mas utiliza toda a teoria do primeiro como suporte para a sua. Com isso, escolho estes dois autores como base principal de minha reflexão, pois o primeiro colabora para uma mudança de paradigma e o segundo para a reflexão sobre o papel da oralidade mais especificamente no contexto das artes.

Diante da diferença entre uma oralidade secundária (definida, controlada, produzida ou pensada a partir do modelo escrito) e uma oralidade imediata (ligada à situação de fala em que se dá a improvisação do ator), vê-se que essas duas formas de lidar com a linguagem verbal apontam para experiências de criação diferentes do texto dramático. Escolho utilizar o termo

oralidade secundária de Walter Ong para referir-me aos usos da língua em que a escrita textual faz parte da criação teatral enquanto recurso para a construção do texto linguístico (seja em seu início, meio ou fim) e o termo oralidade imediata (de Paul Zumthor) para referir-me à dramaturgia construída na improvisação quando esta não passou por nenhuma construção quirográfica para definir as falas dos atores. No primeiro caso, a oralidade secundária, o grau de interferência da escrita pode variar, de modo que as falas dos atores

podem ser totalmente definidas por um texto pré-existente ao processo de ensaio (no caso da utilização de um texto clássico, por exemplo), ou constituir uma oralidade mista – que conta com a improvisação do ator, mas que depois transforma esta a partir do trabalho de um dramaturgo, como nos processos colaborativos6, por exemplo.

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Com base nessas questões, ao longo do trabalho foi feito um levantamento teórico dos aspectos mais relevantes sobre a escrita e oralidade e tentou-se, a partir das fontes bibliográficas pesquisadas, estabelecer um outro olhar sobre a criação oral do ator nos

momentos em que não há a utilização de um texto escrito anterior ao seu trabalho de cena. A questão faz-se importante diante da grande utilização, em processos de criação contemporâneos, da improvisação do ator para a construção do texto verbal espetacular. Um exemplo dessa prática são os processos colaborativos, que partem da improvisação do ator para a criação do material verbal que comporá o texto escrito, o qual, por esse motivo, relaciona-se tanto com a criação verbal imediata quanto com a criação verbal escrita. Meu interesse não é sobre esses processos enquanto prática de teatro de grupo, nos seus aspectos sociais e políticos, mas sobre a forma como a linguagem verbal é utilizada nesses processos. Acredito que tratar as diferenças entre oralidade e escrita pode colaborar profundamente para o entendimento do papel da linguagem no teatro, a relação da língua com o evento cênico e com o trabalho corporal do ator, além de ajudar na criação e no aprofundamento de formas de improvisação e criação de dramaturgia.

Diante disso, é fundamental ressaltar que o objetivo de trazer essa reflexão sobre a oralidade imediata no evento teatral não é fazer um manifesto em defesa da criação oral do ator, mas estabelecer uma reflexão intelectual sobre esse tipo de criação, colaborando para o aprofundamento do pensamento sobre a dramaturgia e, consequentemente, sobre o papel do signo linguístico no fazer teatral. Não é meu interesse fazer um elogio ao ator autor, como se esta forma de criação fosse mais democrática do que outras. Não concordo com esse tipo de posicionamento que coloca certas formas de organização da criação teatral como melhores que outras. Acredito que distintas formas de organização e de criação teatral podem conduzir

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diferença) a outro. Essa oposição, no entanto, é mais por incapacidade de superar essa dificuldade do que por acreditar que uma seja melhor que a outra. Concordo com Paul Zumthor, o qual ao falar dessa dificuldade, também considera que oralidade e escritura,

embora sejam entendidas pela tradição numa visão dicotômica, “ao nível dos fatos e na sequência da história, estes termos aparecem como extremos de uma série contínua”7.

Por último, importa dizer que a reflexão sobre a oralidade imediata do teatro tem o objetivo principal de contribuir para o fim da ingenuidade sobre essa diferença entre escrita e oralidade comum nos textos e nos discursos sobre dramaturgia, como se a criação oral do ator (com origem em sua improvisação cênica) fosse igual à criação de um dramaturgo. Elas têm origens e recursos de criação linguística distintos ao longo de sua formação, logo exigem uma reflexão mais profunda sobre suas especificidades e diferenças. Olhá-las como uma massa homogênea, cujo único elemento distinguível é o signo linguístico, é desvalorizar suas capacidades expressivas. Esse é objetivo do trabalho – contribuir intelectualmente e teoricamente para a reflexão sobre a linguagem verbal no teatro, em suas infinitas possibilidades.

Além disso, tudo o que não diz respeito apenas a essa origem do texto teatral (improvisação oral do ator em cena ou texto escrito), faz parte de todo e qualquer evento teatral em que há linguagem verbal, uma vez que a oralidade faz parte da sua essência quando há utilização de signo linguístico. A palavra no teatro, salvo algumas exceções em que o signo verbal aparece na sua forma gráfica, tem sua existência em forma de oralidade, uma vez que é um texto criado e pensado para ser vocalizado por um ator. Logo, a oralidade faz parte da essência do texto teatral. Este trabalho apenas aponta para um aspecto referente a uma origem, entendendo que depois desse momento inicial, as questões relacionadas à vocalização de um

texto tendem a se aproximar, podendo inclusive desaparecer. Como já foi dito antes, pode-se assistir um espetáculo teatral sem se importar se seu texto é de origem escrita ou improvisacional. Essa informação diz mais respeito ao processo do que ao resultado final. Para isto, este trabalho aproxima a discussão entre escrita e oralidade do texto teatral, mas não necessariamente inventa esta problemática no âmbito mais amplo da cultura, uma vez que essas questões já existem mais definidamente em estudos teóricos sobre a linguagem desde o começo do século XX.

Em torno dessas questões, o trabalho está organizado, então, em sete capítulos. No primeiro, serão tratadas as questões normalmente identificadas como comuns à escrita e à oralidade, a partir do ponto de vista cultural que essas duas formas representam para o uso da linguagem verbal, tomando como base principal para a discussão os teóricos Walter Ong e

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Paul Zumthor. No segundo capítulo realizarei uma reflexão sobre as definições e paradigmas do texto teatral a partir da relação entre um oralidade secundária (determinada por um texto escrito) e uma oralidade imediata, criada oralmente na improvisação do ator, no qual será

problematizado o entendimento do texto teatral comumente entendido como necessariamente ligado ao fenômeno da escrita textual. No terceiro capítulo analisarei questões referentes ao processo de construção do espetáculo 5 Tempos para a morte, do grupo de teatro UTA. Com base na análise e na interpretação das entrevistas realizadas com os atores, serão abordados os procedimentos utilizados no processo de criação. No quarto capítulo serão abordados aspectos que podem ser identificados como constituintes de uma poética da oralidade. Serão discutidos os aspectos apontados por Walter Ong e Paul Zumthor para essa questão, assim como serão analisadas as características identificadas na poética desenvolvida no espetáculo 5 Tempos para a morte. O objetivo neste capítulo é entender como o signo verbal participa da poética do espetáculo a partir da sua relação com os outros signos teatrais. No quinto capítulo tratarei da relação entre o texto criado oralmente a partir da improvisação do ator e sua composição corporal em cena. O objetivo é analisar e refletir sobre a relação entre corpo e linguagem verbal no fenômeno teatral a partir das questões levantadas sobre a oralidade. No sexto capítulo será descrita e analisada um experiência prática realizada durante a pesquisa de Mestrado em Teatro na UDESC. Nesse momento serão descritos e alisados exercícios de criação verbal desenvolvidos durante a pesquisa. O objetivo é tentar pensar como esse modo de criação dramatúrgica pode ser articulado com diferentes formas de improvisação e de composição corporal. Por fim, no sétimo e último capítulo será desenvolvida uma reflexão sobre os desafios que esse tipo de processo pode representar à construção teatral, além de seus riscos, suas dificuldades e suas provocações à criação do ator. Depois disso, serão

apresentadas as considerações finais sobre as questões levantadas sobre a relação entre escrita e oralidade na construção do texto verbal no teatro, assim como serão apontados possíveis desdobramentos dessa pesquisa. Por fim, estão anexadas ao trabalho as entrevistas realizadas com as atrizes que participaram da pesquisa prática, as realizadas com os componentes do grupo UTA, fotos dos respectivos processos de criação analisados, assim como o vídeo do espetáculo 5 Tempos para a morte.

No que diz respeito ao grupo de Teatro UTA8, cujo processo serve de objeto de análise

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neste trabalho, este foi escolhido porque a base principal para a construção de sua dramaturgia verbal é a improvisação do ator, não contando com um dramaturgo para assinar essa dramaturgia. A análise de sua criação teatral contará com o material recolhido a partir da

realização de entrevistas, do acompanhamento e observação dos ensaios, assim como análise do espetáculo 5 tempos para a morte, construído e apresentado no ano de 2010 . Este grupo foi escolhido porque desejava para o trabalho a análise de um processo em construção, a fim de poder acompanhar os ensaios. Meu interesse não foi apenas o resultado final, mas a forma processual como a dramaturgia foi construída. Além disso, este grupo conta exclusivamente com o trabalho do ator para a criação da dramaturgia verbal do espetáculo, sem a presença de um dramaturgo para contribuir com a construção textual. Ele constitui, por isso, um exemplo bastante significativo para o estudo da oralidade na construção do texto teatral.

Seus integrantes são Celina Alcântara (atriz graduada em Interpretação Teatral na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora de teatro e integrante do grupo desde 1992); Ciça Reckziegel (graduada em Teatro, professora do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, membro do grupo desde 1996, atuando como diretora e atriz), Dedy Ricardo (atriz com formação teatral na Universidade Estadual do Rio Grande do Sul, integrante do grupo desde 2000); Gisela Habeyche (atriz bacharel em Artes Cênicas, professora de voz do Departamento de Arte Dramática da UFRGS, membro do grupo desde 2005); Gilberto Icle (ator e diretor, graduado em Artes Cênicas e professor no Departamento de Ensino e Currículo e no Programa de Pós-graduação em Educação da UFRGS, integrante do grupo desde 1992); e Thiago Pirajira (ator, professor e produtor de teatro, graduado em Teatro na UFRGS, membro do grupo desde 2005). No espetáculo analisado, 5 Tempos para a morte, Gilberto Icle assumiu a função de diretor, de modo que os outros ocupam a função de atuação. Neste

espetáculo o grupo também contou com Shirley Rosário como assistente dedireção9.

5 Tempos para a morte tem como tema a morte e é constituído por cenas fragmentadas que transitam entre o cômico e o gênero sério. O espetáculo foi construído por diferentes tipos de improvisação e não há ninguém com a função especializada de dramaturgo/a. Toda a dramaturgia verbal do espetáculo foi construída a partir da improvisação do ator. Dentro da criação das cenas pode-se distinguir apenas a função de direção e atuação, de modo que a dramaturgia fica a cargo de todo o grupo e vai sendo construída conjuntamente com os outros elementos da cena.

investigar, de forma prática, o trabalho do ator e os processos adjacentes da linguagem teatral, em particular suas pedagogias”. Para isso, o UTA “se identifica com a ideia de teatro-laboratório em função da busca de uma renovação das práticas teatrais, na tentativa de uma identidade poética própria” (Informações e citações do texto disponível em www.utateatro.com/grupo.html, acessado em em 15/01/2012).

9 www.utateatro.com/grupo.html. Também disponível em:

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A análise do trabalho do UTA na criação do 5 Tempos para a morte tem como fonte de análise as entrevistas realizadas com os componentes do grupo e o espetáculo, o qual pude assistir pessoalmente algumas vezes e depois ver o registro em vídeo. Assistir aos ensaios foi

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1 ORALIDADE E ESCRITA NO TEXTO TEATRAL – VISÕES E

PARADIGMAS

As primeiras questões a serem feitas sobre a relação entre escrita e oralidade no fenômeno teatral dizem respeito a o que é um texto de teatro e no que pensamos quando usamos a expressão texto teatral. Pensamos em um texto escrito que depois é encenado? Pensamos num texto assinado por um autor? Pensamos na encenação e no que viria a ser o texto cênico? Pensamos numa espécie de tessitura cênica, onde participam todas as camadas semióticas do fenômeno teatral (iluminação, figurino, trilha sonora, espaço cênico, relação com o público)? Pensamos em todo tipo de texto escrito que pode ser usado numa encenação? Pensamos no que é falado no evento teatral? Cada uma dessas perguntas representa um tipo de entendimento sobre o texto de teatro e conduz, consequentemente, a um tipo de resposta sobre o entendimento do signo verbal como parte do evento teatral. Afinal, o que significa falar no teatro? Qual o papel do signo linguístico? Quais seus objetivos? Quais suas origens? Diante dessas questões chegamos a outras: o que é escrita? O que é oralidade? E quais as implicações dessas questões para o fazer teatral?

Para Walter Ong, a escrita constitui um tipo de tecnologia que tem por objetivo original reproduzir o fenômeno sonoro da emissão linguística. A oralidade, por outro lado, constitui o fenômeno primário da língua10, de natureza exclusivamente sonora. A escrita diz

respeito ao visual, ao que é registro, tem papel de documento, constituindo um objeto que perdura no tempo. Por ter essa natureza fixa, documentada, que permite olhá-la como um

objeto, a escrita possibilita formas de pensamento e de criação distintas da oralidade. Suas características fixas, enquanto objeto autônomo fora do indivíduo (que lê ou escreve)

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permitem a reflexão demorada, a abstração, o aprofundamento num tema de maneiras distintas das que a mente opera numa construção de natureza oral. A oralidade para o autor é um fenômeno efêmero, ligado ao corpo do falante e do ouvinte, relação que define sua

natureza circunstancial11.

A partir disso, os termos primária e secundária estabelecidos por Walter Ong não se referem a valores, como se uma fosse melhor que a outra. Chamar a escrita de oralidade secundária, para o autor, justifica-se porque a oralidade pode prescindir da escrita, mas a escrita não pode prescindir do fenômeno oral. Para ele:

“Ler” um texto significa convertê-lo em som, em voz alta ou na imaginação, sílaba por sílaba na leitura lenta ou de um modo superficial na leitura rápida, comum a culturas de alta tecnologia. A escrita nunca pode prescindir da oralidade. (…) podemos denominar a escrita um “sistema modular secundário”, dependente de um sistema primário anterior, a linguagem falada. A expressão oral pode existir – e na maioria das vezes existiu – sem qualquer escrita; mas nunca a escrita sem oralidade.”12.

Ele estabelece, então, que a língua é primeiramente um fenômeno oral e somente depois pode assumir uma expressão escrita, visual, sem necessariamente precisar desta para existir13.

Walter Ong usa essa divisão para estabelecer uma visão de cunho antropológico e estrutural, comparando diferentes culturas e em diferentes tempos históricos, tendo por objetivo apontar para a influência da escrita nas formas de pensamento em nossa cultura atual.

Contudo, além de refletir sobre o caráter antropológico e psicológico dessas questões (de como a escrita influenciou e influencia nossas formas de pensamento), sua reflexão ajuda a romper com a visão da escrita como uma experiência totalizante no uso da linguagem verbal. O autor coloca a escrita como um aspecto ligado à oralidade, mas que não está em sua essência e muito menos é uma condição de sua existência. A oralidade, pode-se concluir, é um fenômeno muito mais amplo, dada sua independência da escrita, que abarca esta em seu interior mas não provém dela. Em uma cultura marcada pela escrita como um de seus fundamentos existenciais, cuja visão sobre a linguagem verbal comumente esquece de sua natureza originariamente e essencialmente oral, essa diferenciação ajuda a ampliar o olhar sobre o fenômeno da oralidade, percebendo suas especifidades e particularidades na

11 ONG. Op. Cit. p. 48-49. 12 ONG. Op. Cit., p. 16.

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experiência com a língua e, consequentemente, na experiência humana.

A diferença entre os tipos de oralidade que Walter Ong aponta, uma primária e outra

secundária, diz respeito a culturas que não possuem escrita e a culturas que a possuem,

respectivamente. Contudo, na reflexão do autor essa relação não é dualista, como uma opondo-se e excluindo a outra. O graus de influência da escrita em nossa cultura podem variar infinitamente, indo do grau zero ao controle total no uso da linguagem verbal. Com isso, onde nossa cultura ocidental letrada, do final do século XX e começo do século XXI, estaria nesse contexto? Uma vez que apresentamos socialmente graus distintos de escolaridade e formação intelectual, pode-se chegar à conclusão, diante da diferenciação do autor, de que encontramos níveis diferentes de oralidade e de influência da escrita coexistindo em nossa cultura. Dessa forma, se por um lado preservamos ainda certas características de uma oralidade primária, mais comum em nosso passado de natureza oral, por outro, podemos encontrar no mesmo contexto cultural formas de linguagem e pensamento altamente especializadas nas habilidades que a escrita estabelece.

Sobre essa relação entre escrita e oralidade, Paul Zumthor, utilizando-se das ideias de Walter Ong para ir mais adiante em sua teoria, utiliza um outro termo para pensar o uso da linguagem: oralidade imediata. Segundo ele, essa é a oralidade que se dá no ato de comunicação, a partir da relação presente dos interlocutores14. Esse termo aponta de forma

mais radical para as características da oralidade (sem o uso da escrita) como ligada fundamentalmente ao evento e ao momento existencial que une os falantes.

Diante dessas questões, pode-se pensar que mesmo numa comunicação direta é possível a presença de elementos de uma oralidade secundária. Recursos como ironia e intertextualidade, assim como formas de citação de falares típicos de certos grupos sociais

podem fazer parte do texto criado oralmente. Contudo, entendo que elementos como citação e intertextualidade ultrapassam o próprio fenômeno linguístico, uma vez que podem ser feitos mesmo sob formas não-verbais (desenhos, músicas, etc.). Elementos de uma oralidade secundária podem ser utilizados numa construção baseada na oralidade imediata; contudo, o elemento que norteia essa utilização/citação está a serviço das necessidades presentes e atuais no ato da comunicação. Estes são os elementos principais que orientam sua manipulação. Esses acontecimentos de uma oralidade imediata com a utilização de textos de uma oralidade secundária apontam para um fenômeno complexo da linguagem em nosso contexto cultural, no qual escrita e oralidade são fenômenos interligados. O que chama atenção nessa relação e faz o contexto existencial prevalecer na construção de uma oralidade imediata é o fato de que ele vai interferir no modo como essa textualidade secundária será utilizada.

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Com isso, se o primeiro autor parte da diferença cultural que o uso da escrita possibilita, e analisa como as suas formas e as da oralidade constituem maneiras distintas de experienciar o mundo, o segundo, Paul Zumthor, contribui com um outro aspecto. Se estamos

numa cultura onde coexistem graus de escrita e oralidade, surge um terceiro ponto a analisar que é o de uma construção oral ligada ao aqui e agora da comunicação oral. O termo

oralidade imediata, ainda que para ele seja equivalente a oralidade primária, aponta para a oralidade como o resultado situacional de um encontro que acontece sem mediação e sem intervalo, alicerçado apenas na relação temporal e espacial do momento presente de enunciação15 verbal.

Contudo, essa diferença da qual fala Walter Ong, na fonte da relação com o fenômeno linguístico, pode parecer estranha em um mundo que já interiorizou a escrita a ponto de usá-la como signo de nossa experiência. Escrita significa: ato ou efeito de escrever; sistemas de signos gráficos, que servem para notar uma mensagem oral; letra, caracteres escritos, aquilo que se escreve; do verbo escrever, redigir, que significa exprimir-se por escrito16, ou ainda:

representar por meio de sinais gráficos os sons da linguagem verbal; formular um enunciado por escrito com determinado número de linhas ou de páginas, redigir; exprimir o pensamento por meio da linguagem escrita, compor uma obra literária, científica; redigir uma carta, uma mensagem escrita ou bilhete; arrolar, inventariar17. Segundo Vilém Flusser, escrever era

originalmente um gesto de fazer uma incisão sobre um objeto para o qual se usava uma ferramenta cuneiforme chamada estilo18. Ele lembra o mito da criação do homem, no qual

Deus moldou sua imagem no barro insuflando seu sopro, o espírito no material que deu origem ao homem, podendo ser reconhecido nessa narrativa a origem do escrever19. Nesse

sentido, a arte como um todo aproxima-se muito do sentido da escrita apontado pelo autor.

No entanto, os conceitos apresentados tanto por Walter Ong quanto por Paul Zumthor sobre escrita e oralidade têm uma grande margem de indefinição. Acredito que essa indefinição seja uma consequência da complexidade do tema e da infinita variação que os objetos de análise podem apresentar. Ambos os autores ficam muito ligados a uma visão antropológica entre oralidade e escrita e acabam por estabelecer parâmetros para avaliar, principalmente, diferentes usos de oralidade e escrita no que se refere a culturas letradas e não

15 O termo enunciação tem o sentido de: “A enunciação é o ato de produzir um enunciado. A língua é o instrumento de que se utiliza o locutor para se enunciar e produzir discurso. Pela enunciação, processo de apropriação, a língua converte-se em discurso: o locutor apropria-se do aparelho formal da língua e se enuncia. Pela apropriação da língua, o locutor se estabelece em seu discurso, e instaura o interlocutor, o espaço e o tempo”. (BARBISAN, Leci Borges; FLORES, Valdir do Nascimento. A enunciação em perspectiva. Letras de Hoje, v. 44, n. 1, p. 5-8, jan/mar 2009., p.6).

16 CUNHA, Antônio Geraldo. Dicionário etimológico nova fronteira da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 317.

17 Dicionário da língua portuguesa Larrousse . Rio de Janeiro: Ática, p. 383.

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letradas. Os critérios e definições que eles apresentam não se aproximam suficientemente da relação dos diferentes modos de oralidade no interior de uma mesma cultura. Quando trata-se da comparação entre sociedades letradas e não letradas, suas definições ficam mais fáceis de

serem aplicadas. Porém, ao tratar-se de fenômenos dentro de um mesmo sistema cultural, como no caso do teatro e a cultura artística em que está inserido, por exemplo, não há definições claras que possam ser aplicadas. Contudo, escolho algumas definições particulares segundo a essencialidade que as definições dos dois autores permite desenvolver, no intuito de ir mais adiante e aplicar suas noções em outros campos que não apenas o da alfabetização e letramento das sociedades, do conhecimento da escrita e sua ausência, como é comum nos estudos sobre oralidade.

Exemplos de criação, como o caso do grupo de teatro UTA, por exemplo, desenvolvem-se em um meio e com artistas altamente intelectualizados, que fazem parte de um cultura letrada e urbana e que dialoga em vários níveis com uma tradição erudita do teatro ocidental. Contudo, ao criar seu texto a partir da improvisação20, não utilizam a escrita

diretamente, mas ela se faz presente na utilização de fragmentos textuais (narrativas, etc.), enquanto contexto cultural, formação teatral (o cânone dramatúrgico) e desenvolvimento individual dos componentes do grupo, todos com nível de ensino superior e alguns pesquisadores de alto nível acadêmico em teatro. Logo, sua criação está longe dessa oralidade que dialoga com culturas não letradas. Por outro lado, o fato de sua dramaturgia ser criada a partir da improvisação do ator coloca o texto como resultado de uma oralidade imediata, ligada à situação de cena. Além disso, o que deixa essa criação mais complexa é o fato dela dialogar com a cultura erudita, conforme os aspectos apontados anteriormente, o que lhe define como oralidade segunda do ponto de vista cultural nos termos de Walter Ong e Paul

20 Segundo Patrice Pavis, a improvisação consiste numa “técnica do ator que interpreta algo imprevisto, não preparado antecipadamente e “inventado” no calor da ação.” Porém, “[h]á muitos graus na improvisação: a invenção de um texto a partir de um canevas conhecido e muito preciso (assim, na Commedia dell'arte),

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Zumthor, mas que tem, ainda assim, uma relação mais próxima de uma oralidade “primordial” (ligada a uma relação existencial concreta entre os falantes, o evento teatral). Entender a oralidade nesse exemplo de dramaturgia constitui um caso bastante complexo.

Porém, para não ficar presa a um possível dualismo entre o fenômeno escrito e o oral, que ligação pode haver, então, entre essa palavra e essa ação que constitui escrever, com a oralidade? Talvez o fato de tentar reproduzir graficamente algo da natureza sonora, e o sentido que guarda consigo de gravar, compor, criar os quais também fazem parte de uma construção oral?

Jacques Derrida, no livro A escritura e a diferença, usa a palavra escritura para referir-se a um tipo de postura ou ato que ultrapassa a simples e reduzida ação da linguagem escrita ou da quirografia:

A escritura é a saída como descida para fora de si em si do sentido: a metáfora-para-outrem-em-vista-de-outrem-neste-mundo, metáfora como possibilidade de outrem neste mundo, metáfora como metafísica em que o ser deve ocultar-se se quisermos que o outro apareça. Escavação no outro em direção do outro em que o mesmo procura o seu veio e o ouro verdadeiro do seu fenômeno. Submissão na qual sempre se pode perder. (…) A escritura é o momento desse Vale originário do outro no ser. Momento da profundidade também como decadência. Instância e insistência do grave [sic]. 21

Jacques Derrida fala de um tipo de experiência no mundo. Embora utilize em vários momentos a palavra escrita referindo-se ao ato de escrever (ou seja, em seu sentido técnico não metafórico) a utilização da escrita como imagem metafórica do ser amplia o sentido desta ação. Em sua argumentação, a escrita deixa de ser uma simples técnica de representação gráfica da linguagem verbal. Porém, pode esta visão do homem em relação com o mundo eliminar o problema colocado por Walter Ong, o qual propõe um questionamento específico sobre o uso da linguagem verbal? A diferenciação no uso da língua, entre oralidade e escrita, tem consequências cruciais nas formas de sentir e perceber humanas; contudo mesmo que se tome uma delas (a escrita) como metáfora no mundo, as suas diferenças, do ponto de vista da linguagem, especificamente, não podem ser suprimidas – a não ser que o entendimento do mundo como escrita, conduzido pelo pensamento de Jacques Derrida, suprima todas as diferenças entre formas de ação, linguagens artísticas e, principalmente, formas de usar o signo linguístico. As colocações do filósofo não conduzem a uma homogeneização do mundo e da experiência humana, de forma que dentro dessa escritura as diferenças continuam a existir.

Outro aspecto importante do pensamento de Jacques Derrida é que escrita significa construção de sentido. Para ele:

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Mas postas de lado toda fé ou segurança teológica, a experiência de secundariedade não resultará desse redobramento estranho pelo qual o sentido constituído – escrito – se dá como lido, prévia ou simultaneamente, em que o outro lá está a vigiar e a tornar irredutível a ida e a volta, o trabalho entre a escritura e a leitura? O sentido não está nem antes, nem depois do ato. O que denominamos Deus, que afeta de secundariedade toda a navegação humana, não será esta passagem: a reciprocidade diferida entre a leitura e a escritura? Testemunha absoluta, terceiro como diafaneidade do sentido no diálogo em que o que se começa a escrever já é lido, o que se começa a dizer é já resposta. Ao mesmo tempo criatura e Pai do Logos. Circularidade e tradicionalidade do Logos. Estranho labor de conversão e de aventura no qual a graça só pode estar ausente22.

Escrever não está como técnica de criação de um texto, fisicamente visual, em linguagem verbal, mas como forma de ação do homem no mundo. Nesta ação é impossível dissociar o escrever e o ler, como se um contivesse o outro ao mesmo tempo e inseparavelmente. Com esse sentido, todas as ações humanas e todas as formas de arte convertem-se em formas de escritura, independentemente da sua forma e linguagem. Contudo, para uma reflexão sobre o uso da linguagem verbal, tal entendimento não dilui escrita e oralidade em uma mesma coisa. O pensamento de Jacques Derrida usa uma metáfora homogênea para pensar a ação do homem, mas não deixa de propor as diferenças: “O sentido

deve ser dito ou escrito para se habitar a si próprio e tornar-se naquilo que a diferir de si é: o sentido”23. A própria secundariedade do homem em relação a Deus da qual ele fala só é possível porque há um pensamento que dissocia um do outro.

A partir disso, usando a metáfora de Jacques Derrida, pode-se perguntar como um ator pode criar escritura, ou seja sentido e diferença, ao falar um texto que nunca foi escrito, que nunca passou pela natureza visual da escrita? Como criar essa escritura a partir de uma construção essencialmente oral, sem existência fora de sua sonoridade? Isso abre para questões referentes a formação desse ator e para questões teóricas de como analisar essa criação fora dos padrões da escrita visual. Afinal, se não há um texto escrito na origem da fala24 do ator, o que se vê é uma criação de oralidade imediata, baseada no contexto cênico em

22 Idem, ibidem, p. 14-15. 23 Idem, ibidem, p. 13-14.

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que essa fala está sendo construída. Nesse sentido, escrita e oralidade para construção do texto verbal falado no evento teatral pressupõe formas de escrituras distintas.

Indo mais adiante nessas questões, frente a uma variedade de definições de escrita e

oralidade, Paul Zumthor propõe quatro tipos ideais: oralidade primária e imediata, ou pura, sem contato com a escrita25 (cujo termo já foi definido na Introdução como um sistema visual codificado traduzível em língua); uma oralidade coexistente com a escrita e que, conforme essa coexistência, pode funcionar como oralidade mista ou oralidade segunda; e uma oralidade mecanicamente mediatizada. A oralidade mista, segundo Paul Zumthor, acontece quando a influência da escrita continua externa, parcial ou retardada. A oralidade segunda é a que se recompõe a partir da escrita e no interior de um meio em que esta predomina sobre os valores da voz26 na prática e no imaginário. Com isso, para o autor, “a oralidade mista procede da existência de uma cultura escrita (no sentido de “possuindo uma escrita”); a oralidade

segunda, de uma cultura letrada (na qual toda expressão é marcada pela presença da escrita)27”. Por fim, a oralidade mecanicamente mediatizada é aquela que se diferencia no

tempo e no espaço, ou seja, conta com um recurso material (gravações em vídeo e áudio) para desvincular-se do contexto imediato de fala, existindo independentemente do corpo do falante.

Do ponto de vista concreto, ao contrário de se excluírem, o oral e o escrito necessitam-se, completam-necessitam-se, dialogam:

A fixação pela e na escritura de uma tradição que foi oral não põe necessariamente fim a esta, nem a marginaliza de uma vez. Uma simbiose pode instaurar-se, ao menos certa harmonia: o oral se escreve, o escrito se quer uma imagem do oral; de todo modo, faz-se referência à autoridade de uma voz28

.

A voz e, consequentemente, sua existência sonora, é o que une os dois fenômenos. Diante dessa diferenciações, entendo que a principal diferença entre escrita e oralidade

meu). A fala do ator é entendida nesse sentido como o conjuntos de enunciados verbais produzidos a partir de uma situação concreta de comunicação teatral, seja a situação real ou ficcional. Além disso, como a fala, enquanto veículo da língua difere da escrita e da língua de sinais, comporta tanto a instância do conteúdo do que se fala quanto a da performance, o modo como se fala.

25 ZUMTHOR. Introdução à poesia oral. Op. Cit., p. 37.

26 Para Roland Barthes: “A voz humana é, na verdade, o espaço privilegiado (eidético) da diferença: espaço que escapa a todas as ciências, pois nenhuma ciência (fisiologia, história, estética, psicanálise) é capaz de esgotar a voz: classifiquem, comentem historicamente, sociologicamente, esteticamente, tecnicamente a música, restará sempre algo, um suplemento, um lapso, um som dito que se designa a si próprio: a voz. A psicanálise coloca esse objeto sempre diferente na categoria dos objetos de desejo: não há nenhuma voz humana que não seja objeto de desejo – ou de repulsa: não há voz neutra – e se, por vezes, esse neutro, esse branco da voz se manifesta, é como se aterrorizados, descobríssemos um mundo imobilizado, um mundo em que o desejo estaria morto. Toda relação com a voz é amorosa, e por essa razão é na voz que explode a diferença da música, a imposição de avaliação, de afirmação (BARTHES, Roland. A música, a voz, a língua.In: ____. O óbvio e o obtuso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. p. 248).

27 Idem, ibidem, p. 18.

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é que a primeira pressupõe certa autonomia do contexto de enunciação, enquanto a outra depende do contexto de fala para assegurar seu sentido. Para o teatro isto significa que o texto escrito existe primeiro enquanto objeto linguístico e só depois passa a ser vocalizado em cena

(nos casos em que é anterior ao processo teatral), ou fica como registro perene e com certa independência mesmo quando foi construído a partir da oralidade do ator (no processos colaborativos em que um texto é publicado após o desenvolvimento do processo). Já o texto essencialmente oral, sem escrita, existe apenas na criação do ator, dependendo de sua vocalização e de seu contexto cênico para existir. Por outro lado, ao passar para o registro ele perde essa característica essencialmente oral e passa a constituir um documento de oralidade não mais imediata ou eventual, sua forma independente de seu interlocutor (o ator que diz esse texto) passa a assumir valor de registro ou documento, ou ainda, de obra escrita (quando for retrabalhado por alguém na função de dramaturgo). A oralidade imediata da cena passa a ser apenas um momento desse processo entre a criação do texto e sua fixação (ou reconstrução) visual e escrita.

No que diz respeito à performance, Paul Zumthor a define segundo uma série de operações logicamente distintas. Estas estão incluídas dentro das fases da existência do poema oral, que são: 1) produção; 2) transmissão; 3) recepção; 4) conservação; e 5) repetição. Diante desse conjunto, segundo ele, a performance abrange as fases de transmissão e recepção. No caso da improvisação, a performance inclui, além dessas duas (2 e 3), a de produção. Paul Zumthor considera oral toda toda comunicação poética em que pelo menos transmissão e recepção passem pela voz e pelo ouvido, sendo que as variações das outras operações (produção, conservação e repetição) modulam esta oralidade fundamental29.

Essa visão de Paul Zumthor vai ao encontro do entendimento de B. Gentilli, para

quem, para ser denominada oral, uma poesia deve possuir três condições: composição oral, comunicação oral (performance) e transmissão30. Esses três aspectos colocam a dramaturgia criada pelo ator em improvisação como fundamentalmente oral, uma vez que o processo é composto pelas três características simultaneamente: produção/composição, transmissão/comunicação e recepção. Nesse tipo de dramaturgia essencialmente oral, o momento de composição é a própria performance, diferentemente da vocalização de um texto escrito, em que há uma separação entre a composição (num primeiro momento) e comunicação e transmissão (num segundo momento)31. Além disso, na performatização de um

29 Idem, ibidem, p.34

30 Apud MOTA, Marcus. Nos passos de Homero: performance como argumento na Antiguidade. VIS – Revista do Programa de Pós-Graduação em Arte, Brasília, V. 9, N. 2, Julho/Dezembro e 2010, p. 30. 31 Isso está de acordo com o que Albert Lord aponta para esse tipo de criação. Segundo ele, “para o poeta

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texto escrito o momento de composição difere basicamente do momento de vocalização do texto pelo ator.

Sandra chacra situa essa diferença na origem da criação do ator da seguinte forma:

Duas correntes caracterizam a realização do teatro em ato. A primeira, tradicionalmente reconhecida, decorre de uma peça concebida no silêncio de um gabinete, forjada na imaginação de um autor, com o propósito de vir a tornar-se um espetáculo. Convocar-se-á, a posteriori, todos os demais elementos da montagem; a escolha destes e todo o processo artístico estarão em função do texto escrito. Assim sendo, a peça é o ponto de partida, mesmo quando ela é “adaptada”, sofrendo diferentes modificações, chegando às vezes a se tornar verdadeiro pretexto diante de determinadas concepções cênicas. Mas, de qualquer modo, ela é dada como um primeiro referencial nas mãos dos artistas responsáveis pelo espetáculo. Uma outra corrente nega a peça escrita e parte para a atividade teatral através de um processo artístico de gestação quase simultânea, senão mesmo simultânea, de todos os elementos dramáticos. A negação da peça escrita tem sido frequentemente a base para aplicação de uma definição de improvisação, assim como a peça de base literária, uma precondição, um dado prévio para qualquer realização de um “teatro” em cena. Entretanto, entre esses dois polos – a peça ou a sua negação – existem graus de formalização (ou informalização) do texto, dando maior ou menor abertura para a improvisação. Mas sempre haverá algum texto, onde quer que haja alguma representação.32

A visão do dramaturgo como alguém que cria no isolamento de um gabinete, totalmente distanciado da criação cênica do ator, assim como o texto como elemento central do processo são aspectos que podem ser completamente questionados, principalmente quando lembramos de autores que foram ou são encenadores de seus textos, tais como Molière, Bertolt Brecht, Samuel Beckett, assim como os autores brasileiros Luis Alberto de Abreu, Samir Yazbek, etc, que escrevem e participam do processo de encenação de seus textos, ora como diretores, dramaturgos colaborativos ou ainda como atores, assumindo todo tipo de função no processo teatral para que seus textos sejam levados a cena. Contudo, mesmo que a relação com o texto escrito varie, na utilização de uma obra dramática há um elemento fixo no que diz respeito à enunciação do ator, uma vez que suas falas já estão, em parte, definidas.

Para o teatro, essas distinções entre uma criação dramatúrgica com origem escrita e outra oral servem para colocar o texto teatral escrito como sendo de oralidade segunda, uma vez que é determinado pela escrita; o texto, no instante de uma improvisação do ator, no momento em que o signo linguístico está sendo criado na cena (sem um texto que anteceda a improvisação), passa a ser de uma oralidade imediata; o texto criado a partir de improvisação e depois transformado por um dramaturgo como sendo de uma oralidade mista, uma vez que comporta em sua criação tanto a escrita do dramaturgo quanto a criação essencialmente oral

composto para mas em performance. (…) Cantar, performar e compor são facetas do mesmo processo”. (em MOTA, ibidem, p. 30)

Referências

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