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Auto da Barca do Inferno: a oração como critério salvífico

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AUTO DA BARCA DO INFERNO

: A ORAÇÃO COMO CRITÉRIO

SALVÍFICO

AUTO DA BARCA DO INFERNO: PRAYER AS A SALVIFIC CRITERION

Adriano Portela dos Santos

Doutorando em Literatura e Cultura no PPgLitCult Universidade Federal da Bahia

Márcio Muniz

Universidade Federal da Bahia/ CNPq

Resumo: Gil Vicente estruturou vários

de seus textos teatrais a partir de elementos do Cristianismo, como a devoção a Maria e aos santos, as festas do calendário litúrgico e também a oração, ato de piedade da espiritualidade cristã. Entre os textos teatrais de Vicente que seguem essa dinâmica está o Auto da

Barca do Inferno, que, junto com os dois

outros autos de semelhança temática,

Purgatório e Glória, serve-se dos cinco

elementos da doutrina dos novíssimos , isto é: a morte (1), o juízo (2), o purgatório (3), o inferno (4) e o céu (5). Ao fazer isso, Gil Vicente postula uma teologia, que é transmitida obviamente aos espectadores de sua dramaturgia. Analisamos nesse artigo como o dramaturgo português trata a oração, prática de espiritualidade, no Auto da

Barca do Inferno. A nossa hipótese é que

ele estabelece a oração como critério salvífico, quer dizer, a oração é um elemento a ser considerado no juízo pelo qual passamos diante de Deus. Desse modo, evidenciamos a discussão que é proposta pelo autor nos diálogos do Fidalgo, do Sapateiro e do Frade, com o Diabo, condutor da barca do Inferno. Ambas as personagens lançam mão da oração sua ou de outrem como argumento para merecerem acessar à barca da Glória e não a do Inferno.

Palavras-chave: Oração; Auto da Barca

do Inferno; Gil Vicente.

Abstract: Gil Vicente structured several

of his theatrical texts from elements of Christianity, such as devotion to Mary and the saints, feasts of the liturgical calendar and also prayer, act of piety of Christian spirituality. Among Vicente's theatrical texts that follow this dynamic is the Auto da Barca do Inferno, which, along with the two other autos of thematic similarity, Purgatório and

Glória, use the five elements of the

"doctrine of the newest", that is: death (1), judgment (2), purgatory (3), hell (4) and heaven (5). In doing so, Gil Vicente postulates a theology, which is obviously transmitted to viewers of his dramaturgy. We analyze in this article how the Portuguese playwright treats prayer, practice of spirituality, in the

Auto da Barca do Inferno. Our hypothesis

is that he establishes prayer as a salvific criterion, that is, prayer is an element to be considered in the judgment by which we pass before God. In this way, we highlight the discussion that is proposed by the author in the dialogues of the Fidalgo, Sapateiro and Frade, with the Diabo, conductor of the boat of hell. Both characters use the prayer of theirs or others as an argument to merit access to the boat of Glory and not to the one of Hell.

Keywords: Prayer; Auto da Barca do

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Os três autos que compõem o que a crítica vem denominando trilogia das Barcas - Auto da Barca do Inferno, Auto do Purgatório e Auto da Barca da Glória - estão estruturados a partir do que, em tempos passados, chamava-se doutrina dos novíssimos , na teologia Católica Romana. A referida doutrina diz respeito aos ensinamentos sobre cinco realidades: a morte (1), o juízo (2), o purgatório (3), o inferno (4) e o céu (5). Mesclando a tradição cristã com a mitologia pagã da Antiguidade, Gil Vicente fazpersonagens-tipo de praticamente todos os extratos da sociedade quinhentista portuguesa comparecerem ante o Diabo e o Anjo, para serem submetidas a um julgamento post mortem. Mediante esse julgamento, as personagens são conduzidas pelas duas figuras bíblicas ao inferno ou ao céu, nas respectivas barcas, tal como Caronte conduzia as almas pelo rio Aqueronte, na mitologia grega – embora algumas personagens, como o Judeu de Inferno, pareçam permanecer na Praia, espécie de local transitório, um Purgatório. Para proceder tal julgamento, o dramaturgo português necessitou estabelecer critérios salvíficos, transitando no âmbito teológico da soteriologia, área da teologia que estuda especificamente a salvação.

Tendo em vista essas considerações, desejamos observar e analisar especificamente a oração como sendo um dos critérios salvíficos estabelecidos por Gil Vicente no Auto da Barca do Inferno. Das catorze personagens julgadas em Inferno, o dramaturgo menciona o tema da oração no julgamento de três delas, a saber: o Fidalgo, o Sapateiro e o Frade. Embora não seja um tema em que a crítica se detenha frequentemente na obra vicentina, entendemos que a oração é um tópico considerável não só no Auto da Barca do Inferno, mas em toda a dramaturgia de Gil Vicente. O tema aparece abundantemente na farsa Clérigo da Beira, no Auto de Cananeia, além do Auto da Barca do Inferno; todavia, podemos encontrá-lo com menor densidade em, pelo menos, mais treze textos vicentinos.

Vejamos de que maneira a oração é retratada no julgamento de cada uma das três personagens e como influenciou na sentença recebida por cada uma. Assim, poderemos discutir o valor da oração no universo dramático de Gil Vicente e discorrer sobre a teologia que subjaz especificamente ao Auto da Barca do Inferno. É evidente que, para estruturar alguns de seus autos na tradição cristã, o

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dramaturgo português se vale de um discurso teológico, bem como produz, ele próprio, uma espécie de teologia.

O Fidalgo

A primeira das personagens a ser condenada em Inferno é o Fidalgo. Sua condenação ao inferno é justificada pela tirania, presunção e soberba que caracterizam sua existência. Por isso, escuta do Anjo, arrais da barca do paraíso:

E porque de generoso desprezastes os pequenos achar-vos-ês tanto menos quanto mais fostes fumoso1.

No diálogo com o Diabo, arrais da barca do inferno, o Fidalgo procura escapar à embarcação. Porém, ele não se fia em mérito próprio, mas sim nas orações dos que ficaram na outra vida:

Diabo: Vejo-vos eu em feição

pera ir ao nosso cais.

Fidalgo: Parece-te a ti assi.

Diabo: Em que esperas ter guarida? Fidalgo: Que leixo na outra vida

quem reze sempre por mi2.

A oração pelos mortos é doutrina consolidada no Catolicismo Romano. Desde a Patrística, tem-se relatos da prática da oração pelos mortos, a qual se desenvolveu até entrar oficialmente no calendário litúrgico em 1331 com uma celebração específica intitulada Comemoração dos Fieis Defuntos (ou simplesmente Finados), realizada a cada 02 de novembro.

A doutrina é respaldada biblicamente em 2 Macabeus 12: 39-45. Essa passagem bíblica relata que Judas Macabeu, crendo na ressurreição dos corpos, organizou atos litúrgicos para o perdão dos pecados dos soldados judeus mortos na batalha contra Gorgias, general do Rei Antíoco. Os soldados haviam morrido em

1 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno (1517), versos 102-105. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

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pecado por terem se apropriado de objetos consagrados aos ídolos estrangeiros, descumprindo a Lei judaica.

No dia seguinte, sendo já urgente a tarefa, vieram falar com Judas para recolher os corpos dos que haviam tombado, a fim de inumá-los junto com os seus parentes, nos túmuinumá-los de seus pais. Então encontraram, debaixo das túnicas de cada um dos mortos, objetos consagrados aos ídolos de Jâmnia, cujo uso a Lei vedava aos judeus. Tornou-se assim evidente, para todos, que foi por esse motivo que eles sucumbiram. Todos, pois, tendo bendito o modo de proceder do Senhor, justo Juiz que torna manifesta as coisas escondidas, puseram-se em oração para pedir que o pecado cometido fosse completamente perdoado. E o valoroso Judas exortou a multidão a se conservar isenta de pecado, tendo com os próprios olhos visto o que acontecera por causa do pecado dos que haviam tombado. Depois, tendo organizado uma coleta, enviou a Jerusalém cerca de duas mil dracmas de prata, a fim de que se oferecesse um sacrifício pelo pecado: agiu assim absolutamente bem e nobremente, com o pensamento na ressurreição. De fato, se ele não esperasse que os que haviam sucumbido iriam ressuscitar, seria supérfluo e tolo rezar pelos mortos. Mas, se considerava que uma belíssima recompensa está reservada para os que adormecem na piedade, então era santo e piedoso o seu modo de pensar. Eis por que ele mandou oferecer esse sacrifício expiatório pelos que haviam morrido, a fim de que fossem absolvidos do seu pecado3.

O fragmento bíblico justifica a oração pelos mortos através da crença na ressurreição para a vida eterna. Se se acredita que haverá ressurreição dos mortos, então deve-se orar pelos que não morreram aptos para ressurgirem. Isso pressupõe que há um estágio anterior ao céu, no qual as orações dos vivos sejam úteis aos mortos.

Por isso, a doutrina sobre a oração pelos mortos está intimamente conectada à existência do purgatório, realidade transcendente, intermediária entre o céu e o inferno, na qual os mortos purgam seus pecados, com o auxílio das orações de quem permanece em vida. Essa doutrina foi confirmada pelo Concílio de Trento (1545-1563), através do Decreto sobre o Purgatório:

Tendo a Igreja Católica, instruída pelo Espírito Santo, segundo a doutrina da Sagrada Escritura e da antiga tradição dos Padres,

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ensinado nos sagrados concílios e atualmente neste Geral de Trento, que existe Purgatório, e que as almas detidas nele recebem alívio com os sufrágios dos fiéis e em especial com o aceitável sacrifício da missa, ordena o Santo Concílio aos Bispos, que cuidem com máximo esmero que a santa doutrina do Purgatório, recebida dos santos Padres e sagrados concílios, seja ensinada e pregada em todas as partes, e que seja acreditada e conservada pelos fiéis cristãos. […] Os bispos deverão cuidar para que os sufrágios dos fiéis, a saber, os sacrifícios das missas, as orações, as esmolas e outras obras de piedade que costumam fazer pelos defuntos, sejam executados piedosa e devotadamente segundo o estabelecido pela Igreja e que seja satisfeita com esmero e exatidão, tudo quanto deve ser feito pelos defuntos, segundo exijam as fundações dos entendidos ou outras razões, não superficialmente, mas sim por sacerdotes e ministros da Igreja e outros que têm esta obrigação4.

Gil Vicente parece se opor a essa doutrina da salvação por meio das orações alheias, quando condena o fidalgo, que houvera argumentado ter quem por ele rezasse na outra vida:

Diabo: Quem reze sempre por ti

hi hi hi hi hi hi hi

e tu viveste a teu prazer cuidando cá guarecer porque rezem lá por ti. Embarcai ou embarcai que haveis d ir à derradeira mandai meter a cadeira que assi passou vosso pai5.

A postura de Gil Vicente de recusa dessa prática está consoante com as ideias surgidas em séculos anteriores6, as quais observavam com maus olhos tudo

aquilo que não implicasse o fiel na sua vida de fé ou significasse mera prática exterior de atos de piedade. Essas atitudes favoreciam abusos como o comércio de indulgências, em que os fiéis pagavam pelo perdão em lugar de buscarem uma

4 Decreto sobre o Purgatório. In: Concílio Ecumênico de Trento: decretos e cânones. Disponível em:

www.montfort.org.br. Acesso: 04 out. 2017.

5 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno, versos 45-53. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

6Em , o bispo Gérard de Cambrai combate os hereges da Arras ensinando que ninguém julgue

que a penitência não é útil senão aos vivos e não aos mortos Apud LE GOFF, Jacques. O Nascimento

do Purgatório. Lisboa: Estampa, 1993, p. 131). Em 1335, muitos valdense declaram à inquisição não

acreditarem no purgatório (Ibid., 1993, p. 2885-286). A primeira definição pontificial sobre o purgatório se deu em 1254, com Inocêncio VI (Ibid., 1993, p. 329).

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adesão pessoal a Cristo.

Enquanto o Concílio de Trento reafirmou a oração pelos mortos, os Protestantes tomaram a direção contrária, negando a possiblidade de perdão de pecados após a morte. Vemos a consolidação da postura protestante na Confissão de Fé de Westminster, um documento redigido em 1647, sob inspiração calvinista, como radicalização da postura puritana dentro da Igreja Anglicana. A Confissão de Cap. XXI, Seção IV afirma que a oração deve ser feita por coisas lícitas e por todas as classes de homens que existem atualmente ou que existirão no futuro; mas não pelos mortos 7. Pelo exposto, parece se confirmar o que afirmou António

José Saraiva acerca das ideias religiosas de Gil Vicente: o nosso autor se integra numa corrente doutrinária que não é a que veio a ser consagrada no Concílio de Trento, e já então dominante dentro da Igreja romana 8.

Por outro lado, podemos pensar que a postura de Gil Vicente sobre o tema está perfeitamente de acordo com a doutrina católica da salvação, se pensarmos que a fala do diabo tem mais a ver com a necessidade de obras para se salvar, do que com a impossibilidade de orar pelos mortos. O que pode estar em jogo é que a oração dos vivos pelos mortos é considerada pouco pelo diabo para que o fidalgo se salve. É preciso mais obras, mais merecimentos. Dessa forma, precisamos cotejar o tema da oração pelos mortos em outros textos de Gil, para termos um posicionamento mais seguro.

O Sapateiro

Outra personagem de Inferno em que o tema da oração entra em questão no julgamento é o Sapateiro. Esta personagem tem uma rotina de práticas de fé: confissão, missa, comunhão, ofertas, horas de finados. Mas foi condenado por manter sempre inconfessados os seus roubos:

Diabo: E tu morreste escomungado

7 Apud TOLEDO, Cézar de Alencar Arnaut de; ANDRADE, Rodrigo Pinto de. O tema da oração pelos

mortos na Confissão de Fé de Westminster . In: Protestantismo em Revista, São Leopoldo, vol. 34, maio/ago 2014, p. 143.

8 SARAIVA, José António. História da Cultura em Portugal II: Gil Vicente, Reflexo da Crise. Lisboa:

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nom o quiseste dizer esperavas de viver. Calaste dous mil enganos tu roubaste bem trint anos o povo com teu mester 9.

Sabedor de sua sentença, ele protesta trazendo à tona as tantas práticas devocionais que praticou: Como poderá isso ser / confessado e comungado? ; Quantas missas eu ouvi / nom me hão elas de prestar? ; E as ofertas que darão / e as horas dos finados? 10. O Sapateiro dava por certo serem suficientes estas

coisas para sua salvação, tanto que, no início do diálogo, pergunta: Os que morrem confessados / onde tem sua passagem? 11.

Desse modo, se para o Fidalgo a oração de outrem não foi suficiente para sua salvação; tampouco foi suficiente para o Sapateiro as orações próprias, porque não passaram de atos exteriores, não praticados como atos de piedade e não oriundos necessariamente da fé. Mas, por quais razões haveria atos religiosos meramente exteriores? Por um lado, como a fé cristã-católica era um fato social, e, portanto, algo herdado por aqueles que faziam parte daquela sociedade, muitas práticas dessa tradição eram vividas de modo artificial ; por outro lado, uma série de práticas da espiritualidade católica romana relacionava-se à lógica mercantil de então. A salvação era uma mercadoria, as práticas de piedade eram o capital através do qual se adquiria a salvação, por isso, não importava tanto a forma como eram praticadas, mas sim que fossem praticadas. Por isso, quando o sapateiro tem sua entrada negada na barca da Glória, Gil Vicente se coloca mais uma vez contrário as práticas católicas vigentes, missas participadas sem devoção, confissões impenitentes, práticas que não estavam interiormente ligadas à fé.

Encontramos algo semelhante no Auto do Purgatório, com a personagem do Lavrador, que participava das procissões e romarias, dava esmolas nas andanças nas festas de Sta. Margarida, benzia-se sempre pela manhã e rezava todo o Credo,

9 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno, versos 322-327. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

10 Idem, versos 320-321; 332-333 e 336-337. 11 Idem, versos 314-315.

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mas ainda assim foi sentenciado ao Purgatório, por causa de sua desonestidade no pagamento do dízimo, entregando a pior lã, o cabrito mais fraco e o frango doente:

Anjo: Que bens fizeste na vida

que te sejam cá guiantes?

Lavrador: Ia ao bodo da ermida

cada santa Margaída e dava esmola aos andantes benzia-me pola menhã levava o Credão at ò cabo12.

E não foi só isso. Essa mesma personagem diz ter participado de um anal e um trintairo , que são respectivamente a missa no dia do aniversário da morte de alguém e a missa de primeiro mês de uma morte ou conjunto de trinta missas. A fala do Lavrador nos remete ao que dizíamos no tópico anterior, sobre a fala do Fidalgo ao Diabo, isto é, de que tinha quem por ele rezasse na outra vida. Esse era um hábito bastante presente na cultura religiosa de então. Inclusive em um número sem fim de testamentos os testadores previam os serviços religiosos para sua salvação, não poucas vezes discriminando o dinheiro destinado a dizer missa em sufrágio de sua própria alma por determinado tempo, quando não perpetuamente. Como nos recorda Philippe Ariès:

Do século XIII ao XVIII, o testamento foi o meio para cada indivíduo exprimir, frequentemente de modo muito pessoal, seus pensamentos profundos, sua fé religiosa, seu apego às coisas, aos seres que amava, a Deus, bem como as decisões que havia tomado para assegurar a salvação de sua alma e o descanso de seu corpo13.

O testamento se torna, então, uma espécie de contrato no qual o defunto deixa garantidos junto à Igreja os recursos necessários (missas) para se salvar, independentemente de suas práticas de vida.

Quem participava dos atos em prol dos defuntos acreditava também angariar capital para sua própria salvação, já que se tratava de um ato de caridade cristã e, por ventura, o vivo também alcançaria a intercessão do defunto

12 VICENTE, Gil. Auto do Purgatório (Segunda Barca), versos 226-232. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

13 ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Trad. dePriscila

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junto a Deus. No caso do Sapateiro e do Lavrador, contudo, tais práticas são contrapostas pelo Diabo ou pelo Anjo por não terem correspondido aos seus verdadeiros sentimentos de humildade ou contrição, não terem sido sinceras, dada a conduta desonesta que continuavam a praticar antes e depois do culto 14. Pelo

que se depreende dessas passagens, nada, na ótica de Vicente, substitui a real piedade do sujeito e sua responsabilidade para estar apto à salvação. Os atos de piedade não podem ser meras moedas de troca entre o indivíduo e Deus.

O Frade

A terceira personagem em que o tema da oração figura no julgamento é o Frade, que chega à Barca do Inferno acompanhado de uma dama. Por minha la tenho eu / e sempre a tive de meu 15. As palavras do Frade revelam que o seu

relacionamento com a dama era algo habitual. Tanto que ele não considera como pecado sua relação amorosa e, por isso, diz não entender a sentença que o destinou ao inferno: Juro a Deos que nom t entendo 16. Não é para menos a reação do

religioso, uma vez que o concubinato clerical era uma prática mais ou menos estabelecida que convivia lado a lado com a disciplina do celibato sacerdotal, como sinaliza a galeria de clérigos da obra vicentina17. Inclusive, o Concílio de Trento, no

9º cânon sobre o matrimônio, tratou de combater essa realidade, ratificando que:

Se alguém disser que os clérigos constituídos em ordens sacras e os Regulares que professam solenemente castidade, podem contrair validamente matrimonio, não obstante a lei eclesiástica ou o voto, e que o contrário disto outra coisa não é senão condenar o Matrimônio; e que podem contrair matrimônio todos

14 CRUZ, Maria Leonor García da. Gil Vicente e a Sociedade Portuguesa de Quinhentos. Lisboa:

Gradiva, 1990, p. 163.

15 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno, versos 378-379. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

16 Idem, verso 389.

17 Cito alguns clérigos da galeria vicentina, para exemplificar a afirmação. No próprio Auto da Barca do Inferno, a alcoviteira Brísida Vaz diz: Eu sô aquela preciosa, / que dava as moças a molhos. / A

que criava as meninas / pera os cônegos da Sé... . No Clérigo da Beira, o clérigo tem uma esposa, que lhe ajuda no cumprimento das tarefas ministeriais; e um filho (Francisco), com o qual reza as matinas. Em Comédia de Rubena, Rubena é uma moça prenhe de um clérigo, como revela a parteira na hora do parto: "Saia cá o cordeirinho, / o coneguinho da Sé." Em Comédia sobre a Divisa da

cidade de Coimbra, a personagem Peregrino afirma: Outrossi as causas por que aqui têm / os

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os que não sentem ter o dom da castidade, ainda que o tenham prometido — seja excomungado18.

Assim como o Lavrador, no Auto do Purgatório, procurou fundamentar seu direito à salvação inventariando seus atos de piedade, o Frade procurou se valer da condição de religioso professo: E est hábito nom me val? 19, bem como da

rotina de oração própria dos conventos:

Frade: Como por ser namorado

e folgar com ũa molher se há um frade de perder com tanto salmo rezado?20

Quando a personagem fala em tanto salmo rezado , está aludindo à obrigação dos clérigos, monges e freis de rezarem o Breviário ou Liturgia das Horas diariamente. O Breviário é livro litúrgico composto principalmente pelos salmos, que são ordenados de tal forma que se reze até cinco vezes por dia, conforme designe o rito. Recordemos que a primeira parte da farsa O Clérigo da Beira apresenta o clérigo e seu filho Francisco rezando as matinas, oração do Breviário destinada ao horário da manhã. Esta cena põe em questão o espírito com o qual alguns clérigos cumpriam sua obrigação canônica de rezarem a Liturgia das Horas: espírito de displicência, irreverência e mecanização.

Mais uma vez, deparamo-nos com a postura crítica de Gil Vicente aos atos de piedade que não são acompanhados de condutas consideradas adequadas pela sociedade quinhentista. Não basta o hábito religioso; tampouco são suficientes orações que não passem de meros gestos formais. A investidura do hábito religioso requer determinados hábitos de vida, entre os quais está o voto de castidade e a obrigação canônica de rezar o Breviário. O nosso frade, no entanto, vem acompanhado de uma dama que diz ser sua, quebra seu voto de castidade e comete o pecado contra o sexto mandamento: não pecar contra a castidade. Por isso, seu destino é a Barca do Inferno.

18 Sacramento do Matrimônio. In: Concílio Ecumênico de Trento: decretos e cânones. Disponível em:

www.montfort.org.br. Acesso: 04 out. 2017

19 VICENTE, Gil. Auto da Barca do Inferno, verso 390. Disponível em:

http://www.cet-e-quinhentos.com/autores. Acesso: 18 abr. 2017.

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Considerações finais

A oração revela-se um critério salvífico no Auto da Barca do Inferno, na medida em que tanto as personagens condenadas, quanto as figuras do Anjo e do Diabo, recorrem à argumentações que consideram essa prática religiosa no momento do julgamento. Todos os condenados buscaram usá-la como trunfo, mas foi recurso em vão. No momento crucial, não foram consideradas as orações de outrem (caso do Fidalgo), as orações desacompanhadas de uma vida ética (caso do Sapateiro), bem como as práticas meramente formais de oração (caso do Frade).

Se a oração é um critério salvífico, ela deve ser uma prática pessoal, com verdadeira devoção e uma vida reta. De acordo com Stanislav Zimic,

As frequentes referências burlescas nas obras vicentinas às missas, horas , ofertas, orações e outras formas de devoção meramente externas refletem a preocupação muito seria de muitos teólogos e moralistas contemporâneos de Gil Vicente, com respeito à discrepância entre palavra ou gesto ritual e sentimento, que seja por ignorância, seja por hipocrisia, muitas vezes se manifestava nessa sociedade21.

Entre os teólogos e moralistas contemporâneos de Gil Vicente que escreveram sobre a oração estão Erasmo de Roterdã, em Modus Orandi, e Juan de Valdés, em Diálogo de Doctrina Christiana, cujos escritos aparecem na Espanha respectivamente em 1524 e 1529, portanto, posteriormente à data do Auto da Barca do Inferno. Contudo, nesse aspecto do avivamento espiritual, Saraiva identifica a influência dos alumbrados , pré-reformadores espanhóis, que reagiam principalmente contra o formalismo religioso... as devoções sem alma e condenavam o seu caráter ritual, mecânico, o seu uso para petições particulares 22.

Segundo o próprio Saraiva, não se foi investigado ainda em que medida o movimento dos alumbrados se refletiu em Portugal, mas se sabe que os franciscanos reformados de Castela-a-Nova foram propagadores de suas ideias.

21 ZIMIC, Stanislav. El teatro religioso de Gil Vicente. In: Gil Vicente 500 anos depois. Vol. 1. Centro de

Estudos de Teatro. Imprensa Nacional Casal da Moeda. Lisboa, 2003, p. 191 (tradução nossa).

22 SARAIVA, José António. História da Cultura em Portugal II: Gil Vicente, Reflexo da Crise. Lisboa:

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Isto pode ser um indício da relação de Gil Vicente com as ideias dos alumbrados , uma vez que, D. Leonor, grande incentivadora da obra vicentina, pertencia à Ordem Terceira de São Francisco. O protesto de Gil Vicente contra a banalização das práticas de piedade pode ter sua raiz realmente no avivamento espiritual proposto pelos alumbrados. Precisamos, contudo, encontrar os caminhos dessa conexão e D. Leonor pode ser um deles.

Se do ponto de vista da concepção de oração, o Auto da Barca do Inferno parece alinhado com o reformismo proposto pelos alumbrados; do ponto de vista teológico, Gil Vicente mantem o auto alinhado à teologia católica romana de então, na qual prevalecia o discurso meritório da prática das obras para alcançar a salvação. É sobre esse fundamento teológico que está estruturado todo o auto, incluindo a oração entre as obras necessárias à salvação.

No mesmo ano da apresentação do auto (1517), Martinho Lutero tornou públicas suas 95 teses, dando início a sua proposta de reforma religiosa, em que se desloca o acento teológico das obras para a graça; ninguém se salva por suas obras, mas pela graça de Deus. O justo vive pela fé Rm : . Pelo que vimos, o Auto da Barca do Inferno (1517) não se vincula a esta perspectiva teológica, mas vale aprofundarmos o estudo em outros autos posteriores nos quais o dramaturgo português trabalha o tema da oração, para observarmos a incidência do pensamento reformador sobre as ideias vincentinas. Em Inferno, o que vimos foi um forte acento sobre as obras para a salvação, e dentre estas obras estão os atos de piedade cristã, praticados de maneira interiorizada, isto é, devota, vinculados à fé.

Artigo recebido em: 15.04.2018 Artigo aceito em: 24.07.2018

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