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ESTUDOS DE GÊNERO, HISTÓRIA E A IDADE MÉDIA: RELAÇÕES E POSSIBILIDADES

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ESTUDOS DE GÊNERO, HISTÓRIA E A IDADE MÉDIA:

RELAÇÕES E POSSIBILIDADES

GENDER STUDIES, HISTORY AND MIDDLE AGES: RELATIONS AND

POSSIBILITIES

Carolina Coelho Fortes

Universidade Federal Fluminense

Resumo: Nesse artigo, pretende-se discutir

a categoria gênero e refletir sobre sua adequação ao estudo da História Medieval. Para tanto, buscaremos delinear os principais aspectos da definição do conceito, em uma primeira possibilidade de abordagem. Em seguida buscaremos legitimar o seu uso para o estudo do Medievo, e por fim, discutiremos sua aplicação em duas pesquisas recentes, que levaram a um reposicionamento quanto às hipóteses defendidas pela autora no passado.

Palavras-chave: Estudos de Gênero – História Medieval – Teoria da História.

Abstract: In this article, we intend to

discuss the gender category and reflect on its suitability for the study of Medieval History. We will try to outline the main aspects of the definition of the concept, in a first possibility of approach. Then we will seek to legitimize its use for the study of the Middle Ages, and finally, we will discuss its application in two recent researches, which have led to a repositioning regarding the hypotheses defended by the author in the past.

Keywords: Gender Studies – Medieval

History – Theory of History

Nesses tempos em que vivemos, pensar sobre gênero – até mesmo pensar cientificamente – tornou-se um ato de resistência. É por conta disso que pretendo1

retomar aqui, uma questão que me coloco desde o início de minha trajetória como pesquisadora: é possível aplicar a categoria, ou conceito, gênero ao estudo das sociedades medievais? Essa pergunta me parece ainda pertinente não só por conta da avassaladora onda de negacionismo científico e violência de gênero que caracterizam os dias atuais, mas tem também um fundamento acadêmico. Qual seja, é ainda comum ouvir nos corredores de cursos de História, Brasil afora, que nós, medievalistas, vivemos em constante anacronia porque usamos ferramentas

1 Permita-me, leitor, usar a primeira pessoa do singular neste artigo. Parto sempre da ideia de que o

conhecimento só pode ser construído coletivamente, por isso sou adepta da utilização do plural em textos acadêmicos. Ocorre que, ao se tratar especialmente, de questões de gênero, este mesmo deve estar à frente da reflexão que, neste caso, é feita por alguém que se identifica com o sexo feminino.

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conceituais hodiernas para analisar um passado demasiado distante.

Esse tipo de argumento é, no mínimo, raso e, certamente, machista. Em muitos casos, os mesmos que entendem Gênero como mera perfumaria, não se incomodam, por exemplo, em lançar mão de conceitos como classe e ideologia, também instrumentos de análise construídos na contemporaneidade, para compreender um passado que não se pensava nesses termos. Como percurso para questionar esse posicionamento, e questionar a própria forma como tenho entendido Gênero, debruçar-me-ei sobre uma primeira definição dessa categoria, e as críticas que podem ser feitas a ela. Em um segundo momento, apresentarei dois trabalhos recentes, de jovens pesquisadores - Wendell dos Reis Veloso2 (UFRRJ) e

Carolina Niedermeier Barreiro3 (UFRGS), que trabalham com os Estudos de

Gênero, para então, partindo de suas considerações, reavaliar as hipóteses que defendi ainda na minha dissertação de mestrado, nos idos de 2003.

Um dos principais elementos dos Estudos de Gênero é seu caráter relacional, ou seja, a necessidade de uma análise baseada ao mesmo tempo nos aspectos femininos e masculinos estudados. Mas como esse caráter relacional pode se estabelecer quando o período no qual se aplica o conceito é a Idade Média, que dá ao homem o monopólio quase absoluto sobre a escrita? Responder a essa pergunta é um dos nossos objetivos nesse artigo, juntamente com re-considerações a respeito do próprio conceito, à luz de novas pesquisas sobre a questão de gênero no Medievo.

Porque a questão “é possível uma história medieval de gênero” é uma pergunta epistemologicamente válida? Principio admitindo que essa não é a primeira vez que me faço essa pergunta. Em 2009 refleti mais detidamente sobre ela pela primeira vez, ao apresentar uma comunicação no congresso Fazendo

2 VELOSO, Wendell dos Reis. Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a

Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV e V). Tese de

Doutorado. Seropédica: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2019.

3 BARREIRO, Carolina Neidermeier. Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de

textos escritos por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2019.

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Gênero,4 o maior no Brasil sobre essa área de estudo. Àquela altura, começava

ainda minha pesquisa para o doutorado, e a questão me motivava na medida em que pretendia perceber as marcas identitárias de gênero na formação da Ordem dos Frades Pregadores, os dominicanos.

Embora, desde a graduação, eu não tenha deixado de estudar e refletir sobre gênero, consciente do papel que esse tipo de estudo tem para a sociedade e, consequentemente, para a academia, foi em 2018 que me aferrei de forma mais plena a suas premissas. O contexto político no qual estamos inseridas exige, do meu ponto de vista, que nós, historiadoras e educadoras, tomemos posição clara a respeito da centralidade do pensamento científico para a construção de uma sociedade mais justa. E isso requer, entre outros conhecimentos e práticas, que discutamos e reflitamos sobre as diferenças sexuais atribuídas culturalmente aos corpos biológicos. Por isso acredito ser fundamental continuar me perguntando sobre a pertinência dos estudos de gênero e sua aplicação à história medieval.

A pergunta permanece, mas as respostas têm variado ao longo desses anos. Acredito que as mudanças se devam a um conjunto de fatores, que já adianto: primeiro o aprofundamento das leituras sobre a categoria gênero; segundo, o atual contexto político que me fez assumir o feminismo como bandeira de luta, contrariando o que as pioneiras na área entendiam como o correto; e, por fim, o diálogo com jovens pesquisadoras e pesquisadores, que atuam na área e já nasceram em um contexto de maior igualdade de gênero, o que dá a elas e eles, creio eu, uma perspectiva mais lúcida sobre o assunto.

Começo, então, atestando o óbvio, necessidade recorrente nos dias atuais: acredito que a reflexão sobre gênero seja legítima pois as diferenças de gênero ainda estão profundamente enraizadas na sociedade contemporânea. É crença generalizada que a biologia determina nossos sentimentos, nossos gostos, nossos comportamentos, nossa forma de pensar, falar, enfim, nossa forma de existir. E essa constatação coloca um outro problema, que precisa ser enfrentado com

4 FORTES, Carolina Coelho. É possível uma história medieval de gênero? Considerações a respeito

da aplicação do conceito gênero em história medieval. In: Anais do Seminário Internacional fazendo

Gênero 7. Florianópolis, 2006. Disponível em:

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cuidado: as relações entre presente e passado. Problema que enseja uma miríade de outros problemas, os quais não tenho competência para resolver, mas que nos alerta para um dilema metodológico. Existem diferenças de gênero na sociedade contemporânea e as percebemos como tais; a categoria teórica gênero é também uma invenção contemporânea que, justamente, é resultado dessas diferenças. Desta forma, como poderíamos querer aplicá-la a uma outra realidade, a esse Outro medieval, tão distante do nosso próprio mundo? Pensar a esse respeito é ao que me proponho agora.

1. O Conceito Gênero

Para tanto, buscamos uma tentativa de definição, fundamentada nas considerações da historiadora Joan Scott, que entende gênero como o termo utilizado para teorizar a questão da diferença sexual.5 Primeiramente utilizado

pelas feministas, especialmente a partir da década de 1970, para acentuar o caráter social das distinções baseadas no sexo, rejeitava o determinismo biológico implícito em palavras como "sexo", por exemplo. A categoria gênero surge, então, priorizando o caráter relacional entre mulheres e homens, e pode ser entendida como a organização social da relação entre os sexos. Desta forma, a compreensão dos sexos não se dá pelo estudo dos dois separadamente. Ou seja, mulheres e homens são definidos em termos recíprocos e nenhuma compreensão destes seria possível se fossem estudados em separado.

Para Joan Scott, gênero como categoria de análise se baseia na relação entre duas proposições: “gênero tanto é um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar relações de poder.”6 Enquanto a primeira proposição se

refere ao “processo de construção das relações de gênero” e sublinha a importância “dos procedimentos de diferenciação pelos quais, em cada contexto histórico, são formuladas e reformuladas, em termos dicotômicos, os conteúdos

5 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade, v. 20, n.

2, p. 71-99, jul./dez. 1995.

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aparentemente fixos e coerentes do masculino e do feminino”,7 a segunda

proposição se refere à pertinência do gênero como categoria de compreensão e explicação histórica de outras relações de poder. Scott acredita que o historiador de gênero deve desconstruir os conteúdos fixos do masculino e do feminino, mostrar sua fragilidade e polissemia, expor a seletividade dos procedimentos pelos quais eles adquiriram um sentido único. O aspecto essencial do gênero formulado por Scott é expor as estratégias de dominação que sustentam a construção

binária da diferença entre os dois sexos.

Gênero também é o “saber a respeito das diferenças sexuais”.8 Scott entende

saber como foi definido por Foucault, ou seja, como compreensão produzida pelas culturas e sociedades sobre as relações humanas, nesse caso, sobre as relações entre homens e mulheres. Tal saber é sempre relativo, nunca é demais lembrar. Os usos e significados desse saber nascem de uma disputa política, e são os meios pelos quais as relações de poder (de dominação e subordinação) são construídas. “O saber é uma forma de organizar o mundo e, como tal, não antecede a organização social, mas é inseparável dela.”9

Dessa afirmação segue-se que gênero é a “organização social da diferença sexual”. O que não quer dizer que gênero se baseie nas diferenças fixas e "naturais" entre homens e mulheres, mas que este é o “saber que estabelece significados para as diferenças corporais”.10 Esses significados variam de acordo com as culturas, os

grupos sociais e o tempo, já que o corpo não determina univocamente como a divisão social será definida. Nosso saber sobre o corpo se reflete nas diferenças sexuais, “e este saber não pode ser isolado de suas relações numa ampla gama de contextos discursivos.”11 Logo, a organização social não se baseia unicamente na

diferença sexual – a diferença sexual não é o único motor da organização social – mas, sem dúvida, é um dos fatores que a estrutura.

Tendo escrito seu artigo seminal a respeito há mais de três décadas, Joan

7 VARIKAS, Eleni. Gênero, experiência e subjetividade: a propósito do desacordo Tilly-Scott.

Cadernos Pagu, 3, 1994. p. 67.

8 SCOTT, Joan W. Prefácio à Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, 3, 1994, p. 12. 9 Ibidem, p.13.

10 Idem. 11 Idem.

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Scott já via então uma tendência perigosa, porque limitadora e, ouso dizer, até mesmo misógina, nos estudos que aplicavam o termo gênero: eram demasiadamente descritivos, como sói ocorrer ainda hoje.12 Além disso, em muitos

casos, gênero era – e continua sendo - utilizado como sinônimo de mulheres, ou mesmo de mulher, no singular indistinto e restritivo. Sendo descritivas apenas, as abordagens de gênero referem-se à existência de fenômenos sem interpretá-los, explicá-los ou atribuir-lhes uma causalidade. Já a abordagem teórica defendida por ela implica na apresentação de uma ordem causal, na formulação de teorias sobre a natureza dos fenômenos.13

Um dos questionamentos da História de Gênero se refere a como as hierarquias são construídas e legitimadas. Esta forma de abordar a História indica um estudo que se preocupa com processos, postos em movimento por causas múltiplas, e que se evidenciam através da retórica e dos discursos. Voltando-se, assim, contra o estudo das origens, as explicações baseadas em causas únicas, e as ideologias. Para as estudiosas de gênero, é uma perspectiva interessante entender a identidade política – tal como as instituições sociais e os símbolos culturais –, como forma de produção do saber, e como fazendo parte do mesmo projeto político o feminismo e os estudos acadêmicos de gênero.14 Desta forma, as análises

12 Embora a própria Scott se furte a apontar os exemplos a que se refere quando menciona o

tratamento descritivo em obras que lançam mão da categoria gênero, elencamos aqui alguns que tratam do Medievo, na língua materna da autora: BENNETT, Judith. Women in the Medieval English

Countryside: Gender and Household in Brigstock Before the Plague. New York: Oxford University

Press, 1987; BITEL, Lisa. Land of Women: Tales of Sex and Gender from Early Ireland. Cornell; University Press, 1996; HOWELL, Martha. The Marriage Exchange: Property, Social Place, and

Gender in Cities of the Low Countries, 1300-1550. Chicago: University of Chicago Press, 1998;

MORRIS, Kathleen. Sorceress or Witch? The Image of Gender in Medieval Iceland and Northern Europe. Lanham: University Press of America, 1991; VAN HOUTS, Elisabeth. Memory and Gender in Medieval Europe, 900-1200. Londres: Macmillan, 1999.

13 SCOTT, Op. Cit., 1995, p.75.

14 Alguns exemplos de obras historiográficas sobre o período medieval em que relações políticas de

gênero são abordadas: ERLER, Mary & KOWALESKI, Maryanne. Women and Power in the Middle

Ages. Athens: University of Georgia Press, 1988; SHADIS, Miriam. Berenguela of Castile (1180-1246) and political women in the High Middle Ages. New York: Macmillam, 2009; PARSONS, John. (ed.) Medieval Queenship. New York, Palgrave Macmillan, 1998; TINKLE, Theresa. Gender and Power in Medieval Exegesis. New York: Macmillam, 2010; JANTZEN, Grace. Power, Gender and Christian Mysticism. Cambridge; University Press, 1995; KARRAS, Ruth Mazo. From Boys to Men: formations of masculinity in Late Medieval Europe. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2003;

KITCHEN, John. Saint´s Lives and the Rhetoric of Gender. Male and Female in Merovingian

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críticas do passado e do presente tornam-se continuadas, e as historiadoras podem não apenas interpretar o mundo, como transformá-lo no processo, ao lançar luz sobre as motivações para o estabelecimento de diferenças sexuais. É evidente que tal perspectiva torna necessário o exame de gênero como um fenômeno histórico, concreto e contextualizado, que se transforma ao longo do tempo. Assim, a História de Gênero preocupa-se em compreender “como os significados subjetivos e coletivos de homens e mulheres, como categorias de identidade, foram construídos”.15

Gênero assim estabelecido, a partir da perspectiva de Scott, no entanto, vem sofrendo críticas duras. Uma das principais críticas que se faz às suas formulações é de que a historiadora assume que as categorias homem e mulher, ou homens e mulheres, estão dadas e não são, elas também, construídas.16 E mais, a dicotomia

de gênero, segundo autoras como Butler17 e Preciado,18 é também falaciosa e

inadequada. Determinar que existem apenas dois gêneros, definidos ou não pelos corpos biológicos, é uma imposição do homem universal: branco, identificado com o masculino, ocidental e heterossexual. Se tomamos como base nosso objeto específico de estudo, por exemplo – os frades dominicanos do século XIII – percebemos que, embora se utilizem das categorias homem e mulher, atribuem a elas características distintas do que nossa própria sociedade entende como feminino e masculino. Eu diria, ainda, que há uma certa flexibilidade no tratamento que dão ao que hoje chamamos de questões de gênero, particularmente atribuindo características femininas a corpos biologicamente entendidos como masculinos e traços masculinos a corpos biologicamente lidos como femininos.

2. É possível uma história medieval de gênero?

Pergunto-me se é possível fazer uma história de gênero voltada para a visão de um sexo sobre o outro, e não suas inter-relações? Essa, de fato, é uma falsa

15 SCOTT, Op. Cit., 1994, p.19.

16 TARRÉS, Maria Luisa. A proposito de la categoria género: ler a Joan Scott. Sociedade e Cultura,

Goiânia, v. 15, n. 2, p. 379-391, jul./dez. 2012, p. 380;

17 BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2003.

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questão, já que, discursivamente, a inter-relação entre gêneros se coloca inerentemente. Um frade que toma a pena para escrever seja uma vida de santa, seja uma ata de capítulo geral de ordem religiosa, o faz impregnado por sua convivência com homens e mulheres, com aspectos do mundo que ele considera ser femininos e masculinos. Além do que, é necessário sempre ter em mente que a História de Gênero não é a História das Mulheres e que, por isso, dedica-se também aos homens enquanto seres genderificados, e não universais. No caso da minha pesquisa mais longeva, uma análise de gênero da coletânea hagiográfica mais copiada da Idade Média, a Legenda Aurea, escrita na década de 60 do século XIII,19

temos em mãos uma fonte que nos permite avaliar o que um homem acredita ser uma mulher perfeita. Mas dessa mulher temos somente a imagem, o ideal imaginado por um homem. Logo ela não está em relação direta com ele, mas é construída por ele.

É possível, afinal, uma história medieval de gênero? Para responder a essa pergunta valemo-nos, sobretudo, da abordagem historicista. Tal método aponta para a escolha do lugar, da situação, da posição relativa ao grupo social ou mulheres e homens a serem estudados no conjunto de uma sociedade. A partir daí deve-se assumir a temporalidade do tema e problematizar até mesmo o próprio conceito de mulher ou a categoria mulheres. Ou seja, em termos mais simples, precisamos proceder à operação mais básica do fazer historiográfico, a contextualização.

Para que seja possível uma história medieval de gênero é necessário que se temporalize este categoria, e que esta seja inserida no contexto histórico do Ocidente cristão, no nosso caso. Assim, gênero pode servir como uma referência instável, mas crítica, pois é uma postura teórica que se constrói como “processo de conhecimento movediço num mundo transitório”.20 A própria Scott já afirmava que

gênero é uma categoria vazia e transbordante.21 Vazia porque cabe ao analista

19 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea: vidas de santos. [Tradução do latim, apresentação, notas e

seleção iconográfica de Hilário Franco Júnior]. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

20 SILVA DIAS, Maria Odila Leite da. Novas subjetividades na pesquisa histórica feminista: uma

hermenêutica das diferenças. Estudos Feministas, 2, 1994. p. 376.

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perceber como configurá-la, e transbordante porque ultrapassa a questão meramente sexual e se espraia pelos mais variados domínios da vida social. É imprescindível que se rompa com os conceitos preexistentes e que se adapte conceitos já existentes, temporalizado-os. Partimos de referências nos conceitos já formulados para criar nossos próprios conceitos, que se baseiem e adequem-se a nossa produção. Os conceitos preexistentes são ponto de partida para a formulação de outros, relativizados. A sociedade é transitória, logo não se pode trabalhar com conceitos estáticos. Deve-se conectar o objeto com o mundo, com o seu contexto.

Portanto, o que advogamos aqui para uma história medieval de gênero nada mais é do que o principal exercício da historiadora, conforme já afirmamos, ou seja, a contextualização também do instrumental teórico do qual lançamos mão para entender o passado. Levando em conta que toda história é história do presente, todo olhar para o ontem parte do agora, e que a nossa é uma ciência contemporânea, não há como nos furtarmos de usar formulações atuais para inquerir o passado, inclusive o remoto medievo.

3. Dois exemplos recentes

Senão vejamos a aplicação da categoria gênero em duas pesquisas recentes acerca da sociedade medieval, e uma mais antiga. Passemos a analisar brevemente a tese de doutorado de Wendell dos Reis Veloso, defendida em abril de 2019, pela UFRRJ; o projeto de doutorado de Carolina Niedermeier Barreiro, submetido ao processo seletivo de 2019 do PPGH da UFRGS e uma reconsideração feita especialmente para esta fala acerca da minha dissertação, defendida em 2003 pelo PPGHIS da UFRJ.

Na tese “Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV e V)”,22 Wendell Veloso tem como principal objetivo analisar a criação de uma

sexualidade que ele nomeia de sexualidade divina, a partir de cinco tratados

22 VELOSO, Wendell dos Reis. Os Continentes, os Conjugati e os Outros: Identidade Cristã e a

Instituição da Sexualidade Divina nos Escritos de Agostinho de Hipona (Séculos IV e V). Tese de

Doutorado. Seropédica: Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2019.

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polêmicos de Agostinho (A Verdadeira Religião, Confissões, Da Santa Virgindade, A

Cidade De Deus e Sobre o Bem do Casamento). O autor defende que, naquele

contexto de sistematização da religião cristã como um sistema de crenças e práticas adotadas voluntariamente, o bispo de Hipona propôs uma identidade cristã específica, estável, substanciosa e fixa em contraposição às identidades múltiplas. Agostinho, assim, forja uma sexualidade orientada para a continência, antagonista do prazer, e que entende como fixa e natural. Esta sexualidade divina se opõe à sexualidade plástica (orientada para o prazer) que caracterizava as comunidades tradicionais do Império Romano.

Embora não tenha como fio condutor teórico propriamente a categoria gênero, Veloso se ocupa em discutir aspectos pertinentes a ela ao refletir sobre o conceito de sexualidade, informado sobretudo pela Teoria Queer, por sua vez derivada, em grande medida, dos Estudos de Gênero e associada a estes. É possível perceber as reflexões sobre gênero na própria definição de Teoria Queer que, segundo Baileiro, considera “os amplos aspectos históricos e sociais que moldam as relações afetivo-sexuais nos contextos contemporâneos, colocando relevo na construção discursiva da sexualidade bem como de gênero.”23 Em outras palavras,

a Teoria Queer pretende evidenciar e questionar o dualismo com que sexualidade e gênero são tratados.

Para demonstrar como o modelo de sexualidade estabelecido por Agostinho é apenas uma possibilidade em meio a muitas, que nega o prazer e se pretende fixo e natural, Veloso se vale também das ponderações de Judith Butler. A pensadora americana é uma das fundadoras da teoria queer e tributária, assim como Joan Scott, da filosofia foucaultiana sobre o poder. Em sua já clássica obra “Gender

Trouble”,24 Butler defende que a questão de gênero só pode ser pensada como

relação de poder. Mais do que isso, ela considera que o poder cria, produz, forja, inventa as supostas diferenças de gênero. Para ela, a dinâmica empreendida por

23 BALIEIRO, Fernando de Figueiredo. Introdução. In: ______. A Pedagogia do Sexo em o Ateneu:

Gênero e Sexualidade no Internato da “Fina Flor da Sociedade Brasileira.” São Paulo: Annablume, 2015, p. 29.

24 BUTLER, Judith P. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 14 ed. Rio de

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determinada tecnologia de poder estabelece aquilo que será o sujeito, a referência confundida com os homens cisgêneros, e o Outro, compulsoriamente associado às mulheres cisgêneras, além de operar nas supostas estabilidade e coerência deste sistema binário e hierárquico que se pretende não interdependente.25

Outra grande contribuição da tese de Veloso é defender que a historiografia está profundamente eivada de uma percepção de gênero binária e hierarquizada, o que muitas vezes pode falsear as conclusões a que chegamos em nosso ofício de analisar o passado.26 Isso torna premente uma reavaliação cuidadosa de toda, ou

quase, a produção historiográfica, seja ela relativa ou não a questões de gênero, porque esta parte de um ponto de vista “viciado”, que se sustenta tão somente no binarismo e muitas vezes no machismo estrutural.

Desde sua graduação, Carolina Barreiro vem se dedicando a pesquisar gênero na Inglaterra da Baixa Idade Média. Seu projeto de doutorado, de título

Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de textos escritos por

mulheres (Inglaterra, s. XIV)”,27 tem como problemática central a constituição do

gênero na Idade Média. Ou seja, ela indaga, baseando-se sobretudo em fontes literárias escritas por mulheres na Inglaterra do século XIV (Julian de Norwich (1343-1416) e Margery Kempe (1373-1438), como os diferentes gêneros são discursiva e performativamente conformados. Foca sua análise mais na configuração identitária dos gêneros e menos nas relações de poder. (Muito embora, na minha perspectiva, o processo de estabelecimento da identidade seja também uma forma de relação de poder). Mas é compressível que assim se posicione, uma vez que sua leitura é profundamente informada pelos escritos de Judith Butler,28 que tem como um dos pilares de suas reflexões a desconstrução da

ideia tanto de mulher, quanto propriamente de gênero. A doutoranda se preocupa em entender quais são as fronteiras estabelecidas entre os gêneros e como essas

25 Ibidem. p. 8.

26 VELOSO, Wendell. Op. Cit., p. 125-141.

27 BARREIRO, Carolina. Jesus Christ (...) is our true mother: pensar o gênero a partir de textos escritos

por mulheres (Inglaterra, s. XIV). Projeto de Doutorado submetido ao PPGH/UFRGS. Porto Alegre:

Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande Sul, 2019.

28 Barreiro se apoia, sobretudo, nas seguintes obras de Butler: BUTLER, Judith. Excitable speech: a

politics of the performative. Nova York: Routledge, 1997 e a já referida Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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categorias são elaboradas e reelaboradas a partir, especialmente, da perspectiva da escrita feminina.

O interesse de Barreiro está em refletir sobre “os binômios masculino/feminino, homem/mulher, suspendendo sua naturalidade e questionando sua própria fundamentação binária.”29 Ela defende que gênero é

uma categoria contingente, sobre a qual devemos estar permanentemente atentos, formulando, então, a seguinte hipótese: “gênero, no medievo, não pode ser pensado a partir da rigidez binária da modernidade.”30 Por mais ampla e ousada

que seja essa hipótese, vejo-a como bastante pertinente, necessária até, para avançarmos na compreensão tanto das questões de gênero quanto do período medieval.

Isso fica claro pelas perguntas que a pesquisadora elenca para inquirir sua documentação: quais são as categorias de gênero que as autoras a serem analisadas constituem em seus textos; o que significa ser mulher no século XIV; as teorias contemporâneas sobre gênero se confirmam para o contexto baixo medieval? Essas questões se amparam na crítica já mencionada à escola scottiana, que estabelece um binarismo rígido dos gêneros, ou seja, há uma enorme fixidez que opõe homens a mulheres, sujeitos masculinos a sujeitos femininos.

Para ilustrar sua desconfiança quanto à essa rigidez, Barreiro menciona exatamente casos que eu mesma analisei em minha dissertação de mestrado: o das santas crossdressed, isto é, daquelas santas que se passam por homens. Meu estranhamento sobre essas figuras, suscitado há quase vinte anos, foi respondido na medida das minhas possibilidades teóricas de então. Mas a jovem pesquisadora, na seara aberta pelas reflexões de Butler e Preciado, aborda o problema de forma muito mais satisfatória, perguntando-se se aquilo que considerei desvios dos modelos de feminino e masculino não seriam a constituição de outro gênero que escapa ao binarismo que a contemporaneidade atribui aos sexos. Ela se pergunta: “Uma mulher crossdressed com vestimentas tomadas como masculinas estaria (1) rompendo com seu gênero e movendo-se para o outro pólo de possibilidade? (2)

29 Ibidem.

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Estaria configurando outro gênero possível que não masculino nem feminino? (3) Ou estaria somente confluindo entre flexibilidades possíveis das margens?”31

Passo a apresentar uma releitura de minha dissertação de mestrado, intitulada Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: Os casos de Maria e

Madalena (2003),32 à luz das propostas e aplicações da categoria gênero por

Wendell Veloso e Carolina Barreiro. Por incrível que pareça, no começo dos anos 2000, trabalhar com gênero ainda não era algo exatamente bem visto pela academia brasileira. Os estudos de gênero eram tidos ainda com muita desconfiança, porque reputados como, no mínimo, perfumaria e, no máximo, preocupação de “feministas de butique”. Na minha inocência de mestranda, tinha já alguma consciência desses preconceitos, mas era àquele estudo que eu realmente queria me dedicar.

Tinha em mãos o próprio documento/monumento de que trata Le Goff.33 A

Legenda Aurea,34 essa compilação hagiográfica que conta com quase duzentas

vidas de santos, é uma obra extensa e, à primeira vista, enfadonha. Isso porque seu autor, o frade pregador Jacopo de Varazze, segue à risca a fórmula literária que se consagra ao longo da Idade Média, fazendo de seus personagens figuras predestinadas desde o nascimento à salvação, à pureza, que se prestavam a instruir com seus exemplos os fiéis em matéria de religião. Os santos, assim, são modelos de perfeição cristã. E, portanto, dão a ver o que aquela sociedade entendia como sendo o mais valoroso em termos de humanidade.

Tratando do lugar social do qual emitia seu discurso, na dissertação me preocupei em estabelecer Jacopo como um homem que, até a primeira redação de sua grande obra, mal havia tido contato com mulheres reais. Ingressou em um convento por volta dos quatorze anos de idade,35 e ainda estava em um convento

quando escreveu sua Legenda Aurea. Minha inquietação era de que ele não falava

31 Ibidem.

32 FORTES, Carolina Coelho. Os Atributos Masculinos das Santas na Legenda Aurea: os casos de Maria

e Madalena. Dissertação de Mestrado: Rio de Janeiro, Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2003.

33 LE GOFF, Jacques. Documento/monumento. Memória e História. Campinas: Unicamp, 1990. 34 JACOPO DE VARAZZE. Legenda Áurea. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

35 REAMES, Sherry L. The Legenda Aurea: A Reexamination of Its Paradoxical History. Wiscosin:

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sobre mulheres por experiência própria, mas as imaginava. Além disso, sua obra fala sobre santos, criaturas virtuosas, preferidas da graça divina, idealizadas. Ele sequer tinha em mente a mulher real como seu público direto. Contudo, escrever sobre ela – e aqui ele fala sobre a Mulher, e não as mulheres – não seria também uma forma de se relacionar com ela? Entendia-a como outra, como diferente, como

feminina. E, atribuindo-lhe características, discorrendo sobre ela e sobre suas

virtudes, de certa forma, entrava em contato com ela. É claro que este relacionamento assume a forma unilateral, porque lidamos com uma fonte literária, na qual a voz masculina abafa a feminina, mas nem por isso a exclui. Marcadamente as identidades de gênero se constroem em relação uma com a outra, dado a cultura diacrônica própria da sociedade medieval. E, sem dúvida, gênero pode ser utilizado para o período medieval também como uma forma de significar as relações de poder, sendo o masculino – ao menos na maioria das fontes eclesiásticas – sempre entendido como superior ao feminino.

Com base na vida de dois santos (Domingos e Vicente) e duas santas (Maria e Maria Madalena), defendemos a hipótese de que o compilador entendia a santidade feminina como marcadamente masculinizada. Ou seja, para que obtivessem papel de destaque como o ápice da perfeição cristã, as mulheres deveriam apresentar alguns traços masculinos. Acreditamos, portanto, que o padrão de santa privilegiado por Jacopo de Varazze é o da mulher, além de caridosa, piedosa e casta, ativa – ou seja, aquela que tem iniciativa, toma decisões e expõe com veemência suas idéias. Jacopo torna suas santas, desta forma, mulheres masculinizadas. Tal formulação decorre da perspectiva predominante na sociedade medieval de relegar as mulheres ao plano inferior. Masculinizando as santas, Jacopo tornava-as dignas de serem veneradas, possibilitando, desta forma, que sua imagem pudesse servir como a de uma personagem didática, que ensinaria aos fiéis, através de suas virtudes e prodígios, a perfeição cristã.36

À luz das contribuições de Veloso e Barreiro, é possível pensar que o

36 Estejamos atentos para o fato de que ensinar, instruir, não pressupõe o estabelecimento de

modelos. Assim, é perfeitamente coerente que a Legenda Aurea buscasse instruir seus consumidores sem, no entanto, estabelecer regras de comportamento para eles.

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21

modelo que Jacopo estabelece para as santas escapa do que a própria Legenda

Aurea estabelece como o feminino corrente, mais comum. As santas de Jacopo mal

podem ser consideradas mulheres exemplares, na medida em que, não sendo biologicamente masculinas, o são em parte em suas ações e características. Não são inteiramente homens nem completamente mulheres, abrindo uma outra via de identificação de gênero que quebra com a dualidade que tão pesadamente impomos – hoje e no medievo – sobre os corpos sexuados.

Em suma, respondendo à questão que inicia nossa fala, não só é possível uma história medieval de gênero, mas várias. Principiei essa trajetória de pesquisa partindo de uma perspectiva de gênero exclusivamente binária que levava em conta o caráter de construção e relacional de masculinidades e feminilidades. Esta não atentava, no entanto, para as nuances em que a identidade de gênero se expressa. Contribuições mais recentes, especialmente a aplicação da reflexão sobre gênero a objetos de pesquisa inseridos no contexto medieval, abrem o leque de possibilidades para análises que consideram a plasticidade, a flexibilidade e riqueza das experiências e representações de gênero na Idade Média.

Artigo recebido em 25.05.2020 Artigo aceito em 15.06.2020

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