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Argumentação Jurídica nas Decisões do STF em Matéria Tributária e o Estado de Direito

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Academic year: 2019

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP

Christine Mendonça

Argumentação Jurídica nas Decisões do STF em Matéria Tributária e o Estado de Direito

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP

Christine Mendonça

Argumentação Jurídica nas Decisões do STF em Matéria Tributária e o Estado de Direito

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Doutor em Direito do Estado – Direito Tributário sob a orientação do Prof. Doutor Paulo de Barros Carvalho.

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Banca Examinadora

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RESUMO

A presente tese de doutorado tem por objetivo analisar a argumentação nas decisões judiciais em matéria tributária produzidas pelo Supremo Tribunal Federal de modo a identificar de que forma esse órgão constitucional está contribuindo para a manutenção do Estado de Direito. A partir dos instrumentos teóricos fornecidos pelo método construtivista lógico-semântico e pela teoria sistêmica luhmaniana compreende-se a extensão e a importância da interpretação jurídica do direito. Verifica-se, a partir dela, como devem ser processados os ruídos provenientes de outros subsistemas sociais. O processo de interpretação realizado pelo observador-intérprete do direito será registrado na argumentação jurídica por ele apresentada. E, no caso do Supremo, comporá a fundamentação dos votos dos Ministros. A análise desses argumentos é fundamental para investigar a ocorrência de corrupção entre os códigos intersistêmicos que tanto fragiliza a manutenção do Estado de Direito.

(5)

ABSTRACT

The purpose of this doctoral thesis is to analyze the arguments presented by the Brazilian Supreme Court’s decisions on tax matters so as to identify the ways in which that constitutional agency has contributed to maintain and protect the Rule of law. Theoretical tools provided by the logical-semantic constructivist method and the Luhmanian systems theory help understand the range and importance of the legal interpretation of the law, and, based on that, help verify how to process interferences coming from other social subsystems. The process of interpretation developed by the law’s observer-interpreter will be registered in the juridical argumentation by him presented. And, in the case of the Supreme Court, it will be part of the reasoning supporting the Ministers’ votes. The analysis of those arguments is a fundamental tool to investigate the occurrence of corruption between inter-systemic codes that undermines the maintenance of the Rule of law.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

CAPÍTULO 1 – ESTADO DE DIREITO E CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS INTERSISTÊMICOS ... 16

1.1 ESTADO: A DIVINDADE DO DIREITO? ... 16

1.2 ESTADO PERSONIFICADO PELO DIREITO ... 20

1.3 ESTADO DE DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO ... 25

1.4 DIVISÃO DE PODERES COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA AO ESTADO DE DIREITO ... 29

1.5 AUTONOMIA OPERACIONAL DO DIREITO NO ESTADO DE DIREITO ... 34

1.6 PROCESSAMENTO DAS INFLUÊNCIAS POLÍTICAS E ECONÔMICAS NO ESTADO DE DIREITO ... 38

1.7 CORRUPÇÃO ENTRE OS CÓDIGOS E ESTADOS PERIFÉRICOS. 41 CAPÍTULO 2 – INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SEUS LIMITES ... 44

2.1 ENTENDIMENTO DOMINANTE SOBRE INTERPRETAÇÃO JURÍDICA E SEUS MÉTODOS ... 44

2.2 DEFINIÇÕES NECESSÁRIAS EM FUNÇÃO DA ADOÇÃO DA FILOSOFIA DA LINGUAGEM E DA TEORIA SISTÊMICA ... 49

(7)

2.4 TEXTO JURÍDICO: PONTO DE PARTIDA DA INTERPRETAÇÃO

JURÍDICA ... 60

2.4.1 Princípio da Legalidade e texto jurídico ... 63

2.5 NORMAS JURÍDICAS CONSTRUÍDAS NA INTERPRETAÇÃO ... 65

2.6 “NECESSIDADE DE REDUNDÂNCIA” COMO LIMITE NO PROCESSO INTERPRETATIVO ... 68

2.7 PLANOS SINTÁTICO, SEMÂNTICO E PRAGMÁTICO DA COMUNICAÇÃO JURÍDICA ... 71

2.7.1 Plano sintático: implica ... 73

2.7.1.1 Lógica ... 74

2.7.1.2 Gramática ... 75

2.7.1.3 Análise sistemática ... 76

2.7.2 Plano Semântico: designa e denota... 77

2.7.2.1 “Conotação e Vagueza” e “Denotação e Ambigüidade” .... 80

2.7.2.2 Modificações histórico-evolutivas da língua ... 82

2.7.2.3 Zona de certeza semântica: casos típicos e atípicos na interpretação jurídica ... 83

2.7.3 Plano pragmático: expressa ... 86

2.7.3.1 Valor e Heterorreferência ... 90

2.7.3.2 “Jurisprudência de conceitos” e “Jurisprudência de Interesses”: intenção do texto ou intenção dos participantes? ... 93

(8)

CAPÍTULO 3 – PODER JUDICIÁRIO E DECISÃO JUDICIAL ... 99

3.1 FUNÇÃO JURISDICIONAL DO PODER JUDICIÁRIO NO ORDENAMENTO BRASILEIRO ... 99

3.2 PROCESSO JUDICIALCOMO MICROSSISTEMA CENTRAL... 102

3.3 INDEPENDÊNCIA E CRIATIVIDADE DO JUIZ NO ESTADO DE DIREITO ... 108

3.3.1Juiz-Político e Ativismo Judicial ... 114

3.4 DECISÃO JUDICIAL ... 119

3.5 INCIDÊNCIA JURÍDICA E A PERMANÊNCIA DO SILOGISMO NA DECISÃO JUDICIAL ... 121

3.6 FUNDAMENTO DA DECISÃO JUDICIAL: EXPLICAÇÃO “DO PORQUÊ” OU JUSTIFICATIVA “DO COMO”? ... 125

3.7 ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA NA DECISÃO JUDICIAl ... 127

3.7.1 Classificação dos argumentos como instrumento de controle da autonomia da comunicação jurídica ... 129

3.8 DECISÕES ARBITRÁRIAS ... 134

3.9 PRINCÍPIOS NA ARGUMENTAÇÃO COM PRINCÍPIOS JURÍDICOS ... 137

CAPÍTULO 4 – CONTROLE JUDICIAL DE CONSTITUCIONALIDADE DAS NORMAS TRIBUTÁRIAS ... 141

4.1 CONSTITUIÇÃO JURÍDICA E CONSTITUIÇÃO POLÍTICA ... 141

(9)

4.3 INSTRUMENTOS CONSTITUCIONAIS DIRIGIDOS À PERMANÊNCIA DO ESTADO DE DIREITO... 146

4.4 FISCALIZAÇÃO E INTERPRETAÇÃO DA NORMA JURÍDICA CONSTITUCIONAL ... 150

4.5 “GUARDIÃO” DO CÓDIGO CONSTITUCIONAL/

INCONSTITUCIONAL ... 154

4.5.1 STF e sua difícil tarefa “Guardião” ... 157

4.6 CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS NO ESTADO BRASILEIRO ... 161

4.7 DIREITO TRIBUTÁRIO NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL ... 163

4.8 AUTODESCRIÇÃO PROMOVIDA PELA DOUTRINA TRIBUTÁRIA BRASILEIRA ... 166

4.8.1 Heterorreferências econômicas na interpretação do direito constitucional tributário ... 169

4.8.2 Heterorreferências políticas na interpretação do direito tributário constitucional ... 175

4.9 PRINCÍPIOS-VALORES CONSTITUCIONAIS TRIBUTÁRIOS E A MOEDA DE CÉSAR ... 177

CAPÍTULO 5 - ANÁLISE DA ARGUMENTAÇÃO JURÍDICA EM DECISÕES DO STF EM MATÉRIA TRIBUTÁRIA A PARTIR DE CASOS CONCRETOS ... 180

5.1 OBJETIVO DA ANÁLISE COM CASOS CONCRETOS ... 180

5.2 DECISÕES JUDICIAIS RELACIONADAS AO ICMS NAS PRESTAÇÕES DE SERVIÇO DE TRANSPORTE AÉREO ... 181

(10)

5.3.1 Argumentos do Procurador-Geral da República para

embasar o pedido de declaração de inconstitucionalidade ... 187

5.3.2 Argumentos para o pedido de medida cautelar ... 192

5.3.3 Fundamentação dos votos dos ministros referentes ao pedido de medida cautelar na ADI 1089-1 ... 193

5.3.3.1 Voto do Ministro Relator Francisco Rezek ... 194

5.3.3.2 Voto do Ministro Ilmar Galvão ... 198

5.3.3.3 Voto do Ministro Marco Aurélio ... 200

5.3.3.4 Voto do Ministro Carlos Velloso ... 2022

5.3.3.5 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence ... 204

5.3.3.6 Voto do Ministro Sidney Sanches ... 207

5.3.3.7 Voto do Ministro Néri da Silveira ... 211

5.3.3.8 Voto do Ministro Moreira Alves ... 214

5.3.3.9 Voto do Ministro Paulo Brossard ... 216

5.3.4 Deferimento da medida liminar na ADI 1089-1: resultado da apuração dos votos e análise dos argumentos ... 218

5.3.5 Fundamentação nos votos dos ministros presentes nas sessões de julgamento do mérito ... 222

5.3.5.1 Voto do Ministro Francisco Rezek ... 223

5.3.5.2 Voto do Ministro Maurício Corrêa ... 228

5.3.5.3 Voto do Ministros Ilmar Galvão ... 232

5.3.5.4 Voto do Ministro Octavio Gallotti ... 235

(11)

5.3.5.6 Voto do Ministro Néri da Silveira ... 239

5.3.5.7 Voto do Ministro Moreira Alves ... 240

5.3.5.8 Voto do Ministro Sepúlveda Pertence ... 242

5.3.6 Procedência do pedido de declaração de inconstitucionalidade na ADI 1089-1: resultado da apuração dos votos . 244 5.4 AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE Nº 1600-8 – JULGADA EM 26-11-2001 E PUBLICADA NO D.J. 20-06-2003... 251

5.5 Outras decisões analisadas ... 256

CONCLUSÃO ... 259

(12)

INTRODUÇÃO

Muito se tem dito que a influência política e econômica na atuação do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária gera decisões que não estão embasadas no sistema jurídico, o que, por sua vez, enfraquece o Estado de Direito. A crítica que tem sido constante, quer no discurso dos leigos, quer no discurso dos juristas, deve ser investigada de forma rigorosa e sistematizada, para que se possa proferi-la como conclusão, se for esse o caso, pela comunidade científica.

Foi em busca desse rigor científico na análise das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária que surgiu a presente tese de doutorado. Utilizando-se dos métodos propostos pelo construtivismo lógico-semântico e de alguns conceitos da teoria sistêmica, pretende-se não só demonstrar quais os limites interpretativos do Supremo Tribunal Federal na produção das suas decisões, mas também colecionar os argumentos utilizados em alguns acórdãos proferidos por essa Corte Suprema no intuito de classificá-los.

Antes, porém, de promover tal atividade, tinha-se em mente o ensinamento de PAULO DE BARROS CARVALHO de que “a consistência do saber científico depende do quantum de retroversão que o agente realize na estratégia de seu percurso, vale dizer, na disponibilidade do estudioso de ponderar sobre o conhecimento mesmo que se propõe construir.”1 Por isso, vários temas que serão tratados neste estudo, inicialmente, parecem não tocar diretamente a problemática, mas serão imprescindíveis na fundamentação científica das conclusões.

E foi nesse esforço para não transformar o trabalho numa simples coleta de decisões judiciais e contraposição de argumentos jurídicos, que ganha importância também o alerta de NIKLAS LUHMANN de que o “processo decisório” é um microsistema estruturado dentro do macrosistema que é o direito. Portanto, a análise desse processo, bem como do seu produto que é a decisão judicial, não

(13)

poderá ser feita de forma deslocada da estrutura do macrosistema complexo que é o direito.2

Para tanto, inicialmente, será necessário investigar a formação do Estado, do qual o órgão do Supremo Tribunal Federal faz parte, para perceber como esse deve processar as expectativas provenientes dos demais subsistemas sociais, como a economia e a política, que convivem com o direito.

Nesse primeiro capítulo haverá uma aproximação do Estado e dos Poderes que o compõem. Será observado, também, como a autonomia do direito, destacada pela teoria luhmaniana, garantida pelo fechamento operacional, é imprescindível para a manutenção do Estado de Direito. A partir daí, será fixado o significado de “corrupção dos códigos” e quando ela ocorre.

No Capítulo 2 será demonstrado o entendimento, ainda dominante, sobre interpretação jurídica e seus métodos. Após, fixar-se-á o conceito de interpretação jurídica decorrente da adoção da Filosofia da Linguagem e analisar-se-á o percurso interpretativo nos três seguintes planos de investigação: sintático, semântico e pragmático.

Ainda no segundo capítulo, será destacado o “mínimo de certeza semântica” que não poderá ser desprezado pelo intérprete, no intuito de classificar a atividade interpretativa em “casos típicos” e “casos atípicos”. E serão definidos, por meio dos instrumentos da teoria sistêmica, os fenômenos de observação, autorreferência e heterorreferência. A partir daí, o conceito de interpretação jurídica será correlacionado com o de argumentação jurídica.

No capítulo seguinte, deter-se-á na análise do Poder Judiciário e da decisão judicial. O objetivo ali será examinar o papel do Judiciário no ordenamento jurídico, o processamento dos ruídos políticos e econômicos na atividade jurisdicional e a função do procedimento judicial na legitimação da decisão.

Após apontar as características de criatividade e de independência do juiz no Estado de Direito, tratar-se-á do silogismo jurídico e do dever de justificação das

2 NIKLAS, Luhman. Sociologia do Direito I. Tradução de Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Tempo

(14)

conclusões alcançadas pelo juiz. Nesse terceiro capítulo será ponto de destaque, ainda, a argumentação jurídica na decisão judicial.

No quarto capítulo, o objeto de investigação será o Supremo Tribunal Federal e a matéria tributária constitucional. Num primeiro momento, destacar-se-ão os aspectos político e jurídico da Constituição, as características de um texto jurídico constitucional e a sua supremacia no sistema jurídico. Logo após, serão abordadas a eleição do STF como “guardião” das normas constitucionais e a forma de controle da constitucionalidade/inconstitucionalidade. Ao final do capítulo serão expostos, valendo-se dos estudos da doutrina tributária brasileira, o conteúdo tributário veiculado pela Constituição Federal de 1988 e a relação das normas constitucionais tributárias com a economia e a política.

Por último, serão investigados alguns acórdãos do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária, para, a partir de casos concretos, onde há conflitos entre os direitos subjetivos do Fisco e do Contribuinte, não só perceber o campo da discricionariedade interpretativa dos ministros que compõem a Corte Suprema, mas também destacar e analisar os argumentos veiculados nessas decisões judiciais.

Com base nesses argumentos serão identificados aqueles que podem ser utilizados como apoios dentro da estrutura argumentativa proposta por STEPHEN E. TOULMIN3. Para cada voto dos Ministros proferidos nas ações analisadas, será construído um esquema gráfico e, ao final, será empreendida uma análise comparativa de todos os argumentos coletados. O intuito dessa identificação e classificação dos argumentos é verificar como o Supremo Tribunal Federal, no exercício da sua jurisdição constitucional, está justificando as suas conclusões e como está processando algumas expectativas do ambiente externo ao sistema jurídico.

Apresentada a base teórica e catalogados os argumentos proferidos pela Corte Constitucional deste país, a presente tese de doutorado, buscará expor e fundamentar a seguinte problemática: estaria o Supremo Tribunal Federal interpretando o texto constitucional a partir de referências externas ao direito sem o

3 TOULMIN, Stephen E. Os usos do argumento. Tradução de Reinaldo Guarany. 2. ed. São Paulo:

(15)
(16)

CAPÍTULO

1

ESTADO

DE

DIREITO

E

CORRUPÇÃO

ENTRE

OS

CÓDIGOS

INTERSISTÊMICOS

1.1 ESTADO: A DIVINDADE DO DIREITO?

A importância do estudo sobre o Estado para a Ciência Jurídica tem diminuído no decorrer das décadas. Atualmente, não é usual ver este tema ser tratado pelos juristas das denominadas “dogmáticas”, incluindo aqui os estudiosos de “direito público”, que tem como objeto de análise o Estado, como sujeito das relações jurídicas. Esse assunto tem ficado reservado aos cientistas políticos e aos sociólogos, conforme alerta CELSO FERNANDES CAMPILONGO, preocupado com o atual “status” da Teoria do Estado:

[...] pensa-se logo que, nas Faculdades de Direito, o tema Estado ou, de modo mais abrangente, Sistema Político, não vem merecendo a atenção didática pedagógica e teórica que lhe confere a legislação. É evidente que a afirmação não pode ser generalizada. Alguns cursos, sensíveis à expansão e importância do direito público para as sociedades democráticas, continuam reservando à Teoria Geral do Estado, à Ciência Política um importante papel [é o caso, dentre outras Faculdades, do curso de direito da PUC-SP]. Pode-se dizer, sem receio, que o Direito Constitucional e o Direito Administrativo, de um modo particular, e o Direito Moderno, como um todo, nunca serão compreendidos de maneira aprofundada sem uma sólida especulação teórica sobre os vínculos existentes entre o direito e a política.4 (Grifos do autor)

Este trabalho sobre a análise das decisões do Supremo Tribunal Federal em matéria tributária valer-se-á de temas de Teoria Geral do Estado que serão premissas importantes na construção das conclusões. Para tanto, levantam-se as seguintes questões: (i) Em que acepção o termo “Estado” é utilizado na expressão Estado-juiz?; (ii) O Estado representa todos os interesses políticos, religiosos, econômicos etc. da sociedade?; (iii) O Estado é maior do que o direito positivo?; (iv)

4 CAMPILONGO, Celso Fernandes. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial. São Paulo: Max

(17)

De que forma as pessoas que personificam os órgãos estatais processam a diversidade de expectativas geradas pelo ambiente social em que estão inseridas?; (v) Os atos estatais produzidos são (devem ser) respostas às expectativas econômicas, sociais, religiosas e políticas da sociedade?

Têm-se séculos de produção de estudos sobre o Estado, compreendendo investigações sobre o seu desenvolvimento histórico, a sua origem, as suas estruturas, as suas funções etc. Muitos autores que se debruçaram sobre esse tema, como Aristóteles, Weber, Marx, Hobbes, Durkheim, Kelsen, marcaram uma época, e suas teorias serviram e servem de axiomas para autores atuais nos diversos campos das ciências culturais, como a economia, a política, a sociologia, o direito etc.

De pronto, porém, percebe-se que “Estado” é um termo polissêmico e que os diversos autores que tratam do tema acabam por trabalhar em acepções muito distintas. HANS KELSEN diz que essa imprecisão na utilização do termo gera resultados insatisfatórios na produção de uma Ciência Política:

Ás vezes, a palavra [Estado] é usada em um sentido bem amplo, para indicar a “sociedade” como tal, ou alguma forma especial de sociedade. Mas a palavra é também com frequência usada com um sentido bem mais restrito, para indicar um órgão particular da sociedade – por exemplo, o governo, ou os sujeitos do governo, uma “nação”, ou o território que eles habitam. A situação insatisfatória da teoria política –que, essencialmente, é uma teoria do Estado – deve-se, boa parte, ao fato de diferentes autores tratarem de problemas bastante diferentes usando o mesmo termo e, até, de um mesmo autor usar inconscientemente a mesma palavra com vários significados.5

Diante dessa vaguidade, NOBERTO BOBBIO6 auxilia explicando que é possível olhar para o Estado a partir de duas grandes lentes: a sociológica e a jurídica. Por meio da primeira lente, olhar-se-á para o Estado como uma forma complexa de organização social. Já por meio da segunda, o Estado, foco das atenções, será aquele constituído como ordenamento jurídico.

5 KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. Tradução Luís Carlos Borges. 4. ed. São Paulo:

Martins Fontes, 2005, p. 261.

6 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política. Tradução: Marco

(18)

Encontra-se essa concepção dual na obra Teoria General Del Estado do autor GEORG JELLINEK.7 Para esse autor alemão, que é referência obrigatória em

todas as obras sobre o tema, no estudo do Estado como fenômeno social, sobrelevar-se-á a história dos Estados, a doutrina das suas origens, sua transformação e decadência, bem como seus elementos e suas relações internas. Já no estudo do aspecto jurídico do Estado analisar-se-ão as normas que prescrevem a sua instituição, suas funções, bem como as relações dos fatos reais da vida do Estado com os juízos normativos sobre os quais se apóiam o conhecimento jurídico.

HANS KELSEN, por sua vez, rechaça essa dualidade e afirma que Estado deve ser tido como sinônimo de ordem jurídica centralizada, e ressalta: “Não existe nenhum conceito sociológico de Estado ao lado do conceito jurídico.” Afinal, segundo ele, “O conceito sociológico de um padrão efetivo de conduta, orientado para a ordem jurídica, não é um conceito de Estado; ele pressupõe o conceito de Estado, que é um conceito jurídico.”8 O autor austríaco diz ser supérflua essa duplicação de “Direito e Estado” e diz que se trata de uma “superstição animista”, advinda da tendência metapsicológica de hipostatizar. Eis o seu pensamento: “[...] por trás de um rio, uma ninfa; por trás da lua, uma divindade lunar; por trás do sol, um deus sol. Desse modo, imaginamos por trás do Direito a sua personificação hipostatizada, o Estado, a divindade do Direito.”9 (Grifou-se)

Esse entendimento de KELSEN causa um enorme repúdio do meio acadêmico, pois vigora o entendimento pela impossibilidade de separar o jurídico do político com relação ao Estado. Nessa linha, DALMO DE ABREU DALLARI diz ser “[...] inaceitável, neste ponto, a proposição de KELSEN, que pretendeu limitar a Teoria Geral do Estado ao estudo do Estado ‘como ele é’, sem indagar se ele deve

7 JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. Tradução para espanhol Fernando de los Rios.

Argentina: Editorial Albatros, 1973, pp. 101-103

(19)

existir, por que, ou como, sendo-lhe vedado também preocupar-se com a busca do ‘melhor Estado’”.10

Apesar das objeções ao entendimento de KELSEN, parece que essa diversidade de visões (concepções) de Estado está ligada à complexidade no processo de formação e organização da sociedade. De fato, houve época em que não era possível separar a economia, a política, a religião e o direito, uma vez que não havia autonomia (numa linguagem luhmaniana) entre esses subsistemas sociais.

Somente a partir do século XVIII é que será possível perceber com maior nitidez as diferenças entre os sistemas político, econômico e jurídico, permitindo, assim, reconhecer, consequentemente, o Estado criado pelo ordenamento jurídico, que, neste trabalho, se denominará “Estado Jurisdicizado” ou, simplesmente, “Estado”. Nesse sentido, foi apenas com a transição do Estado Absoluto ao Estado Constitucional que o Estado como ordem jurídica adquire contornos mais nítidos. Explica PAULO BONAVIDES:

Verifica-se, portanto, que a premissa capital do Estado Moderno é a conversão do Estado absoluto em Estado constitucional; o poder já não é de pessoas, mas de leis. São as leis, e não as personalidades, que governam o ordenamento social e político. A legalidade é a máxima de valor supremo e se traduz com toda energia no texto dos Códigos e das Constituições.11

O movimento liberal elege o direito como forma de limitar o Poder.12 E uma forma de limitá-lo é delimitá-lo. Em outras palavras, é demarcando quais são os órgãos estatais, suas funções, seus procedimentos que se prescreve o Estado Jurisdicizado, que, por sua vez, surge como a única forma de garantir a liberdade dos homens. Daí, afirmar LOURIVAL VILANOVA que:

A despolitização da economia, com o sistema liberal, o ingresso no exercício do poder estatal, pela nova classe, emergida da economia

10 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 28. ed. São Paulo: Saraiva,

2009, p. 127.

11 BONAVIDES, Paulo. Teoria do Estado. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 41.

12 “Poder” aqui compreendido como: “poder político”; dominação; relação de superioridade com

(20)

liberal, precisavam de segurança jurídica, requeriam ordem nas relações sociais, previsão normativa do comportamento dos indivíduos titulares de governo e previsão normativa da conduta interindividual.13

Observa-se que, a partir dessa acepção de Estado Jurisdicizado, tem razão HANS KELSEN ao criticar aqueles que descrevem o Estado como “o poder que se encontra por trás do Direito, que impõe o Direito”,14 na medida em que o

Estado será o próprio poder positivado. Nesse sentido, acrescenta JELLINEK: “El Estado desde su aspecto jurídico, según las anteriores observaciones críticas, no puede considerarse sino como sujeto de derecho, y en este sentido está próximo al concepto de la corporación, en el que es posible subsumirlo”.15

E a forma que a sociedade escolhe para delimitar o ente estatal é a Constituição. Assim, o Estado Jurisdicizado é aquele que é criado pela Constituição e que usualmente é chamado de Estado Constitucional. É desse Estado que falava KELSEN, o Estado como sinônimo de norma jurídica e não o Estado como mito, onipotente, onipresente e onisciente.

No próximo item, ver-se-á o Estado Jurisdicizado para, após, analisar os limites a que o Judiciário está submetido, ao processar as expectativas políticas e econômicas, quando da produção das decisões judiciais em matéria tributária.

1.2 ESTADO PERSONIFICADO PELO DIREITO

Na acepção adotada, não se encontra o Estado no mundo fenomênico como um corpo visível e tangível. Ele não existirá por si só. É produto da criação do homem por meio de um ato de fala, mais especificamente, um ato de fala deôntico. Conforme explica TÁREK MOYSÉS MOUSSALEM, “[...] não se há de confundir as coisas no mundo-das-coisas (coisa natural) com a coisa no mundo-social (coisa no

13 VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento.

Escritos Jurídicos e Filosóficos, volume (2). Prefácio de Paulo de Barros Carvalho. São Paulo: AxisMundi, Ibet, 2003, p. 465.

(21)

mundo-circundante).”16 Por certo, explica o autor, que, para se ter acesso aos fatos

ou às coisas, se necessita da linguagem. No entanto não se pode esquecer que algumas coisas independem da linguagem para existir (realidade natural), e outras só existem porque o homem as criou (realidade sociocultural).

Ainda que haja teses naturalistas, segundo JELLINEK, que defendem a ideia de preexistência do Estado, com base em algumas organizações animais, como as formigas e as abelhas, resta claro que esses pequenos insetos não fazem parte das relações sociais e, portanto, estão distantes do objeto deste estudo.17 O Estado não está na natureza e, portanto, não se encontra no mundo-das-coisas. Trata-se de uma criação do homem por meio de uma outra criação que é o direito.

Observa-se, assim, que o homem criou o direito que, por sua vez, por meio da sua linguagem prescritiva, criou o Estado. Tudo invenção do homem por meio dos atos de fala deônticos.

Conforme explica LOURIVAL VILANOVA, o Estado será criado quando se prescrever ao menos um indivíduo-órgão para o exercício do Poder: “Há, pelo menos, uma norma (consuetudinária) de investidura: essa norma minimal é a Constituição material, o estatuto orgânico do ente. Com esse conceito-limite [...], tem origem o primeiro órgão e o ente coletivo personifica-se. Faz-se sujeito-de-direito.”18

E prossegue, ressaltando a imprescindibilidade do órgão estatal para existência do Estado:

[...] suprimam-se os órgãos, ou o órgão único, e sobre-resta a comunidade nacional, pressuposto fáctico da subjetivação. Não, porém, o sujeito-de-direito estatal. Podem sobreviver o espaço físico, a coletividade, os usos e costumes, normas jurídicas dispersas, sem um foco comum de referência: aquele pluralismo de ordens jurídicas despolitizadas, ou, ainda, em estádio pré-político. Mas espaço, coletividade, normas, tudo se despolitiza com a supressão do sujeito-de-direito que exerça o poder de império. Persistem como formas de socialização da vida comum, sem alcançarem o grau de concentração maior que é forma política em Estado.19

16 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Revogação em matéria tributária. São Paulo: Noeses, 2005, p. 8. 17 JELLINEK. Teoria General del Estado, 1973, p. 61.

18 VILANOVA, Lourival. Causalidade e relação no direito. 4. ed. revista, atualizada e ampliada. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 255.

(22)

Uma ação humana pode ser considerada ato de Estado, assim como, um indivíduo (como ser vivo) pode ser considerado um órgão estatal, mas com esse não se confunde. É preciso, portanto, uma atenção na leitura e investigação desse tema, pois, ao reconhecer-se um indivíduo como órgão estatal, se está trabalhando dentro do processo comunicacional jurídico e não fora dele. Assim, não se está considerando a pessoa na sua completude psíquica e social, quando ela participa das comunicações internas do sistema do direito. Os indivíduos não são encarnações do Estado, como explica GEORG JELLINEK:

Las personas que ejercen la autoridad han sido consideradas en todos los tiempos por muchos, como la encarnación del Estado, y, por tanto, con su verdadera realidad. En el mundo cristiano encontró esta concepción un apoyo de grande importancia en las expresiones, tan comunes en el Nuevo Testamento, que sólo afirman del Estado la autoridad.20 (Grifou-se)

Tal concepção, objeto de crítica, encontrava respaldo na teoria absolutista, segundo a qual território e povo seriam apenas objetos da atividade do príncipe, e este precederia o Estado. Para tal doutrina é o príncipe que contém o Estado, conforme expõe o autor supracitado: “La teoría francesa del absolutismo, tal como fue formulada por Bossuet, declara sin vacilar, que todo el Estado se encuentra contenido en el príncipe; así, pues, todo el pueblo queda absorbido en éste, a quien eleva a un ser supraterreno.”21

Retrata muito bem essa concepção a célebre frase atribuída ao rei francês Luis XIV: L'État c'est moi (“O Estado sou eu”). No entanto, caso se partisse dessa visão pessoal de Estado, a morte de um monarca levaria à sua extinção. Por esse motivo, ainda que se parta da unipessoalidade no exercício do poder, deve-se encarar esse indivíduo (príncipe) como um órgão estatal único, criado por uma norma jurídica, conforme elucida LOURIVAL VILANOVA:

Para que o monarca tenha titularidade, e não se confunda com um usurpador, um déspota, um mero poder de facto, uma norma, pelo menos, qualificou-o, incidindo em suporte fáctico – o poder efetivo – e deu-lhe efeitos jurídicos. Os atos desse poder são atos jurídicos: de

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seus atos de ordenar provêm normas, medidas de governo, sentenças.22

Assim, para que haja o Estado é necessário que o direito crie ao menos um órgão estatal. Será esse órgão ou o conjunto de diversos órgãos criados no interior do sistema jurídico que dará personalidade (jurídica) ao Estado.

A questão, agora, é saber o que diferencia os atos de Estado das demais ações humanas e o que diferencia o indivíduo dos órgãos estatais. HANS KELSEN elucida que: “[...] um órgão é um indivíduo que cumpre uma função específica. A qualidade de órgão de um indivíduo é constituída por sua função. Ele é um porque e na medida em que executa uma função criadora de Direito ou aplicadora de Direito.”23 E, nesse sentido, LOURIVAL VILANOVA diz:

[...] o direito é posto pela sociedade, diretamente (forma consuetudinária) ou mediante órgãos do poder, ali onde o processo de diferenciação social institui indivíduos-órgãos que fazem o direito e aplicam o direito como órgãos da sociedade (forma estatutária ou legislada – escrita).24 (Grifos do autor)

Tais funções criadora e aplicadora dos órgãos estatais, tratadas por KELSEN e LOURIVAL VILANOVA, serão definidas pelo próprio ordenamento jurídico. E as normas que estabelecem tais funções são denominadas pela Teoria Geral do Direito como “normas de competência”. É o que expõe TÁCIO LACERDA GAMA:

À norma de competência caberia estabelecer as condições necessárias para criar normas válidas, podendo – as normas de competência – ser divididas em três grupos: i) aquelas que qualificam a pessoa que poderá criar a norma (competência pessoal); ii) as que prescrevem o procedimento que deve ser seguido (competência processual); iii) aquel’outras que estabelecem o alcance da norma em relação ao seu sujeito, situação e tema (competência material).

22 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 262. 23 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, p. 277.

24 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos

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Os três tipos de competência interagiriam na delimitação das condições para a criação de uma norma.25

Será, pois, a demarcação das funções dos órgãos estatais que garantirá a diferença entre poder (político) e competência. Ensina CRISTIANE MENDONÇA:

Acreditamos que a jurisdicização do “poder” o torna competência. A existência de regras jurídicas, estabelecendo os órgãos estatais, demarcando o raio de ação, fixando as suas atribuições institucionais, estipulando o rito que deve ser observado para a sua manifestação/atuação, repele terminantemente a idéia de poder que é essencialmente ilimitada.26

Nesses termos, um órgão estatal não será detentor de poder político e sim de competência. Versando sobre o tema, LOURIVAL VILANOVA afirma: “Cada órgão é um plexo de atribuições, de faculdades, de poderes e de deveres: é um feixe de competência.”27 Nesse sentido, JORGE MIRANDA ensina: “Repartido

juridicamente por órgãos e agentes do Estado, o poder toma, por outro lado, a configuração de um conjunto de competências ou poderes funcionais de tais órgãos [...].”28

Serão as normas de competência que disciplinarão a função de cada órgão estatal, ao prescrever suas tarefas e atribuições, criando assim os diversos “cargos” que vão preexistir ao seu titular. Explica REINHOLD ZIPPELIUS:

O cargo, enquanto âmbito institucionalizado de tarefas e competências, deve, portanto, distinguir-se do titular do cargo, ou seja, a pessoa a que compete exercer as funções desse cargo. Na verdade, este cargo subsiste independentemente de uma mudança do titular.29

25 GAMA, Tácio Lacerda. Competência Tributária: fundamentos para uma teoria da nulidade. São

Paulo: Noeses, 2009, p. 38.

26 MENDONÇA, Cristiane. Competência Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2004, p. 42. 27 VILANOVA. Causalidade e relação no direito, 2000, p. 265.

28 MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional, Tomo III. 2. ed. revista (reimpressão). Coimbra:

Coimbra Editora, 1988, p. 150.

29 ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. CANOTILHO, J. J. GOMES (Coord.). Tradução de

(25)

E acrescenta DALMO DE ABREU DALLARI: “Não é difícil perceber que as pessoas físicas, quando agem como órgãos do Estado, externam uma vontade que só pode ser imputada a este e que não se confunde com as vontades individuais.”30 Tal afirmação, fundamenta a opinião de que os ministros que compõem o Supremo Tribunal Federal devem ser vistos como órgãos-indivíduos que são constituídos e têm as suas atribuições delimitadas, primordialmente, pela Constituição Federal. Eles serão participantes do processo comunicacional do direito, e a forma como desempenharão os seus papéis como órgãos estatais será decisiva para a manutenção do Estado de Direito. É o que será visto durante este trabalho.

1.3 ESTADO DE DIREITO GARANTIDO PELA CONSTITUIÇÃO

A expressão “Estado de Direito” é utilizada pela comunidade jurídica com sentidos diversos. Num primeiro momento, percebe-se uma definição que parte do significado das palavras “Estado” e “Direito”, e chega-se à concepção de Estado Jurisdicizado tratada no item 1.1. Se o direito, tido como um conjunto de normas, é que dará a qualificação ao Estado, então “Estado de Direito” é o Estado regido por leis. Nesse sentido, é valiosa a explicação de CARL SCHMITT: “Según la significación general de la palabra, puede caracterizarse como Estado de Derecho todo Estado que respete sin condiciones el Derecho objetivo vigente y los derechos subjetivos que existan.” E acrescenta: “Así, puede decir Bluntschli (art. <<Rechtstaat>>, en su Staatslexikon) que el Estado medieval (Lehenstaat) es un Estado de Derecho; o Max Weber (Wirtschaftund Gesellschaft, pág. 745) que el Estado de Derecho de la Edad Media fue un Estado de Derecho con derechos subjetivos [...].”31

Entretanto, numa outra acepção, tida como “liberal”, a conceituação que a doutrina apresenta para “Estado de Direito” contém a característica da legalidade, mas vai além. Tal significado surge a partir do movimento ocorrido no século XVIII

30 DALLARI. Elementos de Teoria Geral do Estado, 2009, p. 125.

31 SCHMITT, Carl. Teoria de la Constitución. Tradução de Francisco Ayala. Madri: Alianza Editorial,

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que tinha como aspiração principal a liberdade do homem perante o Estado da época. Ao atribuir ao direito (conjunto de normas jurídicas) a função de limitar e organizar o Poder e garantir o principal que era a liberdade do homem, o movimento denomina esse Estado, que será submetido ao império do direito, de “Estado de Direito.”32

Observa-se que o Estado de Direito surge como uma reação da sociedade aos Estados Absolutistas. Neste último modelo, o subsistema do direito ficava à mercê do subsistema da política, pois as regras jurídicas só eram utilizadas para possibilitar o uso da violência (coação) pelo soberano. Com o aumento da complexidade social, houve o fortalecimento da autonomia do direito e, por meio da “codificação binária” (lícito/ilícito) se pôde delimitar a atuação do Estado e garantir direitos subjetivos aos cidadãos. Daí NIKLAS LUHMANN afirmar: “Essa diferenciação tem sido pesquisada e compreendida como uma aquisição civilizacional, e como um triunfo do direito sobre a arbitrariedade da política, sob a designação de Estado de Direito.”33 (Grifou-se)

Nesse sentido, foi atribuída ao direito a função de normatizar, por meio do código lícito/ilícito, as funções estatais e os direitos subjetivos. Daí a doutrina indicar algumas características necessárias34 para a configuração do Estado de Direito,

dentre as quais: (i) legalidade; (ii) divisão de poderes; (iii) garantias dos direitos individuais. Explica JOSÉ AFONSO DA SILVA:

Na origem, como é sabido, Estado de Direito era um conceito tipicamente liberal; daí falar-se em Estado Liberal de Direito, cujas características básicas foram: (a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de

32 Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de direito e Constituição. 4. ed. São Paulo:

Saraiva, 2007, pp. 1-4.

33 LUHMANN, Niklas. A Restituição do Décimo Segundo Camelo: Do Sentido de uma Análise

Sociológica do Direito. In: ARNAUD, André-Jean (Org.); LOPES JR., Dalmir (Org.). Niklas Luhmann: Do Sistema Social à Sociologia Jurídica. Tradução de Dalmir Lopes Jr., Daniele Andréa da Silva Manão e Flávio Elias Riche. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 95.

34 CELSO FERNANDES CAMPILONGO também destaca a publicidade como uma das características

(27)

representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, como técnica que assegure a produção de leis ao primeiro e a independência e imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande conquista da civilização liberal.35

E, para garantir a resistência do Estado de Direito diante das pressões políticas, econômicas, religiosas etc., a disciplina normativa dos seus elementos ocorrerá dentro do quadro constitucional. Será visto nos itens posteriores que a Constituição regula a sua própria modificabilidade e controla a constitucionalidade de todos os atos normativos do sistema jurídico. Daí decorrer outro código dentro do sistema jurídico: constitucional/inconstitucional.

Assim, caberá à Constituição de uma sociedade moderna impor os mecanismos dirigidos à permanência do Estado de Direito. Como explica MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO: “Nenhum órgão, ou agente do Estado, por mais alta que seja a sua hierarquia, detém qualquer poder senão o que advém da Constituição, e o tem de exercer rigorosamente pelo modo nesta definido.”36

Observa-se, no entanto, que a acepção formal de Constituição pode abarcar, inclusive, Estados absolutistas ou totalitários. Donde se conclui que não é a existência de um documento denominado “Constituição” condição suficiente para o Estado de Direito. É necessário partir de uma concepção material de Constituição, em que esta será tida como uma limitação jurídica ao poder, para se chegar à afirmação proferida pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Qualquer sociedade em que não seja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes, não tem Constituição.”37

Nessa linha, resta claro que o texto constitucional vigente no nosso País, ao veicular enunciados que garantem a legalidade, a separação dos poderes e os

35 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17. ed. São Paulo: Malheiros,

2000, p. 116-117.

36 FERREIRA FILHO. Estado de direito e Constituição, 2007, p. 4.

37 Cf. NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a

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direitos individuais,apresenta as características de uma Constituição, numa concepção liberal, e consequentemente, os elementos necessários para a caracterização do Estado de Direito.

Inclusive, a Constituição Federal de 1988 veicula a expressão “Estado de Direito” com mais um qualificativo, ao prescrever no artigo 1º.: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel do Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito [...]” (Grifou-se). Alerta, por isso, JOSÉ AFONSO DA SILVA que o Estado Democrático de Direito acolhido pela Carta Magna “reúne os princípios do Estado Democrático e do Estado de Direito”. E que a reunião desses dois promove a construção de um novo conceito, pois, segundo ele: “A democracia, como realização de valores (igualdade, liberdade e dignidade da pessoa) de convivência humana, é conceito mais abrangente do que o de Estado de Direito, que surgiu como expressão jurídica da democracia liberal.”38

Não se questiona, assim, que a Constituição Federal de 1988 possui a estrutura normativa necessária para configuração do Estado de Direito e possui critérios que diferenciam o regime jurídico adotado no Brasil daqueles denominados regimes totalitarista, absolutista e ditatorial. A questão está em saber em que medida as leis, as decisões judiciais e os atos jurídicos em geral estão reproduzindo as características prescritas no quadro constitucional vigente. Pois, conforme, será visto durante este trabalho a “quebra de circularidade entre regras e decisões” e os “bloqueios da concretização do direito constitucional” podem qualificar o Brasil como um “país periférico”, distante, ainda, daqueles países centrais, tidos como superdesenvolvidos. Estes últimos são assim qualificados por apresentarem, nas palavras de MARCELO NEVES, “[...] uma complexidade social satisfatoriamente estruturada, pelo primado da diferenciação funcional e pelo predomínio da preferência por inclusão [...].”39

Antes dessa análise, porém, em razão do destaque dado ao Poder Judiciário neste trabalho, tratar-se-á a seguir de um dos elementos do Estado de

38 SILVA. Curso de Direito Constitucional Positivo, 2000, p. 116.

39 NEVES, Marcelo. E se Faltar o Décimo Segundo Camelo? Do Direito Expropriador ao Direito

(29)

Direito que é a “Separação dos Poderes”, para que se possa compreender o fundamento da classificação e da divisão das principais funções estatais.

1.4 DIVISÃO DE PODERES COMO CONDIÇÃO NECESSÁRIA AO

ESTADO DE DIREITO

Conforme visto no item anterior, o equilíbrio entre os poderes é uma das características fundamentais no conceito de Estado de Direito. A definição clássica da Teoria da Separação dos Poderes, como se conhece hoje, surge em meados do século XVIII, tendo como seus principais divulgadores ROUSSEAU (com a obra Contrato Social) e MONTESQUIEU (com a obra Espírito das Leis). Tal teoria sugere uma forma de prevenir a concentração de poderes num só eixo da autoridade pública,40 por meio da divisão de funções e da independência entre órgãos estatais.

Como adverte ANDRÉ RAMOS TAVARES essa teoria parte de um “pessimismo antropológico” com relação à tendência de corrupção do homem no exercício do poder sem limites.41 Segundo CELSO RIBEIRO BASTOS:

Montesquieu tinha uma profunda descrença quanto ao homem desvencilhar-se de todos os desatinos que o poder o leva cometer. Para ele a força corruptora do exercício do mando político está sempre presente. Chegou mesmo a afirmar que, se todo poder corrompe o homem o poder soberano o corrompe soberanamente.42

A forma encontrada para evitar tais arbítrios foi a de dividir as principais funções do Estado (executiva, legislativa e julgadora) entre três órgãos estatais. Em razão de se ter como objeto deste trabalho o Órgão Judiciário e a triste constatação de que o pessimismo antropológico tem sido nos dias atuais realidade no nosso país, interessa citar a seguir um trecho da obra de MONTESQUIEU. Se a ele não se pode dar o título de “criador” da teoria, em razão dos seus antecessores, deve-se,

40 Cf. BONAVIDES. Teoria do Estado, 2008,pp. 42-43.

41 TAVARES, André. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 995.

42 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do Estado e ciência política. 3. ed. São Paulo: Saraiva,

(30)

inquestionavelmente, reconhecer que foi ele quem melhor sistematizou e divulgou essa teoria. Veja-se:

Há em cada Estado três espécies de poder: o poder legislativo, o poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e o poder executivo daquelas que dependem do direito civil.

Pelo primeiro poder, o príncipe ou o magistrado cria as leis para um tempo determinado ou para sempre, e corrige ou ab-roga aquelas que já estão feitas. Pelo segundo, determina a paz ou a guerra, envia ou recebe embaixadas, estabelece a segurança, previne as invasões. Pelo terceiro, pune os crimes, ou julga as questões dos indivíduos. Chamaremos este último “o poder de julgar”, e o outro chamaremos, simplesmente, “o poder executivo do Estado”.

A liberdade política, em um cidadão, é essa tranqüilidade de espírito que decorre da opinião que cada um tem de sua segurança; e, para que se tenha essa liberdade, cumpre que o governo seja tal modo que um cidadão não possa temer outro cidadão.

Quando em uma só pessoa, ou em um mesmo corpo de magistratura, o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não pode existir liberdade, pois se poderá temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado criem leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

Também não haverá liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se o poder executivo estiver unido ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadãos seria arbitrário, pois o juiz seria o legislador. E se estiver ligado ao poder executivo, o juiz poderia ter a força de um opressor.

Tudo então estaria perdido se o mesmo homem, ou o mesmo corpo dos principais, ou o dos nobres, ou o do povo exercesse estes três poderes: o de criar as leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as querelas entre os particulares.43 (Grifou-se)

Veiculado pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada pela Assembleia Constituinte da França de 1.789, o princípio da separação dos poderes é tido por alguns como o axioma do Estado de Direito e até mesmo como elemento do próprio conceito de Constituição, conforme o artigo 16 dessa Declaração transcrito anteriormente.

Por certo que a proposta de mecanismos de controle sugerida no século XVIII sofreu adaptações, passando a receber títulos como “checks and balances”,

43 MONTESQUIEU, Charles de. Do Espírito das Leis. Tradução de Jean Melville. 1a. reimpressão.

(31)

“freios e contrapesos”. Idealizada para evitar arbítrios na medida em que “o poder irá frear o poder”, a proposta atual afasta a suposta rigidez inicial no relacionamento entre os órgãos estatais, conforme explica NOBERTO BOBBIO:

[...] separação dos poderes quer dizer não que os três poderes devam ser reciprocamente independentes, mas que se deve excluir que quem possua todos os poderes de um determinado setor possua também todos os poderes de um outro, de modo a subverter o princípio sobre o qual se baseia uma constituição democrática, e que portanto é necessária uma certa independência entre os três poderes para que a cada um seja garantido o controle constitucional dos demais. 44

HANS KELSEN até mesmo julga falsa a hipótese de total independência entre os órgãos:

O conceito de “separação de poderes” designa um princípio de organização política. Ele pressupõe que os chamados três poderes podem ser determinados como três funções distintas e coordenadas do Estado, e que é possível definir fronteiras separando cada uma das três funções. No entanto, essa pressuposição não é sustentada pelos fatos. [...] não é possível definir fronteiras separando essas funções entre si, já que a distinção entre criação e aplicação do Direito – subjacente ao dualismo de poder legislativo e executivo (no sentido mais amplo) – tem apenas um caráter relativo, a maioria dos atos do Estado, sendo, ao mesmo tempo, atos criadores e aplicadores de Direito. 45

Assim, seja pela impossibilidade afirmada por KELSEN, seja pela necessidade de controle destacada por BOBBIO, a verdade é que os sistemas jurídicos atuais, incluindo o brasileiro, prescrevem funções que são consideradas típicas de cada órgão, bem como prescrevem funções atípicas. Aquelas são as que os órgãos exercem de forma preponderante e que os qualifica nominalmente; já estas são as exercidas minoritariamente.46 Explica SANTI ROMANO: “Cada das três

funções, em sentido material, é atribuída geralmente a uma determinada ordem de

44 BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade: por uma teoria geral da política, 1987, p. 100. 45 KELSEN. Teoria geral do direito e do Estado, 2005, pp. 385-386.

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autoridade ou instituição, que apenas por exceção ou por disposições especiais exerce algumas vezes a competência de uma outra função.”47

Será, portanto, a distribuição das funções típicas e atípicas que garantirá o sistema de “freios e contrapesos”, como explana CARL SCHMITT:

El esquema de un contrapeso de los poderes distinguidos o, incluso, separados conduce a intervenciones e influencias recíprocas, con las cuales se llega a compensar las facultades contrapuestas y a llevarlas a un equilibrio. Todo robustecimiento de una parte ha de contrapesarse por la otra, y así, no se romperá el equilibrio por ninguna de las dos partes.48

No entanto, lembra J. H. MEIRELLES que tal distribuição deve ser veiculada, exclusivamente, pela Constituição:

A distribuição de funções entre os órgãos do Estado (poderes), isto é, a determinação das competências, constitui tarefa do Poder Constituinte. Donde se conclui que as exceções ao princípio da separação, isto é, todas aquelas participações de cada poder, a título secundário, em funções que teórica e normalmente competiriam a outro poder, só serão admissíveis quando a Constituição as estabeleça, e nos termos em que a fizer. Não é lícito à lei ordinária, nem ao juiz, nem ao intérprete, criar novas exceções, novas participações secundárias, violadoras do princípio geral de que a cada categoria de órgãos compete aquelas funções correspondentes à sua tarefa específica [...].49 (Grifou-se)

A Constituição Federal de 1988 positiva tal teoria, no seu artigo 2º., ao prescrever: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”; e, em artigos posteriores (artigos 44 a 75, 76 a 91 e 92 a 135), ao disciplinar os órgãos, as composições, as competências, as atribuições e as garantias de cada um desses poderes. Preocupou-se, ainda, o legislador constituinte em reservar à separação dos Poderes a qualidade de cláusula pétrea, insuscetível, pois, de ser objeto de emenda constitucional, de acordo com o artigo 60, § 4º. da CF/88.

47 ROMANO, Santi. Princípios de direito constitucional geral. Tradução de Maria Helena Diniz. São

Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 228.

48 SCHMITT. Teoria de la Constitución. 1982, p. 198.

49 TEIXEIRA, J. H. Meirelles. Curso de direito constitucional. GARCIA, Maria (Org.).Rio de Janeiro:

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As expressões “independência” e “harmonia” prescritas pela CF/88 são definidas por JOSÉ AFONSO DA SILVA da seguinte forma:

A independência dos poderes significa: (a) que a investidura e a permanência das pessoas num dos órgãos do governo não dependem da confiança nem da vontade dos outros; (b) que, no exercício das atribuições que lhes sejam próprias, não precisam os titulares consultar os outros nem necessitam de sua autorização; (c) que, na organização dos respectivos serviços, cada um é livre, observadas apenas as disposições constitucionais e legais;

[...]

A harmonia entre os poderes verifica-se primeiramente pelas normas de cortesia no trato recíproco e no respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De outro lado, cabe assinalar que nem a divisão de funções entre os órgãos do poder nem sua independência são absolutas. Há interferências que visam ao estabelecimento de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à realização do bem da coletividade e indispensável para evitar arbítrio e o desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos governados.50

Atenta-se para o fato de que a divisão de poderes dará a cada órgão estatal do Executivo, do Legislativo e do Judiciário um feixe de competências, que inclui atribuições, faculdades, deveres e instrumentos necessários à execução das suas funções, mas é apenas o conjunto desses órgãos que se denomina Estado. Lembrando com LOURIVAL VILANOVA que “Sem órgão, não sobre-resta o Estado; sem o Estado, o órgão não é órgão”.51 E continua:

O Estado não preexiste nem sobrevive ao órgão. Em fases de desconcentração, há órgãos judicantes, administrativos (com direito não-legislado), dispersos, infixos, sem um centro comum de imputação. Com a estatização da nação (nação, povo, comunidade), confluem esses órgãos para um ponto, tornando-se partes do ente central.52

A seguir analisar-se-á a autonomia do Estado conferida pelo subsistema social do direito, bem como a sua relação com os demais subsistemas sociais da política e da economia.

(34)

1.5 AUTONOMIA OPERACIONAL DO DIREITO NO ESTADO DE

DIREITO

O Estado de Direito de que se tratou no item anterior não pode ser confundido com uma organização social (sociedade ou comunidade) ou organização política. Deve, sim, ser reconhecido, a partir de uma premissa sistêmica luhmaniana, como uma organização que opera com código e programas próprios do sistema jurídico. Explica MARCELO NEVES:

No modelo sistêmico, o Estado Democrático de Direito apresenta-se, em princípio, como autonomia operacional do direito. Significa que o sistema jurídico reproduz-se primariamente a partir de um código binário de preferência próprio (lícito/ilícito) e de seus próprios programas (Constituição, leis, decretos, jurisprudência, negócios jurídicos, atos administrativos etc.).53

A política, a economia, a religião, a moral etc. comporão o chamado “ambiente” do sistema jurídico, e as trocas que são realizadas entre eles não só gerarão uma evolução54 do sistema social como garantirão a própria autonomia do direito e, consequentemente, do Estado de Direito. O contato com os demais subsistemas sociais não enfraquece a autonomia, mas, ao contrário, fortalece a diferença entre “sistema/ambiente” que é fundamental para a manutenção do caráter autopoiético do direito e dos demais subsistemas sociais.55

Conforme tratado no item 1.1, a diferenciação entre os subsistemas surge na sociedade moderna, bem como a sua autonomia. Não é outra a observação efetuada por JOÃO MAURÍCIO ADEODATO:

53 NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além

de Luhmann e Haberman, 2008, p. 85.

54 Pontua-se que essa evolução que trata a teoria dos sistemas não deve ser confundida como

melhora, progresso ou aumento da felicidade. Releva MARCELO NEVES: “[...] evolução social não se configura como um processo de passagem para uma vida melhor, um maior grau de felicidade.” (NEVES. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: o Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas, 2008, p. 4). E explica CELSO FERNANDES CAMPILONGO que há evolução num determinado sistema quando há um processo de variação, seleção e estabilização das estruturas. (CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 23)

55 Nesse sentido, o autor MARCELO NEVES ressalta que há uma interdependência entre os sistemas

(35)

Pode-se definir uma sociedade como “complexa” com base na separação entre direito, religião, amizade, moral, política, economia, etiqueta etc., claro sem prejuízo de outras diferenciações; tacha-se de primitiva, indiferenciada, entre outros aspectos, aquela sociedade na qual, para dar um exemplo, a prática de um ilícito jurídico é ao mesmo tempo imoral e pecaminosa. Argumentos modernos como “pode não ser moral, mas é legal”, comuns no Brasil de hoje, não deveriam fazer muito sentido a um egípcio antigo ou aos contemporâneos de Sócrates.56

Numa concepção sistêmica luhmaniana, “autonomia” não significa isolamento ou autarquia do sistema em relação ao ambiente, mas fechamento operacional daquele. Isso significa que sobre cada subsistema social atuarão diversas influências produzidas pelo ambiente, mas, para que se garanta a autonomia de cada um deles, elas só deverão ser processadas de acordo com o código-diferença de cada um.

Em se tratando do sistema jurídico, essas influências precisam ser processadas pelo código lícito/ilícito (ou direito/não-direito). Já nos demais subsistemas sociais, esse processamento se dará por meio de códigos binários diversos, como, por exemplo, o código poder superior/poder inferior (ou governo/oposição) no sistema político, o código ter/não-ter (ou custo/benefício) no sistema econômico, o código conhecido/desconhecido (material/imaterial) no sistema religioso.

Assim, para que se garanta a autonomia do sistema jurídico, a comunicação realizada por esse subsistema social terá que ser organizada a partir do seu código (lícito/ilícito), e veiculada por meio dos seus programas condicionais (se/então). O direito não apreenderá outras expectativas que não sejam processadas nos termos do seu código, do seu programa e da sua função.57 Relacionado a esse tema, CELSO FERNANDES CAMPILONGO traduz o seguinte trecho da obra de JUAN ANTONIO GARCIA AMADO:

[...] o juiz, por exemplo, não atua em razão de fins, mas a partir do cumprimento de certas condições iniciais: as previstas na norma.

56 ADEODATO, João Maurício. Filosofia do direito: uma crítica à verdade na ética e na ciência em

contraposição à ontologia de Nicolai Hartmann. 3. ed. revista e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 214.

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Para Luhmann, desconhecer este dado e introduzir elementos teleológicos, cálculos sobre as conseqüências, discricionariedade judicial, etc. significa bloquear a função do direito como estabilizador de expectativas, inviabilizar a redução da complexidade alcançada com a divisão de tarefas entre o legislador e o aplicador das normas e questionar a autonomia do sistema face aos demais sistemas, como o político, o econômico, etc.58

Será, portanto, o fechamento operativo, realizado pelo código lícito/ilícito, que garantirá a construção da complexidade interna do direito e, consequentemente, sua autonomia. Mas, como dito acima, isso não significa que esse subsistema social seja impermeável, pois existirão os entrelaçamentos comunicacionais entre os diversos subsistemas por meio da chamada abertura cognitiva. Daí a afirmação de que o sistema jurídico é fechado operativamente, mas aberto cognitivamente.

Por abertura cognitiva entende-se o processo de aprendizagem na construção das novas informações provenientes das interferências do meio envolvente. As influências do mundo exterior gerarão estímulos nos processos internos do sistema jurídico,59 como será tratado no próximo item.

São vários subsistemas autopoiéticos60 que se comunicam (interferem) e que estão dentro de outro sistema autopoiético que é o sistema social. Conforme observa GUNTHER TEUBNER:

Os subsistemas não coexistem de modo separado, como se se encontrassem lado a lado, mas interferem mutuamente em, pelo menos, dois aspectos possíveis: uma comunicação participa simultaneamente em vários circuitos autopoiéticos e uma pessoa actua em contextos sistêmicos diferentes.61

58 AMADO, Juan Antonio García. La societé et le droit chez Luhmann. In: Niklas Luhmann du droit.

Apud CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 22.

59 TEUBNER, Gunther. O direito como sistema autopoiético. Tradução de José Engrácia Antunes.

Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989, pp. 128-165.

60 Autopoiese significa autoprodução do sistema. O sistema produz a si mesmo. Poiesis significa

“produção”, em grego. Essa expressão teria sido usada pela primeira vez por HUMBERTO MATURANA e FRANCISCO VARELA para definir os seres vivos. Segundo explica NIKLAS LUHMANN o conceito de autopoiesis de Maturana “[...] significa que um sistema só pode produzir operações na rede de suas próprias operações, sendo que a rede na qual essas operações se realizam é produzida por essas mesmas operações.” (LUHMANN, Niklas. Introdução à teoria dos sistemas. Tradução de Ana Cristina Arantes Nasser. Rio de Janeiro: Vozes, 2009, p. 297)

(37)

Nessa comunicação entre subsistemas sociais, a Constituição também terá um papel fundamental na garantia da autonomia do direito e, consequentemente, do Estado de Direito, uma vez que ela substituirá os apoios externos que legitimavam o direito e que geravam uma hierarquização vertical do direito com relação aos outros sistemas sociais.62 Antes da criação da Constituição, o direito ficava submetido aos sistemas político, econômico e religioso, na medida em que a decisão do lícito/ilícito era estabelecida a partir de critérios próprios daqueles.

A existência de uma Constituição (no sentido moderno) indica que o sistema jurídico é operacionalmente autodeterminado. Explica MARCELO NEVES: “A interna hierarquização ‘Constituição/Lei’ atua como condição da reprodução autopoiética do Direito moderno, serve, portanto, ao seu fechamento normativo, operacional”.63

CELSO FERNANDES CAMPILONGO64 explica que a Constituição não só dará as ferramentas para o fechamento operativo do direito como também servirá de mecanismo para sua abertura cognitiva. Daí LOURIVAL VILANOVA ensinar que: “A Constituição provém da realidade social e sobre a realidade social se volta para modelar, i.e., dar forma às relações humanas, conferir segurança para o logro dos fins.”65 (Grifos do autor)

Portanto, em síntese, ao se analisarem as comunicações intersistêmicas do direito com a política e com a economia, deve-se lembrar que, para garantir a autonomia do direito, tida como uma característica necessária do Estado de Direito, é preciso assegurar o fechamento operacional do sistema jurídico, por meio do código lícito/ilícito. Faz-se importante, ainda, que o observador certifique se a comunicação foi realizada nos estritos termos da Constituição, conforme será aprofundado a seguir.

62 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, pp. 65-66. 63 Ibid., p. 66.

64 CAMPILONGO. Política, Sistema Jurídico e Decisão Judicial, 2002, p. 24.

65 VILANOVA. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa Sociedade em Desenvolvimento. Escritos

Referências

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