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ENTÃO SOMOS MUDANTES.

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Academic year: 2021

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ENTÃO SOMOS “MUDANTES”.

Jader Janer Moreira Lopes (*)

“Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes. Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.

Ordinariamente andavam pouco, mas haviam repousado bastante na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através dos galhos pelados da catinga rala.

Arrastaram-se para lá, devagar, Sinhá Vitoria com o filho mais novo escanchado no quarto e o baú de folha na cabeça, Fabiano sombrio, cambaio, o aió a tiracolo, a cuia pendurada numa correia presa ao cinturão, a espingarda de pederneira no ombro. O menino mais velho e a cachorra Baleia iam atrás.

Graciliano Ramos em Vidas Secas.

A realidade expressa por Graciliano Ramos

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(1970) nas vidas de Fabiano, sua esposa e filhos no romance “Vidas Secas”, transcrita acima aponta para uma situação comum na história brasileira: a de saída de pessoas de seus locais de origem para outros.

O movimento migratório presente em suas palavras representa, em uma escala menor, uma situação que sofreu poucas alterações desde seus escritos na primeira metade do século XX

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até a atualidade: dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística levantados no último censo demonstram que a migração interna em território nacional ainda permanece, são pessoas que deixam sua terra natal, levadas por fatores que as expulsam e as obrigam a se radicar em outro lugar.

As histórias desses grupos têm sido muito representadas na literatura, quer seja por dados numéricos, quer seja por depoimentos ou outras formas

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, porém uma de suas facetas tem sido pouco priorizada: a presença das crianças nesses movimentos. Entre as pessoas que migram é muito comum estarem, juntas crianças que, com as famílias, vivenciam as

(*) Professor do Programa de Pós-graduação em Educação - UFF

1 - RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. São Paulo: Martins, 1972.

2 A primeira edição de Vidas Secas data de 1938, na cidade do Rio de Janeiro.

3 Nas obras literárias brasileiras podemos destacar os textos de Graciliano Ramos, Rachel de Queiroz, João Cabral de Mello Neto, José Lins do Rego, Érico Veríssimo, Graça Aranha e outros; alguns fragmentos desses livros foram utilizados nas epígrafes que abrem cada capítulo desse trabalho. No meio acadêmico há uma vasta produção em diferentes áreas, tais como Geografia, Ciências Sociais, Economia e outras.

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mesmas condições que irão acompanhar os adultos na busca de uma outra realidade.

Como a descrita na fala de Júlio

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, de apenas 10 anos:

“(...) a gente já mudou muito, toda vez que meu pai muda de emprego (...) sinto falta de brincar em alguns lugares, dos colegas (...) mas sempre vou com meu pai (...)”5

Ou ainda a de Taiane, também de 10 anos:

“(...) eu não quero voltar para lá [referindo-se à última cidade que morou]...as pessoas não são boas...aqui é melhor (...)”

As falas de Júlio e Taiane, provavelmente, encontram-se com a de centenas de outras crianças brasileiras. E era essa realidade que me fazia estar naquela sala de aula, naquele momento, numa escola situada na Zona da Mata de Minas Gerais: estava desenvolvendo uma pesquisa que buscava compreender como crianças que migram constroem suas identidades de infância e como percebem as dimensões de espaço e lugar

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.

As cadeiras de plástico estavam dispostas em círculo, haviam sido arrumados pela própria secretaria da escola para minha espera. Eram 9h00m da manhã de uma quarta-feira do mês de março de 2002. Sentado em uma dessas cadeiras, eu aguardava a vinda das crianças.

Um contato anteriormente feito com a direção havia confirmado tal dado e a possibilidade de desenvolver as atividades e observações lá

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. E foi a própria direção, em conjunto com os professores e demais profissionais da escola, que fez uma primeira seleção dos alunos para minha entrevista.

Eles chegaram com a diretora, que me apresentou a eles e lhes explicou o motivo de estarem ali. Começamos a conversar, o acanhamento inicial foi quebrado por uma das crianças – Mauro – que era muito extrovertido e sempre tinha alguma história para relatar.

4 Os nomes são fictícios.

5 Todas as transcrições são notas de campo coletadas em 2002.

6 Essa pesquisa concretizou minha tese de doutorado defendida na Universidade Federal Fluminense sob a orientação da Profa. Dra. Vera Mara dos Ramos de Vasconcellos.

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Entre as crianças migrantes que tinham sido selecionadas pela direção, estavam também aquelas que haviam deixado e retornado para escola por motivos de mudanças do bairro.

Dessa forma o grupo estava composto por crianças que se enquadravam na conceituação tradicional de migração entre diferentes unidades geográficas como é o caso de Taís:

“ (...) vim de Santos Dumont”.

E também de Jussara:

“ (...) eu morava em Matias Barbosa.”

Mas também por crianças que viviam situações diferentes, como Mauro e Marcos que se mudaram para vários lugares, porém dentro da mesma cidade:

“(...) morei aqui na (L)... mudei para (L)... fui depois para o (L)...não...(L)...do (L) fui para o (L) e de lá voltei para cá.” (Marcos)

“Já morei em muito lugar..no (L)...no (L)...já morei na (L)...em (L)...no (L)....(L)...depois (L)...já morei em muito lugar.”

(Mauro)

No desenvolver das conversas acabei questionando se sabiam o que era ser migrante e se eles eram migrantes. Entre risos e minha explicação, alguns disseram que sim, outros que não, e foi Mauro quem comentou que, se tinham os migrantes, havia também os “mudantes”, porque eles não tinham vindo de outras cidades, mas haviam mudado diversas vezes dentro da própria cidade, e as vezes para lugares distantes:

(...) então somos mudantes...

(Mauro)

Foi com essa frase que acabei conhecendo uma das categorias que seria fundamental deste trabalho: a dos mudantes. O meu foco que, inicialmente, estava somente nas crianças migrantes (compreendidas como aquelas que se deslocam entre diferentes fronteiras geográficas), agora se ampliava também para esse novo grupo, o dos mudantes (compreendido como aqueles que se deslocam dentro de uma mesma cidade).

Apesar de diferentes nomeações, essas crianças compartilham características

similares, as causas das mudanças vão desde a busca de um aluguel mais barato, brigas

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familiares, mudanças de emprego ou próprio desemprego, ao não pagamento de determinadas contas (como energia elétrica e água):

“(...) quando nois num pode mais pagá a casa de aluguel...vai p’rá outra (...)”

(Mauro)

“(...) morá um ano num lugar...depois muda né...p’rá lugar mais barato.”

(Marcos)

“(...) não tinha dinheiro para pagar a água...então mudamos”.

(Ana)

Ao desenvolver minha pesquisa e ampliar o foco para as outras duas escolas perceberia, que essa era uma condição que estaria sempre presente em minhas anotações, pois era uma constante nas colocações de várias outras crianças. Esse fato desvela para mim uma forma de vivenciar o espaço típico das populações urbanas atuais e que encontra paralelos nas recentes mudanças do mundo contemporâneo.

Sob a metáfora de um mundo global, as políticas neoliberais expropriam milhares de seres humanos de sua terra, de seus lugares e os jogam como braços livres para serem comercializados no mercado global. Uma condição que segundo HUYSSEN (2000, pg. 31)

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tornou-se a regra: “Numa era de limpezas étnicas e crises de refugiados, migrações em massa e mobilidade global, para um número cada vez maior de pessoas, experiências de deslocamento, relocação, migração e diáspora parecem não mais ser a exceção (..)”

Numa situação que parece similar à descrita por Marx no século XVI, quando os servos perderam seus meios de produção, criando as condições necessárias para a emergência do capitalismo. A situação é similar, mas, segundo CALLIGARIS (2001)

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apresenta uma nuance diferente: à violência da primeira soma-se a condição atual da segunda, onde a expropriação não vem só, mas acompanhada de um devaneio, de uma possibilidade de outra vida. Assim: “As condições para que o capitalismo invente sua versão neoliberal são subjetivas. A expropriação, que torna a passagem possível, é psicológica: necessita que sejamos arrancados nem tanto de nossos meios de subsistência, mas de nossa comunidade restrita, familiar e social, para sermos lançados numa procura

8 -HUYSSEN, Andreas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.

9 - CALLIGARI, Castoriades. O segredo da acumulação primitiva. Folha de São Paulo, 26 de abril, 2001.

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infinita (...) Arrancados de nós mesmos, devemos querer ardentemente ser outra coisa do que somos.”

A condição migrante da atualidade é, portanto, substancialmente diferente da condição migrante dos séculos passados, já que a ela se imbrica um conjunto de modificações no espaço histórico-geográfico e que podem ser percebidas nas crianças pesquisadas e sobretudo na categoria emergida do próprio campo, a partir da fala de uma criança a dos mudantes.

Se no passado brasileiro, crianças eram desterritorializadas de suas terras e lugares

e se deslocavam para cá nas galerias e navios, o que podemos perceber é que esse

processo pouco mudou, pois se ocorreu uma diminuição das imigrações advindas de outros

países, as nacionais ainda permanecem, porém ampliadas, agora com uma nova forma de

desterritorialização: aquela que se dá internamente na própria cidade.

Referências

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