Berenice. Memória.
Carlos Pimenta
1.
Quando em
1986vi, pela primeira vez, Berenice, na encenação de Klaus-Michael Grüber para a Comédie Française, fiquei com a sensação de que a minha relação com esta tragédia raciniana não se tinha esgotado na satisfação d o desejo que me tinha impelido a apanhar o Metro para o Palais-Royal, motivado, sobretudo, pelo nome do encenador, mais do que, confesso, pela grandeza da obra que me aparecia,
âépoca, como secundária
àpossibilidade de poder estar no mesmo tempo e lugar de nomes como os d o próprio encenador, de Gilles Aillaud, de Ricbard Fontana ou de Ludmila Mickael.
Se,
tal como nos
dizBarthes em
Aciâmara clara, para a leitura de uma fotografia concorrem o studium e o punctum, no caso do teatro, se o espectáculo o merecer, tenho idêntica aproximação e deixo-me guiar pela proposta do ensaisáa francês. Na Berenue de Gtuber, o meu studium estava naquilo que apreendia: o ponto de vista do encenador; o entendimento da trama; o rigor das interpretações; a qualidade do verso de Rache. No entanto, o meu punctum situava-se fora da cena. Encontrei-o no foygr, na reacgão d o público perante a ousadia do estatismo proposto pelo encenador, na música que sobrava das palavras sobre as quais o pano já se havia fechado, nas conversas que procuravam explicação para tão estranho objecto que se apresentava como himso e provocador naquele paico de todas as tradições. Este foi o meu punctum, o qual me perseguiu pelas ruas de Paris, no frio de Dezembro, nesses momentos em que a necessidade de estendermos o tempo nos leva a adiar a descida i% estago de Metro mais próxima com receio de que o encontro com o real, embora subterrâneo, nos quebre o encantamento que permanece no ritmo dos passos errantes que se harmonizam com o pensamento.
2.
Anos passados, a memória de Berenice, daquela Berenice, agitava-
me n o que sabia
-ou julgava saber - sobre Roma, Luís
XIV,Tito, Racine,
C. li'
Berenlçe. Memória
1
143Grüber, o verso alexandrino, Mazarin ou Marie Mancini.
Odesejo de tambem querer organizar um discurso sobre a obra tornava-se cada vez mais premente. Com o passar do tempo e com o assumir da rauonalizaçáo que a distancia vai impondo
àprevakência
dasemoções, Grüber começava a ficar para trás e via-o agora wmo interlocutor de conversas imaginadas nas quais disputávamos uma visão do texto de Racine. Seria lusto situar a acção em Roma? Será de Roma que fala Rame? E Luís
XIV! EMarie Mancid?
Foi desta &sputa com um Grüber unaginado - no entanto real porque habitante da memória
-que começou a surgir a minha leitura de
Berentce.Com
ocorrer do tempo acentuava contradições - desfazia o encantamenro
- e sentia o h e i t o de também querer mostrar-lhe a minha
Berelezce.Para mim, neste debate algo solitário que o artista faz consigo próprio,
Bereníce ján&o era a Rainha da Palestina, nem
Tlboo futuro Imperador
deRoma. Embora Gniber continuasse a ter razão em muitas coisas
-no estatismo da acção, no sentido do trabalho elocut6rí0, na musicalidade que brotava das palavras - a minha
Berenicejá era Marie Mancini e o meu
Tltoteria que ser Luís
XN.Caro Klaus-Michael Gniber, obrigado por tudo, mas.. . terminamos aqui.
3. Definido o ponto de vista, essencial a qualquer projecto artístico - embora a fniição estética continue a assumir-se como justificativa da realização de uma obra (Sim!
Abeleza ainda faz parte da arte)
-sentia, cada vez mais, a necessidade de partilhar as minhas preocupações, at6 ai solitárias.
Primeiro problema: o verso de Racine. Propus a Vasco Graça Moura a tradução de
Berenlce.Aceite a ousadia da proposta, era imperativa a manutenção do verso alexandrino. Ainda bem! Primeiro consenso e primeiro desafio.
A medida que as palavras de Racine me iam surgindo na caixa do correio electrõnico, mais me aparecia o fantasma de Gniber, do qual
já mehavia despedido.
Amusicalidade encontrada por Vasco Graça Moura, a beleza e elegância da palavra, era, tal camo na feliz expressão do encenador alemão, .um sopro sobre uma ferida..
Encontradas as palavras que nos permitiriam escutar de u m forma sublirninal todo o canto do amor e do desespero, era necessário descobrir quem as poderia d'uer e, mais impomnte, as pudesse fazer suas.
4. B. de Beatriz. Não foi por acaso que utiiiz&mos a letra
Bno cartaz.
Se nos parecia importante .colar as palavras na carne, também nos pareceu
significativo que elas se confundissem no nome. Para
mim,para o Vasco Graça Moura e para o Luís Madureira
-que .colava" as palavras uma
auma num trabalho de enorme paciência - talvez tenha sido este o maior desafio e, por conseguinte, o mais estimulante. Foi, apesar de tudo, um trabalho que fizemos com alguma dacilidaden. Tínhamos encontrado nos corpos da Beatriz Batarda, do João Grosso, do José Airosa, do Miguel Loureiro, do José Neves, da Teresa Sobra1 e do Paulo Lage, um terreno arado que permitia a compreensão e a exposi@o de
umtexto para o qual são exigidas bases técnicas muito sólidas
-sobretudo ao nível da elocução
-as quais, infelizmente, se vão perdendo
narazão directa
dacada vez menor apresentação deste tipo de obras que são constitutivas da base de qualquer didificio teabril
-seja ele individual ou colectivo.
Nestes actores encontrámos não só o corpo mas também um entusiasmo que nos permitia enfrentar os obstáculos que nos surgiam e que eram, fundamentalmente, determinados pelo verso alexandrino que nos impunha regras e graus de exigência que tínhamos que superar. Mas será possível cantomar o verso? Racine sem o verso alexandrino será ainda Racinel
5.
Bermice,antes do palco. Um enunciado, um prop6sit0, adfvvihhável nas palavras que procuram sintetizar (e, eventualmente, wndicionar) a leitura do espedador.
A majestosa tristeza, o edito
entre o dever e a paixão,
Oamor sacri- ficado
àrazão de Estado: de que forma estas situações tocam os nossos espíritos contemporâneos?
O
que Berenice nos dá, fundamentalmente,
éa eterna histdria de um amor infeliz, da separação dos amantes, do destino insensível, de um sacrifício sublime no qual a grandeza náo serve de consolo aqueles que o aceitam.
A
histana de Tito e Berenice
é,também, um pouco a de Dido e Eneias, de Tristão e Isolda, de Rodrigo e Chiiena.
O
espectador contemporâneo não pode deixar de admirar o "exer- cício- realizado por Racine: a simplicidade da acção, que vai quase até ao despojamento e que faz de Berenice uma verdadeira *tragédia sobre quase nada..
Uma a c g o simples, sustentada na grandeza dos sentimenros, na elegância da expressão, na violência das paixões, na
espera dapalavra, faz com que
estaobra se apresente como uma inquietação surda, uma tragédia de portas fechadas na qual correm lágrimas e não sangue.
6. Berenice, em cena. Não posso, não consigo, falar do espectáculo.
Não me
épossível dizer mais do que nele foi dito. Prehro não ocupar
um espaço que entendo deixar
aocritério da apreciação subfectiva. Nesta atitude, eventuaimente egoísta, talvez pretenda fazer do interpretante uma cobaia que me permita uma releitum dos conceitos próprios que foram subjacentes apresentação cénica de
Berenice.Um especklculo
éo resultado da trabalho de um determinado conjunto de pessoas num tempo determinado.
Anossa
Berenice,na sua formalidade e economia em termos cénicos, foi o resultado de inúmeras ~experiências.
que, f e h e n t e , tivemos tempo de realizar. Esse tempo, tão necess&io
3criação anística, foi-me entregue pelos actores que, através da exrraordinána capacidade de resposta ao que era proposto, mo ofereciam como um presente inesperado.
7 . Acabado
um espectáculo, ele
sófica na memória que o tempo permite.
Sóa escrita e
asainda historicamente recentes possibilidades de íixa@o do som ou da imagem, evitam o esbatimento dos seus traços. No entanto, apesar do seu carácter efémero, ele consegue ganhar uma nova vida. Contradiz-se, recicla-se, reinventa-se, comenta-se, relê-se e renasce.
Se não fosse isso, não teria existido esta
Berenice.8.
Memória de
Berenice.Autor Jean Racine
Tradução: Vasco Grap Moura Çen%tio: Jogo Mendes Ribeiro Música: Márro Laguiha P1gur111os Antõm Lagarto Vídeo: Alexandre Ilunhem
Desenho de Luz Daniel Vorm d'Assumpção Desenho de som Hugo Reis
Voz e elocução Luís Madurem Encenação: Carlos Fmenta
Com. Beatriz Batarda (Berenice), Joao G r o w (Tito), José Prirosa (Antíoco), Teresa Sobra1 (Fenícia), Jose Neves (Arsáao), Mjguel Loureiro (Paulino), Paulo Lage (RulÍlio)
Produção: Teatro Nanonal de D. Maria I1 (2005)