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VII e VIII da Ciropedia, pois é a partir da narração da Tomada da

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Academic year: 2018

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lBLlOTECA

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Olbllotooa de CI6nol.

I-lumanu e Educaçl.o

da UFPr.

I

AS VIRTUDES DE UM HOMEM PROVIDENCIAL:

CIRO, O GRANDE

...•

ANA TERESA MARQUES GONÇALVES'

No bojo da Guerra do Peloponeso, Atenas vivenciou sérios problemas de ordem política, econômica e social, dificuldades estas que se mantiveram após sua derrota. O ambiente de peste e destruição era também abalado por sucessivos golpes oligárquicos e as posteriores retomadas

democráticas. É frente a essa situação de desordem permeada por

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s t a s is e guerras externas que Xenofonte delineia no IV século a.C. a figura do seu

Homem Providencial, ou seja, um condutor para o Estado que soubesse imprimir em seus atos as qualidades que deveria possuir em seu espírito. A idéia de um poder pessoal reestruturador e capaz de reordenar a cidade já vinha se desenvolvendo há muito tempo entre os círculos aristocráticos atenienses, junto ao crescimento de uma perspectiva individualista que contaminava todos os segmentos sociais.

Objetivamos reconstruir essa figura do soberano idealizado por Xenofonte, utilizando para tanto os dados que resgatamos da análise dos livros

VII

e VIII da C ir o p e d ia , pois é a partir da narração da Tomada da Babilônia que o autor explicita de forma mais enfática em seu discurso as virtudes que deveriam compor o Homem Providencial, que ele personifica no agente histórico Ciro, o Grande, rei da Pérsia de 559 a 530 a.C.

Inferimos que Xenofonte acoplou ao personagem Ciro as qualidades que na sua opinião deveriam delinear o governante cujas ações poderiam reestruturar a sociedade ateniense do IV século. Dessa forma, utilizando a História como Mestra da Vida, traz aos seus concidadãos o exemplo de conduta militar e política de um homem apresentado como modelar, que soube trazer riquezas e estabilidade para seu povo.

Como ressalta Jean Touchard, exigem-se do soberano, no qual se concentra toda a vida pública, as qualidades que outrora se pediam a um corpo de cidadãos. O conjunto dessas qualidades forma a a r e t é do

príncipe, uma espécie de carta imposta pela moral ao unico cidadão com

Professora de História e Mestranda em História Social da USP.

BIBLOS. Rio Grande. 6:21-31. 1994.

UfPR.

BC/SP-e,et.\Olf~C1-\

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plenos direitos que subsiste (Touchard, 1970, p. 80). As qualidades do governante serviriam assim como verdadeiros limites para a sua conduta, visto que um homem virtuoso jamais se tornaria um tirano. Estando acima dos outros cidadãos, a sociedade teria poucos mecanismos de controle sobre ele, que só seria balizado pela sua boa capacidade de discernimento entre as boas e as más ações e suas respectivas conseqüências para a cidade.

Desse modo, podemos perceber pelo relato de Xenofonte que o governante modelar deveria ser possuidor do que C. W. Bowra denomina as quatro virtudes cardeais para o grego, ou seja, a coragem, a temperança, a justiça e a sabedoria. Segundo esse autor, uma coisa em princípio era boa sempre que preenchesse plenamente a função que lhe fora destinada, da mesma forma que um homem era bom se todas as suas qualidades humanas satisfizessem plenamente e segundo determinado modo (Bowra, 1967, p. 131). Diz-se que um homem é bom consoante as aptidões que demonstra ter para esta ou aquela atividade (Bowra, 1967, p. 132). Portanto, o bom príncipe seria aquele que possuísse as virtudes para bem governar e conduzir seu povo. Sua capacidade de ação estaria vinculadaa qualidades inatas que seriam lapidadas por uma boa educação. O processo pedagógico seria encarado como uma forma de fazer aflorar certos dons e de ensinar como eles. poderiam ser aplicados para o bem da comunidade políade. Todavia, deve-se notar que o processo educativo apregoado por Xenofonte não seria comum a toda a

população.

Ao contrário, a educação a que ele se refere se restringe àqueles que têm acesso à corte, isto é, aos filhos das famílias aristocráticas. Era no Palácio que as crianças com alguma possibilidade de virem a governar eram educadas, pois a corte era uma escola, onde aprendiam a justiça, porque aí viam a eqüidade presidir aos juízos (Xen., VIII, VIII).

Assim o exemplo é visto como um dos melhores instrumentos num processo pedagógico. Segundo Xenofonte, Ciro pensava que um príncipe não é digno de governar se não é mais perfeito do que seus súditos. Ao mesmo tempo que exercitava os seus, também se exercitava mais assiduamente que nenhum deles na temperança, nas manobras militares e em todas as partes da arte da guerra (Xen., VIII, I). Podemos, então, observar o que Bowra denomina de "homem quadrangular", ou seja, aquele detentor de coragem, enquanto demonstração de valor físico e intelectual, pois a guerra reveste-se de um caráter de exteriorização de potência física e de organização da estratégia acertada; temperança, enquanto demonstração de autodomínio que se reflete em ações equilibradas; justiça, visto que, como descendentes dos deuses, o soberano seria inspirado por eles para tomar sempre decisões justas e, dessa forma, reconhecer os méritos alheios e distribuir benesses de acordo com eles, canalizando para

si o apoio de toda a comunidade; e sabedoria, ligando os bons pensamentos às boas ações para agir bem em prol de todos.

A partir disso, fica claro que o soberano deveria ser encarado como benfeitor, isto é, como reordenador, aquele que se sacrifica pelo bem da comunidade. Vide, por exemplo, o fato de que Ciro só pensa em ser rei após demonstrar, através de várias vitórias consecutivas, suas potencialidades, suas virtudes, ou seja, após se tornar tão importante para seu povo que este não poderia prescindir dele e depois de ter resistido às inúmeras privações inerentes à vida num campo de batalha, estando à frente de um exército que dependia de suas ordens. Essas ordenações deveriam ser sempre sábias, para não colocar em perigo toda a formação

persa. É Cambises, o pai de Ciro, quem, durante uma assembléia, afirma:

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S e v ó s C i r o , é b r i o d e v o s s a f o r t u n a , q u i s e r d e s

g o v e r n a r t i r a n i c a m e n t e o s p e r s a s c o m o u m p o v o

c o n q u i s t a d o ; s e v ó s , p e r s a s c i o s o s d o p o d e r d e

C i r o , q u i s e r d e s c e r c e á - I o , s u s p e n d e r e i s

o

c u r s o d e v o s s a s p r o s p e r i d a d e s . U m m e i o d e p r e v e n i r e s t a

d e s g r a ç a ,

e

a t é d e v o s a s s e g u r a r p a r a

o

f u t u r o

n o v a s v a n t a g e n s ,

é

o f e r e c e r a o s d e u s e s u m s a c r i f í c i o em c o m u m , e em s u a p r e s e n ç a p r o m e t e r d e s , v ó s C i r o , q u e s e a l g u é m e n t r a r n a

P é r s i a c o m m ã o a r m a d a , o u t e n t a r d e s t r u i r s u a s

l e i s , a s d e f e n d e r e i s c o m t o d a s a s v o s s a s f o r ç a s ;

v ó s p e r s e s , q u e s e a l g u é m q u i s e r p r i v a r C i r o d o

I m p é r i o , o u s e p a r a r d e s u a o b e d i ê n c i a a s n a ç õ e s

p o r e l e s u b m e t i d a s , c o r r e r e i s em s e u a u x í l i o a

p r i m e i r a o r d e m q u e r e c e b e r d e s (Xen., VIII, V).

Vemos que se trata de um acordo mútuo, onde ambas as partes parecem ganhar de forma igualitária. Todavia, para que esse acordo se efetue de forma eficaz e para que não se rompa com facilidade, torna-se necessária a obediência dos súditos frente ao soberano. Dessa forma, o rei cria internamente à comunidade uma situação de estabilidade ocasionada pela existência de uma única fonte de poder inquestionável, enquanto supridora dos anseios dos cidadãos, gerando condições para um fortalecimento interno que favorece as conquistas externas. A obediência é um sentimento que implica a observância das ordens superiores e a ratificação dos ordenarnentos, visto que, ao aceitar e executar uma ordem, o homem que, age torna-se cúmplice daquele que ordena, gerando na sociedade um clima de colaboração mútua que garante a sua ordem interior. É o próprio Xenofonte quem pergunta se:

I

BIBLIOTECA

22 BIBLOS, Rio Grande, 6:21-31, 1994. Blbllot908 de Clênclaa

Humanas e EiducaçAo da UFPr.

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ill

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s e m o b e d iê n c ia , q u e c id a d e s s e r ia m b e m

g o v e r n a d a s , q u e c a s a s b e m a d m in is t r a d a s , q u e

n a v io c h e g a r ia

ao

p o r t o d e s e u d e s t in o ? E n ã o

é

à

s u b m is s ã o à s o r d e n s d o n o s s o g e n e r a l q u e n ó s d e v e m o s o s b e n s d e q u e g o z a m o s ? ( . . . ) S e d e p o is

a s s í d u o

à

p o r t a d o p a lá c io d e G ir o ;

teçemos

t u d o p a r a g a r a n t ir

a

p o s s e d o s b e n s q u e n o s im p o r t a c o n s e r v a r ; e s t e ja m o s s e m p r e p r o n t o s

a

e x e c u t a r

a s o r d e n s d e G ir o ; s a ib a m o s q u e e le n a d a p o d e

f a z e r p a r a s i q u e n ã o r e d u n d e e m p r o v e it o n o s s o ,

p o r q u e n o s s o s in t e r e s s e s s ã o c o m u n s e t e m o s o s

m e s m o s in im ig o s ac o m b a t e r " (Xen., VIII, I).

Z e u s , d e u s d o s m e u s p a is , H é liu s , e v ó s , o u t r o s

d e u s e s im o r t a is , r e c e b e i e s t e s a c r if í c io , q u e p õ e

t e r m o à m in h a g lo r io s a c a r r e ir a . D o u - v o s g r a ç a s p e lo s c o n s e lh o s q u e d e v ó s r e c e b i p o r m e io d a s

e n t r a n h a s d o s a n im a is , d o s s in a is c e le s t e s , d o s

a g o u r o s , d o s p r e s s á g io s , s o b r e

o

q u e e u d e v e r ia f a z e r o u e v it a r (Xen., VI II, VII).

E era através das vitórias militares incessantes que Ciro demonstrava ser possuidor de t y c h é , o sopro que guia os homens para o sucesso, o apoio das divindades às suas empreitadas, cumulando-os de glórias e dando-Ihes um prestígio pessoal.

Não é à toa que Ciro se intitula Pai e Pastor de seu povo. Ambos os títulos denominam homens que guiam, seja sua família, seja o seu rebanho; aquele que vai à frente, isto é, aquele que conduz, que mostra o melhor caminho. Tanto o pai quanto o pastor podem utilizar dispositivos mais enérgicos com aqueles que estão conduzindo, mas devem ser moderados, pois o Pastor-condutor não pode ir totalmente contra o seu rebanho, sob o perigo de perdê-Io por completo. Da mesma forma, o pai não pode ferir de tal forma seus melhores filhos a ponto de impossibilitar a geração de uma boa descendência para a família. Assim sendo, podemos perceber a intrínseca relação pastor/rebanho e pai/filhos, que pode ser resgatada da titulatura real, realçando o caráter protetor da figura do rei, mas também enfatizando seus limites de ação, pois o que é um rei sem súditos ou um pastor sem rebanhos?

Um ponto importante a ser analisado se refere à questão da legitimação da autoridade desse soberano ideal. Parece-nos que ele se legitimaria pela existência em Atenas de um "Estado de Necessidade", ou seja, essa pólis precisaria de um homem com capacidade de reordená-Ia, de reestruturá-Ia. Para que o processo de reorganização se efetivasse, seria preciso que fossem delegados ao soberano virtuoso todos os poderes e atribuições antes diluídas no corpo de cidadãos. Desse modo, o rei seria legítimo enquanto supridor das necessidades permanentes da pólis. Realmente, Xenofonte dá grande relevância ao papel da ordem na sociedade para a estabilidade de qualquer cidade-estado, ordem esta encarada enquanto manutenção de uma hierarquia social, vinculando cada grupo aos privilégios que o diferenciassem dos outros segmentos sociais, e como preservação de um estado de tranqüilidade interna. Encarando-se desse modo, o soberano é aquele que ordena a sociedade a partir de dois prismas: é o que lhe dá uma organização interna hierarquizada e o que lhe traz a paz social, freando às disputas pelo poder de comando. Essa nossa afirmação só pode ser compreendida tomando por base as lutas entre facções oligárquicas Portanto, o soberano deteria a possibilidade de controlar toda a

comunidade, pois qualquer insubordinação seria encarada como perigosa para a manutenção do equilíbrio social, e sua punição seria assim facilmente justificada. Acreditamos que o soberano serviria como um artifício aristocrático na garantia de uma ordem necessária para a manutenção de seus privilégios, pois, como veremos mais adiante, todo soberano ideal deveria se cercar de bons conselheiros advindos da aristocracia local.

O rei também deveria possuir algumas outras virtudes que apresentariam inestimável valor na condução imperial, como: a astúcia, utilizada principalmente na produção de estratégias militares (vide, por exemplo, a genial Tomada da Babilônia, onde Ciro manda construir canais que servem para escoar as águas do rio que atravessa a cidade, tornando o seu leito uma estrada por onde atravessam os invasores persas); a persuasão, ou seja, a arte do bem falar, do convencimento pela utilização de argumentos lógicos, plausíveis e eficazes, mexendo com a emoção daqueles que escutam os discursos (vide as inúmeras falações feitas por Ciro à frente de seu exército, animando-o para a luta); e a clemência, qualidade que aproxima o soberano dos deuses, já que somente as divindades teriam o poder de dar ou de tirar a vida dos homens (vide como exemplo o fato de Ciro poupar a vida dos inimigos egípcios quando esses demonstram ser valorosos no campo de batalha). Contudo, é importante ressaltar que, apesar de se dizer descendente dos deuses e ser adorado como tal, Ciro mantém o mesmo sentimento de temor às divindades, acreditando na existência de uma determinação divina que supera a simples ação humana. Cremos que isso se deva ao fato de que, apesar de divinizado, a legitimação de seu poder era também devida à inspiração divina que guiava a sua conduta. Podemos resgatar um exemplo disso quando, no discurso que profere antes de sua morte, Ciro afirma:

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e democráticas que abalavam a pólis ateniense, e a ascensão ao poder de comerciantes enriquecidos com a guerra, que feriam a tradição aristocrática. Somente assim podemos perceber os dois sentidos de ordenamento imprimidos por Xenofonte em seu discurso (ordem = colocar cada um em seu lugar, hierarquizar, arrumar a sociedade; e ordem

=

trazer a paz, a tranqüilidade), observando que há implicações importantes entre os dois sentidos, pois, ao arrumar a sociedade, retomar-se-ia a paz, justificando-se assim a estratificação social. Um bom exemplo disso pode ser encontrado quando Xenofonte compara o Estado persa formado por Ciro com seu exército, afirmando que Ciro pensava que, se era necessário pôr em ordem uma casa particular, para saber onde ir buscar as coisas de que há necessidade, muito mais importava na guerra ter essa estação. Tudo mais foi regulado de maneira que cada um sabia bem o lugar e o espaço que devia ocupar. ( ...) Sobre esse modelo Ciro formou seu plano de administração (Xen., VIII, V).

Além disso, devemos nos lembrar de que o Homem Providencial esboçado por Xenofonte seria promotor de ações puras e justas, enquanto fiel servidor da Pérsia. Seu trabalho frente à pólis seria recompensado pela obediência dos súditos. Seu reconhecimento, tornando-o um homem feliz, viria do esforço empreendido no bem governar, pois "os trabalhos são o condimento dos homens fortes. Se obtemos uma coisa sem dela precisar,

dificultosamente lhe acharemos prazer" (Xen., VII, V). No último livro da

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C ir o p e a i« , Ciro afirma a seus filhos: "Como os deuses não vos ocultaram na

obscuridade, todas as vossas ações serão vistas: se elas forem puras e conforme a justiça, consolidarão vossa autoridade" (Xen., VIII, VII). Dessa forma, as próprias ações reais legitimam seu poder.

Devemos também levar em consideração que Ciro utiliza todo um cerimonial Meda, baseando-se em costumes orientais, buscando assim firmar a sua posição de homem superior aos demais. Xenofonte narra que Ciro vestiu-se à maneira dos Medos, e fez com que os grandes o imitassem; porque o traje usado pelos Medos tem a dupla vantagem de ocultar os defeitos do corpo e dar aos homens uma aparência mais elegante (Xen., VIII, I). Enfim Giro apareceu sobre um coche, vestido de púrpura e com uma tiara na cabeça; e logo todos se prostraram e o adoraram (Xen., VIII, 111). Note-se que o autor utiliza argumentos estéticos para justificar a adoção de tal vestuário, pois o processo divinizatório é paulatino e visto como um reconhecimento pelos serviços prestados à Pérsia. Não é o ritual que legitima o soberano, pois ele apenas torna visível uma legitimação anterior feita às ações praticadas pelo rei e que resultaram na garantia de seu poder de comando. Tanto que Ciro pede o apoio de seus amigos para poder utilizar tal cerimonial.

Em várias partes do documento analisado, podemos notar a

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importância que Xenofonte tenta acentuar para a ligação que deveria se efetuar entre o soberano e a aristocracia. Acreditamos que o príncipe seria uma espécie de artifício aristocrático para garantir a manutenção de seus privilégios. O governante compartilharia a riqueza conquistada com os seus amigos, tomando como critério para a repartição os méritos demonstrados nas batalhas e a obediência mantida. Assim, os aristocratas abriam mão de seu poder político, visando a manter o seu poder econômico. Como buscamos demonstrar anteriormente, o soberano não se tornaria um tirano porque seria possuidor de boas virtudes que limitariam a sua conduta e impossibilitariam seus desmandos. Devemos acrescentar que, segundo Xenofonte, no tempo dos príncipes virtuosos, observam-se as leis com exação; elas são violadas nos tempos dos maus príncipes (Xen., VIII, I). Ciro concordava em que as leis escritas podem concorrer para melhorar os homens; mas dizia que um bom príncipe era uma lei vidente, que ao mesmo tempo observa e ordena, e pune a desobediência (Xen., VIII, I). Além das virtudes reais, as próprias leis políades iriam limitar as ações do soberano, apesar de que, inspirado pelas divindades e intimamente ligado a elas e às suas vontades, o soberano seria encarado como lei vidente, ou seja, não um homem acima da lei, mas a própria encarnação da lei, cujos atos seriam justificados pelas leis humanas e divinas. Mantinha-se dessa forma a

e le u t h e r ia , o respeito à liberdade garantida pela lei.

Para garantir a ordem, o rei precisava contar com o apoio dos aristocratas. Apesar de ser o homem mais rico da comunidade, Xenofonte ressalta a liberdade, a generosidade do governante e a sua satisfação em ajudar os amigos, esperando em momento oportuno ser ajudado por eles. Desse modo, Xenofonte garante em seu relato um lugar de destaque para a aristocracia junto à figura real. O autor narra que Ciro costumava despojar de todos os seus bens aqueles que não vinham cortejá-Io e que não lhe prestavam bons serviços, dando suas riquezas a outros "com cujos serviços não podia mais contar; e deste modo punha um amigo útil no lugar do mau amigo" (Xen., VIII, I). Em outra parte do relato, Ciro afirma: "Meus amigos são os meus tesouros, são uma guarda mais segura do que uma guarda de mercenários" (Xen., VIII, 11). Vê-se assim a estreita vinculação reis-aristocratas na execução de uma troca mútua, que também pode ser exemplificada através da passagem na qual Creso suspeita do empobrecimento de Ciro pelo excesso de doações que este tem feito aos seus amigos. Ciro então lhe prova que as riquezas que os amigos forneceriam em caso de perigo para o Império excede em muito as riquezas que teria se as tivesse acumulado no Palácio. Assim, Ciro conclui que: "As riquezas não tornam feliz senão aqueles que depois de tê-Ias adquirido por meios justos, usam delas generosamente" (Xen., VIII, 11).Vemos como é importante o compartilhamento de bens a ser efetuado entre o rei e a

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escolher de forma acertada o melhor governante para o Império, mantendo o pacto rei-aristocracia e as suas conquistas fe:tas para os persas. Todavia lembremo-nos de que o princípio de hereditariedade vinculava o poder a apenas uma família, impedindo a ascensão de outros expoentes aristocráticos ao comando supremo. Então, dever-se-ia buscar um discurso que legitimasse o sucessor, apresentando-o como o melhor entre os bons e aptos para governar. A educação torna-se assim o substrato da escolha, pois só aqueles cultivados por um processo pedagógico teriam condições de lapidar suas virtudes inatas e saberiam utilizá-Ias em benefício do Império. Entretanto, não esqueçamos de que essa escolha ficaria restrita aos membros das famílias aristocráticas, visto que só esses teriam acesso à educação da corte. Dessa maneira, inferimos que o governo de Cambises, filho de Ciro, não foi bem-sucedido porque a discórdia gerada entre ele e seu irmão Tanaoxares ocasionou uma desordem profunda na sociedade persa, o que levou a uma deslegitimação dos seus atos, pois sua principal tarefa à frente do governo era proporcionar a manutenção da ordem necessária para o desenvolvimento dos interesses aristocráticos, como explicamos anteriormente. Portanto, Cambises falhou na sua principal função, e "o rei não é bem servido por seus súditos senão quando concorre para a sua felicidade" (Xen., VIII, li), levando o império persa a uma desagregação, narrada por Xenofonte na última parte do último livro que compõe a

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C ir o p e d ie .

Por fim, gostaríamos de enfatizar que, na situação de crise em que se encontrava a cidade-estado de Atenas no IV século a.C., foram retomados muitos valores tradicionais, resgates estes desencadeados principalmente entre os segmentos aristocráticos, que passaram a produzir discursos nostálgicos, relembrando os valores que permeavam o período da realeza. Assim, podemos inferir que, na necessidade de uma divindade mais próxima, cujos poderes se manifestam dentro daquele clima de morte e destruição causado pela Guerra do Peloponeso, e onde as antigas potencias divinas estavam sendo fortemente questionadas, os aristocratas passaram a desejar um poder único, concentrado nas mãos de um bom e virtuoso rei. Este poderia utilizar características dlvlnizatórias e prerrogativas celestes, corno a descendência dos deuses e dos antigos heróis, para externarem o seu poder de comando e reordenação da comunidade políade.

Acreditamos que a forma de governo idealizada por Xenofonte e que teria um soberano-modelo à frente se aproxima muito mais das antigas realezas gregas do que das monarquias que posteriormente serão chamadas de helenísticas, pois o autor ressalta o respeito às leis e à vinculação com a aristocracia como marcos do governo que propõe. Trata-se de certa forma de uma u t o p ia , construída pelo resgate de características passadas, readaptadas ao presente e não pela delineação de algo que só aristocracia, visto que ela só abriria mão de seu poderio político em troca de

um florescimento do seu poderio econômico. Nesse ínterim, a guerra e a posterior conquista e dominação de território são amplamente justificáveis, pois revestem-se de um caráter de afirmação da vitória, visto que, nas palavras de Ciro:

N e n h u m d e v ó s p e n s e q u e is t o é p o s s u ir

o

a lh e io .

É u m a le i d e t o d o s o s t e m p o s q u e , c o n q u is t a d a u m a c id a d e , p a s s a m

ao

p o d e r d o s c o n q u is t a d o r e s a s p e s s o a s

e

o s h a v e r e s d o s v e n c id o s . P o r t a n t o , n ã o

é

in ju s t a m e n t e q u e s o m o s s e n h o r e s ; p e lo c o n t r á r io , t o d a s a s c o n c e s s õ e s q u e f iz e r m o s a o s

in im ig o s d e v e m e le s r e t r ib u ir à n o s s a f iJ a n t r o p ia "

(Xen., VII, V).

Xenofonte chega a vincular a autoridade do soberano ao seu apoio à aristocracia, quando Ciro, ao escolher o seu sucessor, afirma:

" V ó s , C a m b is e s , n ã o e s q u e ç a is ja m a is q u e n ã o

é

e s t e c e t r o d e o u r o q u e c o n s e r v a r á v o s s o d o m í n io ;

o s a m ig o s f ié is s ã o o v e r d a d e ir o c e t r o d o s r e is e

s e u m a is f ir m e a p o io . ( . . . ) Ép r e c is o t r a b a lh a r p a r a

g a n h a r a m ig o s f ié is ; n ã o é o t e m o r m a s s im a

b e n e f ic ê n c ia q u e o s d á " (Xen., VIII, VII).

Dessa forma, não é a coerção que garante o apoio aristocrático, instrumento este utilizado pelos tiranos, mas a liberalidade, a generosidade em distribuir benesses pelo príncipe na proporção exata em que seus amigos lhe servem. Note-se inclusive que Xenofonte fala na organização de uma relação de domínio, característica da relação rei-súditos, em contraposição à anterior relação de autoridade que se desenvolvia entre o magistrado e a comunidade. O soberano nos parece um magistrado especial, a quem a delegação do poder é feita e garantida por seus méritos e onde a investidura de autoridade reflete o antigo poder decisório da sociedade como um todo. Essa relação de domínio só não se aproxima da realeza bárbara porque um soberano ideal seria fiel seguidor das leis políades.

Resta-nos ainda acrescentar algumas palavras acerca dos mecanismos adotados por Ciro para garantir a sucessão imperial. Segundo Xenofonte, esse soberano escolheu indicar como sucessor seu filho mais velho, adotando o princípio da hereditariedade. Sua indicação dificilmente poderia vir a ser questionada, pois, inspirado pelos deuses, ele deveria

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ganhará forma no futuro, após o governo de Alexandre. O rei proposto deveria ser um

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h e g e m o n e um b a s ile u s , ou seja, concentrar em sua pessoa primordialmente os poderes militar e religioso, construindo um aparato estatal, como fez Ciro, para absorver boa parte da aristocracia, colocando-a em contato, mesmo de forma indireta e subordinada, com o poder político.

Para corroborar essa nossa hipótese, gostaríamos de lembrar que no período da realeza já se divinizavam os heróis, ou seja, aqueles que demonstravam possuir as virtudes e que sabiam utilizá-Ias para o bem da comunidade, sendo reconhecidos por seus méritos individuais. Segundo C. W. Bowra, a essência da perspectiva heróica era o desejo de alcançar a honra pela ação. O homem de valor era aquele que, tendo sido dotado de qualidades físicas e de inteligência superiores, punha-as para render o mais possível, que conquistava as simpatias de todos os outros porque não desperdiçava um único esforço, nem fugia ao menor risco, no seu desejo de fazer valer ao máximo todos os seus dons e de ultrapassar todos os outros homens no exercício que deles fizessem (Bowra, 1967, p. 39).

Para o mesmo autor, o ideal do heroismo estava reservado a um pequeno número de eleitos (...). Os aristocratas que afirmavam ser descendentes dos antigos heróis e que acreditavam que ainda corria em suas veias o sangue dos deuses, ao verem um homem comportar-se como um guerreiro homérico, buscando sua glória pessoal, ainda mais o admiravam, pois achavam que ele tinha sido portador de honra para sua cidade, seu segmento social .e a sua família. Uma das razões pelas quais o ideal de heroísmo sobreviveu na Grécia era porque ele estava ligado ao serviço devido à cidade (Bowra, 1967, p. 45). Devemos ainda ressaltar que uma das primeiras medidas tomadas por Ciro em seu retorno à Pérsia é apresentar aos aristocratas a sua proposição para a formação de um Palácio e de uma corte. Após o beneplácito dos aristocratas, Ciro organiza a sua habitação fixa, instituindo uma guarda para sua segurança, o que demonstra que seu poder não era tão inquestionável assim e que demandava justificativas constantes para sua manutenção. Nesse bojo, adota também um aparato de corte formado por eunucos (Xen., VII, V).

Concluindo, podemos afirmar que vários componentes da figura do Homem Providencial serão retomados posteriormente pelos escritores romanos, que saberão adaptar essas características às necessidades do momento histórico presente e coaduná-Ias com as antigas tradições romanas. O soberano ideal surge assim como uma construção narrativa que perpassa os tempos, assumindo formas que preenchem os anseias dos segmentos aristocráticos perturbados por crises que abalam seus privilégios seculares. Toda a idealização assume a tarefa de dar forma a uma necessidade que se expressa de forma contundente e que atinge os valores , mais profundos de uma civilização, É esse tipo de processo que buscamos

30 BIBlOS, Rio Grande, 6: 21·31, 1994.

resgatar no texto de Xenofonte, utilizado aqui como uma amostragem das angústias e insatisfações que atingiam os aristocratas atenienses, que buscaram a partir disso produzir sardas para o momento de crise. Saídas como a construção e a procura de um soberano modelar, que Xenofonte materializou na figura de Ciro, o Grande,

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Referências

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