ENCONTRO COM O PARAÍSO:
o imaginário despertado pela Carta do
Descobrimento do Brasil
Lélian Patrícia de Oliveira Silveira
Doutoranda em Estudos Culturais pela Universidade do Minho e Universidade de Aveiro, Mestre em Gestão e Planejamento e Turismo pela Universidade de Aveiro, Especialista em Gestão em Turismo e Hotelaria, professora do Curso de Gestão de Turismo do CEFET/RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca)–Petrópolis, Brasil. Email: lelian.silveira@hotmail.com
Maria Manuel Baptista
Doutora em Cultura pelo Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, professora auxiliar e investigadora do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, Portugal. Email: mbaptista@ua.pt
Resumo
A Carta do Descobrimento se configura como um dos mais
detalhados informativos e primeiro documento que dispomos
acerca do território brasileiro e seus habitantes. Foi escrita
em 1500 por Pero Vaz de Caminha que, mesmo não sendo um
homem do mar, mas um escrivão da comitiva, tentou fazer
um relato o mais minucioso possível e com exatidão de cada
detalhe da nova terra, bem como do povo que a habitava. A
Carta reflete a visão do europeu sobre o mundo naquele
momento e reúne uma variedade de possibilidades de
análises multidisciplinares. O presente estudo tem como
objetivo apresentar o imaginário e as primeiras impressões
descritas pelo escrivão ao relatar a “terra nova”, que vão
desde as imagens míticas do paraíso perdido, a inocência
original de Adão e Eva, a superioridade europeia, a enorme
riqueza natural encontrada, até o povo inocente e alegre.
Palavras-chave: Paraíso; Grandes Navegações; Carta do
1. A idealização do paraíso
As origens do mito do paraíso remontam a diversas
versões encontradas em escritos históricos e
literários. Boa parte do que concebemos como a
ideia do paraíso tem raízes que vêm desde os textos
bíblicos, com a descrição do Éden e a maldição do
pecado original, que levou à expulsão do homem do
Jardim, passando pelos autores clássicos dos séculos
XVI ao XIX.
2. O imaginário despertado pela
Carta do Descobrimento do Brasil
Caminha relata, nos mínimos detalhes, a viagem de
Pedro Álvares Cabral e descreve as imagens míticas
do Éden, quando fala do solo fecundo, das águas
cristalinas, da exuberância da natureza etc. Projeta a
sua formação de homem de mentalidade ainda
medieval, mas, ao mesmo tempo, moderno o
suficiente para antever a praticidade na utilização
desse paraíso. Esse mito era corrente na Idade
Média e fazia parte da literatura considerada não só
fantasiosa, mas também informativa e confirmada
por depoimentos de viajantes e estudiosos.
A Carta como documento histórico é importante para
a percepção do imaginário europeu de uma época.
Reúne uma variedade de possibilidades de análises
multidisciplinares. Elas vão desde as imagens míticas
do paraíso perdido, a inocência original de Adão e
Eva, a superioridade europeia, a enorme riqueza
natural encontrada, até o povo inocente e alegre.
Ademais, retrata os corpos dos nativos, as danças, as
pinturas e adornos utilizados, a nudez, a flora, a
fauna, as relações sociais, a hierarquia, os costumes,
as armas, a falta de religiosidade etc.
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de deixar mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão [...] (Castro, 2008:91-92).
Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por algumas carapucinhas velhas e por qualquer coisa [...]. Alguns deles traziam arcos e setas; e deram tudo em troca das carapuças e por qualquer coisa lhes davam [...] (Castro, 2008:101-105-110).
Também andavam entre eles quatro ou cinco mulheres, novas, que assim nuas, não pareciam mal. Entre eles andavam uma, com coxa, do joelho até o quadril e nádega, toda tingida daquela tintura preta; e todo o resto da sua cor natural. Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tingidas, e também os colos dos pés; e suas vergonhas tão nuas, e com tanta inocência assim descoberta, que não havia nisso desvergonha nenhuma [...] (Castro, 2008:102).
[...] fato que deduzo que é gente bestial e de pouco saber, e por isso tão esquiva. Mas apesar de tudo andam bem curados, e muito limpos. E naquilo ainda mais me convenço que são como aves, ou alimárias montezinas, as quais o ar faz melhores penas e melhor cabelo que às mansas, porque os seus corpos são tão limpos e tão gordos e tão formosos que não pode ser mais! E isso me faz presumir que não têem casas nem moradias em que se recolham; e o ar em que se criam os faz tais [...] (Castro, 2008:104).
[...] se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, [...] porque certamente essa gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles todo e qualquer cunho que lhes quiseram dar, uma vez Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como homens e mulheres bons [...] (Castro, 2008:111).
Todavia um deles fitou o colar do Capitão, e começou a fazer acenos com a mão em direção à terra e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal como se lá também houvesse prata! [...] (Castro, 2008:92-93).
Porém a terra em si é de muitos bons ares, assim frios e temperados como de Entre-Douro e Minho [...] as águas são infinitas e em tal maneira é graciosa, que querendo aproveitá-la, tudo dará nela [...] (Castro, 2008: 115-116).
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