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Tradição épica e elegíaca: a poesia de Calino e Tirteu

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008

Tradição épica e elegíaca: a poesia de Calino e Tirteu

Rafael de C.M. BRUNHARA

G – FFLCH – USP

brunhara@usp.br

Partindo do pressuposto de que há um vínculo inequívoco entre a poesia elegíaca do período arcaico (século VII-VI a.C) e o contexto social que a determina, este texto propõe-se a uma breve análise de passagens de Calino e Tirteu, e mais especificamente do fragmento 1 w de Calino. Pois a função cívica dessa poesia faz-se mais clara justamente a partir do estudo da elegia marcial, na medida em que esta engendra uma adequação dos temas da poesia hexamétrica para uma audiência contemporânea, ao conclamar seus interlocutores à função de cidadãos.1 Assim, pretende-se observar como o recurso à tradição épica se encontra diretamente entretecido à ocasião sócio-política, e como esta ressignifica aquela.

Calino 1 w e a elegia marcial: simpósio e tradição épica

Os primeiros versos que nos chegaram marcam um início abrupto, denotado pela sequência de fortes censuras lançadas pelo poeta aos seus interlocutores:

Me/xrij te/o kata/keisqe; ko/t’ a)/lkimon e)/cete qumo/n, w)= ne/oi; ou)d’ ai)desq’ a)mfiperikti/onaj

w)=de li/hn meqie/ntej?; e)n ei)rh/nhi de\ dokei=te h(=sqai, a)ta/r po/lemoj gai=an a)/pasan e)/xei.

Até quando jazeis inertes? Quando tereis valente ânimo, jovens? Não tendes pudor diante dos vizinhos à volta, assim relaxados em excesso? Em paz pareceis

estar, mas a guerra toma toda a terra.

Adkins (1977, p.63-64), observando que este pode ser de fato o início do poema em razão da falta de partículas conectivas, sublinha a eficácia retórica da abordagem inicial do poeta.

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 28 A despeito de se tratar realmente do início do poema, ao se referir à eficiência retórica de tal início, fica implícita na análise da Adkins a importância da audiência do poema, e assim, por extensão, da ocasião de performance, condição precípua para a contextualização genérica da elegia grega arcaica, fiada mais no receptor do que na exposição biográfica ou sentimental do autor. Cabe, então, uma breve consideração acerca da ocasião de performance da elegia marcial e em que medida o fragmento 1 de Calino pode se inserir neste contexto.

West (1977, p.11-12) considera que o momento precedente a uma batalha é o mais adequado para a produção da elegia marcial, apoiando-se nos depoimentos de Filócoro (FGr Hist. 328 f. 216) que relatam a prática de se recitar elegias marciais de Tirteu no acampamento do rei, enquanto o exército espartano estava em campanha.

Bowie (1986.p.15), criticando a literalidade da análise de West, considera que o simpósio era o único contexto inequívoco de produção da elegia. Para o autor, o testemunho de Filócoro revela que a récita das poesias de Tirteu dava-se em contexto análogo ao simpósio, e o seleto grupo de soldados que integrava a reunião no acampamento real era em muito similar aos aristocratas que tomavam parte de um simpósio.

Quanto a Calino, o próprio West já aduz a possibilidade do simpósio como cenário desta elegia, conforme sugere Reitzenstein (1893), que se refere à situação similar em Téognis, 825-30. Bowie (1990, p.222) ainda aponta que há no poema uma proposital escolha de palavras que remete diretamente ao ambiente simposial: kata/keisqe (v.1: “jazeis inertes”) e meqie/ntej (v.3: “relaxados”)2 são exemplos.

Considerando que o poema desenrola-se no simpósio e constitui-se como uma prática comum deste, insere-se uma questão importante para o estudo da elegia exortativa marcial: em que medida este texto repleto de referências à poesia épica relaciona-se com o universo que permeia o simpósio aristocrático do período arcaico?

Ao que se pesem as discussões em voga acerca da datação de Homero3, ou mesmo da possibilidade das epopéias já se encontrarem conformadas a um texto fixo, é inegável a existência de vínculos formais e temáticos, que autorizam a aproximação de ambos os gêneros.

2 Nesse sentido, a curiosa metáfora do verso 11, to/ prw=ton meignume/nou pole/mou (“tão logo mescla-se o combate”) poderia ser também uma escolha proposital, comparando, como quer Adkins (1977, p.65) uma prática do simpósio (a mistura de vinho e água) ao entrechoque de tropas inimigas no início da luta.

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 29 Quanto à forma, observa-se a utilização de expressões confins à épica, como o uso de termos que remetem a expressões formulares4 e de um metro que favorece esse procedimento. O vínculo temático se dá pela exortação ou parênese militar, que também exerce na poesia épica (sobretudo na Ilíada) um papel fundamental e expressa valores similares àqueles contidos na elegia marcial5.

Durante o século XX, as correntes críticas mais influentes6 entenderam a poesia de Calino e Tirteu dentro de um ciclo evolutivo. A partir desses poetas seria possível observar uma nova realidade, decorrente do surgimento da polis: valores políticos como a defesa da pátria e a preocupação com uma ampla coletividade encontrariam guarida nessa poesia, e a distinguiriam frontalmente de Homero, no qual o conceito de patriotismo seria raro e a guerra diria respeito apenas à proteção de um restrito âmbito familiar.

Irwin (2005, p.26) sugere que as aparentes diferenças entre essas noções conforme apresentadas na épica e na elegia não representam propriamente o desenvolvimento de um conceito, mas recebem igual destaque, de acordo com o contexto narrativo.

Assim, podemos ver o sentimento de luta pela pátria nas palavras de Heitor a Polidamas, em Il. 12.243 ss:

Há um portento que é o melhor: combater pela pátria. Por que razão tu receias a batalha e a refrega? 7

Também na elegia de Calino, em análise, a guerra não só é justificada por meio de uma motivação “patriótica” (ma/xesqai gh=j peri/, vv. 6) como se coloca no mesmo plano a defesa da família8:

timh=e/n te ga\r e)sti kai\ a)glao\n a)ndri\ ma/xesqai gh=j pe/ri kai\ pai/dwn kouridi/hj t ) a)lo/xou dusmene/sin [...]

4 No fragmento 1 de Calino, por exemplo: kouridi/hj t’ a)loxou (vv.7), a)/lkimon h)=tor (vv.10). 5 Como exemplo, c.f. o discurso de Príamo em Il. 22. 71-6 em comparação a Tirteu 10. 21-30. 6 Cf. Snell (1982).

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 30 Pois é honroso e esplêndido ao varão, lutar

pela terra, pelos filhos e mulher desposada contra os inimigos [...]

O fragmento 10 W (vv.01-06) de Tirteu ainda expressa em termos claros que a família ocupa posição central na motivação do guerreiro que adentra à guerra, tal qual em Homero: teqna/menai ga\r kalo\n e)ni\ proma/xoisi peso/nta

a)/ndr 0 a)gaqo\n peri\ h(=i patri/di marna/menon:

th\n d )au)tou= prolipo/nta po/lin kai\ pi/onaj a)grou\j ptwxeu/ein pa/ntwn e)/st ) a)nihro/taton,

plazo/menon su\n mhtri\ fi/lhi kai\ patri\ ge//ronti 5 paisi/ te su\n mikroi=j kouridi/hi t ) a)lo/xwi.

Pois é belo que um valente varão morra tombado nas primeiras linhas, lutando pela pátria;

Mas abandonando sua cidade e os férteis campos

para mendigar, dentre todas é a coisa mais vergonhosa; vagando com a cara mãe, o velho pai, 5 com os filhos pequenos e a mulher desposada.

Nesses termos, ao compreender que a elegia marcial possui mais similaridades do que distinções em relação à épica e que estas distinções se dão mais em razão de características próprias de cada gênero do que de um desenvolvimento de conceitos que se operou no período arcaico9, é que cabe analisar o recurso da elegia exortativa a termos da poesia épica na ocasião de performance inequívoca do simpósio aristocrático, e mais especificamente como isto se dá no poema em foco, o fragmento 1 de Calino.

A afirmação de uma identidade heróica

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 31 Irwin (2005, p.36) estabelece que a relação entre a poesia homérica e a elegia exortativa desempenha um papel importante no universo do simpósio aristocrático, na medida em que define essa aristocracia como uma elite heróica que se destaca do restante da polis.

Nesse sentido, é preciso considerar a estratificação social como um dos elementos característicos da exortação da poesia épica.

No conjunto de discursos exortativos que faz parte da Ilíada, raramente se vê um herói conclamando o lao/j10, mas somente outros heróis, que se igualam a ele como sendo

a)/ristoi, os melhores da sociedade, condição que se confirma e justifica por suas excepcionais habilidades marciais.

Um exemplo claro, e que pode ter relações diretas com o fragmento de Calino 11, é o discurso de Sárpedon no 12º canto da Ilíada (310-328). Dois movimentos se depreendem da exortação do herói a Glauco, que se encontram de certo modo representados no fragmento 1 de Calino:

a- ) a opulência material que estes dois guerreiros recebem de seu povo os obriga a participarem da luta nas primeiras linhas, mas por outro lado, representa também a sua própria posição de destaque como os melhores dentre os seus. Por serem os guerreiros mais habilidosos, recebem também honrarias que os distinguem dos demais:

“Glauco, por que razão nós dois somos os mais honrados(tetime/sesqa) 310 Com lugar de honra, carnes e taças repletas até cima

Na Lícia e todos nos miram como se fôssemos deuses?

Somos proprietários de um grande terreno nas margens do Xanto,

Belo terreno de pomares e de searas dadoras de trigo 315 Por isso é nossa obrigação colocarmo-nos entre os dianteiros

Dos Lícios para enfrentarmos a batalha flamejante (...)”

A glória arrogada por Sarpédon é definida em termos essencialmente materiais: Sua timh/ é representada por lugares de honra, taças e carnes que recebe, que trazem consigo o

10 Cf. Il. 12.269-71, onde Ájax exorta três segmentos distintos do exército:

“Amigos, entre os Argivos quem for melhor, mediano ou pior (visto que não podem ser todos os homens iguais na guerra), agora há trabalho para todos!”

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 32 signo da opulência e de certa maneira remetem ao ambiente do banquete, uma das formas mais freqüentes de se retratar o elevado status de um herói homérico.

Calino parece representar esta glória material no sexto verso do fragmento 1 (citação acima). Ao enunciar que lutar pela pátria é honroso (timh=e/n) e esplêndido (a)glao/n), o poeta define a batalha com dois adjetivos que em Homero são empregados freqüentemente para designar bens materiais desejáveis.12 Assim, Calino cria um efeito expressivo que vincula o combate diretamente a esses elementos, como se sintetizasse aquilo que já está expresso no discurso de Sarpédon: somente os bens materiais e o status advindo dele que justificam a inserção na guerra.

Segundo Irwin (2005, p. 48-50) a ocasião de performance é ainda determinante para a produção de significado dessa poesia. Enquanto na Ilíada Sarpédon enuncia explicitamente os privilégios que ele e Glauco recebem por sua condição de a)/ristoi, na elegia marcial estes se mantém implícitos, posto que o próprio contexto, o simpósio aristocrático, revela os privilégios dessa audiência.

No poema de Calino, esse movimento se faz perceptível nos primeiros versos (vv.01-04, acima). A referência implícita ao aristocrático ambiente simposial é a deixa para que o poeta dirija-se a seus interlocutores sob o prisma de uma atraente visão de mundo épica, comparando os neoi que tomam parte do simpósio aos heróis homéricos que recebem prêmios estritamente materiais por sua participação na guerra.

Isso leva a considerar, a fim de definir as características desse herói épico, outro movimento do discurso de Sarpédon:

b-)

Meu amigo, se tendo fugido desta guerra pudéssemos viver para sempre isentos de velhice e imortais, nem eu próprio combateria entre os dianteiros

nem te mandaria a ti para a refrega glorificadora de homens. 325 Mas agora, dado que presidem os incontáveis destinos

da morte (kh=rej) de que nenhum homem pode fugir ou escapar, avancemos, quer outorguemos a glória a outro, ou ele a nós

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 33 Sarpédon alude a possibilidade de se subtrair ao combate (vv. 322- 325), assim como Calino:

polla/ki dhi+oth=ta fugw\n kai\ dou=pon a)ko/ntwn e)/rxetai e)n d’ oi)/kwi moi=ra ki/xen qana/tou.

Muitas vezes aquele que escapa do combate e estrondo das flechas retorna, e em casa a Moira da morte o encontra.

É a inevitabilidade do destino que força os heróis ao prélio: Se na exortação de Sarpédon a morte surge personificada na forma de kh=rej (“destinos da morte” vv. 326-327), Calino refere-se à “Moira da morte” (moi=ra qana/tou) 13.

Nesse sentido, o guerreiro é valorizado sob dois aspectos: morto em combate, ele adquire renome: para Sarpédon, a morte nas mãos do inimigo “outorga a glória” (vv.328). Para os elegíacos marciais, o herói morto instaura-se na memória de uma comunidade14:

law=i ga\r su/mpanti po/qoj kratero/fronoj a)ndro\j qnh/skontoj, zw/wn d’ a)/cioj h(miqe/wn:

w(/sper ga/r min pu/rgon e)n ofqalmoi=sin o(rw=sin: 20 e)/rdei ga\r pollw\n a)/cia mou=noj e)w/n.

Pois toda a tropa tem saudade de um forte varão que morre, e vivente, é digno de semi-deuses.

Pois o vêem como uma torre diante de seus olhos, 20 Pois faz, sendo só, obras dignas de muitos.

Este herói que o poeta marcial exalta, tal qual na exortação dirigida a Glauco (vv.312), é visto como se fosse um deus (vv.20) por causa de sua força excepcional e valor militar15;

13 Tanto na poesia épica quanto na elegia marcial a inevitabilidade do destino é um dos principais argumentos para que o guerreiro se lance à luta. c.f o discurso de Heitor a Andrômaca em Il. 6. 487-9, e na elegia marcial: Tirteu, 11 W. 5- 6 (“ as negras Queres da morte”)

14 c.f. a argumentação desenvolvida por Tirteu em 12 w. 23-34.

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 34 para Sarpédon, o ato de combater na linha de frente é o que demonstra sua excelente força (vv.321-322):

“Ignominiosos não são nossos reis que governam

a Lícia, eles que comem as gordas ovelhas 320 e bebem o vinho selecto, doce como o mel; pois sua força também é excelente, visto que combatem entre os dianteiros dos Lícios”

No fragmento de Calino, por sua vez, este herói é louvado também por seus atos, que se equiparam aos de um grande guerreiro épico: sozinho ele é capaz de feitos dignos de muitos (vv.21).

Assim, a construção metódica, de um caráter heróico que se refere à poesia épica, pode sinalizar uma relação inextricável entre a elegia exortatória e a ocasião política em que ela foi produzida.

Ao passo que o herói da epopéia, melhor dentre os seus quer por sua ascendência nobre, quer por seu valor marcial, assinala uma posição específica em um grupo social, o poeta elegíaco, ao atribuir papel similar a seus interlocutores – o grupo de aristocratas no simpósio – define a identidade dessa aristocracia e a justifica diante de um grupo amplo e emergente no período arcaico: a polis.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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BOWIE, E, L. Early Greek elegy, symposium and public festival. JHS 106, 1985, p. 13-35.

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a)ll ), (Hraklh=oj ga\r a)nikh/tou ge/noj e)ste/, qarsei=t: (...)

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Anais XXIII SEC, Araraquara, p. 27-35, 2008 35 HOMERO. Ilíada. Tradução do grego e introdução de Frederico Lourenço. Lisboa: Cotovia.

2007.

LIDDELL-SCOTT, H.G. A Greek-English Lexicon. Oxford: Claredon Press, 1996.

SNELL, B. A descoberta do espírito. Tradução de Artur Mourão. Lisboa: Edições 70. 1992. WEST, M.L. Iambi et elegi graeci ante Alexandrum cantati. Oxford: Oxford University

Press, 1974. vol. 2

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