• Nenhum resultado encontrado

A crítica do solipsismo em L être et le néant

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A crítica do solipsismo em L être et le néant"

Copied!
9
0
0

Texto

(1)

This is an open access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution 4.0 International (CC

1 Universidade Federal de São Car-los. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. Jardim Guanabara, 13565905, São Carlos, SP – Brasil.

A crítica do solipsismo em

L’être et le néant

The critique of solipsism in L’être et le néant

Gustavo Fujiwara1

RESUMO

Este artigo pretende elucidar a crítica sartreana ao solipsismo presente em sua magnum opus L’être et le néant. Para o filósofo francês, a existência do outro é uma necessidade de fato que opera uma reestruturação do ser do para-si; entrementes, se queremos desvelar

o sentido ontológico desta reestruturação operada quando da existência concreta de ou-trem, é necessário que coloquemos a seguinte questão: o que é o outro; melhor, o que significa ser um para-si em detrimento de outro para-si? Como veremos, o exame ontofe-nomenológico do olhar irá desvelar o outro como aquele através do qual o para-si recebe a sua objetividade, isto é, seu ser-não-revelado.

Palavras-chave: ontologia, fenomenologia, solipsismo.

ABSTRACT

The aim of this article is to elucidate Sartre’s critique of solipsism present in his magnum opus L’être et le néant. To the French philosopher, the existence of the other is a de facto necessity that operates a restructuring of the being of for-itself; meanwhile, if we want to

re-veal the ontological meaning of this restructuring operated through the concrete existence of the other, we must ask the following question: what is the other; what does it mean to be a for-itself against another for-itself? As we shall see, the ontophenomenological exam-ination of the gaze will reveal the other as the one through wich the for-itself receives its objectivity, that is, its being-not-revealed.

(2)

I

Na longa e sinuosa história da filosofia, a quest ão do ou-tro detém certa importância porquanto envolva o famigerado problema do solipsismo, problema que poderíamos resumir da seguinte maneira: como fundamentar filosoficamente a existência do outro? Afinal, tal fundamentação parece ser re-querida para que os conceitos desse filósofo sejam revestidos de uma objetividade e, portanto, não orbitem apenas em tor-no de si mesmos. Sartre, em sua contenda contra o solilóquio do solipsismo, deverá, em L’être et le néant (1943), resgatar alguns filósofos com o intuito de indicar possíveis acertos e possíveis erros argumentativos que poderão servir para a sua própria visão sobre o tema: Descartes, Leibniz, Kant, Hegel, e, claro, Husserl e Heidegger são os privilegiados aqui2.

Gros-so modo, poder-se-ia afirmar que, do realismo ao idealismo, o problema do outro não é bem resolvido, posto ter sido mal enquadrado pela tradição filosófica. Para a primeira corrente, o outro seria uma substância pensante e possuiria a mesma es-sência que eu; sobremaneira, pelo fato de que o realismo con-cebe o conhecimento através de uma ação do mundo sobre a substância pensante, ele não se preocupou em est abelecer uma ação recíproca das substâncias pensantes entre elas e fez do mundo, portanto, o intermediário através do qual elas se comunicam entre si: “entre a consciência do outro e a minha consciência, meu corpo como coisa do mundo e o corpo do outro são os intermediários necessários” (Sartre, 2010, p. 261). Dessa posição teórica, o filósofo observa que o realismo ope-ra uma sepaope-ração total, qual seja: sepaope-ra a alma do outro da minha alma por uma distância que separa, de início, minha alma de meu corpo, depois meu corpo do corpo do outro e, fi-nalmente, o corpo do outro de sua própria alma. Diante de tal desmembramento, e pelo fato de que alma e corpo est ão sepa-rados um do outro, a relação de meu corpo ao corpo do outro é relação de pura exterioridade indiferente: assemelha-se à relação dos objetos entre si. Se alma e corpo est ão separados e se só apreendo o outro a partir de seu corpo, o realismo não é capaz de fornecer uma evidência acerca da realidade da alma do outro, pois ela não é senão uma substância que o corpo indica sem, por outro lado, entregá-la plenamente à intuição; “em uma palavra, em uma filosofia fundada na intuição, não há nenhuma intuição da alma do outro” (Sartre, 2010, p. 262). Se se indica que pelo menos o corpo do outro é dado a mim, isso não resolve de maneira alguma o problema do solipsismo, pois ele não est á integrado na totalidade-humana na medida em que, separado de sua alma, ele é apresentado como um objeto qualquer do mundo: daí a afirmação de que esse corpo dado pela intuição realista é um corpo e não o corpo do outro. Enquanto a existência do outro é certa, ainda que haja sepa-ração de alma e corpo, o realista acredita que, por hipótese, podemos visar esse corpo como pertencendo a um homem

que possuiria uma consciência análoga à minha: logo, enquan-to a realidade do mundo é exterior, a realidade do outro, por seu turno, não pertence senão a um conhecimento provável que tenho dele. Por esse expediente, o realismo, curiosamente, deságua em um idealismo: “se o corpo é um objeto real agindo realmente sobre a substância pensante, o outro se torna uma pura representação cujo esse é um simples percipi, isto é, cuja existência é medida pelo conhecimento que dele possuímos” (Sartre, 2010, p. 263).

Como não podemos confiar na explicação escusa do realismo, não poderíamos afirmar a existência plena do outro através das lentes idealistas? Se o outro é minha representa-ção, não seria melhor, como fazem os idealistas, interrogá-la no seio de um sistema que reduz os objetos a um agrupamen-to ligado de representações cuja existência é mensurada a par-tir de meu conhecimento? Mergulhando nas tramas teóricas do kantismo, Sartre se esforça em demonstrar que a quest ão do outro permanece ali uma hipótese a priori na medida em que a relação das consciências é por natureza impensável. Pelo fato de que a percepção do objeto-outro remete a um sistema de representações coerentes no qual esse sistema não é o meu (afinal, existem certas categorias de fenômenos que não parecem existir senão para o outro), o outro não pode ser concebido como um conceito constitutivo e tampouco re-gulador de meu conhecimento: “[...] o outro não é somente aquele que eu vejo, mas aquele que me vê. Viso o outro en-quanto ele é um sistema ligado de experiências fora de alcance no qual eu figuro como um objeto entre os objetos” (Sartre, 2010, p. 266). Dest e itinerário, o idealismo apresenta o ou-tro, em certo sentido, como uma negação radical de minha experiência na medida em que ele é aquele para quem eu sou um objeto. No entanto, enquanto sujeito do conhecimento, esforço-me para determinar o sujeito como objeto, mas est e sujeito, por seu turno, também nega minha caract erística de sujeito e apreende-me como objeto de seu conhecimento. Ainda que o idealismo o conceba como real, o fato de que não pode haver comunicação entre as consciências me leva a não poder conceber sua relação real comigo: enquanto objeto, ele não é dado à minha intuição; enquanto sujeito é, todavia, a título de objeto de meus pensamentos que eu o considero. Do quiproquó idealista, somente rest ariam duas alternativas possíveis: ou desvencilhar-se completamente do conceito de outro, provando que ele é inútil à constituição de minha ex-periência (solipsismo), ou, ao contrário, afirmar sua existên-cia real graças a uma comunicação real e extraempírica entre as consciências. Se a maioria dos pós-kantianos escolhem a segunda alternativa (segundo Sartre), o idealismo finda por deturpar-se em um realismo metafísico; forjando uma plurali-dade de sistemas fechados que não podem se comunicar en-tre si, os pós-kantianos rest abelecem, assumindo a existência real do outro, a noção de substância: se esses sistemas não são

2 Imediatamente podemos frisar o seguinte: se é verdade que o outro, para que seja outro, tenha de apresentar-se a mim como não

sendo eu, esta negação é tratada, principalmente por Hegel, Husserl e Heidegger, como negação externa, isto é, como um tipo de negação que pertence à ordem dos objetos e não à do para-si.

(3)

substanciais, enquanto sistemas de representações, o mesmo não poderá ser dito de sua exterioridade recíproca, que será exterioridade em si; pelo fato de que cada sistema de repre-sentação est á fechado sobre si mesmo, a apreensão do outro por mim é apenas da ordem do provável enquanto somente pode ser apreendida de fora. En passant, tanto realismo quan-to idealismo convergem entre si e não fornecem o outro senão como uma hipótese provável: o realismo, porque passa pelo corpo distinto do espírito, concebe o outro a partir de minhas representações (o realismo é um idealismo); já o idealismo, porque não concebe uma comunicação entre os sistemas re-presentativos, deságua em uma compreensão do outro como uma exterioridade em si (o idealismo é um realismo).

Ora, se não podemos guiar-nos nem por um caminho e nem por outro, ao menos detemos a compreensão da existên-cia do outro a partir de uma proposição fundamental, qual seja: o outro é o outro, isto é, o eu que não é eu, proposição pela qual depreendemos uma negação como estrutura cons-titutiva do ser-outro. E é exatamente o mau enquadramento dessa proposição que torna o idealismo e o realismo escusos, pois ambos fazem da negação uma negação de tipo externo: o outro não sou eu assim como a mesa não é o cinzeiro: en-quanto o realista crê apreender o outro através de seu corpo, ele estima que est eja separado do outro como um corpo est á separado de outro corpo; “o tipo de relação que une e separa esses dois corpos é a relação espacial como a relação das coi-sas que não possuem relação entre si, como a exterioridade pura na medida em que ela é dada” (Sartre, 2010, p. 269); já o idealista, por seu turno, reduz seu corpo e o corpo do ou-tro a sistemas objetivos de representação, ou seja, um sistema total de representações a partir do qual cada mônada est aria encerrada em si mesma e não poderia manter nenhum tipo de relação com o que ela não é. Enquanto o sujeito é, forço-samente, um sujeito do conhecimento, o idealismo o isola em um tipo de plenitude positiva que o separa do outro em ter-mos de separação espacial exterior; “assim, é ainda o espaço que separa implicitamente minha consciência da consciência do outro” (Sartre, 2010, p. 270). Doravante, à medida que o outro é revelado a mim em um mundo espacial, será sempre um espaço real ou ideal que me separará dele. Tal proposição equivocada gera, para Sartre, uma grave consequência: se mi-nha relação ao outro é construída a partir de uma exteriori-dade de indiferença, eu não poderia mais ser afetado, em meu ser, pelo surgimento do outro, assim como um em-si não é afetado pelo surgimento de outro em-si. Mantendo-me nest a única relação possível (exterioridade de indiferença), forçoso

será convir que o outro não poderá agir sobre meu ser a partir de seu ser, fato que faz com que ele não possa se revelar a mim, isto é, aparecer senão como objeto de meu conhecimento. Se se pode escapar ao funest o destino da solidão ontológica do homem iniciada pelo solipsismo, a única escapatória possível, tal como pensa o autor, seria a de tratar minha relação com o outro do ponto de vista de uma negação interna: “ou seja, como uma negação que põe a distância original do outro e de mim mesmo na medida exata em que ela me determina pelo outro e onde ela determina o outro por mim” (Sartre, 2010, p. 271). Se não podemos est abelecer relação possível entre eu e o outro do ponto de vista da negação de exterioridade3,

Husserl, Hegel e Heidegger não teriam triunfado sobre o problema do solipsismo tratando-o a partir de uma negação de interioridade?

O fenomenólogo alemão, tal como Sartre o compreen-de, pretende refutar o solipsismo4 ao indicar que o recurso ao

outro seria uma condição indisp ensável para a constituição do mundo: o mundo, tal como se revela à consciência, seria inter-monádico, pois o outro não est á presente ao mundo apenas como aparição concreta e empírica, mas também como uma condição permanente de sua riqueza e unidade: mesmo que eu considere em solidão est e X mundano qualquer, o outro sempre est á envolvido nest a percepção como uma camada de significações constitutivas que pertencem ao objeto mesmo que viso, logo, como um garantidor de sua objetividade. Por-tanto, na medida em que meu ego psicofísico é contemporâ-neo do mundo, o outro apareceria como condição necessária à sua constituição; esse meu ego é constituído na objetividade com os outros: “meu Ego empírico e o Ego empírico do outro aparecem ao mesmo tempo no mundo; e a significação geral ‘outro’ é necessária à constituição de cada um desses ‘Egos’” (Sartre, 2010, p. 272)5. Uma tal afirmação, como se pode

susp eitar, é contrária à posição kantiana segundo a qual cada objeto seria constituído por uma simples relação ao sujeito: ao contrário disso, ao est abelecer uma reciprocidade entre os egos, cada objeto aparecerá em minha experiência concreta revestido por um sistema de referências a uma pluralidade de consciências; em outras palavras, o outro aparece para mim através dos objetos que viso, isto é, como sua camada de sig-nificações constitutivas: “é à mesa, junto à parede, que o outro se revela a mim, como aquele a que se refere perpetuamen-te o objeto considerado” (Sartre, 2010, p. 272). Daí o grande avanço husserliano em relação aos filósofos da modernidade: é à luz do conceito de outro que a experiência será interpreta-da. Contudo, pelo fato de que a fenomenologia de Husserl, na

3 Reforcemos: “O realismo e o idealismo pensam, com efeito, a relação ao outro sob o modo de uma negação externa: o outro e eu

estamos separados por um nada que é exterior, à maneira de duas substâncias existindo uma fora da outra, dois corpos ou dois espíritos marcados pelo caráter da exterioridade, de modo que a negatividade não afeta seus seres respectivos. E nesta perspectiva exterior, a relação ao outro é uma relação de conhecimento e o acesso ao outro é impossível, pois, por definição, um para-si não pode adquirir conhecimento de um outro para-si” (Ong-Van-Cung, 2015, p. 121).

4 Sobretudo em Meditações cartesianas (1931).

5 No § 44, “Redução da experiência transcendental na esfera própria” da “Quinta Meditação”, Husserl (2011, p. 143) nota que “[...] o

outro remete a mim mesmo, o outro é um reflexo de mim mesmo e, no entanto, ele não é propriamente um reflexo: um analogon de mim mesmo, ele não é, contudo, um analogon no sentido habitual”.

(4)

verdade, é uma fenomenologia transcendental, observar-se-á que a quest ão do outro deve ser regulada a partir da esfera transcendental pura (primeira esfera) do ego transcendental; noutras palavras, trata-se de est abelecer minha relação ao ou-tro do ponto de vista dos sujeitos transcendentais: “[...] toda consciência daquilo que é exterior, todos os modos de sua apa-rição pertencem, todavia, à primeira esfera” (Husserl, 2011, p. 149); assentados os dois sujeitos transcendentais, o verdadeiro problema, portanto, é o da conexão entre esses sujeitos trans-cendentais para além da experiência. Ora, mas o que signifi-ca, na est eira argumentativa de Sartre, tratar o problema do outro na persp ectiva de uma fenomenologia transcendental (e, mais esp ecificadamente, do ego transcendental)? Redun-dâncias à parte, o descompasso teórico de Husserl é justamen-te o de prejustamen-tender resolver o solipsismo traçando sua possível resolução via est a fenomenologia transcendental/idealista pela qual um ego transcendental irrompe como polo último de sentido: ao colocar o problema das relações com o outro (e, no limite, de sua existência objetiva) do ponto de vista trans-cendental-egoico, notamos que se o sujeito transcendental “remete a outros sujeitos para a constituição do conjunto noe-mático, será fácil responder que remete a eles como remete a significações”, e, finalmente, “o outro seria aqui como uma cate-goria suplementar que permitiria constituir um mundo, e não um ser real existente para além desse mundo” (Sartre, 2010, p. 273). O outro, enquanto “categoria suplementar” para minha constituição do conjunto noemático, é reduzido a est a cate-goria e, fora dela, não podemos apreendê-lo enquanto outro, isto é, enquanto outro ego transcendental: cada sujeito trans-cendental, porque esfera normativa e constituidora da expe-riência, existe em uma interioridade total, e, se se almeja um conhecimento válido dest a interioridade, tal conhecimento somente pode ser tecido dentro dela, fato est e que interdita a possibilidade de que eu conheça o outro tal como ele é; dest a feita, o outro se revela à nossa experiência concreta como uma ausência. Indaga Sartre:

Mas, na filosofia de Husserl, como possuir uma intuição plena de uma ausência? O ou-tro é o objeto de intenções vazias, o ouou-tro se recusa por princípio e escapa; a única

rea-lidade que permanece é, portanto, aque-la de minha intenção: o outro é o noema vazio que corresponde à minha visada em direção ao outro, na medida em que apa-rece concretamente em minha experiência; é um conjunto de operações de unificação e de constituição de minha experiência pelo fato de que ele aparece como um conceito transcendental (Sartre, 2010, p. 273).

Em suma, Husserl reduz minha relação com o outro a uma relação de conhecimento: enquanto meu ser transcen-dental (e único verdadeiro) é uma mônada fechada sobre si mesma, eu somente posso conhecer o outro (enquanto outra mônada transcendental igualmente fechada sobre si) a partir de meu conhecimento, e, fora disso, o outro, em seu ser mesmo, permanece uma ausência que desconheço. Para Sartre, a única resolução possível ao solipsismo transcen-dental husserliano seria, de fato, provar que minha cons-ciência transcendental, em seu ser, pudesse ser afetada pela existência extramundana de outras consciências transcen-dentais6. Contudo, como cada consciência encontra-se

en-cerrada transcendentalmente em si mesma, a existência do outro não é senão um conhecimento provável. Mas se retro-cedemos no tempo lógico, haveria um filósofo, este tam-bém alemão, que poderia, talvez, fornecer-nos um feixe de luz contra a vasta escuridão solipsista: a filosofia hegelia-na7, ao indicar que dependo do outro em meu ser, acaso não

teria finalmente estabelecido, não um conhecimento pro-vável, mas uma relação necessária entre eu e o outro? Hegel não teria vencido esta contenda de uma vez por todas ao afirmar que um ser para-si não pode ser para-si senão pelo outro? Do pensador alemão contemporâneo ao pensador alemão moderno, parece que realizamos um verdadeiro progresso, pois “de início a negação que constitui o outro é direta, interna e recíproca; em seguida, ela é deixada de lado e leva cada consciência ao mais profundo de seu ser; o problema é posto no nível do ser íntimo” (Sartre, 2010, p. 276). Esse progresso, assentado aqui em uma “dialética in-temporal”, revela que é em meu ser essencial que dependo do ser essência do outro, na medida em que meu

ser-pa-6 Ora, mas não é justamente isso que o fenomenólogo alemão clama no § 56, “Constituição dos graus superiores da comunidade

inter-monádica”? Lemos: “Se cada mônada forma uma unidade absolutamente fechada, a irrupção real e intencional de outras mônadas no seio de minha primordialidade não é irreal no sentido do que seria visado em sonho, do que seria representado à maneira de um sim-ples fantasma. O que é existente entra em comunidade intencional com o que existe. É uma ligação por princípio única em seu gênero, uma comunidade efetiva, e precisamente aquele que torna transcendentalmente possível o ser do mundo, de um mundo de homens e de coisas. [...] A esta comunidade em concreção transcendental corresponde naturalmente uma comunidade monádica aberta que nós definimos como intersubjetividade transcendental. Ela é, ainda que seja desnecessário dizer, constituída por mim e exclusivamente em mim, o ego meditando, unicamente a partir de minha intencionalidade, mas de tal maneira que ela seja constituída na modificação dos outros, com simplesmente um outro modo de aparição subjetiva, e que ela seja constituída de tal modo que comporte necessariamen-te o mesmo mundo objetivo” (Husserl, 2011, p. 179-80). Muito provavelmennecessariamen-te, e isso diremos a título de hipónecessariamen-tese que mereceria ser averiguada com mais paciência, Sartre não pode aceitar que a legitimação última do mundo empírico seja, forçosamente, constituída pela esfera normativa transcendental que representa o ego transcendental. Nesse sentido, o conhecimento do outro e qualquer relação possível ao outro, antes de ser atestado pela experiência empírica (objetiva), é afirmado pela experiência transcendental (subjetiva). Noutras palavras, Sartre não pode aceitar que o conhecimento que detenho do outro seja validado, em toda sua amplitude, unicamente pela subjetividade transcendental.

(5)

ra-outro é condição sine qua non de meu ser-para-mim. A solução hegeliana seria perfeita não fosse a famigerada cis-ma filosófica em colocar essa relação tão ínticis-ma, interna e recíproca do ponto de vista do conhecimento: se há um Eu para o qual o outro é objeto, é porque há um outro para o qual o Eu é objeto; “é ainda o conhecimento que é aqui me-dida do ser e Hegel nem mesmo concebe que possa haver aí um ser-para-outro que não seja finalmente redutível a um ‘ser-objeto’” (Sartre, 2010, p. 277). Ainda que Hegel tenha tido o cuidado de me fazer dependente do outro em meu ser, haveria um “otimismo epistemológico” emaranhando ontologia e epistemologia: antes de ser consciência (de) si, a consciência de Hegel é uma certeza de si que necessita de uma outra consciência que, valendo-se do conhecimento, torne esta verdade objetiva; logo, tal otimismo epistemoló-gico esconde, também, um otimismo ontolóepistemoló-gico pelo fato de que me reconheço como verdade (certeza de si) a partir do reconhecimento objetivo dessa verdade pelo outro. Se a consciência é primeiramente uma relação vivida de si a si e não um conhecimento de si, será forçoso admitir que esta consciência (consciência (de) si) será rigorosamente irredutível ao conhecimento e não poderá transcender seu ser em direção a uma relação recíproca e universal onde ela poderia ver seu ser e o ser do outro como equivalentes; ao contrário disso, para nosso autor, é necessário que a cons-ciência se estabeleça em seu ser e coloque o problema do outro a partir de seu ser, e já sabemos o que isso significará: como bom francês que é, o filósofo vislumbra que a questão do solipsismo somente poderá ser solucionada se partir-mos da interioridade do cogito, pois “cada um deve poder, partindo de sua própria interioridade, reencontrar o ser do outro como uma transcendência que condiciona o ser mesmo desta interioridade, o que implica necessariamente que a multiplicidade das consciências é por princípio indis-pensável” (Sartre, 2010, p. 282). Finalmente, um adequado ponto de partida na contenda contra o solipsismo é alcan-çado neste momento: minha relação ao outro, antes de ser uma relação de conhecimento a conhecimento, é relação de ser a ser. Destarte, Husserl equivoca-se na questão quando trata o ser pelo conhecimento, e Hegel, em contrapartida, opera um descompasso teórico a partir do momento em que identifica conhecimento e ser. Se tanto um como o ou-tro não são felizes em suas abordagens conceituais do

pro-blema em tela, seria Heidegger, então, o filósofo que teria dissolvido nossa solidão existencial?

A obra Ser e Tempo (1927) poderia ser considerada como um passo suplementar na elucidação acerca das relações en-tre os sujeitos, pois est abelece que a relação das realidade-hu-manas é relação de ser a ser, observação que desemboca na dependência dessas realidade-humanas entre si: como todo bom filósofo alemão, Heidegger resolve o problema (secular) sem muitos “rodeios” a partir de uma simples definição: des-cobrindo vários momentos intrínsecos no ser-no-mundo que caract eriza a realidade-humana (mundo, ser-no e ser), ele des-creve o mundo como isso através do qual a realidade-humana anuncia a si mesma o que ela é, o ser-no como “Befindlichkeit” e “Verstand”8 e o ser como o modo pelo qual a realidade-humana

é seu-ser-no-mundo, logo, como Mitsein (ser-com); em suma, “a caract erística de ser da realidade-humana é que ela é seu ser com os outros. [...] Mas essa estrutura não é est abelecida de fora e por um ponto de vista totalitário como em Hegel [...]” (Sartre, 2010, p. 283-284). Mesmo que Heidegger não passe pelo cogito, a realidade-humana que a ele se desvela é a sua própria realidade-humana e é pela explicitação pré-onto-lógica que tenho de mim que chegarei a apreender o ser-com--o-outro enquanto uma caract erística essencial de mim mes-mo; doravante, assim como descubro que meu ser-no-mundo baliza minha realidade-humana, descubro que minha relação de transcendência ao outro constitui meu ser próprio. Escru-tinando meu ser enquanto ele me lança para fora de mim em direção a estruturas que me escapam ao mesmo tempo que me definem, desvelo originalmente o outro. Se para Husserl e Hegel o tipo de relação entre as consciências era da ordem do ser-para9, em Heidegger essa relação é expressa sob a forma

do Mitsein (ser-com), que “possui uma significação totalmente diferente; o com não designa a relação recíproca de reconheci-mento e de luta que resultaria da aparição no meio do mundo de uma realidade-humana outra que a minha”, mas, bem ao contrário, “ele exprime sobretudo um tipo de solidarieda-de ontológica para a exploração do mundo” (Sartre, 2010, p. 284)10. Nest a toada, antes de ser um objeto, o outro, em sua

ligação a mim, é uma realidade-humana, um ser-no-mundo que me determina em meu ser; daí a imagem sartreana da equipe11 para designar o sentido dessa relação heideggeriana,

pois antes de ser uma relação entre eu e você, ela institui o nós, não do ponto de vista do conhecimento, mas, sim, do ponto

8 “Situação afetiva” e “compreensão”.

9 Sobre o ser-para, lemos: “o outro me aparecia a mim e mesmo constituía-me enquanto ele era para mim ou enquanto eu era para ele;

o problema era o reconhecimento mútuo de consciências colocadas umas face às outras” (Sartre, 2010, p. 284).

10 Lemos em Ser e Tempo (1993, § 26, p. 169-170): “Os outros, ao contrário, são aqueles que, na maior parte das vezes, ninguém se

diferencia propriamente, entre os quais também se está. [...] Na base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo do Dasein é mundo compartilhado”.

11 Esta definição por parte de Sartre, tal como indica Cabestan (2004, p. 341), seria um dos tantos equívocos que muitos comentadores

localizam na leitura sartreana de Heidegger: “Assim, quando Sartre afirma, a propósito do outro, que ‘a imagem empírica que melhor simbolizaria a intuição heideggeriana não é a da luta, mas a da equipe’, J. Launay indigna-se e denuncia o amálgama por Sartre do Mitsein de Heidegger à equipe alemã dos jogos de 1936!”. Tratando a questão com mais seriedade, o fato é que muitos leitores fiéis de Heidegger não encontram em Sartre uma leitura, digamos, ortodoxa de seu pensamento. Sartre pinça alguns conceitos heideggerianos e os molda com o intuito de fazer com que eles sirvam a seus próprios interesses filosóficos particulares.

(6)

de vista da existência comum: parece que, dessa vez, temos o que exigimos, isto é, um ser que implica o ser do outro em seu ser. Saberíamos, todavia, dar-nos por satisfeitos diante da letra heideggeriana? A resposta, como o leitor poderá sus-peitar, é negativa, pois é precisamente essa coexistência que Heidegger deveria explicar, e não o faz: por que ela é o fun-damento único de nosso ser, por que o filósofo alemão creu poder passar dessa constatação empírica do ser-com à posição da coexistência como estrutura ontológica e essencial de meu ser-no-mundo? Se o ser-com é uma estrutura ontológica da realidade-humana, tudo indica que Heidegger tenha parti-do de um ponto de vista ontológico tal como Kant parte parti-do sujeito abstrato; logo, “a coexistência ontológica que aparece como estrutura de meu ‘ser-no-mundo’ não pode de nenhu-ma nenhu-maneira servir como fundamento a um ser-com ôntico” (Sartre, 2010, p. 286). Esclareçamos a objeção sartreana: o que Heidegger parece não explicar é como meu ser-com-o-outro (por exemplo, meu ser-com-Pierre, meu ser-com-Any, etc...) é, igualmente, uma estrutura constitutiva de meu ser-concre-to; tal objeção encontra sua razão de ser a partir do momento em que Heidegger, como dissemos, passa abruptamente da constatação empírica do ser-com à posição da coexistência como estrutura ontológica do ser-no-mundo12. Assim, o que

Sartre exige de Heidegger é uma passagem do plano ontoló-gico ao plano concreto pelo qual o outro seria dado concreta-mente e não apenas abstrataconcreta-mente: permanecendo apenas no plano ontológico, o outro “não poderia mais ser determinado concretamente, tal como ocorre com a realidade-humana en-carada diretamente e da qual é o alter ego: é um termo abstrato e, por isso, unselbständig, que não tem em si, de forma alguma, o poder de converter-se nest e outro” (Sartre, 2010, p. 287). Abstrata porque somente ontológica, minha relação concreta e ôntica com encontra-se aqui impossibilitada e, por est a feita, o Mitsein heideggeriano não poderia servir-nos para a resolu-ção do problema concreto de minhas relações com o outro. Não havendo um escopo concreto, o movimento de trans-cendência, como estrutura a priori do ser, faz com que a rea-lidade-humana saia de si mesma para, no final, encontrar-se consigo mesma. Sobremaneira, nas lentes sartreanas, “[...] a necessidade da existência do outro deve ser, se ela existe, uma ‘necessidade contingente’, isto é, do tipo mesmo da necessidade de fato com a qual se impõe o cogito” (Sartre, 2010, p. 289).

Ora, para que o outro seja dado, será necessária uma apreensão direta que conservará, no meu encontro com o outro, um caráter de fact icidade e que, ao mesmo tempo, manterá a apoditicidade, a indubitabilidade do cogito; noutras

palavras, trata-se de pensar a existência do outro não do pon-to de vista de uma mera probabilidade, mas, seguramente, en-quanto uma realidade factual e apodítica13. De Husserl a Hegel,

passando por Heidegger, o exame da existência do outro finda por desaguar em quatro princípios sartreanos que deverão ser levados em consideração se quisermos sair do terreno do provável (terreno por excelência solipsista), quais sejam: I) é preciso partir do cogito14 e, nesse terreno arado pela

necessida-de necessida-de fato, necessida-descartar a existência do outro como meramente provável; logo, tratar-se-á de descobrir o outro por sua pre-sença concreta e indubitável: é preciso que eu encontre em mim, antes de razões que fariam acreditar na existência do outro, o outro ele mesmo como não sendo eu; II) para que a existência do outro seja trespassada pela necessidade de fato, faz-se necessário produzir um cogito que me lance para fora de mim em direção ao outro, e isso, “não me revelando uma estrutura a priori de mim mesmo que apontaria em direção a um outro igualmente a priori, mas me descobrindo a presença concreta e indubitável de tal ou tal outro concreto” (Sartre, 2010, p. 290); da imanência absoluta devemos ser lançados à transcendência absoluta; III) o que o cogito deve revelar-nos não é um objeto-outro, pois quem diz objeto, diz provável. Logo, o outro não será aqui nem uma representação, nem um sistema de representações e muito menos uma unidade neces-sária de nossas representações, pois o outro é para mim, ele “in-teressa” ao meu ser, não contribuindo a priori à sua constitui-ção, mas ôntica e concretamente nas circunstâncias empíricas de nossa fact icidade; IV) o outro deve aparecer ao cogito, não como outro-objeto, mas como não sendo eu, logo, como uma consciência que difere de mim. Na medida em que o outro não é eu, há aqui uma negação interna que significa “ligação sintética e atividade de dois termos no qual cada um se cons-titui negando-se do outro. Esta relação negativa será, portan-to, recíproca e de dupla interioridade” (Sartre, 2010, p. 291). Enfim, possuindo est es quatro pilares conceituais, poderemos abordar a quest ão do outro e instituir, concreta e indubitavel-mente, sua existência e o tipo de relação que pode haver entre as consciências.

II

Se a existência do outro deve passar pela indubitabilidade da necessidade de fato, a experiência da vergonha apresenta-se ao filósofo como um primeiro passo em direção à demonstra-ção dest a necessidade: se me encontro sozinho em um corre-dor e meto-me a espiar alguém através do buraco da fechadura, est ou sozinho e no plano da consciência pré-reflexiva de mim.

12 “[...] como poderíamos passar disso à experiência concreta do outro no mundo, como quando eu vejo de minha janela um transeunte

caminhando na rua?” (Sartre, 2010, p. 286).

13 Ademais, é por isso que realismo e idealismo fracassam, pois ambos pensam a existência do outro do ponto de vista da

probabilida-de. Veremos os motivos que levam Sartre a considerar a questão do outro do ponto de vista da necessidade de fato.

14 Sabemos que o cogito sartreano, ao contrário do cogito de Descartes, que é reflexivo, é um para-si detentor de uma consciência

pré-reflexiva, o avesso de uma substância. Logo, é do interior dessa consciência (de) si que deveremos abordar o tema da existência do outro; lemos: “se a existência do outro não é uma vã conjectura, um puro romance, é porque existe alguma coisa como um cogito que lhe concerne” (Sartre, 2010, p. 290).

(7)

Enquanto consciência (de) mim, não me reporto a meus atos para, em seguida, qualificá-los; nest e plano originário sou pura e simplesmente uma consciência não teticamente consciente de mim mesmo e de meus atos, sou meus atos, o que significa que não os conheço, pois o conhecer supõe, tal como vimos, uma conversão da consciência à reflexão. Consciência de primeiro grau, a porta e a fechadura são apreendidas por mim como ins-trumentos e obstáculos os quais apreendo (irrefletidamente) como devendo ser manejados com cuidado de modo que eu possa enxergar da melhor maneira possível através da fechadu-ra. Nest e plano consciente, “nenhuma vista transcendente vem conferir aos meus atos um caráter de dado sob o qual possa se exercer um julgamento: minha consciência adere a meus atos; ela é meus atos; eles são somente comandados pelos fins a serem alcançados e pelos instrumentos a serem empregados” (Sartre, 2010, p. 298). Na medida em que meu fim (olhar-da-melhor--maneira-possível-através-da-fechadura) ilumina e organiza os meios (virar um pouco a cabeça para a direita, inclinar-me mais, etc.), o conjunto fim-meio somente pode existir em re-lação a um livre projeto de minhas possibilidades15: “é

precisa-mente o ciúme, como possibilidade que sou, que organiza esse complexo de utensilidade, transcendendo-o rumo a si mesmo” (Sartre, 2010, p. 299); noutras palavras, no plano irrefletido da ação eu sou uma consciência livre, pois significo minha situação. Mas, de repente, eis que escuto passos no corredor: alguém me olha; isso significa, ontologicamente, que repentinamente sou atingido em meu ser e que modificações essenciais aparecem em minhas estruturas; sou tomado por uma vergonha que realiza uma relação íntima de mim mesmo comigo mesmo e, através disso, descubro um asp ecto de meu ser. Pela vergonha diante do outro, reconheço que sou como o outro me vê, pois a vergonha é sempre vergonha diante de alguém: o outro é o me-diador indisp ensável entre mim e mim mesmo, pois somente posso ter vergonha de mim tal como apareço ao outro. Aqui, aliás, importante frisar que não se trata de uma comparação do que eu sou para mim com o que eu sou para o outro, pois “a vergonha é um frisson imediato que me percorre da cabeça aos pés sem nenhuma preparação discursiva”, ou seja, “não posso colocar em relação o que eu sou na intimidade sem distância,

sem recuo, sem persp ectiva do para-si com est e ser injustificável e em-si que eu sou para o outro” (Sartre, 2010, p. 260). Nest a toada, o outro não apenas revela um asp ecto de meu ser a mim mesmo, mas finda por constituir-me sobre um tipo de ser novo que deve amparar novas qualificações; se sou pego em flagrante espionando pelo buraco da fechadura, descubro esse asp ecto de meu ser que foi constituído pelo outro e do qual devo suportar as qualificações: sou vulgar, sou baixo, sou voyeur, etc. Toda-via, est e ser que aparece pelo outro não reside no outro: eu sou o responsável por ele, ou seja, ainda que a significação de meu ato não apareça a mim senão por intermédio do outro, isso não significa que ela resida no outro. Estas modificações essenciais que o olhar16 do outro inflige a mim são modificações que posso

fixar conceitualmente pelo cogito reflexivo: na solidão de minha consciência irrefletida, a consciência não era habitada por um eu, mas, a partir do momento em que sou visto pelo outro, o eu aparece e infest a minha consciência irrefletida:

Ora, a consciência irrefletida é consciência do mundo. O eu (moi) existe então para ela sobre o plano dos objetos do mundo; esse papel não era incumbido senão à cons-ciência reflexiva: a presentificação (présen-tification) do eu, neste momento, perten-ce à consciência irrefletida. No entanto, a consciência reflexiva possui diretamente o eu por objeto. A consciência irrefletida não apreende a pessoa diretamente como seu objeto: a pessoa é presente à consciência enquanto ela é objeto para o outro (Sar-tre, 2010, p. 300).

À medida que sou olhado por outrem, tenho uma cons-ciência de mim mesmo enquanto eu me escapo, enquanto sou meu fundamento fora de mim; eu não sou para mim senão como uma pura remissão ao outro: est e eu, enquanto aparece à minha consciência irrefletida a partir do olhar do outro, sou eu enquanto ele não é para mim, pois existe em princípio para o outro. Pego pelo olhar do outro17, tenho consciência de mim

como objeto para o outro em vez de ter consciência de mim como objeto para mim. A vergonha sinaliza, portanto, um

15 O livre projeto, para Sartre, é o elã “pelo qual (o para-si) se lança rumo a seu fim” (Sartre, 2010, p. 602).

16 “[...] a cada instante o outro me olha; é-nos fácil então tentar, a partir de exemplos concretos, a descrição desta ligação fundamental

que deve figurar na base de toda teoria do outro; se o outro é, por princípio, aquele que me olha, nós devemos poder explicitar o sentido do olhar do outro” (Sartre, 2010, p. 296-297).

17 É importantíssimo, aqui, salientar o seguinte: a aparição do olhar não está, de forma alguma, ligada única e exclusivamente à presença

dos olhos (do corpo), pois “[...] o ser-olhado, revelado em toda a sua pureza, não está ligado ao corpo do outro, assim como minha cons-ciência de ser conscons-ciência, na pura realização do cogito, não está ligada a meu próprio corpo”; disso, “é preciso considerar a aparição de certos objetos no campo de minha experiência, em particular a convergência dos olhos do outro em minha direção, como uma pura advertência, como a ocasião pura de realizar meu ser-olhado [...]”. Portanto, “não são jamais os olhos que nos olham: é o outro como sujeito” (Sartre, 2010, p. 316). Certamente, diz Sartre, todo olhar dirigido sobre mim está em ligação com a aparição de uma forma sensível, mas isso não significa que esta forma seja necessariamente uma forma corporal determinada: ainda que frequentemente o olhar esteja ligado à convergência de dois glóbulos oculares em direção a mim, a experiência do ser-visto não é restrita aos olhos na medida em que o olhar pode ser dado, por exemplo, na ocasião de ruídos que julgo serem de alguém que me espreita e que não posso ver. Nesse sentido, ao dissociar o olhar da forma determinada do corpo humano, o filósofo “distingue os olhos do olhar, fazendo dos olhos não os órgãos sensíveis do olhar, mas o suporte do olhar [...]. O corpo do outro, ao menos seus olhos, são obliterados pelo olhar, pois os olhos-objetos estão a uma certa distância de mim, distância que posso mensurar e, ao mesmo tempo, a presença imediata de outrem é sem distância; seu olhar sobre mim é sem distância” (Ong-Van-Cung, 2015, p. 125).

(8)

reconhecimento de que eu sou est e objeto que outrem olha e, ao mesmo tempo, julga; é através do olhar de outrem que sou remetido de mim a mim mesmo, meu eu se revela a mim pela experiência do outro, e esse eu que sou, eu o sou em um mundo onde o outro me aliena, “pois o olhar do outro envolve meu ser e correlativamente as paredes, a porta, a fechadura; todas as coisas-utensílios, no meio das quais eu sou, voltam-se ao outro com uma face que me escapa por princípio” (Sartre, 2010, p. 300). Nest e sentido, o olhar do outro, além de revelar o que sou para mim, indica sua presença entre os objetos de meu universo e faz com que est e universo seja desintegrado; seu aparecer é a prova de minha descentralização: a repenti-na aparição do outro inicia um escoamento de meu universo que, escapando a mim, vem servir de arredores a um outro centro que eu não sou; “a aparição do outro no mundo corres-ponde, portanto, a um deslizar coagulado de todo universo, a uma descentralização do mundo que mina por baixo a cen-tralização que eu opero ao mesmo tempo” (Sartre, 2010, p. 295). Nesse meu universo descentralizado e descobrindo-me pelo olhar do outro, a vergonha é uma confissão, ou seja, é por ela que apreendo irrefletidamente que sou est e ser envergo-nhado que espionava através da fechadura da porta, e est e ser que eu sou conserva certa indeterminação e certa imprevisi-bilidade, pois vem do fato de que o outro é livre: a liberdade de outrem revelou-me através da indeterminação do ser que eu sou para ele; e est e ser não é meu possível, mas expressa o limite de minha liberdade, pois trata-se de meu ser tal como ele se inscreve em e pela liberdade do outro: a consciência de ser olhado, o ser visto, expressa “uma dimensão de meu ser da qual eu est ava separado por um nada radical, e esse nada é a liberdade do outro; o outro tem de fazer meu ser-para-ele na medida em que ele tem de ser seu ser” (Sartre, 2010, p. 301). A descrição do ser visto é fundamental para que o filósofo evite – tal como o idealismo e o realismo – que a objetivação do ou-tro seja primordial: o olhar do ouou-tro sobre mim manifest ará minha objetivação18, pois ser apreendido pelo olhar do outro

é, imediatamente, não poder me apreender tal como est e ou-tro me vê: o que o ouou-tro vê de mim escapa-me e constitui o polo concreto em direção ao qual minha consciência também me escapa; em detrimento do outro, sou despojado de minha transcendência; ao olhar-me, o outro se determina como não sendo minha transcendência, fazendo com que ela se torne uma transcendência puramente constatada (transcendên-cia-dada), ou seja, ela adquire uma natureza pelo fato de que o outro confere a essa transcendência um lado de fora; assim, pelo olhar de outrem, minha transcendência é transcendência transcendida. O filósofo novamente:

Se há um outro, qualquer que seja, não importa onde estiver, quaisquer que sejam suas relações comigo, ainda que aja sobre

mim somente pelo puro surgimento de seu ser, eu tenho um lado de fora, uma natu-reza [...]. Não que, propriamente dito, eu sinta perder minha liberdade para conver-ter-me em coisa, mas minha natureza está aí, fora de minha liberdade vivida, como atributo dado deste ser que sou para o ou-tro. Apreendo o olhar do outro no próprio cerne de meu ato, como solidificação e alie-nação de minhas próprias possibilidades. Com efeito, essas possibilidades que sou e que constituem a condição de minha trans-cendência, sinto-as, seja pelo medo ou pela espera ansiosa ou prudente, como dadas a um outro, em outra parte, para serem trans-cendidas, por sua vez, pelas próprias possi-bilidades dele (Sartre, 2010, p. 302).

Se não sinto perder minha liberdade para tornar-me uma coisa qualquer, é preciso um pouco mais de parcimônia quando da restituição das relações entre os sujeitos: é óbvio que não se trata aqui de pensar as relações para-si/para-outro como um “living life in peace”, pois, tal como indicado pelo ex-certo acima, o outro institui minha transcendência como um fora e, a partir de seu olhar, meus possíveis – que até então di-ziam resp eito a um mundo dado somente para mim – me são alienados (embora não deixem de serem meus possíveis sob o modo da consciência irrefletida) pelo fato de que o outro pode apreendê-los para se servir deles. Ora, se o canto escuro do corredor desvelava-se à minha consciência como uma pos-sibilidade de me esconder em sua escuridão enquanto quali-dade do objeto que só pertencia a ele e mostrava-se como pro-priedade ideal e objetiva, com o olhar-presença do outro uma nova organização dos complexos utensílios vem se sobrepor à minha: a possibilidade que tenho de me esconder nesse canto escuro é a possibilidade que o outro tem de poder iluminá-lo com sua lanterna e surpreender-me; “minha relação com o objeto, ou potencialidade do objeto, decompõe-se sob o olhar do outro e me aparece no mundo como minha possibilidade de utilizar o objeto, na medida em que tal possibilidade me es-capa por princípio”, ou seja, “na medida em que é transcendida pelo outro rumo às possibilidades dele” (Sartre, 2010, p. 303). Finalmente, diremos que o olhar do outro sobre mim faz com que minha situação me escape ao fazer com que eu deixe de ser a única consciência significante dos objetos-utensílios; em suma, a aparição do outro faz aparecer na situação um asp ec-to que me escapa por princípio.

Conclusão

Doravante, pelo olhar do outro vivo a mim mesmo como coagulado no mundo, pois ser olhado significa, forçosamente,

18 O “[...] modo de doação do outro não é aquele da objetividade. Que eu apreenda o olhar do outro exclui que eu o apreenda como

objeto” (Uçan, 2015, p. 106). Dirá o próprio Sartre (2010, p. 307): “De nenhuma maneira o outro é-nos dado como objeto. A objetivação do outro seria o desmoronamento de seu ser-olhar”.

(9)

apreender-me como um objeto desconhecido de apreciações incognoscíveis que eu tenho de ser, daí que ele seja a condi-ção de meu ser-não-revelado (minha objetividade não revela-da, meu ser-objeto que é meu ser-para-outro): “o outro é de início para mim o ser para quem eu sou objeto, ou seja, o ser pelo qual eu ganho minha objetividade” (Sartre, 2010, p. 309). Assim, ao provar-me como olhado (como ser olhado), realizo para mim uma presença transmundana (transmondaine) do outro: outrem me olha enquanto uma transcendência que transcende minha transcendência em direção a seus possíveis próprios, o que significa que a relação que me une a ele não é externa, mas interna; o outro, enquanto livre transcendência, aparece a mim como uma transcendência que não é a minha, provo-o como uma infinita liberdade, pois é somente através de uma outra liberdade que meus possíveis podem ser limi-tados. Porquanto o outro revela meu ser-não-revelado, isto é, meu ser-fora, meu ser-para-outro, notamos que a necessidade de fato da existência do outro advém precisamente na medi-da em que é por ele (sua consciência) que minha consciência se faz ser o que ela é: “a vergonha é revelação do outro, não à maneira na qual uma consciência revela um objeto, mas à maneira na qual um momento da consciência implica late-ralmente um outro momento como sua motivação” (Sartre, 2010, p. 312). Se o outro é aquele por quem ganho minha objetividade, é preciso explicitar, por outro lado, que não sou objeto para mim, mas objeto para ele, pois esse eu-objeto que sou para outrem eu não sou para mim, justamente pelo fato de que sou uma consciência para a qual esse objeto não é mi-nha consciência: o eu-objeto-para-mim é um eu que não sou eu. Para Sartre, o eu-objeto não é uma simples unificação de minhas representações subjetivas, nem um eu que sou e tam-pouco uma imagem que o outro faz de mim e cuja responsa-bilidade seria dele: ainda que est e eu seja incomparável ao eu que tenho de ser, ele ainda é eu, ou seja, é um ser, “meu ser, mas

com dimensões de ser e modalidades inteiramente novas, sou eu separado de mim por um nada intransponível, pois eu sou esse eu, mas eu não sou esse nada que me separa de mim” (Sar-tre, 2010, p. 314) Logo, através dessa citação, constatamos que o ser-para-outro representa uma queda na objetividade, logo, o outro é sempre aquele através do qual eu me torno objeto (objeto para ele e nunca para mim mesmo, pois ainda conti-nuo sendo uma consciência). Desse breve exame ontofeno-menológico do olhar, desvelamos a indubitabilidade do outro, sua necessidade de fato enquanto ser através do qual ganho minha objetividade – meu ser-fora, meu ser-para-outro.

Referências

CABESTAN, P. 2004. L’être et la conscience: Recherches sur

la psychologie et l’ontophénoménologie sartriennes. Paris,

Éditions OUSIA, 424 p.

HEIDEGGER, M. 1993. Ser e Tempo. Volumes 1 e 2. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. Petrópolis, Editora Vozes, 600 p. HUSSERL, E. 2011. Méditations cartésiennes et les

Conféren-ces de Paris. Paris, PUF, 256 p.

ONG-VAN-CUNG, K. S. 2015. Le corps et l’expérience d’au-trui: Un aspect du problème de la négation dans L’être et

le néant. In: J.-M. MOUILLE; J.-P. NARBOUX (orgs.), Sartre. L’être et le néant: Nouvelles Lectures. Paris, Les Belles

Let-tres, p. 115-136.

SARTRE, J.-P. 2010. L’être et le néant – Essai d’ontologie

phé-noménologique. Paris, Éditions Gallimard, 848 p.

UÇAN, T. 2015. Le problème du solipsisme dans L’être et le

néant. In: J.-M. MOUILLE; J.-P. NARBOUX (orgs.), Sartre. L’être et le néant: Nouvelles Lectures. Paris, Les Belles

Let-tres, p. 93-114.

Submetido em 6 de julho de 2018. Aceito em 19 de dezembro de 2018.

Referências

Documentos relacionados

5 “A Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo – do Direito positivo em geral, não de uma ordem jurídica especial” (KELSEN, Teoria pura do direito, p..

13 de Fevereiro; (ii) ou a entidades residentes em território português sujeitas a um regime especial de tributação. Não são igualmente dedutíveis para efeitos de

Nesse  passo,  mesmo  que  a  decisão  combatida  tenha  se  subsumido  na 

6.1.5 Qualquer alteração efetuada pelo fabricante em reator cujo protótipo já tenha sido aprovado pela Prefeitura/CEIP deverá ser informada, com antecedência, pelo

É, precisamente, neste âmbito que se apresentam quatro áreas que, dada a sua forte vertente estratégica, poderão influenciar significativamente as organizações, a

No primeiro livro, o público infantojuvenil é rapidamente cativado pela história de um jovem brux- inho que teve seus pais terrivelmente executados pelo personagem antagonista,

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença

para o processo de investigação, uma vez que é com base nos diários de campo.. que os investigadores conseguem analisar e refletir sobre os dados recolhidos, permitindo