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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

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Academic year: 2021

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Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado em Ciências Sociais Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção de título de mestre em Ciências Sociais.

Linha de Pesquisa: Cultura Urbana e Modos de Vida

Orientador: Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho

Belo Horizonte 2007

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Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.

Belo Horizonte, 26 de março de 2007.

Prof. Dr. Tarcísio Rodrigues Botelho Orientador – PUC Minas

Prof. Dr. Carlos Magno Guimarães UFMG

Profa. Dra. Luciana Teixeira de Andrade PUC Minas

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As pessoas exercem influências variadas sobre nós, sobre nosso trabalho. Algumas tão sutis que sequer são percebidas, mas nem por isso, menos importantes. Inicio estes agradecimentos por aqueles que não constam aqui, aqueles a quem ou a memória esqueceu ou não foram mencionados nessas poucas linhas, mas que encontram-se impressos em mim porque também são responsáveis por aquilo que sou. Aos que encontrei e pude compartilhar um tempo, um espaço na minha vida, parentes, amigos, colegas, do passado e do presente. Aos ausentes da memória, mas presentes em mim.

Acredito em muitas formas de existência humana e a linhagem é uma delas. Minha mãe ainda existe, porque existe em mim e porque percebo seus traços em minhas filhas. Assim, os homens estão ligados por fios que transformam individualidades em caminhos coletivos. Obrigado, minha mãe, pela existência.

A continuidade da vida propicia que o passado seja revisitado com vistas à construção de um presente melhor, a partir das experiências vividas e da renovação dos sentimentos. A meu pai, pelo exemplo, pela vida, pelo silêncio, mas, sobretudo, pela vivência da renovação do amor.

Aos meus irmãos, agradeço pelos ensinamentos que me disponibilizaram com suas próprias vidas. Cada passo da trajetória de vocês constituiu-se, também, num passo do meu próprio caminho. Hoje, seguimos juntos, unidos pelo amor.

À D. Ângela, Cocódia, Guto e Me, por terem me acolhido e se tornado minha família. Pelo amor que circula, para que ele cresça sempre e nos faça sempre melhores.

Aos professores e equipe da PUC Minas meu agradecimento pela oportunidade de concluir este curso ao lado de pessoas incríveis, respeitosas e competentes. Agradeço, em especial, à Luciana, pelas várias leituras e observações ao texto da minha dissertação.

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de estudo.

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Irapé foi um desafio e um grande aprendizado.

Aos amigos Aline, Andréa, Humberto e Grossi pelo companheirismo, amizade e boas risadas durantes esses dois últimos anos. Valeu pela força que sempre encontrei em vocês.

Acontece sempre, durante a vida de “atirarmos no que vemos e acertarmos no que não vemos”. Tarcísio, ser seu orientando foi mais do que receber ensinamentos precisos, de forma cuidadosa e calorosa (o que aconteceu sempre). Foi, também, aprender sobre a sutileza daquilo que nem sempre é dito, mas que é vivido quando duas pessoas se relacionam.

Agradeço muito especialmente aos moradores de Peixe Cru, por tudo que viveram, devido à construção da UHE Irapé, e por tudo que compartilharam comigo, durante o tempo em que vivemos juntos. Para algumas situações, as palavras não são suficientes.

Lia e Isabel fizeram com que eu compreendesse o que é o amor e a necessidade de aprimorar sempre. Desejo ser melhor para poder amar melhor vocês, minhas filhas queridas. Obrigado.

Gostaria de fazer um “funeral blues” às avessas. Bradar aos quatro cantos que meu amor está vivo e ao meu lado. Porque você Chris é “meu norte, meu sul, meu leste e oeste. Minha semana de trabalho e meu domingo. Meu meio-dia, minha meia-noite. Minha conversa, minha canção”. Por você ser meu porto seguro e minha tormenta, te amo e te agradeço.

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O objetivo dessa dissertação é analisar o uso do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC, como metodologia de resgate de referências culturais em comunidades impactadas por empreendimentos de infra-estrutura. A pesquisa foi realizada junto à comunidade de Peixe Cru, pertencente ao município de Turmalina, localizado no médio Jequitinhonha, nordeste de Minas Gerais. Nessa região foi implantada a Usina Hidrelétrica Irapé, que desalojou 1200 famílias devido à formação de seu reservatório, que possui área total de 13.700Km2. Investiga a importância dos aspectos materiais da cultura, o papel dos antropólogos responsáveis pela implantação de políticas públicas de proteção das referências culturais e as relações entre memória e identidade. Os resultados indicam que o foco das ações de preservação do patrimônio cultural deve ser, sobretudo, a sua utilização como processo de mobilização e reflexão sobre as perdas sofridas no processo de remanejamento compulsório e não prioritariamente, o inventário dos bens passíveis de desaparecimento.

Palavras-chave: Inventário Nacional de Referências Culturais, impactos ambientais, Usina

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The aim of this work is to analyze the use of the National Inventory of Cultural References - INRC as a methodology of rescue of cultural references in communities under the impact of infrastructure enterprises. The research was carried through in the community of Peixe Cru, in Turmalina county, Jequitinhonha region, northeast of Minas Gerais state, Brazil. In this area, the hydroelectric power plant Irapé was implanted, and it dislodged 1200 families due to the formation of its reservoir, that occupies a total area of 13.700Km2. Here, it is investigated the importance of the immaterial aspects of the culture, the play ruled by the anthropologists involved in the implantation of public policies of protection of the cultural references and the relations between memory and identity. The results indicate that the focus on actions to preserve cultural heritage must be, over all, its use as process of mobilization and reflection on the losses suffered in the process of obligatory displacement and not only the inventory of the imaterial goods under risk of disappearance.

Key words: National Inventory of Cultural References, hydroelectric Irapé, environmental

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Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL Área Diretamente Afetada e Entorno - ADAE Companhia Enérgica de Minas Gerais - CEMIG

Câmara de Infra-Estrutura do Conselho de Política Ambiental do Estado de Minas Gerais - CIF/COPAM

Conselho Estadual de Política Ambienta – COPAM

EIA/RIMA – Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural - EMATER

Fundação Cultural Palmares – FCP

Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM

Conselho Internacional de Monumentos e Sítios - ICOMOS Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN Instituto Estadual de Florestas – IEF

Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC Licença de Instalação - LI

Licença de Operação - LO Licença Prévia - LP

Ministério Público Federal – MPF

Movimento Nacional de Atingidos por Barragens – MAB Organização das Nações Unidas - UNESCO

Organizações não Governamentais - ONGs Plano de Controle Ambiental – PCA

Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI

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Usina Hidrelétrica - UHE

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1: Mapa de Localização da Usina Irapé ... 18

Figura 2: Usina Irapé, 2005 ... 23

Figura 3: Vista Geral do Desvio de Peixe Cru ... 74

Figura 4: Vestígio da Barragem do Desvio de Peixe Cru... 74

Figura 5 e 6: Desvio escavado em rocha ... 75

Figuras 7 e 8: Vista Geral do Povoado de Peixe Cru, década de 1960 ... 77

Figuras 11, 12, 13 e 14: Edificações em Peixe Cru Velho, 2005 ... 78

Figuras 9 e 10: Vista Geral do Povoado de Peixe Cru, 2005 ... 78

Figura 15: Estrutura de garimpo em Peixe Cru , década de 1960 ... 81

Figura 16: Estrutura de garimpo em Peixe Cru, década de 1960. ... 81

Figura 17: Planta da área de reassentamento da comunidade de Peixe Cru... 86

Figuras 18, 19 e 20: Fotos da Nova Peixe Cru ... 88

Figuras 21, 22, 23, 24, 25 e 26: processo de montagem e desmontagem da Igreja de Bom Jesus de Peixe Cru...92

Figura 27: Cavalgada realizada na última festa de Bom Jesus... 98

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1 - LOCAL DE RESIDÊNCIA DOS ENTREVISTADOS – PEIXE CRU, 2001 . 76 TABELA 2 - DISTRIBUIÇÃO ETÁRIA DA POPULAÇÃO – PEIXE CRU... 77

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO... 15

1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO ... 32

1.1. A CONSTITUIÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO ... 34

1.2. A CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE PATRIMÔNIO IMATERIAL, A PARTIR DOS ORGANISMOS INTERNACIONAIS ... 38

1.3. A QUESTÃO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL NO BRASIL... 42

1.4. PATRIMÔNIO E REMANEJAMENTO COMPULSÓRIO ... 46

2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMONIO CULTURAL DAS FAMÍLIAS AFETADAS POR IRAPÉ E O PROGRAMA NACIONAL DE PATRIMÔNIO IMATERIAL ... 52

2.1. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL: APRESENTAÇÃO E CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 52

2.2. O PROGRAMA DE PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL E INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS: UMA PROXIMIDADE PRODUZIDA ... 58

2.3. A INTERVENÇÃO DOS ANTROPÓLOGOS E O INVENTÁRIO NACIONAL DE REFERÊNCIAS CULTURAIS: DILEMAS E POSSIBILIDADES. ... 63

2.4. O RESGATE DO PATRIMÔNIO CULTURAL EM PEIXE CRU... 69

3. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES INICIAIS ... 72

3.2. PEIXE CRU – O ESPAÇO, A NATUREZA, O HOMEM E SUAS TECNOLOGIAS ... 73

3.3. CARACTERÍSTICAS DA POPULAÇÃO DE PEIXE CRU ... 75

3.4. ATIVIDADES ECONÔMICAS DESENVOLVIDAS EM PEIXE CRUZ ... 79

3.5. ASPECTOS CULTURAIS DA VIDA EM PEIX CRU... 83

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3.7. RELAÇÕES DE TRABALHO NO PEIXE CRU NOVO ... 92

3.8. BENS IMATERIAIS NO PEIXE CRU NOVO ... 95

3.9. INSERÇÃO DE NOVOS ELEMENTOS ... 98

3.10. PEIXE CRU, SEU REASSENTAMENTO E AS GERAÇÕES FUTURAS... 103

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INTRODUÇÃO

Este trabalho se dedica a analisar o uso da metodologia de Inventário Nacional de Referências Culturais - INRC junto a comunidades afetadas pela implantação de empreendimentos de infra-estrutura, tal como os empreendimentos hidrelétricos. Nesse sentido, busco analisar a Política de Salvaguarda dos Bens de Natureza Imaterial e o INRC, enquanto instrumento de preservação de referências culturais e sua utilização em Peixe Cru, distrito de Turmalina/MG, em função de sua realocação compulsória devido à implantação da UHE Irapé, a fim de evidenciar as contradições inerentes aos processos de preservação do patrimônio cultural, especialmente na vertente relacionada ao patrimônio imaterial.

Aproximar dois temas tradicionalmente analisados separadamente, a saber: o patrimônio e o licenciamento ambiental, e tão carregados de especificidades apresentou, desde o primeiro momento, alguns desafios teórico-metodológicos. O primeiro deles foi estabelecer um recorte que contivesse a grande quantidade de questões que envolvem os dois temas ao mesmo tempo em que se mantivesse nos parâmetros de uma dissertação de mestrado.

Então, a opção foi de se abordar o tema a partir da ótica do patrimônio imaterial, deslocando a implantação de empreendimentos hidrelétricos como o pano de fundo da discussão. Isso implicou numa série de cortes na abordagem e na profundidade na tratativa deste tema.

Meu contato com a UHE Irapé e as questões que agora discuto nesta dissertação se iniciaram em 2002, quando fui contratado pela CEMIG para trabalhar na supervisão da

qualidade da implantação dos programas e projetos, previstos no Plano de Controle

Ambiental – PCA, daquela usina. O trabalho de supervisão da qualidade consiste na contratação das empresas que irão implementar estes programas e projetos e no acompanhamento dos trabalhos executados por elas, visando garantir o cumprimento de todos os itens aí estabelecidos, tempestivamente e com qualidade. Assim, estavam sob minha responsabilidade os seguintes programas: Programa de Educação Ambiental, Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, Programa de Prospecção e Salvamento Arqueológico.

Este lugar se mostrou extremamente privilegiado no que diz respeito a uma análise antropológica porque garantiu proximidade suficiente com os principais agentes envolvidos no processo (da CEMIG, dos atingidos, das empresas prestadoras de serviço, dos órgãos da administração pública em nível municipal, estadual e federal), sem, contudo, pertencer formalmente a nenhum deles. Esta posição me permitiu momentos de proximidade e de

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afastamento com esses diferentes grupos, ao longo de todo o processo. Numa dinâmica de olhar de longe e de perto, o todo e as partes.

Entretanto, a mudança de antropólogo contratado pelo empreendedor para o desempenho de funções técnicas, para o papel de pesquisador em processo de elaboração de uma dissertação, implica numa reflexão acerca das questões éticas que envolvem esse papel de mediador entre os diferentes grupos envolvidos no processo de licenciamento e das relações de confiança que se estabelecem com eles, por um lado, e a questão da utilização de informações privilegiadas de quem esteve dentro, que participou do desenvolvimento dos processos, mas que tem um compromisso ético de não disponibilizar aquelas informações que são institucionais. Assim, para o desenvolvimento do texto dessa dissertação, mantenho o olhar e a abordagem dos temas de quem fala de dentro. Entretanto, utilizo, apenas, informações públicas do processo de licenciamento e aquelas repassadas durante as entrevistas que realizei durante a execução do meu trabalho de campo.

Discuto a metodologia disponibilizada pela Política de Salvaguarda de Bens de Natureza Imaterial como um recorte importante e que apresenta questões de várias ordens, as quais pretendo abordar neste trabalho: em primeiro lugar, quais as implicações da criação de uma política que propõe salvaguardar manifestações dinâmicas e resultantes de interações sociais; em segundo lugar, qual a influência da utilização dessa metodologia sobre comunidades afetadas pela implantação de uma usina hidrelétrica, na medida em que as condições materiais de existência das comunidades são profundamente alteradas; em terceiro lugar, como a noção de patrimônio contribui para o processo de constituição de identidades.

Tendo como pano de fundo a implantação da UHE Irapé, na qual foi utilizado o INRC como instrumento de preservação do patrimônio cultural das comunidades afetadas, deterei meu olhar sobre a utilização dessa metodologia como forma de se minimizar os impactos relativos ao reassentamento compulsório sobre as referências culturais do Povoado de Peixe Cru.

Cabe ressaltar que não tratarei especificamente das questões afetas ao reassentamento como garantia de direitos, característica da estrutura produtiva da nova área em relação à antiga, questões relacionadas aos padrões de moradia ou aquelas relativas ao confronto desigual de interesses entre empreendedores e atingidos. Estes temas serão levantados, durante a narrativa, apenas na medida em que se configurarem como importantes para a compreensão das referências culturais da comunidade e para o estudo das questões identitárias decorrentes.

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A literatura acerca do tema de implementação de usinas hidrelétricas centra sua análise em dois grandes grupos: o dos atingidos – e seus movimentos de representação e de garantia de direitos, como o Movimento Nacional de Atingidos por Barragens – MAB; e o dos empreendedores. Esta forma de abordagem está calcada na concepção de que o que está em jogo é o sistema capitalista em que os empreendedores, movidos pela economia de mercado, encontram-se em contraposição aos atingidos, que se organizam a partir de outras formas de economia e sobrevivência, alternativos ao modelo capitalista.

Sem desconsiderar esta dicotomia existente, considero importante levantar, para fins de execução deste trabalho, a atuação de outros grupos de interesse, em especial os ligados ao poder público, em suas esferas Federal, Estadual e Municipal. O detalhamento desses grupos e sua forma de atuação é fundamental para a compreensão de um processo complexo como o de implantação de um empreendimento hidrelétrico, do qual Irapé, dadas as suas características, é emblemático. Nesse caso, além de atingidos e empreendedor, ressalta-se a atuação do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, do Ministério Público Federal – MPF, da Fundação Cultural Palmares – FCP, da Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM, do próprio Governo do Estado de Minas Gerais e das Prefeituras Municipais, os quais foram, e ainda são, agentes fundamentais no jogo de forças em que se constituiu a implantação da Usina Irapé.

Em função disso, inicio apresentando o processo de licenciamento ambiental de Irapé, uma vez que ao longo de todo o texto serão feitas menções a aspectos e características específicas de cada uma das fases de licenciamento e dos atores em questão.

A UHE Irapé localiza-se no Vale do Jequitinhonha, nos rios Jequitinhonha e seu afluente, o Itacambiraçu. Seu reservatório ocupou áreas rurais de sete municípios: Botumirim, Cristália e Grão Mogol, na margem esquerda, e Berilo, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado e Turmalina, na margem direita do rio Jequitinhonha.

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Figura 1: Mapa de Localização da Usina Irapé

Fonte: Arquivo CEMIG

Trata-se de um projeto de grande complexidade, tanto sob o ponto de vista da engenharia – a barragem de Irapé tem 208m de altura, sendo a mais alta do Brasil e a segunda da América Latina – quanto sob o ponto de vista social – ao todo, foram atingidas 47 comunidades e cerca de 1200 famílias distribuídas às margens desses rios e seus afluentes. Foram executados cerca de 40 programas ambientais para minimização dos impactos causados pelo empreendimento. Orçado em cerca de 1 bilhão de reais, em valores atuais, Irapé foi considerada pelo Governo do Estado de Minas Gerais como projeto estruturante para a região do Vale do Jequitinhonha.

A implantação de hidrelétricas requer a ocupação de “espaços ambientais” que não são espaços vazios. Estes “espaços ambientais” correspondem a um determinado espaço geográfico efetivamente utilizado por um grupo social, seja na obtenção dos recursos naturais, ou na destinação dos efluentes (MARTÍNEZ-ALIER, 2002). De maneira geral, o uso e ocupação das terras afetadas consistia na agricultura familiar voltada para a subsistência e nas relações de posse, meação e agregação. O lago da UHE Irapé atingiu terras rurais que, em sua

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maioria, não se configuram como povoados ou distritos, à exceção da Comunidade Remanescente de Quilombo Boa Sorte e do Povoado de Peixe Cru.

Essa questão tem sido central nos discursos contrários à implantação de hidrelétricas e nas análises acerca dos processos de geração de energia de origem hidráulica, uma vez que utilizam áreas férteis ocupadas para o desenvolvimento da agricultura, geralmente conduzidas por pequenos proprietários rurais num regime de economia familiar de subsistência e que a energia gerada, no mais das vezes, atendem aos centros urbanos, onde os processos de produção industrial e de consumo estão mais concentrados. Ou seja, para a manutenção do modo de produção capitalista e de consumo, áreas férteis são alagadas e pessoas são obrigadas a reconstituírem seus modos de vida em outros locais, por vezes com características muito diferentes das suas origens e com perda de toda a história desses locais.

Esse processo passa, então, por uma etapa de análise e intermediação, o Licenciamento Ambiental, para que sejam garantidas as condições ambientais e de direitos para as populações envolvidas. Uma questão que se coloca é que por vezes o próprio mediador, o Estado, possui interesses relacionados à implantação desses empreendimentos, já que a exploração do potencial de energia hidráulica é considerado bem da União, que a delega por meio de concessões realizadas em leilões públicos.

Assim, para que fosse viabilizada, a UHE Irapé passou por um processo de licenciamento, nos moldes estabelecidos pela legislação ambiental pertinente. Segundo o site da FEAM, “Licenciamento ambiental é o procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação, modificação e operação de atividades e empreendimentos utilizadores de recursos ambientais considerados efetiva ou potencialmente poluidores ou daqueles que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, desde que verificado, em cada caso concreto, que foram preenchidos pelo empreendedor os requisitos legais exigidos”. (www.feam.gov.br, acesso em 06/08/2006).

Nessa medida, o processo de licenciamento visa o estabelecimento de uma forma de controle por parte do Estado, de modo a garantir que a implantação e a operacionalização de empreendimentos que causam impactos ao meio ambiente sejam monitorados. O objetivo é que sejam adotadas aquelas medidas necessárias para minimização ou mitigação dos impactos a serem gerados pelo empreendimento, e, também, de que sejam reconhecidos os direitos das populações afetadas pelo empreendimento. Cabe, então, ao Estado a tomada de decisão acerca da viabilidade do empreendimento, das medidas de mitigação e compensação de impactos a serem adotadas quando de sua implantação e a avaliação (ou não) dessas medidas estabelecidas no processo de concessão de licenças.

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Em Minas Gerais, o licenciamento ambiental é exercido pelo COPAM – Conselho Estadual de Política Ambiental, por intermédio das Câmaras Especializadas. As usinas hidrelétricas são consideradas empreendimentos de infra-estrutura. Dessa forma, a Câmara de Infra-estrutura, que tem a Fundação Estadual do Meio Ambiente - FEAM como órgão técnico de suporte, foi a responsável por conduzir o licenciamento da UHE Irapé.

O COPAM, criado em 1977 como Comissão de Política Ambiental, tem sido o órgão responsável pela formulação e execução da política ambiental em Minas Gerais. Possui como característica a instauração de um processo que pretende ser participativo uma vez que é um órgão colegiado e que conta com representantes de instituições governamentais e não-governamentais entre seus membros.

Essa estrutura colegiada é fundamental para a garantia de representação dos diversos setores da sociedade uma vez que encontram-se em disputa, no processo de licenciamento de uma usina, diferentes interesses com conteúdos econômicos, políticos e culturais e que têm como base a questão do “espaço ambiental” onde se constrói a barragem. Nesse sentido, o processo de licenciamento de Irapé é emblemático, uma vez que durante seu andamento vários atores sociais entraram e/ou saíram da cena de negociação, conforme ia se constituindo o jogo pela viabilização ou não do empreendimento1.

Os primeiros estudos da bacia do rio Jequitinhonha foram realizados entre 1963 e 1965, e destes estudos resultou a elaboração do inventário das potencialidades de aproveitamento energético da bacia, os quais indicaram, dentre outras, a região de Irapé como potencial para a implantação de uma usina hidrelétrica. Entre 1984 e 1987, foi realizada uma revisão dos trabalhos anteriores. Este dado é importante na medida em que coloca o tempo necessário para a concretização de um empreendimento deste tipo, o que implica num grande investimento em estudos e análises, por um lado, e, por outro, deixa claro por quanto tempo as populações afetadas acabam convivendo com a incerteza diante da permanência ou não em suas terras.

1 Em Zucarelli (2005) pode-se encontrar uma análise do processo de licenciamento da UHE Irapé. Embora este

não seja o foco central da minha análise, utilizo os dados deste estudo para apoiar meu trabalho. Em relação ao licenciamento da UHE Irapé, ele afirma: “Relacionando essa discussão sobre o ‘campo ambiental’ com o processo de licenciamento da UHE Irapé, encontramos uma disputa em torno da intervenção humana na natureza, regulamentada por um conjunto de leis que estrutura as relações e conflitos decorrentes deste confronto. Nesse sentido, o licenciamento ambiental apresenta-se como um instrumento de controle e formalização das ‘regras do jogo’, cujo objeto da disputa é a apropriação material e simbólica da natureza”. O próprio Zucarelli teve sua dissertação de mestrado defendida pela UFMG com o tema do licenciamento da UHE Irapé. Entretanto, não tive acesso a esta dissertação, uma vez que, embora já defendida, não estava disponível para consulta.

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No que diz respeito ao licenciamento de um empreendimento de grande porte, e buscando assegurar o cumprimento de todas as medidas necessárias estabelecidas pelo Estado, para sua implantação foram estabelecidas diferentes etapas, a saber: Licença Prévia (LP); Licença de Instalação (LI) e Licença de Operação (LO).

A Licença Prévia é requerida na fase preliminar de planejamento do empreendimento ou atividade. Nessa primeira fase do licenciamento, a FEAM avalia a localização e a concepção do empreendimento, atestando a sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos a serem atendidos nas próximas fases. Para que seja avaliada a viabilidade ambiental dos empreendimentos, são elaborados os Estudos de Impacto Ambiental, os quais apresentam: as características do empreendimento; um diagnóstico do seu local de implantação sob o ponto de vistas dos meios físico, biótico, socioeconômico e cultural; os prognósticos da região com e sem a implantação do empreendimento; os possíveis impactos a serem gerados pela implantação do empreendimento; e as propostas de ações e programas a serem implementados visando a mitigação ou minimização dos impactos negativos e potencialização dos positivos.

Durante a análise da Licença Prévia ocorre a Audiência Pública, cuja finalidade é apresentar o projeto e seus estudos ambientais às comunidades interessadas, dirimindo dúvidas e recolhendo do público críticas e sugestões.

No caso de Irapé, em 1988 foram iniciados os estudos de viabilidade, os quais subsidiaram a concessão da Licença Prévia do empreendimento, pela Câmara de Bacias Hidrográficas do Conselho de Política Ambiental de Minas Gerais - CBH/COPAM, responsável, à época, pela deliberação das Licenças Ambientais para este tipo de empreendimento. Cabe ressaltar que a Licença Prévia foi concedida com condicionantes, os quais deveriam ser cumpridos para a próxima etapa do licenciamento. Um dos aspectos prioritários nestas condicionantes era que o empreendedor adquirisse a totalidade das terras necessárias ao reassentamento das famílias.

Foi nesta fase do licenciamento, antes da concessão da Licença Prévia, que ocorreram as duas audiências públicas, uma no município de Cristália (29/06/1997), na margem esquerda do rio Jequitinhonha, e outra no distrito de Acauã (22/06/1997), no município de Leme do Prado, margem direita. Reuniram-se ali centenas de pessoas da região e se constituiu uma arena de discussões sobre a viabilidade e os impactos causados pelo empreendimento. Foi na audiência pública em Leme do Prado que a Comissão de Atingidos pela Barragem de Irapé fez uma reivindicação de que a Comunidade de Porto dos Coris, uma das atingidas pelo empreendimento, fosse considerada como remanescente de quilombos, característica que não

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havia sido identificada no Estudo de Impacto Ambiental. Essa nova demanda chegou a interromper o processo de licenciamento, em outubro de 1997, até que fosse caracterizada a situação da comunidade. Foram elaborados dois laudos diferentes, um pela Fundação Palmares, que considerava que a comunidade era remanescente de quilombo, e outro, elaborado por técnicos contratados pela CEMIG, a pedido da FEAM, que considerava que não. Mesmo sem a conclusão desse processo, foi dada continuidade ao licenciamento, com a concessão da Licença Prévia sendo emitida em 10/12/19972.

Em 26/01/1998, foi publicado no Diário Oficial da União o reconhecimento, feito pela Fundação Cultural Palmares, da comunidade de Porto Coris como remanescente de quilombo. A CEMIG, por sua vez, entrou com uma ação ordinária contra a União Federal e a Fundação Cultural Palmares perante a 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Estado de Minas Gerais, a qual questionava o reconhecimento da comunidade de Porto Coris como remanescente de quilombos, tendo como referência outro laudo técnico que questionava este reconhecimento.

Após a obtenção da Licença Prévia, atendidos os preceitos da legislação ambiental, houve uma alteração na estruturação do setor elétrico, com a criação, em 1996, da Agência Reguladora, a ANEEL - Agência Nacional de Energia Elétrica. Nessa ocasião, o empreendimento passou a ser de responsabilidade da ANEEL, a qual realizou o leilão do empreendimento. O edital de pré-qualificação do Leilão nº 05/98, apresentou, em seu anexo 08, as exigências e recomendações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e da Fundação Cultural Palmares para a realização do trabalho com as famílias afetadas pelo empreendimento. Este material foi solicitado pela ANEEL em função da recente titulação da comunidade de Porto Coris. É neste documento que pela primeira vez é mencionada a necessidade de se realizar um Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, o qual apresenta diretrizes muito próximas daquilo que foi de fato elaborado e executado a partir da fase seguinte de licenciamento.

Após a realização do leilão pela ANEEL, e de tê-lo vencido, a CEMIG tornou-se, em 2000, outra vez, a detentora da concessão de Irapé.

Em 2001, foram elaborados os programas do Plano de Controle Ambiental – PCA de Irapé. Neste mesmo ano, a Comissão dos Atingidos pela Barragem de Irapé acionou o

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O resultado divergente entre os dois laudos deveu-se ao fato de que o contratado pela CEMIG considerou que o patriarca fundador da comunidade não se instalou na região tendo fugido ou criando um espaço de resistência ao sistema escravista, mas, sim, após ter sido liberto e ter comprado as terras, hoje pertencentes à comunidade. Além disso, a comunidade não possuía nenhuma relação com as tradições afro-descendentes. Por outro lado, o laudo da Fundação Cultural Palmares se baseou no tipo de organização e uso da terra, que é coletiva, e no conceito da auto-denominação.

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Ministério Público Federal solicitando uma liminar contra o Estado de Minas Gerais, por meio de uma ação civil pública com vistas a impedir que a CEMIG obtivesse a Licença de Instalação do empreendimento. Esta liminar foi cassada por Decisão do Juiz da 21ª Vara Federal de Belo Horizonte-MG. O MPF recorreu da Decisão do Juiz por meio de um Agravo

de Instrumento e emitiu outra Ação Civil Pública, ambos em 2002, mas, novamente, não

obteve sucesso. Neste período, a empresa terminou a elaboração do Plano de Controle Ambiental e entrou com o requerimento solicitando a Licença de Instalação do empreendimento.

Na fase do licenciamento ambiental posterior à concessão da Licença Prévia, com vistas à Licença de Instalação, são propostos, analisados e aprovados os projetos executivos de controle de poluição e as medidas compensatórias, que compõem o documento denominado Plano de Controle Ambiental.

A Licença de Instalação dá o direito à instalação do empreendimento ou sua ampliação, ou seja, a implantação do canteiro de obras, a movimentações de terra, a abertura de vias, a construção de galpões e a edificações e as montagens de equipamentos. A Licença de Instalação concedida especifica as obrigações do empreendedor no que se refere às medidas mitigadoras dos impactos ambientais, sendo exigido o emprego da melhor tecnologia disponível para a execução dessas ações.

Figura 2: Usina Irapé, 2005

Fonte: arquivo CEMIG

Os pareceres técnico e jurídico da FEAM, encaminhados ao julgamento da Câmara de Infra-estrutura do COPAM, eram pelo indeferimento da concessão da Licença de Instalação. O argumento da FEAM era de que o PCA era insuficiente e que as condicionantes da Licença

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Prévia não haviam sido integralmente cumpridas, de maneira especial aquelas referentes à viabilização de terras para o reassantamento. Numa reunião muito tensa, em que estavam presentes representantes da Comissão de Atingidos pela Barragem, políticos da região, os técnicos da FEAM, um representante do então governador Itamar Franco, favorável à construção da barragem, e o próprio presidente da CEMIG, a decisão do COPAM foi a de não acatar as recomendações expressas nos pareceres da FEAM e conceder a Licença de Instalação de Irapé, sob a condição de assinatura de um Termo de Acordo entre o MPF, o Estado de Minas Gerais, a CEMIG, a FEAM, a Associação Quilombola Boa Sorte, com a interveniência da Fundação Cultural Palmares e da Comissão de Atingidos pela Barragem de Irapé, o que aconteceu no dia 05/07/2002, após 2 meses de negociação; este documento é apresentado no Anexo I. Este Termo de Acordo teve como objetivo regulamentar as obrigações da CEMIG e estabelecer penalidades para o caso de descumprimento de prazos ou de atribuições. O documento foi composto de 04 anexos, os quais abarcaram os diferentes aspectos do processo de implantação de uma usina: Anexo I – Ações de Remanejamento da População; Anexo II – Ações e Programas Específicos para o Remanejamento da Comunidade Negra de Porto Corís; Anexo III – Programa de Reconhecimento, Preservação e Valorização do Patrimônio Cultural das Comunidades Impactadas pela UHE Irapé; Anexo IV – Programas e Ações Ambientais.

Uma das determinações estipuladas no Termo de Acordo era de que a CEMIG desistisse da ação civil pública contra a União e a Fundação Palmares. Além disso, estabelecia uma série de ações e atividades a serem cumpridas pela CEMIG com prazos e penalizações em caso de atraso, as quais resultaram das negociações entre a empresa e os representantes da comissão de atingidos, sob a intermediação do Ministério Público Federal e da FEAM.

Nesse sentido, o processo de negociações foi um grande avanço, considerando que foi estabelecido entre empreendedor e atingidos um fórum de debates com o objetivo de elaborar diretrizes que garantissem os direitos daqueles afetados pela Usina.

A partir da assinatura desse documento, o MPF passou a acompanhar mensalmente o processo de remanejamento da população afetada pelo empreendimento, ficando a FEAM em segundo plano neste momento do Licenciamento. O reassentamento passou a ser o grande foco de análise da qualidade dos trabalhos em execução referentes à UHE de Irapé. Os outros planos e programas em execução assumiram menor importância, por um lado devido à complexidade do reassentamento, e por outro, dada a insuficiência de técnicos da FEAM para acompanhar todo o processo.

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Durante o período de desenvolvimento dos trabalhos, houve várias tentativas de suspender as obras de construção da usina, por parte da Comissão de Atingidos, junto ao MPF, em função de alegado descumprimento dos prazos estabelecidos no Termo de Acordo. Entretanto, nenhuma dessas solicitações foi atendida, uma vez que o MPF entendia que o trabalho estava sendo executado pela CEMIG e que a complexidade dos trabalhos deveria ser considerada.

Em 2003, Irapé foi definido como Projeto Estruturante do Governo do Estado de Minas Gerais. Isso implicou que todas as secretarias e órgãos do governo foram envolvidos no projeto de Irapé e definidas políticas para o Vale do Jequitinhonha, tendo como motor de propulsão o empreendimento. Órgãos como Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social e Esporte – SEDESE e Instituto Estadual de Florestas – IEF, dentre outros, passaram a atuar no empreendimento como executoras de ações; a SEDESE, passou a dar apoio psicológico às famílias afetadas, atuando em atendimentos individuais e em grupos, atividade para o qual contratou uma grande equipe de psicólogos. A SEDESE teve seu trabalho reduzido por solicitação da Comissão de Atingidos ao MPF para que as equipes interrompessem o atendimento psicológico sem, entretanto, apresentar maiores justificativas. A decisão do MPF foi pelo acatamento ao pleito da Comissão.

Também a EMATER já havia sido contatada para realizar acompanhamento e extensão rural às famílias reassentadas, para o qual realizou uma série de contratações de extensionistas rurais e profissionais da área social.

Para a realização do reassentamento, em compensação à área alagada (13.700 ha) foram adquiridas 103 propriedades, num total de 63.000 ha de terras, em 28 municípios, de um total de 360.000 ha pesquisados. As terras deveriam atender às exigências estabelecidas no Termo de Acordo em seu Anexo I 3. Foram realizadas todas as obras de infra-estrutura como: abastecimento de água, luz, telefonia, acessos viários, atendimento escolar e médico.

Além desse trabalho de reassentamento, foram executados outros 40 planos e programas socio-ambientais, dentre eles o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, o qual constou do Anexo III do Termo de Acordo, assinado em 2002, que, por sua vez, era transcrição do próprio Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, tal como apresentado pela CEMIG no PCA, em 2001. Este mesmo programa foi submetido ao IPHAN, o qual o aprovou sem nenhum tipo de observação ou acréscimo.

3 Cada família teve direito a um módulo fiscal (40ha na margem direita e 50ha na margem esquerda), cada filho

solteiro maior de dezoito anos teve direito a 10ha (num limite de um módulo fiscal adicional por família) e cada espólio teve direito a mais um módulo e meio. Da área total dos lotes, no mínimo 50% deveriam apresentar classes de solo de I a IV.

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Após três anos e meio de trabalho, em novembro de 2005, quando todas as famílias já haviam se mudado para as áreas de reassentamento, foi solicitada a Licença de Operação. A Licença de Operação autoriza o funcionamento do empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinadas para aquela fase. Assim, a concessão da Licença de Operação depende do cumprimento daquilo que foi examinado e deferido nas fases de Licença Prévia e Licença de Instalação.

Na reunião do COPAM em que seria julgada a Licença de Operação de Irapé, o MPF se fez presente solicitando que não fosse concedida a licença, uma vez que a Procuradora tinha em mãos um parecer da equipe da FEAM que recomendava à CIF/COPAM o indeferimento do pedido. Entretanto, um outro parecer, o qual era favorável à concessão, também da FEAM, havia sido encaminhado ao COPAM. Comissão de Atingidos, FEAM e MPF argumentaram pelo indeferimento do pedido. O argumento era de que ainda haviam problemas a serem resolvidos nos reassentamentos, como: casas com problemas construtivos, acessos em estado precário, crianças sem escola. Entretanto, o COPAM optou por conceder a Licença de Operação, tendo em vista o compromisso da empresa em dar continuidade aos trabalhos e resolver as pendências e por entender que o que havia sido feito dava mostras claras do compromisso da empresa em finalizar um bom trabalho.

O que estava em jogo nesse momento da concessão da Licença de Operação era a preocupação, por parte da empresa, de perda de um ano hidrológico. Dadas as características do regime de chuvas na região do Jequitinhonha, caso a licença não fosse concedida naquela data, a geração comercial sofreria um atraso de pelo menos um ano, o que, obviamente, resultaria em prejuízos, inclusive o pagamento de multas junto à ANEEL. Por parte da Comissão de Atingidos, da FEAM e do MPF o receio era de que a empresa não levasse adiante os trabalhos ainda em execução uma vez que já teria a autorização para iniciar a geração de energia.

A descrição do licenciamento de Irapé deixa claro o tenso jogo de poder estabelecido quando da implantação de empreendimentos desse tipo. Uma diversidade de atores estabelecem relações, que ora podem estar mais próximos ou mais distantes, com vistas à defesa de seus interesses pessoais ou de grupo.

É neste contexto complexo que se iniciou em 2002 a implantação dos Programas e Projetos do PCA e, de maneira particular, do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, objeto de análise dessa dissertação, presente no Anexo III do Termo de Acordo estabelecido pelas partes envolvidas, no ano de 2002.

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Em termos metodológicos, para a dissertação foi feita uma análise da documentação referente ao processo de licenciamento da UHE Irapé e ao Programa de Preservação do Patrimônio Cultural. Foram realizadas entrevistas com técnicos da CEMIG responsáveis pelo acompanhamento do empreendimento, com técnicos responsáveis pela execução do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural e com técnicos do IPHAN. Foram realizados vários contatos meus com a comunidade de Peixe Cru, enquanto participei da Supervisão da

Qualidade da implantação do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural, no período de

janeiro de 2003 a novembro de 2006. Esses contatos foram realizados em momentos em que era necessário que algumas decisões de condução do trabalho fossem tomadas. Um exemplo foi o desmonte e reconstrução da capela de Bom Jesus do Peixe Cru e a restauração do crucifixo desta capela, uma vez que havia resistência por parte de algumas lideranças em relação a estas ações, o que será tratado no segundo capítulo. Estes contatos com a comunidade, com os técnicos das empresas contratadas para prestação de serviços à CEMIG e com os técnicos da própria empresa, me mantiveram a par do processo de negociação com esta comunidade, o que auxiliou sobremaneira a análise dos aspectos relativos ao seu patrimônio cultural, pós-reassentamento. Nesse sentido, coloca-se um importante aspecto metodológico desta dissertação, no tocante à comunidade, que é o fato de que muitas das informações aqui constantes foram adquiridas durante o exercício do meu trabalho de consultor contratado para auxiliar no acompanhamento de alguns dos programas socio-ambientais da UHE Irapé; da observação junto às pessoas da comunidade, dos processos pelos quais passaram, das dificuldades vividas e superadas.

Para fins de procedimentos metodológicos exclusivos dessa dissertação, foi realizada uma entrevista com uma técnica da CEMIG, responsável pelo acompanhamento do processo de licenciamento pela Gerência de Avaliação e Licenciamento Ambiental, até a criação da Superintendência Executiva de Irapé e com a proprietária da empresa contratada para executar o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural de Irapé. Foi realizada uma entrevista com um comerciante de Turmalina, e sua esposa, que residiram em Peixe Cru no período de 1953 a 1965. Foram realizadas duas viagens à comunidade, com duração de uma semana cada uma. A primeira viagem foi realizada em janeiro de 2006, período em que algumas famílias já haviam sido reassentadas a cerca de seis a nove meses e outras estavam recém-instaladas na nova comunidade, uma vez que as mudanças não foram realizadas ao mesmo tempo. A segunda viagem foi realizada em dezembro de 2006. Optou-se por intercalar períodos de escrita e de campo, uma vez que a definição dos recortes na dissertação foi feito aos poucos, a

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partir daquilo que a própria comunidade apresentava no desenvolvimento de sua instalação no seu novo local de moradia, e que dava a possibilidade de análise em diferentes cenários.

O tempo modifica a percepção das coisas: o tempo transcorrido e o tempo das estações. Nas diferentes épocas do ano as coisas e as pessoas se nos apresentam de maneira diferente. Assim, minhas percepções sobre mim, no papel de pesquisador, e minhas impressões sobre Peixe Cru mudaram, as deles também, em relação a mim e ao povoado.

Na minha primeira viagem o objetivo era me apresentar à comunidade na condição de pesquisador e identificar a situação dos temas tratados neste trabalho, após a mudança das famílias. Neste período, percebi uma grande necessidade das pessoas em desabafar, em falar das suas vidas e das dificuldades que estavam enfrentando. Além disso, ainda foram comuns certos hiatos ou certas falas como se eu representasse a CEMIG ou como se tivesse como mandar recado para os técnicos da empresa. Seja por um motivo ou por outro, as pessoas vinham falar comigo para poder relatar suas questões, as quais não estavam relacionadas à questão do patrimônio imaterial, mas, ao contrário, à sua sobrevivência material. Um dado importante é que no período desta visita uma grande seca fez com que as terras no “Peixe Cru Novo” não produzissem o esperado e todos tinham uma grande expectativa em relação ao futuro das famílias naquele local.

No período da segunda viagem, algumas famílias já estavam instaladas no Peixe Cru Novo a um ano e meio, todos haviam encontrado atividades produtivas durante o ano e um longo período de chuvas, iniciado em outubro, fez com as terras estivessem produzindo bem. Nesta época, as pessoas já não procuraram por mim para conversar; por outro lado, queriam saber a respeito dos resultados da minha “pesquisa” e quando eu terminaria.

No que diz respeito a essa mudança de posição de técnico contratado pela CEMIG para pesquisador, um aspecto importante a ser dito é o papel do antropólogo como mediador. Em ambos os casos, esta foi a tônica da minha participação. Enquanto técnico, esta mediação se fazia entre empreendedor, comunidade e órgãos/instituições envolvidos no processo de licenciamento do empreendimento: FEAM, MPF, prefeitura; com o objetivo de garantir o desenvolvimento de ações de mitigação de impactos e de garantia de direitos. Enquanto pesquisador, esta mediação foi compreendida pela CEMIG, que aceitou a realização deste estudo, enquanto eu ainda estava contratado, como a possibilidade de realização de um trabalho que pudesse oferecer contribuições para um processo de reflexão sobre impactos de difícil mensuração – os aspectos culturais – e metodologias mais adequadas para a realização deste tipo de intervenção. Além disso, esse trabalho foi visto como a possibilidade de abertura

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de diálogo com o mundo acadêmico e com o aporte das ciências sociais no que diz respeito ao desenvolvimento deste tipo de processo.

Para a comunidade, a realização deste estudo foi explicitada como uma forma de auxiliar outras comunidades que estão sujeitas a passar pelo mesmo processo de reassentamento, em função da construção de empreendimentos de infra-estrutura. Talvez essa tenha sido a motivação das pessoas em colaborar da pesquisa que eu desenvolvia: saber que o que eles viveram poderia se tornar experiência de vida, a ser utilizada também por outras pessoas.

Para mim, esta dissertação é a possibilidade de sistematizar conhecimentos, sentimentos e experiências acumuladas por cerca de 12 anos de atuação na área ambiental. É também uma oportunidade de chamar atenção dos antropólogos, meus pares, para questões que considero importantes no atual contexto de ampliação das possibilidades profissionais, como: a necessidade de refletir sobre o papel dos antropólogos em situações de intervenção junto a comunidades no contexto de trabalhos demandados por instituições várias – empreendedores, ministérios, IPHAN, ONG’s, Ministério Público – e as conseqüências deste tipo de atuação; a urgência em se pensar, sistematicamente, no âmbito da antropologia, acerca das formas de trabalho junto a comunidades impactadas por empreendimentos de infra-estrutura, tendo em vista que o tipo de impactos a que estão sujeitas é de difícil mensuração e, por isso, nem sempre as ações de minimização são adequadamente dimensionadas.

Nesse sentido, a adoção do tema do patrimônio mostra-se muito adequada uma vez que ele abre possibilidades para todas estas reflexões. De maneira particular, o patrimônio tal como nos apresenta Gonçalves (2005), enquanto fato social total. Essa concepção, que perpassa todo o meu trabalho, coloca o patrimônio no lugar de mediador entre passado, presente e futuro, entrem diversas classes e indivíduos diversos. E é esta característica de mediação que põe também a categoria patrimônio como elemento fundamental para se pensar as questões afetas ao remanejamento compulsório.

Cabe ressaltar que, em termos da formatação da dissertação, optou-se pela elaboração de três capítulos que, embora interligados, funcionam quase autonomamente. Este tipo de estruturação objetiva abranger a complexidade dos temas tratados: patrimônio imaterial, licenciamento ambiental e a construção de identidades e memória.

No primeiro capítulo, discuto a moderna constituição da noção de patrimônio cultural e as ambigüidades que o termo carrega. Faço um apanhado das modificações desta noção, por meio da análise das cartas patrimoniais, buscando apreender o contexto de surgimento na noção de patrimônio imaterial e da inclusão das questões ambientais na discussão do

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patrimônio. Faço uma discussão acerca da implementação do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial – PNPI e da implementação do INRC como metodologia de identificação e registro dos bens de natureza imaterial. Por fim, discuto a utilização do INRC como metodologia de preservação de patrimônio em comunidades afetadas por empreendimentos hidrelétricos. Aqui o foco é colocado sobre a constituição da noção de patrimônio imaterial e como este tema passou a ser abordado no âmbito do licenciamento da UHE Irapé.

Dão suporte a esta reflexão as contribuições de Hobsbawn (1997), Ortiz (2003) e Choay (2001) no que diz respeito à importância da constituição de uma noção de patrimônio que subsidiasse a formação dos estados-nacionais; a discussão desenvolvida por Gonçalves (2005) quanto a importância dos aspectos materiais da cultura, em contraposição a uma postura antropológica que privilegia noções mais abstratas como estrutura, sistema simbólico. Por fim, retomo um aspecto levantado por Giddens (1997b), que estabelece um paralelo entre tradição e natureza, mostrando como estes dois conceitos se tornaram alvo de atuação nas sociedades modernas, que se afastaram tanto de uma quanto da outra. Tradição tornou-se patrimônio tombado/registrado, natureza tornou-se meio ambiente, nomes modernos para aproximarem os homens modernos de aspectos constitutivos de sua existência, mas que ficaram relegados a segundo plano nas sociedades modernas.

No segundo capítulo apresento o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural da Usina Hidrelétrica Irapé, discutindo as principais questões postas durante sua implementação, de maneira especial os aspectos ligados à comunidade de Peixe Cru. A principal questão aqui é abordar as principais dificuldades no processo de implementação deste programa, cotejando com aquelas outras inerentes ao processo mesmo de inventário e registro de bens de natureza imaterial e de licenciamento ambiental.

Dão suporte a este capítulo as discussões empreendidas no âmbito da antropologia no tocante à ampliação da atuação dos profissionais frente às novas demandas, de maneira particular no que se refere à elaboração de laudos antropólogos. Nesse sentido, os livros organizados por Victoria (2004), Leite (2005), Santos (2003) e Oliveira (1998) apresentam de forma diversificada esta questão, pontuando os dilemas a serem enfrentados quando da inserção dos antropólogos em projetos conduzidos por instituições públicas, ONGs, dentre outros. Utilizo essa temática para discutir a inserção dos antropólogos nos de Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC e em projetos de implantação de empreendimentos de infra-estrutura, como as hidrelétricas. Neste item, foram importantes os artigos constantes na terceira parte do livro organizado por Leite (2005), intitulado Laudos sobre Impactos

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Ambientais e Projetos de Desenvolvimento e os apresentados durante o Encontro Ciências Sociais e Barragens, realizado em 2005.

No terceiro capítulo, discuto a influência do desenvolvimento do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural no âmbito da comunidade de Peixe Cru. No bojo desta discussão, serão levantadas questões acerca do processo de formação de identidades, da materialidade e dinamicidade da cultura e do papel da memória nos processos de constituição do patrimônio, da história e da própria formação da comunidade de Peixe Cru. Aqui é apresentada uma discussão sobre a comunidade de Peixe Cru e os rebatimentos do desenvolvimento do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural sobre o processo de construção de identidades e memória deste grupo.

Para essa discussão, as tensões entre memória e tempo, memória e esquecimento, memória e história serão abordadas focando nas dificuldades vivenciadas pela comunidade de Peixe Cru e as contribuições teóricas de Pinto (1998), Nora (1995) e Ferreira (1996).

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1. PATRIMÔNIO: REFLEXÕES ACERCA DAS AMBIGÜIDADES DO TERMO

Naquela triste ocasião eu vivenciei pessoalmente algo que já sabia, mas apenas teoricamente: cultura não reside em coisas materiais, ela reside na significativa atividade humana. (HANDLER, 2003).

A experiência de caminhar por um local em que uma comunidade ocupava e tenha se mudado em função da implantação de uma usina hidrelétrica, naquele momento intermediário entre a saída das pessoas e o início do alagamento da área pelas águas do reservatório, provoca algumas sensações que dão idéia das questões apresentadas nesse trabalho. Os escombros das casas, os vestígios de ocupação do local: chinelos de dedo, antigas camas, pedaços de papel em que intenções e informações foram expressas; ou aqueles sinais de uma vida que deu forma, identidade, a um determinado espaço: pomares, hortas, plantas medicinais; ou, ainda, os sons que já não se ouvem, daquelas pessoas que já não estão ali, incentivam o pensar acerca do que permaneceu no lugar desabitado, naquele lugar cuja sina é ficar sob as águas, numa existência estruturada sob outros parâmetros que não os da vida humana cotidiana, a partir da mão estruturadora do homem. Por outro lado, é possível pensar naquilo que levaram as pessoas que já não estão mais ali, que expressões da vida e que elementos acompanham os homens e mulheres quando arrumam suas malas, organizam as coisas no caminhão e partem em mudança para uma nova área.

O estudo de grupos que passam pela experiência de remanejamento compulsório me parece muito apropriado no âmbito da temática do patrimônio, na medida em que, com estes grupos, se dá aquilo que na discussão sobre este tema aparece como a mola propulsora para a constituição da noção de patrimônio, a saber: as idéias de perda, memória e identidades. A questão daquilo que permanece e daquilo que é abandonado pelos grupos humanos no processo de constituição da sua existência, ganha a concretude das situações vividas, do real posto a prova. De fato, a implementação da noção de preservação do patrimônio cultural se dá, fundamentalmente, a partir da idéia de que elementos da cultura de determinado grupo (que aqui pode ser entendido como uma nação, uma cidade ou uma comunidade) estão ameaçados pelo desaparecimento. Estes elementos, os conjuntos arquitetônicos, as edificações, os monumentos e, mais recentemente dentro das políticas preservacionistas, as práticas imateriais, assumem uma existência aurática de catalizadores da cultura e da identidade desse grupo e, passam a demandar uma intervenção, por parte de organismos oficiais, que objetive sua preservação, enquanto elemento de permanência do próprio grupo.

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Além disso, o foco em uma situação de remanejamento compulsório traz imbricada a discussão acerca da materialidade da cultura, na medida em que há uma quebra das condições materiais de desenvolvimento das práticas cotidianas de determinado grupo. A pergunta nesse ponto é: quais os arranjos sociais possíveis que garantam a um determinado grupo manter sua cultura e identidade em uma situação em que as condições materiais de sua existência foram profundamente alteradas em função de variáveis externas? E, em seguida: em que medida o patrimônio cultural deste grupo influencia no sentido de reconstruir as redes de interação, a partir desta nova materialidade? E, por fim: qual a capacidade da noção de patrimônio, enquanto categoria analítica, de auxiliar na compreensão deste processo? Estas são questões que pretendo discutir neste capítulo.

Adoto, neste trabalho, a perspectiva do patrimônio enquanto fato social total, tal como sugerido por Gonçalves (2005), e conforme a Escola Francesa, de maneira particular Émile Durkheim e Marcel Mauss, buscando refletir acerca da cultura e de suas manifestações, a partir desta categoria. Ao estabelecer esta postura metodológica, Gonçalves pretende demonstrar que “patrimônio” enquanto categoria de pensamento contribui para a teoria antropológica pela abordagem que permite fazer do termo cultura, na medida em que possui como característica intrínseca o fato de ser concreto, singular, por um lado, e universal, por outro. Estabelecendo, dessa forma um elo entre as duas correntes sociológicas denominadas universalista e relativista.

Sua análise é construída a partir das categorias de 1) ressonância, com a qual chama a atenção para o fato de que a categoria patrimônio carrega em si a ambigüidade por ser um mediador entre diferentes esferas (como passado e futuro, indivíduo e sociedade) e que o acesso ao passado via patrimônio ocorre não somente por um trabalho consciente de construção no presente, mas, em alguma medida, também ao acaso. Nessa medida, o trabalho de construção de identidades, a partir da mediação dos bens patrimoniais, somente tem sucesso se estes encontram ressonância com seu público; 2) materialidade, por meio do qual discute que todo patrimônio é material, mesmo quando se fala de patrimônio intangível já que é necessário lançar mão de elementos materiais como celebrações, lugares ou alimentos, para que esta categoria se apresente. Assim, esta categoria exige que, no exercício de análise antropológica, seja colocada em primeiro plano a materialidade da cultura. Segundo Gonçalves (2005, p.22), “o fato importante a considerar é que, se nos colocarmos do ponto de vista do nativo, a vida social não seria possível sem esses objetos materiais e sem as técnicas corporais que eles supõem”; 3) subjetividade, por meio da qual discute o papel que a categoria patrimônio desempenha no processo de formação de subjetividades individuais e coletivas.

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Segundo Gonçalves (2005, p. 28), “se, por um lado, este (patrimônio) pode ser entendido como a expressão de uma nação ou de um grupo social, algo, portanto, herdado, por outro, ele pode ser reconhecido como um trabalho consciente, deliberado e constante de reconstrução”. Essa característica intrínseca ao patrimônio o coloca como um importante mediador entre essas duas dimensões da cultura.

Neste trabalho, a questão da materialidade da cultura é fundamental uma vez que minha análise se estabelece num momento de ruptura dos aspectos materiais de um grupo e o passo seguinte de reconstrução das novas teias de significados, a partir de novos parâmetros materiais. Entretanto, esta forma de utilização da categoria analítica “materialidade” da cultura impõe a consideração de uma outra que é a da “dinamicidade” da cultura. Este aspecto permite estabelecer o fio condutor de compreensão da influência das mudanças nos aspectos materiais sobre aqueles aspectos da cultura tidos como herdados e sobre o processo de reconstrução daqueles novos aspectos que farão parte do corolário deste grupo. Para tanto, será tomado como foco da análise o papel do patrimônio enquanto mediador simbólico entre passado, presente e futuro.

1.1. A constituição da noção de patrimônio

Se, por um lado, a noção de patrimônio, tal como afirma Gonçalves (2005) não é uma invenção moderna, instituída a partir da formação dos Estados Nacionais - e essa é uma idéia particularmente importante para o desenvolvimento desta dissertação -, a constituição da moderna noção de patrimônio, intimamente ligada à noção de perda, é crucial também para a análise aqui empreendida, uma vez que esta noção de perda é o motor dos processos de preservação do patrimônio levados a cabo pelas agências de Estado.

Assim, a própria noção de patrimônio, elemento chave de políticas de Estado voltadas para a preservação, é produção humana e tem seus conteúdos e práticas atrelados a determinados contextos. Assim, é necessário

questionar o processo de produção desse universo que constitui um patrimônio, os critérios que regem a seleção de bens e justificam sua proteção; identificar os atores envolvidos nesse processo e os objetivos que alegam para legitimar seu trabalho; definir a posição do Estado relativamente a essa prática social e investigar o grau de envolvimento da sociedade. (FONSECA, 2005, p.36).

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Estas proposições permitem identificar algumas questões colocadas no tocante à discussão teórica sobre o estabelecimento do conceito de patrimônio, tal como proposta pelas agências de Estado, e a necessidade da preservação daqueles bens assim denominados.

A primeira questão que pode ser levantada, e que a literatura apresenta, é que o processo de patrimonialização consiste numa cristalização de elementos da cultura, eliminando desses elementos seu caráter dinâmico. Essa discussão é feita a partir da associação das narrativas constitutivas da noção de patrimônio com os discursos de construção de identidades, de maneira particular de identidades nacionais.

Os elementos de construção de narrativas nacionais foram abordados por vários autores (CHOAY, 2001; GONÇALVES, 1996; HOBSBAWN, 1997; ORTIZ, 2003), os quais chamam a atenção para o fato de que o processo de patrimonialização esteve ligado à construção de uma identidade nacional. Dessa forma, os bens patrimonializados apresentam um poder simbólico de invocar um passado comum que é capaz de contribuir para a manutenção e preservação da “identidade de uma comunidade étnica, ou religiosa, nacional, tribal ou familiar” (CHOAY, 2001, p. 18).

Nessa medida, o processo de patrimonialização tem como função congregar indivíduos num mesmo grupo, de conferir a esses indivíduos a marca distintiva que os aproxima e lhes dá identidade, porque os separa de outros. Esta marca distintiva se dá em função da moradia em determinado território, de compartilhar um idioma e de possuir um passado, uma história comum, o qual é objetivado e celebrado em seus bens e práticas patrimonializados.

As práticas culturais de determinado grupo são apropriadas e sintetizadas a partir de determinados elementos, os quais assumem o papel de representar e dar sentido ao todo daquela cultura. Este caráter totalizante dado aos bens patrimonializados confere às práticas de preservação a função de manter vivos aspectos da cultura e da identidade dos grupos que, sem esta prática, supostamente, estariam fadados ao desaparecimento.

Este é o processo que Handler (2003) nomeou de objetificação cultural, entendido aqui como ‘”uma tendência da lógica cultural ocidental a imaginar fenômenos não-materiais (como o tempo) como se fossem corporalizados, objetos físicos existentes”. Ele tem como característica principal o fato de conferir a determinados elementos da cultura novos atributos, os quais devem ser mantidos numa estrutura invariável, preservados. Esta dicotomia entre os bens patrimoniais e as práticas culturais foi expressa em termos de tradição x costume (HOBSBAWN, 1997), memória nacional x memória coletiva (ORTIZ, 2003), transmissão patrimonial tradicional x transmissão em ato (JEUDY, 2005) e implicam que as primeiras

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