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NAVALHA NA CARNE, HOJE Paulo Roxo Barja

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Academic year: 2023

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NAVALHA NA CARNE, HOJE

Paulo Roxo Barja1 Cláudia Regina Lemes2

Resumo: Em 1968, Plínio Marcos publicou uma de suas obras mais encenadas: Navalha na Carne. A peça situa-se no universo da prostituição, mas retrata uma situação dramática observada em diversas situações de miséria e exclusão social: a violência entre os oprimidos.

Mesmo após 50 anos, a peça de Plínio permanece atual, como um alerta contra a opressão e a desumanização de uma sociedade ainda excludente.

NAVALHA DE PLÍNIO

Em desesperada busca de um sentido para a vida – Será que somos gente?

pergunta a puta.

Puta pergunta.

(P. R. Barja) Plínio Marcos, o repórter de um tempo mau

Andarilho, artista circense, ator, camelô, dramaturgo, escritor, sambista, leitor de Tarô...

Plínio Marcos foi muitos. Em 2017, o presidente da FUNARTE Stepan Nercessian definiu-o como “camelô da cultura, (...) artista marcante, um intelectual dos mais importantes do nosso país” (MARCOS, 2017, p. 6). Embora justíssimas, estas palavras podem surpreender aqueles que se acostumaram a associar a imagem do dramaturgo santista a seus textos “nus e crus”, que sempre utilizaram a linguagem do povo – incluindo os palavrões, claro. Aliás, o próprio Plínio costumava apresentar-se de modo simples e direto; sobre o próprio trabalho, dizia:

Eu conto história das quebradas do mundaréu, lá de onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos. Falo da gente que sempre pega a pior, que come da banda podre, que mora na beira do rio e quase se afoga toda vez que chove e que só berra da geral sem nunca influir no resultado. Falo dessa gente que transa pelos estreitos, escamosos e esquisitos caminhos do roçado do bom Deus. Falo desse povão, que apesar de tudo é generoso, apaixonado, alegre, esperançoso e crente numa existência melhor na paz de Oxalá. – Fala de Plínio na abertura do CD Plínio Marcos em Prosa e Samba (SANCHES, 2012)

A verdade é que, desde seu surgimento na cena teatral brasileira, Plínio sempre foi uma voz dissonante ao narrar de modo cru, sem meias palavras, os conflitos e dramas dos brasileiros desvalidos. Um exemplo é sua primeira peça, Barrela, lançada no final da década de 1950, que narra um episódio de violência sexual dentro de uma prisão.

Em 1968, Plínio publica em livro aquela que seria uma de suas obras mais famosas e emblemáticas: Navalha na Carne. O texto da peça situa o leitor/espectador diante do universo

1 Universidade do Vale do Paraíba – UNIVAP, São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: barja@univap.br.

2 Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, São José dos Campos, SP, Brasil. E-mail: claurlemes@gmail.com.

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da prostituição e da miséria. Passados 50 anos desde sua criação, a peça de Plínio continua sendo muito estudada e encenada, por estudantes e profissionais de teatro. Partindo desse fato, procuraremos, ao longo do presente estudo, responder à seguinte questão: afinal, o que a obra de Plínio teria de atual em pleno século XXI?

Navalha na Carne e o contexto de sua criação

A peça Navalha na Carne surge em 1967, na mesma época do Ato Institucional nº 5.

Foi provavelmente o período mais dramático para a expressão artística no Brasil, dadas as permanentes ameaças de censura. No caso de Plínio, aliás, não eram apenas ameaças – justamente nesta época, o jovem dramaturgo passa a ser conhecido nos meios culturais brasileiros como “o autor mais proibido do Brasil”. Tudo por conta de textos como o monólogo da prostituta Neusa Sueli, no trecho final de Navalha na Carne:

(...) Isso que cansa a gente. A gente só quer chegar em casa, encontrar o homem da gente de cara legal, tirar aquele sarro e se apagar, pra desforrar de toda a sacanagem do mundo de merda que está aí. Resultado: você está de saco cheio por qualquer coisinha, então apronta. Bate na gente, goza a minha cara e na hora do bem-bom, sai fora (...) Às vezes, chego até a pensar: poxa, será que sou gente? Será que eu, você, o Veludo, somos gente? Chego até a duvidar. Duvido que gente de verdade viva assim, um aporrinhando o outro, um se servindo do outro. Isso não pode ser coisa direita. Isso é uma bosta (...).

(MARCOS, 2017, p. 78)

Tônia Carrero foi a primeira intérprete de Neusa Sueli no Rio de Janeiro – e também uma grande defensora da liberação e apresentação da peça de Plínio, que marcou decisivamente sua carreira: “Minha vida se divide em antes e depois de Navalha na Carne. Eu já tinha dado demonstrações de talento e coragem, mas não conseguia quebrar aquela imagem de mulher glamourosa, bonitinha, enjoadinha” (MENDES, 2009, p. 164).

Citando a primeira montagem carioca de Navalha na Carne, Prado (2018) diz que “Tonia Carrero, Emiliano Queiroz e Nelson Xavier arrebataram público e crítica ao defender o emblemático texto de Plínio Marcos, que se tornou marco do teatro brasileiro” (PRADO, 2018).

Ainda em 1967, Yan Michalski foi um dos primeiros críticos a escrever sobre a peça “à qual se assiste com a respiração presa, e a cujo fascínio não escapa nem o público mais conservador, a priori menos disposto a enfrentar cara a cara a crueldade e a violência” (MICHALSKI, 2005).

De fato, a ditadura enfrentou a crueldade da peça do modo mais conservador possível:

proibindo a apresentação teatral da obra antes mesmo da estreia (o governo, aliás, chegou ao cúmulo de proibir até os ensaios fechados da peça no Teatro Opinião). A portaria assinada pelo diretor-geral do Departamento de Polícia Federal proibindo Navalha na Carne apresenta as justificativas para a proibição, destacando:

(...) a profusão de sequências obscenas, termos torpes, anomalias e morbidez exploradas na peça Navalha na Carne, a qual é desprovida de mensagem construtiva, positiva e de sanções a impulsos ilegítimos, o que a torna inadequada a plateia de qualquer nível etário (...) – Trecho da portaria da Polícia Federal proibindo Navalha na Carne (MENDES, 2009, p. 159/160) No entanto, para pesquisadores como Maria Soares, “muito mais que palavrões, o que sobressai na peça são as relações de poder. As três personagens que aparecem no texto

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representam a própria sociedade brasileira desse período” (SOARES, 2010, p. 61). De fato, a peça retrata uma situação dramática e tristemente comum em situações de exclusão social: trata- se da agressão entre os próprios excluídos, a violência entre os oprimidos. Em meio à miséria, não há relações estáveis, pois não há confiança possível: a cada momento, um dos personagens assume a condição de “opressor da vez”. O texto de Plínio constitui-se, assim, num duro retrato da condição de barbárie resultante da penúria extrema.

Fato é que a fama de Plínio – paradoxalmente, até por conta da proibição de suas peças em todo o território nacional – só aumentava. Naquele contexto histórico, este simples fato já poderia ser considerado uma derrota para a ditadura, já que a censura, ao invés de calar o autor (Plínio jamais deixou de escrever por conta da censura), fez o inverso: propagou-o como exemplo de resistência viva e atuante.

Navalha na Carne, hoje: afinal, o que mudou?

Cinquenta anos depois, o texto de Plínio continua sendo remontado em todo o território nacional, por grupos profissionais e também por amadores e/ou estudantes. A montagem mais recente de Navalha na Carne na cidade de São Paulo esteve em cartaz neste mês de agosto de 2018, e em seu material de divulgação estabelece a conexão entre o passado escravocrata brasileiro, o caráter de denúncia da peça de Plínio Marcos e o cenário sociopolítico do Brasil atual:

Da mesma forma que os escravocratas do passado forçavam nossos antepassados a trabalharem à exaustão, para a governança neoliberal contemporânea, todo e qualquer corpo é passível de ser explorado ao máximo, seja como coisa ou objeto, seja como moeda ou mercadoria. (VELLEDA, 2018)

Reina (2018) também reconhece a peça de Plínio como um clássico da dramaturgia brasileira, chegando a chamar Navalha na Carne de “texto consagrado do teatro” e “cânone”;

ainda assim, ressalta o caráter de resistência da peça e a importância de sua remontagem no Brasil atual, para enfrentar “a égide neoliberal” (REINA, 2018).

Para avaliar criticamente qual a pertinência de se (re)montar Navalha na Carne (assim como as demais obras de Plínio), consideramos fundamental comparar os contextos históricos da década de (19)60 e de hoje. O Quadro 1, a seguir, apresenta em tópicos um resumo dessa comparação em diferentes áreas.

BRASIL Na época de Navalha na Carne - 2ª metade dos anos (19)60

50 anos depois de Navalha na Carne - período 2016/2018

Futebol Viralatismo – Brasil eliminado da Copa por europeus

Viralatismo – Brasil eliminado da Copa por europeus

Justiça

Terra Sem Lei / Desrespeito aos Direitos Humanos

Exemplo: abundância de Atos Institucionais

“ao sabor da ocasião” (AI5, em 1968)

Terra Sem Lei / Desrespeito aos Direitos Humanos

Exemplo: juiz de 1ª instância, de férias no exterior, manifesta-se contra ordem de soltura

Mídia

Não-confiável / Corrupção filtrada por censura prévia

Exemplo: contrabando militar no Porto de Santos (não chegou aos jornais)

Não-confiável / Corrupção filtrada por (auto)censura

Exemplo: Caso Temer no Porto de Santos (sumiu dos jornais)

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Prioridade governamental

Obras e estradas

Exemplo: Brasil prestes a iniciar a construção da Rodovia Transamazônica

Obras e estradas – Adicionalmente, cortes em programas sociais aliados a alto desemprego

Episódios de Violência

1) Entre cidadãos que se encontravam na condição de excluídos;

2) Promovidos pelo Estado

Exemplos: 1) Explosão dos assaltos a bancos e atentados; 2) Tortura e morte daqueles que se manifestavam contra a ditadura

1) Entre cidadãos que voltaram a se encontrar na condição de excluídos;

2) Promovidos pelo Estado

Exemplos: 1) Explosão dos assaltos a linhas de ônibus que atendem a periferia;

2) Ocupação do RJ / Caso Marielle Quadro 1. O cenário brasileiro, na época de Navalha na Carne e hoje.

Fonte: os autores, incluindo informações de GASPARI (2016).

No Brasil de 2018 (ou seja, exatos 50 anos após a publicação do livro de Plínio Marcos), com o aumento do desemprego e os radicais cortes perpetrados em diversos programas sociais pelo atual governo federal (atitude mimetizada em âmbito estadual e municipal), tem aumentado progressivamente a ocorrência de episódios de intolerância e violência entre cidadãos que voltaram a ser privados das condições mínimas de subsistência. Há muitos exemplos: um deles é a explosão no número de assaltos a ônibus em linhas que atendem as periferias de regiões metropolitanas (BOM DIA RIO, 2018; ROTTAS, 2018). Em São Paulo, os dados comprovam que “as linhas de ônibus que saem da Lapa (...) em direção à região de Pirituba e Perus estão entre as mais assaltadas” (G1, 2017).

O exame dos contextos históricos apresentados no Quadro 1 permite concluir o que o texto de Plínio evidencia: quando o (também) oprimido oprime, todos são oprimidos. Neste sentido, a leitura de Navalha na Carne permanece atual, funcionando como um alerta permanente a respeito da desumanização e da violência a que estamos expostos, individual e coletivamente, uma vez que nos encontramos imersos numa sociedade ainda excludente.

Considerações finais

A peça de Plínio corta nossa carne há (mais de) 50 anos. Também há cerca de meio século, Che Guevara trazia para a América Latina e ressignificava a afirmação de Edmundo Burke:

“um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la” (OLIVEIRA, 2012).

Evidentemente, esta afirmação não se aplica apenas ao Brasil que, no entanto, vem inegavelmente flertando com um passado onde a democracia e a liberdade foram considerados secundários, em nome de uma segurança que, na verdade, sabemos que não pode existir sem justiça e inclusão social.

Os índices de violência em nosso país acompanham o ressurgimento dos moradores de rua, ecoando os índices de desemprego e gerando, em última análise, os episódios de agressão entre os próprios excluídos sociais. Na miséria, não há confiança possível, e a cada momento um dos oprimidos pode assumir a condição de “opressor da vez”. É justamente disso que fala o texto de Plínio Marcos. Sua obra segue como alerta contra a intolerância e a opressão – individual e coletiva – de um Brasil excludente. O tempo passou, mas ainda precisamos ouvir a voz desse repórter de um tempo mau.

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Referências

BOM DIA RIO. Aumenta o número de assaltos dentro de ônibus nas rodovias da Região Metropolitana do Rio. G1, 23 jul. 2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de- janeiro/noticia/2018/07/23/aumenta-o-numero-de-assaltos-dentro-de-onibus-nas-rodovias-da- regiao-metropolitana-do-rio.ghtml>. Acesso em: 30 ago. 2018.

GASPARI, E. A Ditadura Escancarada (Coleção Ditadura, v. 2). 2. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2016.

G1. Veja as linhas de ônibus mais assaltadas em São Paulo. G1 São Paulo, 5 set. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/veja-as-linhas-de-onibus-mais-assaltadas-em-sao- paulo.ghtml>. Acesso em: 29 ago. 2018.

MARCOS, Plínio. Navalha na Carne. In: Plínio Marcos. Obras Teatrais, v. 3: pomba roxa.

Pécora, A. (Org.). Rio de Janeiro: FUNARTE, 2017. p. 47-83.

MENDES, Oswaldo. Bendito Maldito: uma biografia de Plínio Marcos. São Paulo: Leya, 2009.

MICHALSKI, Yan. Reflexões sobre o teatro brasileiro no século XX. Rio de Janeiro:

FUNARTE, 2005.

OLIVEIRA, Pedro M. Um Povo que Não Conhece a Sua História Está Condenado a Repeti-la.

Pedro Oliveira's WebSpace, 4 out. 2012. Disponível em:

<https://pedromoliveira.wordpress.com/2012/10/04/um-povo-que-nao-conhece-a-sua-historia- esta-condenado-a-repeti-la/>. Acesso em: 30 ago. 2018.

PRADO, Miguel Arcanjo. Peça clássica de Plínio Marcos ganha nova versão: Navalha na Carne

Negra. Blog do Arcanjo, 18 jul. 2018. Disponível em:

<https://blogdoarcanjo.blogosfera.uol.com.br/2018/07/18/peca-classica-de-plinio-marcos- ganha-nova-versao-navalha-na-carne-negra>. Acesso em: 25 ago. 2018.

REINA, Andrei. Navalha no cânone. BRAVO!, 16 ago. 2018. Disponível em:

<https://medium.com/revista-bravo/navalha-no-c%C3%A2none-b39f849688c2>. Acesso em:

26 ago. 2018.

ROTTAS, Lislane. Assaltos a ônibus em alta na região. O Fluminense, 20 mai. 2018. Disponível em: <http://www.ofluminense.com.br/pt-br/pol%C3%ADcia/assaltos-%C3%B4nibus-em-alta- na-regi%C3%A3o>. Acesso em: 30 ago. 2018.

SANCHES, Pedro A. Samba, rap e exclusão em SP. Farofafá, 23 ago. 2012. Disponível em:

<http://farofafa.cartacapital.com.br/2012/08/23/samba-rap-e-exclusao-em-sp/>. Acesso em: 28 ago. 2018.

SOARES, Maria F. B. Porta-vozes do “Poeta Maldito”: Gênero e Representação no teatro de Plínio Marcos. 2010. Dissertação (Mestrado em Literatura). Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte. Disponível em:

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<http://www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-8EJM34/

disserta__o____ltima_vers_o.pdf?sequence=1>. Acesso em 24 ago. 2018.

VELLEDA, Luciano. "Navalha na carne negra" é peça de resistência contra exploração histórica. Rede Brasil Atual, 10 ago. 2018. Disponível em:

<https://www.redebrasilatual.com.br/entretenimento/2018/08/potente-navalha-na-carne- negra-e-uma-peca-de-resistencia>. Acesso em: 27 ago. 2018.

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