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A ESCUTA PSICANALÍTICA DO SUJEITO NAS (DAS) POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE SUJEITO DE DIREITO E SUJEITO DE DESEJO

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA

SOCIAL

JOANA MANASSÉS PENTEADO

A ESCUTA PSICANALÍTICA DO SUJEITO NAS (DAS)

POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE SUJEITO DE DIREITO E

SUJEITO DE DESEJO

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

(2)

2

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PROGRAMA DE ESTUDOS PÓS-GRADUADOS EM PSICOLOGIA

SOCIAL

JOANA MANASSÉS PENTEADO

A ESCUTA PSICANALÍTICA DO SUJEITO NAS (DAS)

POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE SUJEITO DE DIREITO E

SUJEITO DE DESEJO

MESTRADO EM PSICOLOGIA SOCIAL

Qualificação apresentada ao Programa

de

Estudos

Pós-Graduados

em

Psicologia

Social

da

Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo -

PUC/SP Orientação: Raul Albino

Pacheco Filho

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3 PENTEADO, J.M. A ESCUTA PSICANALÍTICA DO SUJEITO NAS (DAS) POLÍTICAS PÚBLICAS: ENTRE SUJEITO DE DIREITO E SUJEITO DE DESEJO. Dissertação apresentada ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE em Psicologia Social.

Aprovado em:_____________________________

Banca Examinadora

_________________________

_________________________

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4 AGRADECIMENTOS

À Branca e ao Márcio, meus pais, pelo apoio, pelo incentivo e pelas escolhas da vida que, com minha admiração, são marcas referenciais para mim. Sem eles, eu não chegaria até aqui.

Ao Raul Albino Pacheco Filho, pela orientação, pelas conversas e pela referência, desde a graduação, como um “mestre não todo”, trazendo, com isso, uma contribuição importante em meu processo de implicação na escrita e além dela.

À Silvana Rabello, pela referência na transmissão da psicanálise desde a graduação. Depois de ser parecerista de meu TCC, agradeço, novamente, por ter aceitado participar de mais uma etapa de minha jornada acadêmica.

Ao Fuad Kyrillos Neto, por aceitar fazer parte desta banca com a contribuição de seu conhecimento.

Ao Gabriel, meu irmão, pelo apoio e incentivo na realização dos meus projetos.

À Sandra Pavone, que acompanhou o processo de sustentação desse desejo de mestrado com sua escuta precisa.

À Paula Gioia, minha madrinha, que sempre acompanhou e incentivou minhas escolhas acadêmicas.

Aos colegas do Núcleo de Psicanálise e Sociedade, em especial ao Leonardo, à Mariana, ao Neto e à Ingrid, por estarem no mesmo barco compartilhando, cada um à sua maneira, o processo que é escrever.

As “meninas PUC”, amigas e parceiras sempre nas coisas da vida.

À Fernanda Levy Picchetto e à Luciana Terepins Menezes, pela amizade longa e pela intimidade que permite a presença mesmo nas ausências.

Ao Fernando Cordeiro, grande amigo e parceiro na escolha acadêmica e em tantas outras.

Ao Ivo Yonamine, que, além de ser um grande amigo, fez a revisão deste trabalho, com admirável domínio das palavras.

À Thássya, pelo companheirismo, pelo respeito e pela sustentação de uma racionalidade, tão necessária em momentos deste processo.

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5

[...] Penetra surdamente no reino das palavras. Lá estão os poemas que esperam ser escritos. Estão paralisados, mas não há desespero, há calma e frescura na superfície intata. Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário. Convive com teus poemas, antes de escrevê-los. Tem paciência se obscuros. Calma, se te provocam. Espera que cada um se realize e consume com seu poder de palavra e seu poder de silêncio. [...]

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6 RESUMO

PENTEADO, J. M. A escuta psicanalítica do sujeito nas (das) políticas públicas: entre sujeito de direito e sujeito de desejo. 2015. 87p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

O objetivo do trabalho foi o de problematizar a escuta oferecida ao sujeito inserido no contexto institucional de um serviço de proteção as crianças e adolescentes vítimas de violência. Para isto, foram utilizados trabalhos sobre diversas experiências profissionais articuladas com a psicanálise em contextos da saúde pública e da assistência social que prestam atendimentos em instituições. Buscou-se compreender os paradigmas que definem tanto a infância, no dispositivo legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), como o infantil, na perspectiva do sujeito. À luz da psicanálise, interrogou-se sobre o possível trabalho implicando o sujeito e questionando a posição que ele pode assumir frente à nomeação social recebida a partir da inserção como vítima em um serviço de proteção a violência. O percurso construído aponta a importância de que se escutem as verdades do sujeito em relação à vivência de uma violência, bem como os respectivos efeitos, no campo concreto e no campo da fantasia, em um contexto de atendimento que mescla, de modo articulado, os saberes do campo da política pública e da psicanálise.

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7 ABSTRACT

PENTEADO, J. M. Psychoanalytically listening to the subject in/by public policies: between law and desire. 2015. 87p. Master´s Degree - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2015.

This work was aimed at critically analyzing the Lacanian listening process offered to subjects within an institutional public service for children and adolescents suffering from violence. In order to achieve these goals, we used works on several professional experiences, coupled with psychoanalysis itself, in the context of institutions providing services of public health and social assistance. We attempted to understand the parameters by defining childhood in two main fields: first, by a legal analysis, under the Brazilian Statute for Children and Adolescents (Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA); second, by a psychoanalytical approach, based on the subject. In the light of psychoanalysis, we attempted to establish a possible simultaneous work both involving the subject and questioning his/her position before his/her condition of “victim” within a service for protecting against violence. This path led us to acknowledge the importance of listening to the each subject´s truths regarding his/her experience of violence, as well as their impacts on the realms of concrete and fantasy, in a context favouring a balance between public policies and psychoanalysis.

(8)

8 SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 9

CAPÍTULO 1: PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO: EM BUSCA DE UM SUJEITO

18

1.1 Revisão de trabalhos com articulação entre psicanálise e instituição 18 1.2 Manejos de alguns casos atendidos por psicanalistas em instituições 30

CAPÍTULO 2: UM SUJEITO ALÉM DE UMA VÍTIMA 40

2.1 Paradigmas do serviço em questão (noção de violência segundo

o ECA/ noção de abuso) 40

2.2 Os desafios da prática 46

2.3 A contribuição da escuta da psicanálise neste contexto 51

CAPÍTULO 3: ENTRE SUJEITO DE DIREITO E SUJEITO

DE DESEJO (entre infância e infantil) 61

3.1 Considerações sobre o sujeito à psicanálise 61

3.2 O traumático para a psicanálise 65

3.3 Sobre a infância e o infantil 69

3.3.1. A infância do ECA 71

3.3.2. O infantil do sujeito 72

3.4 Entre o singular do sujeito e o universal da política pública 74

CONSIDERAÇÕES FINAIS 77

(9)

9 INTRODUÇÃO

A presente dissertação tem como objetivo geral, refletir sobre alguns impasses decorrentes da prática de um serviço designado para executar uma política pública de enfrentamento à violência contra crianças e adolescentes, o Serviço de Proteção Especial às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV) reunindo, sistematizando – e, sobretudo, dialogando com – a contribuição de alguns pensadores que se apoiam na psicanálise para discutir o lugar do psicanalista nas políticas públicas e nas redes de saúde e de proteção à criança e ao adolescente.

O Serviço é responsável por promover condições de restituição dos direitos violados da criança e do adolescente. Entre suas atribuições, estão o acolhimento e o tratamento de danos causados pela situação de violência doméstica, a prevenção do agravamento e a interrupção da situação de violência, devolvendo autonomia ao atendido.

Intenciona-se, como objetivo específico desta pesquisa, pensar sobre a escuta oferecida a um sujeito considerado como vítima de violência doméstica, inserido em um contexto institucional de um serviço de proteção. Para atingir este objetivo, serão utilizados trabalhos que contam sobre diversas experiências de saberes articulados com a psicanálise inserida em contextos da saúde pública e da assistência social que prestam atendimentos em instituições.

À luz da psicanálise, interrogar-se-á como é possível trabalhar por uma via que implique o sujeito, permitindo-lhe implicação sobre sua condição para além de “vítima”, significante de sua inserção no serviço de atendimento. Esse questionamento incidirá sobre as noções de violência doméstica e de infância, recolocando a pergunta sobre como o dispositivo analítico pode operar com sua contribuição nesse contexto.

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10 área, para aprofundar e fundamentar os questionamentos e enriquecer as reflexões sobre esta experiência profissional, mesmo sendo a posteriori à prática.

O questionamento sobre a importância de se ter uma verdade que comprove ou não a existência concreta de uma violência e a possibilidade de assumir mais de uma verdade em contexto de atendimento psicossocial foram situações que acompanharam minha rotina no serviço. Este, por sua vez, funciona em rede, de maneira confluente com outros setores da sociedade – como aparato jurídico, escola, família, e saúde – que trabalham pela garantia dos direitos a crianças e adolescentes.

O SPVV tem como dever a prestação de atendimentos psicossociais, conceito que ainda está em construção pelas próprias instituições que o executam. Por ser uma modalidade que busca uma mescla entre os saberes do Serviço Social e da Psicologia em atendimento unificado, há um esforço de compreensão destas questões por parte da Secretaria da Assistência Social. Assim, o objetivo do serviço é reparar supostos danos à criança ou ao adolescente causado pela violência sofrida.

Como fundamento das diretrizes que orientam o Serviço, foi sancionada, em 1991, a lei 8.242, que cria o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). É o órgão máximo em âmbito federal, encarregado da formulação, do monitoramento e da avaliação das políticas de promoção, proteção e defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Em 2000, o Conanda criou o Plano Nacional de Enfrentamento a Violência Sexual Infanto-Juvenil, que está incluso na Política Nacional de Assistência Social (PNAS), responsável pela efetivação das políticas voltadas a garantia dos direitos da criança, e é regulamentado pela Lei Orgânica de Assistência Social, a LOAS (1993), que garante o direito à Assistência Social a todo cidadão.

É importante reafirmar o caráter de política pública da Assistência Social que constitui, juntamente com a Saúde e a Previdência Social, o tripé constitucional de base da Seguridade Social (BRASIL, 1988). Por meio de políticas públicas promovidas pela assistência social, faz-se a interlocução entre sociedade e poder público coordenando-se programas desenvolvidos e efetuados.

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11 O equipamento designado a acolher questões relacionadas à violência contra crianças e adolescentes é o Centro de Referência Especializado da Assistência Social (CREAS), responsável pela proteção especial de média complexidade, conforme a tipificação vigente. Em alguns municípios de maior contingente populacional, como o de São Paulo, pela inviabilidade de a estrutura de gestão municipal gerenciar e contemplar toda a demanda, o CREAS terceirizou o serviço de proteção especial, através de parcerias com organizações não governamentais que efetuam o serviço seguindo as diretrizes estabelecidas pela Secretaria da Assistência Social. O Serviço de Proteção Especial às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência (SPVV) do referido projeto se insere nesse contexto.

Por meio de edital público, a prefeitura estabelece convênio com determinadas instituições avaliadas como aptas a executarem determinado serviço que tem suas diretrizes balizadas por ela.

O fluxo de encaminhamento para o serviço de proteção parte da rede social da criança ou do adolescente e segue, obrigatoriamente, para o Conselho Tutelar, que avalia a especificidade da demanda e encaminha ao SPVV, parceirodo CREAS.

Entre os desafios da prática no acompanhamento dos casos atendidos, nota-se um hiato entre a política formalizada e o tratamento oferecido. Os profissionais do SPVV contam com as seguintes condições para o trabalho: equipe composta por dois educadores, dois assistentes sociais e três psicólogos, um coordenador e um auxiliar administrativo; uma jornada de quarenta horas semanais de trabalho, exceto aos assistentes sociais que tiveram recentemente sua jornada reduzida para trinta horas semanais; oitenta usuários a serem atendidos mensalmente e suas respectivas famílias, sendo que estas não estão inclusas entre os números de atendidos; tempo máximo de permanência do usuário no serviço de seis meses.

Atenta-se, no entanto, a partir do discurso da psicanálise, à importância de se escutar aquilo que advém de inédito do sujeito, em sua dimensão singular, e que escapa às delimitações formalizadas pelo campo de alcance da política. Assim, intenta-se destacar a escuta do sujeito e suas saídas diante do desejo do Outro, como bem nos coloca Brandão Junior:

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12 Na medida em que a abordagem psicanalítica sustenta que o sujeito, seu gozo e sua responsabilidade devem ser incluídos no contexto de qualquer atendimento, surge a o questionamento: de que maneira a psicanálise pode ser inserida como uma contribuição relevante no âmbito das políticas públicas e dos serviços designados a trabalhar a violência contra crianças e adolescentes, considerando-se que, para a psicanálise, nada se pode saber, a priori, sobre qualquer sujeito? Além disso, qual a possibilidade de oferecer escuta aos usuários que chegam à instituição, marcados por um discurso externo que os circunscreve à condição de vítimas de violência, sem encerrá-los em uma preconcepção que engesse o trabalho?

Conforme colocado por Scarparo e Poli (2008), “Para a gestão de políticas públicas como a Assistência Social são necessários dados que possam dimensionar a abrangência de uma ação ou da infraestrutura necessária dos serviços e seu financiamento para a operacionalização do planejamento” (SCARPARO e POLI, 2008, p.62). Portanto, é importante para os gestores de uma política pública que esta seja avaliada em sua efetividade. Para isso, criam-se instrumentos que visam a reconhecer os efeitos do trabalho para o cidadão atendido.

O grande desafio deste tipo de planejamento está em se tratar da vida de pessoas e, portanto, baseado em dados não objetiváveis, sem perda da singularidade. As generalizações necessárias sempre vão homogeneizar e apagar diferenças importantes. A saída proposta seria, então, a constante reavaliação das ações a partir dos usuários dos programas. (SCARPARO e POLI, 2008, p 62).

A partir disso, indaga-se de que forma a psicanálise pode se inserir no contexto apresentado, oferecendo uma escuta para o sujeito em questão, de modo a sustentar as tensões decorrentes da situação de violência e proporcionar uma escuta ao sujeito atendido, apta a trabalhar com a problematização dos lugares surgidos de, entre outros fatores, vitimização/culpabilização e responsabilização, que aparecem para o sujeito a partir da inserção do sujeito no trabalho. Esta pergunta permitirá o questionamento sobre como se dá o trabalho em conjunto, articulando diferentes saberes em consonância com a psicologia, a assistência social e a psicanálise.

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13 formuladas pela assistência social, na medida em que se utiliza da linguagem compartilhada socialmente como via de acesso às notícias sobre o inconsciente.

Para o discurso psicanalítico, a sucessão de fenômenos pouco diz sobre um sujeito. Um sintoma só adquire seu status por onde ele se apresenta, e não por sua forma tomada. Uma mesma manifestação vinda de sujeitos diferentes diz coisas diferentes. Então, cada sujeito historiciza seu sintoma de maneira singular. Partindo da concepção psicanalítica de que, sobre um sujeito, não se pode saber a priori, como conduzir o tratamento, frente às demandas sociais que inserem os casos a serem atendidos no Serviço, com sujeitos supostamente vítimas de determinada violência sofrida?

A civilização se organiza com códigos e leis sobre as quais o sujeito, em sua própria constituição, tem de buscar saídas para garantir sua existência em sociedade. Freud aponta três direções como fonte de sofrimento humano, indissociáveis entre si:

Assim nossas possibilidades de felicidade sempre são restringidas por nossa própria constituição. Já a infelicidade é muito menos difícil de experimentar. O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encará-lo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras fontes. (FREUD. 1930, p.56).

Esta pesquisa se propõe, além de levantar quais são os pressupostos que definem uma violência aos olhos da sociedade, interrogar sobre que posição pode um sujeito assumir, além da do horizonte definido pela marca dada a ele a partir de uma nomeação social atribuída que o insere no Serviço de Proteção como vítima.

Para essa discussão, faz-se importante considerar o cenário social em que surgem o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) como instrumento de afirmação dos direitos da criança e do adolescente e a política pública de enfrentamento à violência doméstica que o toma como base, viabilizando a compreensão dos pilares construtores do Serviço de Proteção ao qual se refere a presente dissertação.

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14 insiram, em uma linguagem comum, os tipos específicos de violência doméstica, bem como o perfil de pessoas, de famílias e de crianças que sofrem estas violências.

No século XX, entre o final da década de oitenta e início dos anos noventa, houve uma série de avanços decorrentes do processo de redemocratização no Brasil, culminando, entre os diversos produtos de sua luta, em desdobramentos como a Constituição dos Direitos Humanos (1988) e o Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA (1990). Este alterou paradigmas sobre o conceito de criança e adolescente, passando a considerá-los como sujeitos de direitos, que, por estarem em fase de desenvolvimento, necessitam de cuidados diferenciados de sua família, da sociedade e do Estado.

A política pública trabalha com um saber universal sobre questões específicas. Quando essas questões se convertem em determinada demanda, configura-se um problema social cujo enfrentamento requer uma intervenção do Estado. O modelo da política delimita um perfil geral sobre o problema. No entanto, há também aquilo que não é comum entre todos os sujeitos: a singularidade que não está representada pelo universal do modelo. Do mesmo modo, a palavra não dá conta de representar um significante a outro significante integralmente. Assim, o alcance da política voltada para o bem comum, tão necessária e inerente ao modo como a sociedade se organiza, por sua própria estrutura não contempla algo que é de ordem sempre singular a cada sujeito.

Entre subjetividades singulares e modelos gerais, acontece um hiato, que traz um mal estar na civilização sobre o qual discorreu Freud (1930), ao elaborar a ideia de que, para existir sociedade, algo do singular do sujeito fica de fora do universo compartilhado entre os homens e, portanto, deve ser renunciado, em nome de um bem comum. Nesta articulação entre singular e geral, há muito sobre o enredo humano que acomete a todos que toparam pagar o preço de uma renuncia necessária ao mundo da linguagem.

O conceito sobre o que é a criança, previsto no ECA, e a noção sobre a infância, compartilhada socialmente, oferecem ao sujeito uma delimitação que o insere e o organiza cronológica e espacialmente na sociedade, marcando seu corpo com a linguagem comum. Este sujeito traz, em sua expressão, insígnias de sua cultura, porém articuladas de maneira singular.

(15)

15 assume em relação ao que vivencia, a psicanálise foi a teoria escolhida para articular esse questionamentos. A teoria psicanalítica considera o sujeito, na dimensão de seu desejo, como, por essência, único e instransponível. Como é possível então, realizar, na prática profissional, a interlocução entre as regras que nos insere e nos organiza na sociedade e o reconhecimento da posição do sujeito singular diante de sua castração, necessária à entrada dele na civilização, de acordo com que nos ensinou Freud em seu consagrado trabalho O Mal Estar na Civilização (FREUD, 1930/1996)?

Freud (1930) enfatiza, em sua teoria, a importância da fala do sujeito para o trabalho analítico. Essa ênfase, no entanto, não corresponde ao testemunho sobre algo da realidade concreta, pois o sujeito com que se trabalha na psicanálise é o sujeito do inconsciente, que deve ser ouvido através do que se manifesta em sua realidade psíquica, atravessada pela fantasia.

Nesse sentido, o discurso de um sujeito sobre uma violência ou sobre um abuso sexual não se restringe a um relato descrito acerca de uma ocorrência concreta, ainda que esta possa ou não estar presente. Freud abandona a teoria da sedução, na qual se considerava a realidade como trauma vivenciado pelo sujeito, para adotar a teoria da fantasia. A noção de fantasia reconstrói, para a psicanálise, o que é o traumático: ele não está fundado na concretude fatídica de uma cena, mas no enredo que o sujeito faz de sua cena (subjetiva), com sua entrada na linguagem.

Freud relata que a cena de sedução descrita por seus pacientes não teria necessariamente ocorrido, portanto,

[...] os sintomas neuróticos não estavam diretamente relacionados com fatos reais, mas com fantasias impregnadas de desejos, e que, no tocante à neurose, a realidade psíquica era de importância maior que a realidade material. (Freud, 1926).

Portanto, considera-se como relevante ao sujeito o que este traz em seu discurso como uma marca significativa. A dimensão da realidade concreta faz-se importante através do que é apresentado pelo sujeito por meio do seu discurso.

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16 Essa interlocução pode ser aprofundada com auxílio do Seminário A Ética da psicanálise, de Jacques Lacan (1959-1960/1986).No trabalho, é possível compreender melhor o lugar do sujeito singular, pela ética do singular e pelo sujeito de que fala a política pública, articulado à ideia da ética do bem comum.

No referido Seminário, Lacan afirma que a ética da psicanálise se encontra na interrogação que ela empreende sobre os sistemas éticos que circunscrevem o bem, a felicidade e os meios de alcançá-los. Assim, constitui-se a ética do desejo, de forma divergente da ética kantiana, em que o desejo está situado como o avesso da lei moral. Partindo do pressuposto de que não se pode saber, a priori, que lugar um sujeito assumiu para si, nem como ele vivenciou uma situação de violência, será estudada essa dimensão singular em diálogo com a psicanálise.

Os capítulos deste trabalho serão divididos em eixos temáticos, procurando tomar como referência experiências já formalizadas por profissionais e buscando duas finalidades. A primeira é a de compreender melhor o que está em jogo no manejo do trabalho oferecido às crianças vítimas de violência doméstica inseridas neste contexto institucional de um serviço de proteção. A segunda é a de investigar como a psicanálise se insere na configuração aludida.

No primeiro capítulo, serão reunidos trabalhos que apresentam a prática de profissionais que articulam o saber da psicanálise em instituições tanto da saúde quanto da assistência social, através de recortes de manejos de alguns casos atendidos no contexto institucional apresentado por profissionais em interlocução com diferentes saberes que participam do cotidiano das instituições.

No segundo capítulo, será problematizada a questão da vitimização, articulada à noção de violência e de abuso sexual. Esse questionamento foi mobilizado por situações de dúvidas sobre a condução de minha prática como profissional em um serviço de atendimento às vítimas de violência, o Serviço SPVV. Além disso, questionarei como se dá a inserção da psicanálise em um contexto fundamentado com pressupostos teóricos diversos. Para isso, conforme exposto no parágrafo anterior, utilizarei trabalhos publicados que expõe a articulação entre estes saberes.

(17)

17 Por fim reunirei os levantamentos teóricos feitos ao longo da pesquisa refazendo minha questão inicial.

Proponho uma reflexão sobre a noção conceitual do suposto sujeito para quem se destina a política pública em articulação ao sujeito singular que a recebe.

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18 CAPÍTULO 1: PSICANÁLISE E INSTITUIÇÃO: EM BUSCA DE UM SUJEITO

1.1 Revisão de trabalhos com articulação entre psicanálise e instituição

O presente capítulo faz um apanhado de trabalhos sobre atendimentos em instituições. Estes trazem relatos sobre experiências entre a psicanálise e outros saberes que circulam em algumas instituições de atendimento.

Segundo nos contam Maria de Lourdes Duque-Estrada Scarparo e Maria Cristina Poli, no Brasil, as pesquisas sobre a prática profissional dos psicanalistas nas políticas públicas ainda é recente. Contudo, as práticas que tomam o corpo teórico e metodológico da psicanálise como referência no campo da assistência social no Brasil têm história. Relatam as autoras:

Cabe salientar o trabalho pioneiro de Isabel Kahn Marin na FEBEM, a partir de 1987, anteriormente à Constituição e ao ECA, propondo reformulações nas concepções de institucionalização, com a humanização do sistema de abrigos, apontando para o atendimento às famílias e a contribuição da psicanálise na clínica e na instituição de abrigagem. (SCARPARO e POLI, 2008, p.53).

Neste artigo, através da reunião de trabalhos que articulam a interface entre a Assistência Social e a psicanálise, as autoras apresentam uma perspectiva de trabalhos sustentados pela ética da psicanálise. No primeiro momento, colocam a importância de ser mantido sempre em questionamento o que se entende como “clínica”. Assim, baseadas na referencia que fazem ao livro Os meninos e a rua – uma interpelação à psicanálise, de Tania Ferreira (2001), as autoras mencionadas trazem a reflexão de que a clínica ampliada não se restringe àquilo que chega até nós pelo sujeito como sintoma, mas também como o impossível de suportar pelo ‘mal-estar’ na cultura, como Freud colocou. Para seguir com o trabalho, outra questão é proposta: a relação de lugares públicos e instituições com o discurso do insuportável no social. A seguir, a psicanálise aparece em situações profissionais como possibilidade de contribuir para fazer circular o mal-estar advindo da condição de sujeito através da palavra, inserindo-se como aliada ao trabalho da Assistência Social e da Saúde.

(19)

19

integrante de comunidades pela sua identidade e diferenças, a partir de sua

história e seus direitos e deveres de cidadania. O quanto esse “indivíduo” pode ser ainda considerado como “sujeito” - tal como a psicanálise propõe - é algo que se mantém fortemente em questão. [...] a possibilidade de

reconhecer um sujeito vai além da legitimação de um “individuo de direitos”.

Implica em dar lugar a uma via singular àquele que, assujeitado a sua história e contexto social, busca encontrar uma via de reconhecimento e expressão de uma palavra própria. Certamente que o trabalho de construção da cidadania visada pela assistência social vai de par com essa proposta ética atinente ao campo da psicanálise. (SCARPARO e POLI,2008, p. 61-62).

A seguir, encontram-se trabalhos de psicanalistas que contribuíram com registros contando suas atuações e manejos em instituições em de atendimento a crianças, no campo da Assistência Social e no campo da Saúde. A importância do conhecimento dessas articulações contribui com reflexões sobre questões advindas da prática, problematizadas no trabalho presente.

De acordo com a experiência trazida por Vicentin e Knobloch (2008), as políticas públicas no Brasil, particularmente as da saúde, da educação e da ação social, podem encontrar no trabalho grupal um instrumento importante para sua implementação e avanço. No entanto,

[...] o incremento da utilização do dispositivo grupal nem sempre tem sido acompanhado de ferramentas que permitam pensar criticamente as intervenções realizadas e potencializar seus efeitos. O modo acrítico, espontaneísta ou tecnicista como muitas vezes pode ser implementado o dispositivo grupal – desprovido, portanto, das considerações e problematizações ético-teórico-políticas que o atravessam – nem sempre contribui para que o grupo se constitua como dispositivo para promoção de novos sujeitos, nossa utopia no campo da saúde. (Barros, 1995). E, ainda, a insuficiente elaboração teórica e a invisibilidade das práticas desenvolvidas impedem que essas se disseminem e possam ser campo fecundo para formação de outros profissionais. (VINCENTIN e KNOBLOCH, 2008, p.15).

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20 Clínico-Institucionais2, da Faculdade de Psicologia da PUC-SP” 1, desenvolveram uma relação de parceria a partir das produções sobre os estágios em troca da experiência proporcionada pelo trabalho nas equipes.

Durante a prática das intervenções propostas pelo projeto, foram observadas, na grande maioria das equipes, dificuldades em uma formulação conceitual sobre suas práticas.

Identificou-se também uma dificuldade da equipe ter tempo/espaço na sua agenda de reuniões para discutir essas atividades, seus desafios e seus aprendizados. A escrita revelou-se um dispositivo para abrir espaço para reflexão e análise da prática em questão, mas também questões do serviço e do grupo-equipe puderam ser identificadas e, na medida do possível, desdobradas. (VIINCENTIN e KNOBLOCH, 2008, p.23).

Ao longo do período de discussão, alguns ganhos foram notados para a equipe, além do texto finalizado que foi apresentado na proposta inicial. Foi obtido o efeito do espaço de discussão e circulação das práticas e, com isso, obteve-se, ainda, o reconhecimento da necessidade de formação das próprias equipes de trabalho, que puderam incluir a necessidade da criação de um espaço para que isso possa acontecer. Isso ocorreu para além dos problemas da precariedade das condições de trabalho na rede de saúde e da própria política de saúde que apresentou falta de recursos estruturais: tanto físico quanto do próprio modelo de articulação entre a rede.

Em contraponto à persistência, desejo e inventividade dos profissionais. Persistência e desejo que possibilitaram a construção de textos em meio ao cotidiano apertado de trabalho. (VICENTIN e KNOBLOCH, 2008, p.24).

A experiência possibilitou o diagnóstico de, que para muitas equipes, esse foi o único espaço de encontro com outros serviços que tornou possível que saíssem do isolamento e da fragmentação vividos por alguns serviços de saúde. (Vicentin e Knobloch, 2008).

Mobilizadas por uma mudança de gestão e reconfiguração das condições de trabalho, profissionais da equipe de atendimento da Clínica de Psiquiatria e Psicologia

1

“Um núcleo é o modo pelo qual se organiza a formação profissional na Psicologia da PUC-SP e que compreende um estágio (em torno de 4h a 8h) supervisionado (3h semanais), articulado a um conjunto de disciplinas teóricas, pretendendo um diálogo intenso entre teoria e prática. O referido Núcleo, desenvolvido no quinto ano, tem por objetivos: a)contribuir para a formação de profissionais capazes de responder aos desafios atuais do campo da saúde mental; b)Introduzir ferramentas teórico-técnicas para a criação de dispositivos de intervenção clínica-ético-política; c)Analisar criticamente diferentes modalidades de intervenção em saúde; d) Capacitar os alunos para realizar intervenções clínicas, focalizando situações de crise; e) Ampliar procedimentos e estratégias terapêuticas numa perspectiva interdisciplinar e interinstitucional. Participam do Núcleo os professores: Felicia Knobloch, Ida Elizabeth Cardinalli, Kátia El-Id, Maria Cristina G. Vicentin, Miriam Debieux e Isabel Khan Marin.”(Vicentin e

(21)

21 da Infância e Adolescência (PPIA) do Hospital do Servidor Público Municipal (HSPM), iniciam, em 2001, um processo de criação e implantação de um novo dispositivo grupal de atendimento clínico – grupo de acolhimento.

Com a experiência, quatro psicólogas integrantes do serviço produziram um artigo bastante relevante para pensar os rumos do saber profissional. Em momentos de crise e de impasses que, cotidianamente, atravessam o trabalho em uma instituição.

A saída de psiquiatras e psicólogos da instituição provocou um acúmulo de pacientes nas listas de espera, e a equipe passou a não conseguir dar atendimento em um curto prazo para os casos que estavam aguardando atendimento individual, que era o modelo de trabalho adotado pela instituição até aquele momento. Essa situação suscitou questionamentos, como, por exemplo, a dúvida sobre a modalidade grupal ser uma intervenção possível para aqueles casos que inicialmente tinham sido indicados para atendimento individual.

Entendemos que a nossa crise, por um lado, se apresentava como um momento de rompimento de algo já estabelecido, momento crítico e causador de angústia do qual participávamos cada um a seu modo. Por outro, se revelou como um momento promotor de mudanças, com possibilidade de levar a outras formas de funcionamento. Para que isso se produzisse foi necessário um trabalho pela equipe de contextualização, de mapeamento do que havia se desorganizado, fazendo frente desta forma a uma certa paralisia que as situações de angústia nos provocam. Acreditamos que esse também deveria ser o trabalho a ser realizado pelos pacientes que chegavam em crise. (CARVALHO et al., 2008, p.50).

Os efeitos da escuta sobre um sujeito verificam-se na história há muito tempo. Na experiência de Freud com as pacientes histéricas, “mesmo quando ele ainda insistia no uso do método catártico e na técnica de rememoração” (CARVALHO et al., 2008, p.51), revelaram um saber sobre os efeitos da palavra e da escuta:

O ato de convocar a falar é o princípio básico para o funcionamento do grupo de acolhimento. A proposta deste dispositivo é dar um lugar à palavra do sujeito, falar de seu sofrimento, reconhecer sua existência, ao invés de afastar, aplacar ou anestesiá-lo, o que muitas vezes é a demanda de todos (profissionais e pacientes). Orientamos nossas intervenções para que o sujeito-criança/adolescente e o sujeito-pais possam produzir questionamento e uma implicação com seu sofrimento. (CARVALHO et al., 2008, p.51).

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22 também precisam tomar distância dos filhos para que cada um tenha oportunidade de cuidar das próprias mazelas.” (CARVALHO et al., 2008, p.51).

Sobre a eficiência nos atendimentos, como aparece em trabalhos citados anteriormente, a escuta parece ser o instrumento necessário. A importância da escuta é novamente enfatizada pelas autoras para que o sujeito possa se deslocar de um lugar apriorístico que assumiu:

Demandar que o sujeito fale de seu sofrimento já se constitui numa primeira intervenção terapêutica. Porém, o tratamento no campo da saúde mental deve ir além: levar o sujeito a sair de uma posição onde é o outro que sabe do que lhe acontece, para um lugar de construção de um saber sobre si mesmo. Esta convocação também se aplica a crianças e adolescentes.

Partimos do pressuposto de que a criança e o adolescente são sujeitos que pensam, sentem, desejam, produzem fantasias e teorizações a respeito das questões fundamentais da vida (a origem, a sexualidade, a morte). Ou seja, além do discurso produzido sobre eles pelos adultos (pais, professores, médicos, etc), damos um lugar de escuta para o sujeito-criança e o sujeito adolescente. (CARVALHO et al., 2008, p.51).

Uma das características do trabalho feito no grupo de acolhimento é tempo determinado de duração, para que o sujeito produza algum saber sobre seu sintoma nesse período. A delimitação do tempo, segundo as autoras, precipita uma responsabilização do sujeito por aquilo de que se queixa, reforçando que está ali para tratar de algo que lhe incomoda, diferente de um espaço qualquer.

A previsão do término da participação no grupo aponta para um momento de conclusão, para a possibilidade de produzir algo: seja um deslocamento de seu sintoma, seja um saber sobre ele, seja o reconhecimento de que precisa de mais um tempo para tratá-lo. (CARVALHO et al., 2008, p.52).

A alternativa encontrada pela equipe para contornar os problemas que estavam presenciando na instituição e, também, para otimizar o tempo de espera e melhorar a inserção no serviço, foi de configurar uma demanda de atendimento. Com isso, ofereceu-se uma escuta clínica no “grupo de acolhimento”, criando-se, assim, espaço para elaborar o início do tratamento neste momento de entrada do sujeito na instituição.

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organizações burocráticas, e a eleição de critérios clínicos como determinantes para a inserção dos pacientes nos programas. Por outro lado, revelou-se um dispositivo clínico potente porque dentro de um tempo determinado funciona como um instrumento de esclarecimento de demanda, mas também de intervenção clínica, visando a implicação dos sujeitos com a queixa, bem como a produção de efeitos terapêuticos. (CARVALHO et al, 2008, p.52).

A eficácia da criação do grupo de acolhimento foi reconhecida pela equipe como um método de trabalho importante para o trabalho empreendido:

Em nossas reflexões nos demos conta de que a proposta do acolhimento é intrínseca (ou deveria ser na maioria das vezes) à nossa prática profissional. Salientamos este tema no cotidiano da instituição por ser um grande desafio o atendimento de uma demanda tão numerosa e tão rica em sua diversidade (riqueza proporcional ao tamanho da demanda!). Os grupos de acolhimento constituíram-se numa alternativa possível tanto para os pacientes como para nós, terapeutas.

Passamos então a repensar a temática do acolhimento, integrando-a na construção de uma nova leitura da formatação da clínica. Com a evolução desta experiência nos demos conta de que o acolher é uma atitude que se põe desde o guichê, no atendimento a um telefonema, na sala de espera, e no atendimento clínico propriamente dito. O novo enfoque se expande numa grande espiral. As demais modalidades de atendimento desenvolvidas passam então a ser lidas através desta ótica.(CARVALHO et al., 2008, p.57).

A contribuição dessa experiência nos traz uma dimensão importante: a de poder incluir o conflito no reposicionamento frente ao saber profissional, dando a possibilidade de outro rumo ao incômodo institucional que se impôs, mas sem impossibilitar o trabalho. Assim como o sintoma traz uma verdade sobre o sujeito, a crise na instituição opera como o sintoma; e, se essa crise puder ser lida pela equipe, faz-se um giro e promove-se um reposicionamento do profissional frente os impasses apresentados.

Assim, a partir do reconhecimento da instalação do momento de crise institucional, impeditivo de fluidez nos atendimentos, a equipe, ao lançar mão deste novo recurso, pode promover mudanças significativas junto

aos pacientes, no trato com a “fila de espera”, no seu olhar para o trabalho e para si própria. (CARVALHO et al., 2008, p.57,58).

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24 diversos profissionais, atentando-se à importância do trabalho em equipe e ressaltando-se que a rede, por si só, não cura ninguém.

A posição técnica do profissional não deve coincidir com o saber técnico, de modo que seja possível responsabilizar o sujeito por sua posição sem tratá-lo como objeto de investigação. Segundo Teixeira (2007), a imagem da rede remete à ideia de uma realidade que deve ser pensada mais pela ligação do que pela substância de seus elementos. Nesta perspectiva, a rede seria uma abstração virtual que só se torna real quando posta em ação, em seu uso concreto na experiência, permitindo-nos passar do universal para o singular. Desta forma, pensar e trabalhar na rede significa fazê-lo no caso a caso. (KHAN et al., 2013, p.167).

Segundo as autoras, não se pode trabalhar sozinho na rede, embora a responsabilidade do ato profissional se situar no “um a um”. O que se pode partilhar é o que se escuta de cada caso, a cada intervenção, para se tecer um saber. O que se pode compartilhar e produzir saber são os elementos fornecidos pelo sujeito, como pistas para a direção do tratamento.

Os modos de solução encontrados pelo próprio sujeito em atendimento, assim como o saber que ele próprio engendrou, devem ser o principal vetor de orientação a ser utilizado nos trabalhos em equipe e sempre uma construção provisória, sujeita aos limites do material que já emergiu. (KHAN et al.,2013,p.174).

No decorrer da apresentação dos casos atendidos, o artigo chama a atenção à necessidade de novas construções e interpretações que os casos impõem diariamente à equipe que os acompanha. Os impasses do atendimento se apresentam a todo momento, fazendo do trabalho uma aposta sem garantias. O atendimento é uma aposta que se faz, para que o sujeito produza um saber sobre si mesmo a partir das diferentes percepções, ou seja, de múltiplas leituras dos diversos profissionais envolvidos nos atendimentos que desempenham um papel ativo na condução dos casos:

Como pode ser visto, as decisões foram tomadas levando-se em conta o que era observado nos atendimentos e o que era pensado, discutido, a partir das percepções dos profissionais, uma vez que o trabalho na rede é feito entre o que é da ordem do sujeito e o que é da ordem do contexto das instituições envolvidas [...] trabalhar na rede implica uma constante construção, em que não existem lugares previamente definidos, mas, ao mesmo tempo, os profissionais não devem perder de vista sua

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25 No entanto, a articulação de profissionais de áreas diversas, que funcionam por lógicas diferentes, não se dá sem impasses. É preciso estar alerta, retomando-se o objetivo principal a todo o tempo: o sujeito.

O artigo em referência oferece uma formalização de experiências na rede de saúde em que diferentes instituições operam sobre determinados casos. As autoras constroem um trabalho de contar sobre a condução conjunta, sobre a importância do trabalho conjunto, exercício importante a ser feito a quem trabalha em rede. É necessário se amarrar e se desamarrar muitas vezes, de modo a manter um movimento entre o saber profissional e a articulação deste junto a outros saberes de outros profissionais.

Ainda na referida revista, Caritá, Furtado e Venditti (2000) apresentam artigo contendo algumas reflexões sobre a experiência desenvolvida no Centro de Referência e Apoio à Vítima – CRAVI, um programa da Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania. Questionam o protagonismo social dos usuários atendidos pelo serviço e o sentido de promover questionamentos sobre as formas de constituição dos laços sociais. O artigo nos conta sobre a escolha feita pela equipe ao trabalhar esta temática, opção que consistiu em abandonar o par antinômico indivíduo versussociedade. Assim:

Realizar esta análise opera uma passagem da singularização da violência sofrida para uma particularização histórica no plano social, ou seja, a maneira de inscrever tais experiências em um laço social é uma matriz importante para ultrapassar o caso a caso, e se dá pela identificação dos fios que alinhavam as diferentes situações individuais, assim como pela busca por precisar os elementos sociais definidores dessa violência. Realizar uma intervenção que contextualize seu lugar social, o momento histórico e seus desdobramentos, provoca o sujeito a se posicionar de outra forma e buscar alternativas coletivas. (CARITÁ, FURTADO e VENDITTI, 2000, 121).

Como visão de sujeito norteadora adotada na prática da equipe conjugada entre vários saberes, apresentam a escolha por sustentar a tensão entre singular e coletivo.

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26 O relato da experiência da equipe do CRAVI entende que, para melhor atendimento no serviço:

[...] é importante ressaltar a dimensão ética da interdisciplinaridade, na medida em que horizontaliza as relações de poder, pois não significa justaposição nem sobreposição de saberes, também não anula a especificidade de cada campo de saber. Ela, antes de tudo, implica numa consciência dos limites e das potencialidades de cada campo de saber para que possa haver uma abertura em direção a um fazer coletivo. (CARITÁ, FURTADO e VENDITTI, 2000, 122).

Sonia Alberti discorre sobre a sustentação do usuário como sujeito nos contextos de atendimentos institucionais a partir de sua prática, conforme artigo publicado na revista da Universidade do Rio de Janeiro (UERJ). A experiência produzida coincide com aos artigos de Khan et al (2013) e de Caritá, Furtado e Venditti (2000), no que tange a aposta no contínuo trabalho de articulação de saberes profissionais em equipe, mantendo-se a singularidade do sujeito em foco e as especificidades de cada escuta.

Sobre a inserção da psicanálise em contexto da saúde pública, a autora coloca:

Não basta sabermos que cada usuário é um cidadão, a psicanálise acrescenta algo a isso. O quê? o reconhecimento de que cada usuário é um sujeito, com tudo o que isso representa na relação com a cultura, o desejo e as diferentes formas de gozar. Eis também onde se abre o espaço na interlocução com as diferentes equipes, para o discurso do psicanalista, em interlocução com os outros discursos. (ALBERTI, 2008, p.9).

Sobre a relação entre a psicanálise e o campo da saúde mental, ainda conforme Alberti, há uma aposta sustentada no desejo, como explica: “a aposta é também uma consequência ética: pois para propor uma relação entre a política da psicanálise e a da saúde mental é preciso, antes de mais nada, apostar que tal relação possa existir no cotidiano da prática clínica. Isso nem sempre é fácil.” (ALBERTI, 2008, p.9). E essa aposta, segundo a autora, sustenta-se na ideia de que o desejo

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27 Para a autora, a experiência demonstra que os trabalhadores na saúde mental que têm uma relação com a psicanálise, algumas vezes encontram dificuldades na própria prática das políticas de saúde mental. Algumas questões sobre o trabalho em saúde mental surgiram quando, em 1984, a autora apresentava um relatório sobre a função da Psicologia no trabalho. Retoma esses pontos, ao indagar a quem serve a saúde mental, a que serve e por que não funciona como se pretendia.

Não seria esse também o questionamento que hoje deveríamos fazer frente a denúncias que ainda irrompem, até mesmo na grande imprensa? Ou seja, se há disfuncionamentos isso não significa que deveríamos retornar aos tempos do grande internamento – já denunciado por Michel Foucault há tantas décadas –, mas procurar repertoriá-los para avançarmos em seu tratamento que aqui pretende aliar a política da psicanálise à da atual política de saúde mental. Assim, é urgente também que verifiquemos as relações de poder existentes hoje no campo das políticas de saúde mental, os interesses em jogo e os diferentes produtos que tais políticas promovem, no cotidiano do trabalho. (ALBERTI, 2008, p.10).

O trabalho de fazer a relação entre os dois campos diferentes do saber, como o são a Assistência Social e a psicanálise, com pressupostos distintos, não é um encontro pronto que se possa sintetizar em um saber único. É importante o reconhecimento de que os pressupostos de ambas têm concepções diferentes no que diz respeito ao psíquico.

Como descrito anteriormente, para pensar na articulação entre a psicanálise no contexto de instituição que trabalha com cuidados, bem como a saúde e a assistência o fazem, busquei trabalhos que trouxessem a experiência desta articulação:

Percebe-se então que, desde seus respectivos fundamentos, saúde mental e psicanálise configuram-se como campos distintos – o primeiro tem por centro o homem determinado pela supremacia da razão e o segundo se funda ao descentrar o homem de sua razão, quando Freud o desvela como determinado pelo inconsciente. Assim, de acordo com seus próprios fundamentos, saúde mental e psicanálise só poderão ter também concepções bastante diferentes sobre o psíquico. (FERNANDEZ, p.12,2001).

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28 O objetivo de seu trabalho foi de ampliar o leque de informações sobre as possibilidades e limites do exercício da psicanálise fora dos consultórios privados: “O que prescrevo é um modo de conceber a especificidade da psicanálise e da função do psicanalista, para que se possa identificá-la e praticá-la a partir do percurso da cada um”. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.10). Afirma, contudo, não haver duas psicanálises, uma para o consultório e outra para o ambulatório. Desenvolve a ideia de o psicanalista ter inserção na instituição, não como uma categoria profissional distinta, isolada, mas como um saber:

Em princípio, a psicanálise está incluída na categoria das psicoterapias. Mas é importante que se estabeleça sua diferença para não diluí-la ou mesclá-la com variações que descaracterizem sua especificidade. Assim, a questão não é recusar à psicanálise seu estatuto de psicoterapia, e sim diferenciá-la das demais psicoterapias. Entretanto, considero que não é imprescindível instituir a psicanálise como mais uma especialidade na lista de ofertas dos serviços. Primeiro, porque a clínica psicanalítica é praticada por profissionais com diferentes designações como psicólogos, psiquiatras e outros. Ao instituí-la, é como se só aqueles designados como psicanalistas pudessem praticá-la. Quem designaria? Segundo, porque, além de não dizer quase nada sobre seus procedimentos, cria expectativas e idealizações que, na melhor das hipóteses, decepcionam e, na pior, aumentam a resistência tanto de outros profissionais quanto da clientela. Uma certa utopia, um estar 'à sombra', pode ser salutar como lugar para o psicanalista no trabalho institucional. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p. 10).

A autora escolhe o ambulatório para fazer sua pesquisa, pois acredita que este é um local privilegiado para a prática da psicanálise, porque faculta o ir-e-vir, mantém uma regularidade no atendimento pela marcação das consultas, preserva certo sigilo e, ainda, propicia certa autonomia de trabalho para o profissional.

Uma das críticas feitas frequentemente ao ambulatório, especialmente pelos ideólogos da saúde mental, é que sua estrutura e modo de funcionamento são análogos aos do consultório, como se esta prática, com seu caráter privado, fosse indevidamente transposta para o serviço público. Penso justamente ao contrário. O ambulatório não é um simulacro do consultório; é o próprio consultório tornado público. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.10—11).

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[...] é a ideia de tornar público, visível, e deixar transparecer o trabalho clínico por oposição ao termo privado como privativo de alguém. Por mais privatizado que seja o funcionamento de um ambulatório, o volume de pessoas que circulam as formas de registro e as várias relações aí estabelecidas tornam sua marca de público inapagável. Devemos nos beneficiar disto tornando-o mais público.” (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.11).

É importante questionar sobre que material da atuação se torna público e como isto é transmitido é importante. Em um contexto institucional, deve-se dialogar sobre o trabalho com outros campos do saber e com outras instituições. A maneira de tornar público o trabalho da psicanálise é um ponto importante a ser discutido de modo a não ferir a ética do sigilo de um atendimento, nem a ética do sujeito.

Se a clínica psicanalítica requer certa intimidade, discrição e sigilo, isto não quer dizer que sua prática deva se perder no intransmissível. O tornar público a que me refiro, no que diz respeito à psicanálise, é fazer circular, entre os pares e profissionais afins, o cotidiano da clínica com seus impasses e sucessos. É também produzir trabalhos, estudos de casos e pesquisas para redimensionar o alcance da teoria em relação à experiência clínica, que traz desafios de todo tipo. O meio universitário é bem propício, assim como as associações de psicanalistas. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.11).

A clínica psicanalítica, em sua diferença em relação às demais psicoterapias, toma como ponto de partida a realidade psíquica que condiciona a fala ao movimento da transferência dirigida ao analista, que encontra, na interpretação e na relação com o tempo lógico, seus instrumentos para o manejo do tratamento. É duplamente desafiador articular a psicanálise a um espaço com atravessamentos de demandas institucionais e a um tempo cronologicamente determinado, uma vez que não há uma forma pré-delimitada sobre a forma como atuar.

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A primeira vista, poderíamos dizer que a psicanálise veio, viu e venceu. Ocupou parte do território das instituições psiquiátricas como, por exemplo, as comunidades terapêuticas; provocou mudanças nosográficas, diagnósticas e de tratamento na psiquiatria sob a rubrica de psicodinâmica;

instrumentou práticas psicoterapêuticas diversas, difundiu-se para outros campos do saber e, ainda, tomou de assalto, através da mídia, a vida sexual-amorosa, familiar e social das classes médias urbanas sob a forma de uma

'cultura psicanalítica’. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.13).

Sobre a dicotomia imaginariamente criada sobre duas psicanálises, que, equivocadamente, representariam uma psicanálise em consultório e outra em instituição, Figueiredo afirma:

A dicotomia consultório privado versus ambulatório público não pode ser tratada como confronto entre dois contextos, radicalmente diferentes, que supõem duas psicanálises, pois estaríamos tomando o local e suas condições como o contexto por excelência, o que é, no mínimo, uma diferença grosseira, senão uma falsa questão. Entretanto, parto taticamente dessa dicotomia para estabelecer o jogo das identidades e diferenças, visando pulverizá-la para ampliar as possibilidades do exercício da psicanálise. (FIGUEIREDO, 1997/2002, p.31).

1.2 Manejos de alguns casos atendidos por psicanalistas em instituições

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31 Neste ponto, as autoras Simone Gryner e Paula Ribeiro ressaltam a importância de um duplo questionamento: primeiro, se um tratamento psicanalítico é diferente de um trabalho assistencial, ou pedagógico; segundo, que diferenças um tratamento psicanalítico pode trazer para o trabalho empreendido (GRYNER e RIBEIRO, 2011).

São de muita importância as palavras de Pedro Duarte, em diálogo transcrito pelas autoras para contarem sobre reflexões feitas com base trabalho do NAV de inserção da psicanálise em um contexto institucional de atendimento às crianças vítimas de violência, para além da situação de violência que se coloca ao sujeito a priori:

“A questão do uso da psicanálise em situações que não são aquelas

restritas a consultório, enfim, em trabalhos que a gente possa fazer no social, me parece uma questão fundamental porque esse trabalho advém da posição que cada um vai ter. O psicanalista, nessas situações, pode ter uma outra posição. Essa diferença de posição diz respeito a uma diferença que a gente pode fazer entre aquilo que é, para Freud, o juízo de atribuição e o juízo de existência, o qual se caracteriza por tomar as situações do social por aquilo que elas são, independentemente de fazer um julgamento prévio em relação àquilo que se está trabalhando.

Então, no caso da questão da violência, o que vocês me transmitem é que não há a priori um julgamento em relação a quem é que tem razão, ou quem deixa de ter razão, ou se há uma coisa ruim ou boa. Trata-se a situação da maneira como ela se apresenta, que é exatamente – acho que isso é uma questão fundamental – tratar aquela situação enquanto uma questão humana, e não enquanto uma coisa que tenha que ser extirpada do humano, tirada do humano. Tratar aquilo enquanto uma dificuldade que advém da própria existência humana. O psicanalista pode ter essa posição, que é uma posição que eu diria ética, em vez de ser uma posição meramente moral, a qual

advém exatamente de um julgamento prévio. A posição moral seria: ‘Eu estou lá para consertar um comportamento desviante que se reprova’, e que,

então, nós somos chamados pela sociedade para consertar, botar nos eixos,

para trazer uma coisa boa, ‘Eu porto o bem’. A psicanálise, de maneira

diferente, pode trazer isso, de olhar as coisas como elas são na sua humanidade, na sua miserabilidade que é a de todos nós. E o que fazer com isso? E lidar com isso, como é? Isso é o que eu penso que é com o que vocês

podem contribuir de uma maneira significativa.” (GRYNER e RIBEIRO,

2011, p.32).

Flávia Franco, em sua fala relativa ao trabalho desenvolvido pelo NAV, coloca a escuta como elemento que sustenta o trabalho desenvolvido pela instituição:

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acontecimento, traz isso. E no NAV eu acho que isso é muito importante. A violência não está no fato, não está no acontecimento, não está nisso, mas está na forma como o sujeito vai se situar discursivamente diante disso. O lugar a partir do qual ele vai tomar a palavra, o lugar em que ele se situa, o lugar em que o outro se situa, que lugar o outro dá a ele. E isso se constrói no aqui e agora. Não é alguma coisa que está lá, porque senão o sujeito é sempre refém de alguma coisa que aconteceu, sempre refém de alguma coisa que houve lá; não tem como o sujeito se redescobrir, se refazer no discurso.

Então, eu acho que isso no NAV aparece muito forte.”(GRYNER e

RIBEIRO,2011, p.32,33).

Observa-se uma semelhança entre a posição que os entrevistados atribuem ao sujeito falante, considerando-o naquilo que pode advir de seu discurso. Na entrevista, aparecem posições defendendo a implicação do sofrimento do sujeito como ponto de partida para o trabalho, apesar das circunstâncias inseridas pelas contingências que o levaram até ali. Para a profissional Idália Góes:

“... essa dimensão de não ter, não sustentar ali um julgamento prévio que o

cristalize, que o identifique cada vez mais na posição que ele veio trazendo até ali, é uma possibilidade de o sujeito se retomar, se recolocar no mundo, se recolocar na vida, abrir uma outra perspectiva.

Eu acho que nessas situações de violência, nessas situações de risco, a dimensão da palavra é dar ao sujeito essa possibilidade de se recolocar diante das coisas que estão acontecendo com ele.E essa dimensão do juízo de existência acolhe essa possibilidade, dá ao sujeito essa possibilidade que é a dimensão da palavra, nesse sentido radical que a gente está falando aqui, que é o sujeito se ressituar em relação à vida e às coisas que estão colocadas para ele na vida.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p.33,34).

A palavra seria a via de acesso ao destino construído pelo sujeito para historicizar sua própria situação.

Francisco Leonel fala da importância da escuta clínica para a desnaturalização imposta muitas vezes pela dimensão social, via pela qual o sujeito acessa o serviço e que o coloca em uma posição prévia que será trabalhada em seguida. No espaço de escuta, a cena prévia se desmonta. Para descrever esse processo, o psicanalista sintetiza:

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tratarem no nav, apesar de, na maior parte das vezes, vocês não priorizarem

esse tipo de informação.”(GRYNER e RIBEIRO, 2011,p.34).

O ponto fundamental da fala de Francisco Leonel reside na posição do analista frente à demanda declarada. Destaca a sustentação do trabalho por parte dos psicanalistas da equipe do NAV, que acontece apesar do “rótulo social” assumido institucionalmente, aquele de pessoas que sofreram ou exerceram violência. A diferença contingencial em relação ao espaço do consultório refere-se apenas à forma como o atendido ali chega. A situação da escuta oferecida, entretanto e independentemente disso, é analítica e supõe um sujeito; e esse sujeito não é tomado por uma marca externa que o insere no NAV em um primeiro momento, mas é, antes, tomado por um sujeito do inconsciente.

Isso supõe que algo da marca social designada ao sujeito pode ser deslocado e o trabalho pode acontecer sem que seja pela manutenção apriorística dessa marca. Ainda assim, como nos conta Leonel, os juízes, os Conselhos Tutelares e as famílias continuam indicando casos para serem atendidos no NAV, mesmo estes solicitando relatórios com conteúdo de atendimento e os profissionais do NAV não respondendo a esta demanda.

Outro argumento muito importante problematizado nesta discussão entre os profissionais é sobre a questão da responsabilização do sujeito. Segundo a fala de Fernanda Costa Moura, “... é importante sublinhar que não fazer um julgamento prévio não tem nada a ver com desresponsabilizar.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p.34). Sobre isto, diz “... todo o trabalho do nav é não amenizar em nada a responsabilidade para que o sujeito possa se haver com a gravidade, com a seriedade, com as consequências seja do que lhe aconteceu, seja daquilo que ele fez ao outro.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p.35).

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34 Especificamente no caso da violência doméstica, a possibilidade de não julgamento e de uma escuta, o trabalho com os afetos:

“Nos casos, especialmente de violência doméstica, você sempre

sublinha o fato de que a situação de violência doméstica é uma situação onde o sujeito tem vários elos de ligação com aquela situação, que não é só a violência. Implica que o sujeito tenha um laço, por exemplo, com o autor da agressão. E que a violência – como eu já ouvi várias vezes o pessoal do nav dizer – a violência é apenas uma das situações que unem aquelas pessoas ali. E é muito importante para uma criança, por exemplo, poder falar da dificuldade que é para ela amar, por exemplo, alguém da família ou o agressor que pode ser seu vizinho, seu primo, seu irmão, seu pai e, ao mesmo tempo, poder falar do ressentimento pelo que aconteceu. E toda essa nuança, toda essa complexidade, só pela palavra mesmo é que isso pode advir e ganhar diferentes lugares para poder ter consequências, para o sujeito poder

se encaminhar.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p.35,36).

As condições de trabalho proporcionadas pelo NAV, conforme colocado por Fernanda Costa Moura, incluem condições dignas de trabalho com salários condizentes, horários viáveis de trabalho, supervisões formadoras e discussões de equipe aprofundadas. A forma como é feita a divisão da responsabilidade também faz parte das preocupações com as condições do trabalho.

Por meio da implicação de cada profissional no trabalho e da implicação de cada sujeito atendido, mantém-se uma escuta, o que permite uma intervenção com base na singularidade de cada caso. Por exemplo, uma carta escrita a um juiz é pensada, elaborada e debatida. Conforme colocado pela fala de Idália Góes: “É uma implicação que, ao mesmo tempo, abre uma possibilidade não previamente estabelecida para o sujeito.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p. 38). Ainda acrescenta que esse tipo de trabalho não se faz lidando com a massa. É um trabalho que se faz “um a um” para que exista resultado.

A direção de trabalho proposta pela equipe do NAV, em vez de trabalhar com um saber pronto e fechado sobre as situações de violência, proporciona um espaço para o sujeito apropriar-se de sua história, colocando-se dentro dela e podendo dar um destino outro, que não sabe previamente qual será.

Simone Gryner fala da relação do profissional em atendimento a uma demanda grave, sobre como se posiciona diante de um sujeito de modo a considerá-lo em seu tempo:

“Nessas situações graves qualquer profissional que esteja envolvido

quer resolver a situação o mais rápido possível. É natural que se queira

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35

incluem o sujeito, ou algo completamente diferente, que é poder suportar um certo tempo de construção de soluções para aquela situação, soluções que podem ser surpreendentes tanto para o profissional quanto para o sujeito em

tratamento.”(GRYNER e RIBEIRO2011,p. 39).

Conforme coloca Pedro Duarte com precisão em sua fala, ainda sobre o sujeito e o tempo necessários a um trabalho que envolva escuta:

“Há um tempo. Como na clínica, há um tempo do sujeito. A mim,

parece que não é evidente que as pessoas que cometem esses

comportamentos que são delinquentes ou violentos... não é evidente “com o que é que eles estão envolvidos”, de cara. Isso é uma questão que pode ser,

por exemplo, para o conjunto de profissionais na sociedade, uma questão que já qualifique de cara como aquilo é, como aquilo requer uma sanção qualquer. Mas, para quem está envolvido, muitas vezes é necessário um trabalho para ele poder aceder a alguma responsabilidade, para ele poder ter uma justa dimensão de como ele está envolvido ali. Isso não é claro. Isso, em uma análise de uma pessoa, individualmente, a nossa própria experiência de análise é isto: há um tempo do sujeito para poder ter uma mudança em relação àquilo que o constitui, aquilo a que ele está preso, aquilo que ele está... de alguma maneira, que ele ignora, que o obriga, que o coloca em uma ação que ele não sabe de onde vem. Então, tem que ter um tempo, não é

alguma coisa que possa ser de cara.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011,p.39,40).

Preservar a dimensão do tempo na política pública é tarefa difícil, considerando os atravessamentos dos diversos campos interferentes na vida de um sujeito – tais como os campos jurídico, familiar, social e escolar – que se colocam para o sujeito e caminham em paralelo à sua singularidade. “Como é possível dar esse tempo, mesmo na urgência que esse trabalho exige?” (Gryner e Ribeiro, 2011, p.40). Nesta pergunta feita por Fernanda Costa-Moura, está situada uma problemática constante ao trabalho do psicanalista inserido em um contexto de política pública. Atenta-se para a importância do tempo cronológico e do tempo lógico. Como incluí-los no trabalho, em vista de suas diferentes dimensões? Ainda nas palavras da profissional: “Porque uma coisa é dar ou não o tempo, e outra coisa é a urgência. Você pode dar um tempo, sem perder a noção de urgência, o tempo não é infinito. Mas ao mesmo tempo, de alguma maneira, se preserva o que é necessário para aquele sujeito ali. Em vez de imputar a ele, por exemplo, uma solução para caber no tempo.” (GRYNER e RIBEIRO, 2011, p.40).

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