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O romance de aventuras e a juventude da narrativa : Moby-Dick e as suas adptações juvenis

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Academic year: 2021

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José Luiz Sarmento Ferreira

O ROMANCE DE AVENTURAS

E A JUVENTUDE DA NARRATIVA

Moby-Dick e as suas adaptações juvenis

PORTO

1996

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José Luiz Sarmento Ferreira

O ROMANCE DE AVENTURAS

E A JUVENTUDE DA NARRATIVA

Moby-Dick e as suas adaptações juvenis

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Dissertação de Mestrado em Estudos Anglo-Americanos (Literatura Norte-Americana) apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto

UNIVERSIDADE DO PORTO e da Letras A

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PORTO 1996

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Nota Prévia

Uma das minhas primeiras leituras extensas foi um romance em quinze volumes. Tinha por título A Volta ao Mundo por Dois Aventureiros e contava, em mais de duas mil páginas de texto, a viagem de dois desertores da Legião Estran-geira entre o Sahara e um castelo que ficava, se me lembro bem, no vale do Loire. A história fazia uma digressão pelo Egipto, Etiópia, Madagáscar, índia, Malásia, Japão, China, Sibéria, América do Norte, Amazónia, Libéria, Balcãs, Roma, Londres -provavelmente não por esta ordem, pois já passou muito tempo e a obra está hoje dispersa pelos alfarrabistas, em volumes desirmanados.

É provável que eu não conhecesse então a palavra epopeia; mas se tivesse dela a noção que se tem aos primeiros contactos, talvez a usasse para descrever esta história, que, se não era épica pela riqueza ou profundidade dos símbolos e dos mitos, ou pela profusão da invenção poética, era-o certamente pela extensão. Vim a aprender mais tarde, na escola e nas fileiras obrigatórias da Mocidade Por-tuguesa, o que era uma epopeia: era, disseram-me, Os Lusíadas. O que n'Os Lusía-das me parecia então especialmente épico eram as três estrofes iniciais, por causa das armas e da dilatação do Império, da força mais que humana dos barões, e do estentóreo propósito do poeta. A Ilha dos Amores, para mim, não era épica: era excitante e proibida. Por aqui me fiquei, durante muito tempo, no que respeita às epopeias; e haviam de passar anos antes que A Ilíada e a Odisseia, mesmo nas

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versões juvenis que circulavam na época, viessem a representar para mim mais do que títulos de menção obrigatória em exames. Ninguém me exigia que as lesse e durante muito tempo não as li.

O que li, sim, em quantidades que agora me parecem prodigiosas, foi ro-mances de aventuras e de capa e espada, westerns, histórias policiais, ficção cien-tífica. E misturadas com estas, indiscriminadamente, obras canónicas: Eça, Camilo, iManzoni, Balzac, Zola, Dickens, Scott, Twain, Steinbeck, Fitzgerald, Hemingway, Arthur Miller, Norman Mailer, Henry Miller, Sartre, Camus, Bazin, Céline, Tolstoi, Dostoievski, Gogol, Moravia - e isto chegou mesmo a Joyce, Beckett e Haubert. Mas eu não sabia que estas obras eram canónicas. O que hoje acho extraordinário é que durante os anos que passei a 1er tudo isto - entre o fim da escola primária e o início de um curso de Filologia Germânica - nunca parei de reler aquela rudimen-tar epopeia em quinze volumes. Quero aqui recordar, no momento em que me preparo para abordar uma outra leitura da minha juventude cujas credenciais são incomparavelmente mais canónicas, os autores e promotores da minha primeira viagem literária à volta do mundo. São eles Henry Dalton e Philip Gray, de quem nada consta nos manuais.

Nunca saberei dizer que parte da minha visão do mundo e que parte do meu entendimento dos livros se deve à Volta ao Mundo por Dois Aventureiros; ou a Um Pequeno Herói, do mesmo Henryk Sienkiewicz que escreveu Quo Vadis; ou a Verne, Dumas, Salgari, Cooper e Karl May. Todos juntos ensinaram~me uma geo-grafia que é dos rios e dos desertos e ao mesmo tempo dos afectos e dos sonhos; mostraram-me como se toma a Bastilha e também, como Carroll a Breton, como se foge à Escola. Nunca mais deixei de querer fazer ambas as coisas. Nas histórias em que se foge à escola e se toma a Bastilha há sempre um rei e uma madrasta; há sempre uma viagem longa e eriçada de perigos, uma batalha decisiva, um triunfo da força e da virtude; e também pelo menos uma falta da vaidade ou do orgulho, e uma apoteose do herói: todos os seus inimigos, por mais poderosos, são finalmente confundidos. Em Dalton e Gray, como em Homero, estão presentes estes elementos; e estão-o também, sob pior ou melhor disfarce, em Melville, como em todas as narrativas que algumas vez procuraram um leitor e o encontraram.

Lá vem depois um dia, ou um ano, em que nos damos conta que o amor das histórias se nos transformou em amor da leitura. Como é que isto acontece, e quando? De repente, a cadência e a melodia de uma frase ou a economia de uma

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ideia invade-nos o ouvido, e seduz-nos a inteligência ou a sensibilidade. Ou então reconhecemos uma alusão, uma paráfrase: e no texto que temos debaixo dos olhos passamos a 1er os outros textos que já temos lido, e a pressentir os muitos outros que também lá estão em contexto e em subtexto, e que talvez nunca venhamos a 1er. Este é o momento mais perigoso: é o momento em que os livros começam re-almente a fazer sentido, e é o momento em que irremediavelmente o perdem. E é também o momento em que começamos a pressentir cabalas: a procurar, como monges exegetas ou rabinos alucinados de erudição, os sentidos ocultos de todas as leituras. Se não tivermos cuidado, corremos o risco que as palavras dos poetas se nos entornem, e que todo o seu sentido venha a derramar-se e a secar nos verbetes e nos ficheiros das bibliotecas, exalando um cheiro característico. Os livros só existem em contexto; mas, assim como o contexto das palavras não é as capas de papel ou de cartão, o contexto dos livros não é as bibliotecas.

O contexto de um livro escrito e lido é livros lidos: o contexto é as nossas leituras. E é as brincadeiras infantis aos exploradores ou aos cowboys, e as interro-gações adolescentes a um professor favorito ou odiado, e é o maço juvenil de

Gau-loises enquanto se discute Marx, Freud e Guy Debord pela noite dentro. Sendo

as-sim, como podemos nós, agora que é a nossa vez de dar do que 1er às novas gera-ções, aspirar a criar os contextos dessa leitura? Se eles já vêm de trás? Como transmitir aos nossos filhos e aos nossos alunos o gosto de 1er se esse gosto não for uma arte de 1er em contexto? E como pode uma tal arte de 1er ser outra coisa senão uma arte de viver? E - visto que só lê quem aprendeu a 1er; e só se ensina a 1er a quem já lê - como sair deste círculo vicioso, se não pela integração e contextuali-zação de todas as leituras?

Não sào estas as questões que me proponho tratar no trabalho que se segue. São meramente algumas das que tive presentes enquanto me ocupei dele. É possí-vel - não é só possípossí-vel, é certo - que estas questões tenham determinado algumas das escolhas conceptuais e metodológicas que me guiaram. Deste facto não peço desculpa: fazer escolhas é preciso, e em todas as escolhas há uma margem inevitá-vel de irracionalidade e preferência. Peço desculpa, sim, de não ter reduzido esta margem tanto quanto seria desejável e talvez possível. E peço desculpa, sobretudo, de ter cometido o erro capital: advertido que estava por Flaubert de que só há uma maneira, a certa, de dizer seja o que for, verifico que raramente a encontrei.

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Ao Professor Doutor Carlos Azevedo quero deixar expresso o meu re-conhecimento. Ao reencontrar-me com a Universidade, fui chamado não só a retomar métodos de estudo que nos últimos vinte anos pouco tinha exercitado, como a adap-tar-me a alguns dos que entretanto surgiram. Algumas das formulações teóricas com que tive oportunidade de contactar neste regresso inscrevem-se na vanguarda dos estudos literários e da Americanística; noutros casos trata-se de formulações que qualquer jovem licenciado conhece e domina, e que só para mim eram novidade. Tanto no que respeita umas como as outras valeu-me o apoio do Professor Carlos Azevedo, que empregou em dar-me acesso àquelas o seu vasto saber e entusiasmo, e uma não menos vasta paciência em familiarizar-me com estas.

Paciência de que de resto abusei ao elaborar esta dissertação. Apesar dos quinze planos gerais que sucessivamente apresentei; da ordem heterodoxa (para não dizer caótica) por que escrevi capítulos e partes de capítulos; das elisões e acrescentos; e das mudanças na paginação e indexação - pude sempre contar por parte do Professor Carlos Azevedo com uma leitura perspicaz e uma correcção meticulosa do texto. Se a isto se acrescentar uma sabedora orientação do trabalho, e um respeito cortês pelas opiniões que variamente exprimi - muitas das quais, re~ ceioo bem, mais não reflectem do que o proverbial atrevimento da ignorância -avaliar~se-á a dívida de gratidão que tenho para com ele.

Aos meus Professores neste Mestrado, e aos meus colegas de curso, compa-nheiros de aventura e de viagem, quero igualmente agradecer: não só pela ajuda prestada e nem sempre retribuída, como pelo enriquecimento pessoal e intelectual que para mim representou - e espero continue a representar - o seu convívio. O mesmo, pelas mesmas razões, aos meus amigos e colegas de profissão. E à minha família, à minha mulher Maria Amélia e ao meu filho Luís Manuel, deixo aqui registado um especial agradecimento pela paciência demonstrada e pelos sacrifí-cios partilhados.

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/. Proposição

É propósito deste trabalho explorar alguns dos nexos míticos, arquetípicos e te-máticos entre o romance de aventuras para rapazes e o cânone narrativo ocidental e mostrar que muitas das relações que se estabelecem entre as formas arcaicas da narra-tiva e o romance de aventuras juvenil dispensam a mediação de formas mais recentes. Especificamente, proponho~me discutir até que ponto as adaptações de Moby-Dick para o público juvenil representam uma continuidade ou operam uma mudança de género em relação à versão original. Poderemos dizer, por exemplo, que o que nesta é tragédia deriva naquelas, em consequência das elisões, simplificações e paráfrases efectuadas, em direcção à comédia ou à epopeia? Ou que o que nela existe de novel'é parcialmente suprimido de modo a evidenciar as marcas de romance! Ou, pelo con-trário, que o romance original é desprovido das suas marcas genéricas e nessa medida transformado em novel (forma de ficção que se distingue precisamente por não apre-sentar marcas distintivas)? Ou poderemos falar, utilizando um paradigma interpretativo de Northrop Frye (3334), de uma progressão romantic mode high mimetic

-low mimetic - ironic model Ou verificar-se-á esta progressão em sentido inverso?

Quer se integre Moby-Dick nas categorias da Poética aristotélica, ou nos quadros de referência de Frye, ou na distinção entre novel e romance que preocu-pava Nathaniel Hawthorne em 1851 (xvii), ou ainda em qualquer outra divisão mais ou menos arbitrária de géneros literários, qualquer abordagem a estas ques-tões pressupõe que a obra é integrável no cânone de diferentes modos e por dife-rentes vias; assim, as várias classificações que a crítica tem proposto para a obra hão-de ser encaradas, não como interpretações mutuamente exclusivas, mas como leituras igualmente legítimas, se bem que diversamente fundamentadas. Isto é, não se trata de saber o que o romance é - uma tragédia, ou uma comédia, ou uma narrativa de qualquer tipo determinável - mas sim de achar nele os mecanismos operativos e os sinais característicos de vários géneros. Podemos esperar, a priori, que tais marcas se encontrem no texto em profusão: autoriza-nos esta expectativa não só o jogo de redundâncias que estrutura este romance, mas também a margem de ambiguidade inerente a qualquer obra de arte.

Neste trabalho referirei uma selecção representativa das edições juvenis de Moby-Dick publicadas em Portugal, ou seja, um corpus suficientemente extenso para tipificar os textos segundo os traços característicos comuns que apresentem. É certo que bastaria examinar uma dessas adaptações para ilustrar a transformação

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de géneros sobre que incide este trabalho. Uma tal limitação, porém, impedir-me-ia de mostrar a uniformidade que existe entre diversas adaptações, uniformidade esta que é em si mesma significativa: se as elisões e as modificações são substanci-almente as mesmas de adaptação em adaptação, teremos de concluir que não só não foram efectuadas arbitrariamente, como obedecem a critérios que se mantêm constantes em diferentes circunstâncias de tempo, de lugar e de cultura.

Decorre daqui que as edições a utilizar deverão ser representativas sobre-tudo pela variedade: uma variedade temporal em primeiro lugar e de intenções editoriais em segundo - tanto quanto estas possam ser deduzidas a partir de ele-mentos como as colecções em que as edições estejam inseridas, ausência ou pre-sença de prefácios ou introduções, apresentação e grafismo, preço, ou formato. Posso assim fixar-me, para definir o corpus de referência central deste trabalho, num conjunto de adaptações cuja extensão varia entre as 191 e as 284 páginas. Este conjunto não pode deixar de incluir uma edição canónica: a versão da Portugália Editora, incluída na Biblioteca dos Rapazes, que influenciou sucessivas gerações de leitores. Não incluirei neste núcleo central edições em que a ilustração predomine sobre o texto, ou em que o número de páginas seja tão reduzido que o texto já não corresponda à definição corrente de romance. Quer umas, quer outras pertencem já obviamente a outro cânone que não o do Mobv-Dick original, e qualquer tentativa de descortinar entre este e aquelas qualquer continuidade ge-nérica seria forçada, ainda que eventualmente bem sucedida.

Existem também versões condensadas de Moby-Dick destinadas a um pú-blico adulto. Em relação a estas interessa saber em que é que diferem das outras e porque é que qualquer de nós, folheando uma delas, sabe imediatamente que se destina a adultos e não a jovens.

Terei também em conta traduções portuguesas da obra integral. Não estuda-rei as traduções enquanto tais, mas podeestuda-rei referir certos aspectos da tradução. Embora não seja indiferente que uma dada versão juvenil seja produzida a partir do original em inglês ou de uma versão completa em português, nenhum adapta-dor, a menos que queira produzir duas obras autónomas, traduz primeiro para adaptar depois. A tradução e a adaptação são uma só escrita e mesmo que existam versões intermédias é sempre possível ao leitor comparar directamente a versão fi-nal com a versão origifi-nal - ou seja, é sempre possível, mesmo quando o tradutor e o adaptador são pessoas diferentes, ou a mesma pessoa em tempos diferentes, pos-tular um tradutor-adaptador implícito.

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Como Melville, também Swift, Defoe, Scott e Cervantes, entre muitos outros, escreveram obras que tiveram tanto ou mais êxito nas suas adaptações juvenis do que nas versões originais. Interessa-me discutir, ainda que sucintamente, o que é que estas obras têm em comum. As referências que farei a Gulliver's Travels. Robinson Crusoe. Ivanhoe ou Don Ouiiote terão por objectivo verificar alguns dos meus pressupostos iniciais no que respeita a uniformidade das adaptações quando confrontada com a diversidade dos originais.

Este trabalho conterá extensas referências a alguns clássicos da literatura ju-venil. Incluirei neste número tanto aqueles que parecem a priori susceptíveis de con-firmar a minha hipótese inicial (The Coral Island de Ballantyne, ou Treasure Island, de Stevenson) como aqueles, mais importantes neste contexto, que poderão verificá-la pela negativa (Alice's Adventures in Wonderland, de Carroll, ou Tom Brown's Schooldays, de Hughes). A questão levantada por estas obras é a de saber como se arti-cula o género "literatura juvenil", a que todas elas pertencem, com o género ou géne-ros canónicos a que algumas são referíveis. Particular atenção será dada a Peter Pan, de Barrie, que contextualizará uma discussão do universo masculino de Mobv-Dick. Ainda neste grupo, quero mencionar algumas obras que considero na fronteira entre o romance de aventuras juvenil e o romance de aventuras "puro": é o caso de Beau Geste, de Wren, ou de The Phantom Ship, de Marryat. Neste contexto, o romance She, de H. Rider Haggard, merece uma menção especial: apesar de a estrutura e a técnica narrativa pertencerem ao universo da literatura juvenil, a visão trágica e erótica do autor parece dirigir-se a um público adulto.

O último grupo de textos que hão-de contextualizar a minha leitura de Mobv-Dick será constituído por obras que é consensual considerar canónicas. O romance de Melville tem sido confrontado pela crítica com obras como a Odisseia, a Bíblia, Os Lusíadas. Don Ouiiote. King Lear. Paradise Lost. Tristram Shandv. Sartor Resartus. The Adventures of Huckleberry Finn. Destes e de outros confrontos resulta que Mobv-Dick pode ser lido e tem sido lido como epopeia arcaica, epopeia clássica, enciclopédia, compilação, tragédia clássica, comédia, epopeia renascen-tista, romance picaresco, sátira, tragédia shakespeareana, alegoria, fábula. A questão a responder será a de saber até que ponto as versões juvenis se podem confrontar com estas obras nos mesmos termos que o original.

Se as transformações operadas pelos vários adaptadores de Mobv-Dick ten-derem a diminuir as ambiguidades e a eliminar as redundâncias, pode pôr-se a hi-pótese que as adaptações sejam mais facilmente classificáveis do que o original. O

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meu objectivo, porém, não é o de classificar Mobv-Dick ou as suas versões, mas o de verificar até que ponto há diferenças de classificabilidade entre o original e a adaptação. A classificação é apenas um meio de caracterizar a literatura juvenil por referência ao cânone e à tradição. Chegamos assim a uma segunda hipótese: a de que a literatura juvenil não é, como entende João David Pinto Correia, uma paraliteratura ou uma literatura marginal, resultante de uma degradação ou deca-dência de modelos anteriores, mas sim um género portador de arquétipos especifi-camente literários, referível ao cânone geral, e cujas manifestações concretas po-dem ocupar na tradição lugares a montante ou a jusante de qualquer outra obra ou conjunto de obras.1

Escreve Pinto Correia em Literatura Tuvenil/Paraliteratura:

[...] pensamos que tal adequação e tal anexação [de obras de "literatura institucionaliza-da" à "galeria viva" dos "clássicos" da juventude] serão tanto maiores quanto as obras se aproximarem do modelo (principalmente estrutural, mas não só) da obra juvenil de ca-racterísticas paraliterárias... [33-34].

Se assim é, isto é, se existe um "modelo" de literatura juvenil definido em função de estruturas específicas ou de temas específicos, e se este modelo é paraliterário, então não poderemos encontrar nas adaptações de Mobv-Dick as características que no ori-ginal são marcas de literariedade. Mas a presença dessas marcas permitir-me-á estabelecer uma relação no cânone entre o romance e as suas adaptações. Se Mobv-Dick é referível ao mesmo cânone que as suas versões juvenis, e se estas apresentam as características do romance de aventuras, então será possível encontrar, não só uma nha de continuidade entre a obra e as suas adaptações a jusante, mas também duas li-nhas divergentes que partem doutras narrativas a montante2 e conduzem por um lado

ao original, e por outro às adaptações de Mobv-Dick.

A minha terceira hipótese consiste em que Mobv-Dick e as suas adaptações, sendo embora referenciáveis ao mesmo cânone, não o são da mesma forma. Uma adaptação da obra relacionar-se-á sempre com o cânone ou com a tradição de uma forma mais simples e mais imediata do que a obra original. É neste regresso ao cânone, e não num afastamento em relação a ele, que radica - esta é a minha Wão quero com isto dizer que a literatura juvenil ou a literatura de aventuras não apresentem características definidoras próprias, mas sim que essas características podem ser compatíveis - tal-vez mesmo privilegiadamente compatíveis - com os géneros do cânone clássico.

2 Incluo neste grupo obras como Two Years Before the Mast, de Richard Henry Dana, ou

The Phantom Ship, de Frederick Marryat - bem como, obviamente, a obra anterior do próprio Melville.

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quarta e última hipótese - o fascínio do romance de aventuras e da literatura para rapazes3.

2. O leitor e o estatuto ontológico do texto.

Ao discutir o propósito e o objecto do presente trabalho, fiz várias referên-cias ao cânone. Para os fins que me proponho, o conceito de cânone subordinar-se-á ao de género: entenderei por "obra canónica" qualquer texto que contribua para instituir um género. Este entendimento é claramente redutor em relação ao de Harold Bloom, mas é suficiente no contexto da subordinação que acabo de re-ferir. Já o meu entendimento de género terá de ser mais complexo. As categorias aristotélicas seriam suficientes para discutir Mobv-Dick se o meu propósito fosse uma mera classificação da obra, mas o que me proponho mostrar é que as muta-ções genéricas em Mobv-Dick se continuam a verificar mesmo perante entendi-mentos diversos de género, modo, símbolo ou mito. Não me preocuparei sobrema-neira com eventuais divergências teóricas ou conceptuais entre Aristóteles, Bloom, Bakhtin, Frye, ou outros. Não me proponho produzir um estudo interpretativo das suas teorias, nem escolher uma de entre elas que me pareça mais actual, adequada, ou correcta: proponho-me sim utilizá-las para definir quadros interpretativos das diferentes versões de Mobv-Dick. e verificar até que ponto a aplicação de cada um deles conduz à verificação dos meus pressupostos. O romance de Melville, que tem sido descrito pela crítica como um objecto "multidimensional", "multifacetado",

3Para os meus propósitos, e no meu quadro de referências, "literatura juvenil" e "literatura

para rapazes" são termos sinónimos, a menos que expressamente se indique o contrário. Não co-nheço nenhuma adaptação de Mobv-Dick que se dirija especificamente a um público feminino. É certo que os editores e os adaptadores de há trinta anos se dirigiam explicitamente aos jovens do sexo masculino, enquanto os de hoje se lhes dirigem implicitamente; e esta evolução não pode deixar de influir na forma final de cada adaptação. Mas parece-me razoável dar por adquirido que as versões completas têm um acolhimento bem mais uniforme entre o público adulto de ambos os sexos, cujas necessidades de identificação com um herói ou heroína são geralmente menores, do que as versões juvenis entre o público adolescente.

Obras como Mobv-Dick são especificamente adaptadas para jovens púberes do sexo mascu-lino. Outras, como O Livro das Mil e Uma Noites, em que os processos de identificação do leitor com as personagens são diferentes, são adaptadas para jovens pré-púberes de ambos os sexos. Mas não há, tanto quanto sei, adaptações de obras do cânone geral dirigidas a adolescentes do sexo feminino. E especialmente significativo que a literatura "para raparigas" nunca recorra a es-tas obras. O que parece acontecer em vez disso é que muita desta literatura segue as convenções do chamado "romance cor-de-rosa", sem nunca se basear numa obra em particular.

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"polifónico", "contraditório", é uma daquelas obras que recusam revelar-se a quem as não veja estereoscopicamente - ou seja, a quem não adopte, ao observá-las, uma visão pelo menos dupla. Contrariamente ao original, porém, as adaptações juvenis de Moby-Dick não exigem um tal eclectismo: na transição do original às adapta-ções deslocar-me-ei inevitavelmente entre um ponto de vista complexo e outro mais simples.

Uma das questões que podem ser consideravelmente simplificadas neste percurso é a de saber até que ponto uma abordagem centrada em considerações de género e de cânone intersecta a que se funda nas teorias da recepção. É na litera-tura juvenil, com efeito, que o leitor implícito mais claramente define um género, e é em relação à literatura juvenil que este conceito apresenta o menor grau de abs-tracção em relação ao leitor empírico. Não há nada de extraordinário nesta simpli-ficação: do mesmo modo que certas questões teóricas, que são simples em abstracto (nomeadamente as que estão relacionadas com classificações e taxinomias), se complicam na abordagem de textos concretos, outras (habitualmente de carácter epistemológico ou metodológico) sào mais complexas em teoria do que na prática.

Exemplo disto é a questão que Elizabeth Freund coloca em The Return of \he Reader, no capítulo (40-65) em que confronta as abordagens "objectivas" repre-sentadas pelo New Criticism com as que desde os anos 20 fazem apelo à reacção do leitor, e que mais recentemente se têm organizado à volta das teorias da recep-ção e do Reader-Response Criticism. Esta questão é a da contradirecep-ção inerente às perspectivas críticas que vêem no texto uma entidade auto-contida e a-histórica que não existe substancialmente, mas à qual, por um processo de abstracção, é atribuída existência objectiva; e que por isso vêem o autor e o leitor como entida-des históricas e contingentes, de cuja existência substancial depende a existência virtual do texto, mas cuja existência objectiva não é considerada.

Retirado ao plano da subjectividade e da contingência, o texto adquire iden-tidade: passa a ser aquilo que é, mas ao preço de ser só aquilo que é. Devolvido àquele plano, por outro lado, recupera as suas dimensões de ambiguidade e ironia, mas neste caso,

The consequent indeterminacy of meaning raises the question of the intellectual re-sponsibility of too much critical interpretation [Freund 46].

A questão de estatuto ontológico do texto e da função epistemológica do lei-tor é fundamental. Está na base do debate, que não parece em vias de terminar,

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entre as escolas "objectivista" e "subjectivista" no estudo da Literatura. Da sua solu-ção parece por vezes depender a própria viabilidade da crítica enquanto ramo do conhecimento - ou, em alternativa, enquanto actividade literária em si mesma. E contudo é uma questão, como o faz notar Freund (50), basicamente insolúvel num universo póskantiano. À proibição kantiana não conhecerás "a coisa em si" -respondem os New Critics que o "texto em si" é a sua forma, isto é, a sua estrutura e a sua coerência intrínsecas, e que estas podem ser objecto de conhecimento. Mas esta resposta não levanta a proibição, apenas a ilude: se o texto não é mais do que a sua estrutura levanta~se a questão de saber como é que essa estrutura pode ser conhecida sem referência ao seu efeito sobre o leitor.

Perante um texto concreto, a questão torna-se menos premente; isto, se não por outra, pela má razão de que o estatuto ontológico de um texto concretamente presente está sempre mais perto de ser determinável do que o do texto em abs-tracto. A esta circunstância acresce que um texto específico apela especificamente ao leitor. Pode sempre postular-se, em abstracto, um texto que não suscite a sub-jectividade do leitor, assim como se pode postular um texto que, por não ter estru-tura nem forma, seja puro contexto, e não possa por isso ser alvo de qualquer abordagem objectiva. Mas trata-se de casos limite, de puras abstracções, de textos que não podem existir na realidade.

Um romance como Mobv-Dick pode ser abordado objectivamente, mas o seu crítico terá consciência da arbitrariedade inevitável da sua opção, e da limitação que se impôs enquanto leitor. O seu pressuposto inicial pode muito bem incluir a convicção que a ambiguidade em literatura consiste em o texto significar uma coisa e o seu contrário, num equilíbrio de forças e movimentos que, anulando-se reciprocamente, instituem uma stasis "arquitectural"; mas Mobv-Dick. como as órbitas que os discípulos de Parménides descreviam à roda do mestre, mostra-lhe em cada parágrafo que o texto pode significar, dinamicamente, uma coisa ou o seu contrário. Esta ambiguidade é o mecanismo pelo qual o texto solicita o leitor a que construa os seus significados, e esta construção é aquilo a que chamamos leitura. "Mostrar não é demonstrar", defende-se, famosamente, Parménides. A evidência de uma ambiguidade extrínseca, porém, não pode ser ignorada com igual impuni-dade qualquer que seja o texto perante o qual nos encontramos, e exige do crítico um acto de renúncia que é relativamente fácil perante um poema curto, mas difícil e forçado perante uma narrativa longa.

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Mobv-Dick é uma instância extrema desta dificuldade. Perante esta obra, a renúncia à leitura é especialmente penosa - e é - o tanto mais quanto mais é certo que se funda em alicerces metafísicos de duvidosa solidez. É impossível considerar Mobv-Dick "objectivamente" sem sofrer um desprazer, uma "nostalgia da leitura", provocada pela evidência da multiplicidade subjectiva da obra em concreto. O crítico encontrará escasso consolo desta nostalgia na reflexão de que o prazer do contexto a que renunciou é uma mera ilusão da subjectividade.

Perante uma adaptação juvenil, o dilema texto-leitor torna-se menos mar-cado. A escrita é unívoca, e toda a ironia é nela residual. A subjectividade do leitor é aqui menos solicitada, mas também menos "perigosa", e os rigores doutrinários do objectivismo puro parecem deslocados e dogmáticos.

Igualmente dogmática é a posição inversa de Bernd Kast:

Malte Dahrendorf sieht sich einer Definition verpflichtet, die Jugendliteratur ais einen „Sonderfall innerhalb des Gesamtsystems" Literatur sieht, wobei „die Lesergruppe, an die sie sich wendet", ais mitbestimmender Faktor beriicksichtigt werden sollte.

Dieser Definition konnte ich mich anschlie/3en, wenn Dahrendorf weniger von der Textproduktion und -intention ausgehen wurde [...] und starker das Rezeptions-verhalten Jugendlicher zum Ausgangspunkt seiner Bestimmungen machen wiirde. [...] Jugendliteratur" ware demnach Literatur, die von Tugendlichen und Erwachsenen rezipiert werden kann und wird und die dadurch zur Tugendliteratur wird, da/3 Jugendliche diese Literatur rezipieren und da/3 die Mõglichkeiten zur Konstituierung

von Bedeutung von jugendlichen Lesern genutzt werden. [17-18; sublinhado meu]. O problema levantado por este conceito de literatura juvenil é que é tão ge-ral (no limite inclui toda a literatura), que deixa de ser um conceito operativo4 - a

menos que se estabeleçam limites estritos, e inevitavelmente arbitrários, para o conceito de "jovem".

Estes limites não seriam apenas etários, mas também sociais, culturais e psi-cológicos. Se é verdade que a literatura juvenil é o tipo de literatura que melhor se deixa definir a partir do leitor, é também verdade que é o tipo de literatura que melhor se define a partir da intenção editorial, e é não menos verdade que esta intenção determina em larga medida o texto concreto, pelo que neste caso a inten-ção editorial é uma inteninten-ção autorial. Não cabem aqui opções a priori, sejam elas

4Para os meus propósitos, e, tanto quanto posso imaginar, para quaisquer outros excepto os

de Kast, que são de natureza pedagógica e didáctica. Se a nível conceptual o universo da litera-tura juvenil de Kast é demasiadamente vasto para ser utilizável, na prática pedagógica, e nos limi-tes da situação lectiva concreta, é possível limitá-lo pela redução, em número e em variedade, dos textos efectivamente utilizados.

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metafísicas, epistemológicas, doutrinárias, ou simplesmente ideológicas, que igno-rem a especificidade do género, a realidade do texto, as circunstâncias da sua pro-dução e a extensão do seu contexto, a realidade e a especificidade do leitor. Um conceito operativo de literatura juvenil - e logo também de ficção juvenil - terá de ter em conta estas realidades. O leitor será postulado, no concreto, a partir da in-tenção editorial tal como se revela nas características intrínsecas do texto; será postulado no abstracto segundo parâmetros arbitrários de natureza social, cultural e psicológica5; e os dois postulados servirão reciprocamente de limite e de controlo.

Daqui resulta que a minha abordagem do problema da definição da ficção juvenil será uma dupla abordagem: por um lado considerarei, como Kast, que um elemento definidor do texto juvenil é o facto de ser "recepcionado" por jovens, mas considerarei igualmente essencial para a minha definição que o texto apresente determinadas características intrínsecas.

Cada uma destas abordagens apresenta as suas dificuldades específicas. Quanto à primeira, a dificuldade está na determinação do leitor real - e Kast só pode estar a referir-se a este: se se estivesse a referir a um leitor juvenil implícito no texto, pôr-se-ia de novo a questão de saber o que é que no texto implica esse leitor. Ou seja: das duas ordens de considerações que Kast desvaloriza - a produção do texto e a intenção do texto - teríamos que recuperar pelo menos aquela.

Quanto à segunda abordagem, a dificuldade está em que a "literatura ju-venil" é um objecto demasiado heterogéneo para que seja possível defini-lo a partir de um conjunto coerente e limitado de características comuns. O que há de co-mum ou semelhante, excepto a idade do receptor, entre por exemplo uma nursery

rhyme da tradição anglo-saxónica e Little Lord Fauntlerov de Frances Burnett?

Ao optar pela recepção como elemento definidor do seu objecto de estudo, Kast faz da necessidade virtude. Nós, que temos por objecto não a literatura juvenil em geral mas o romance de aventuras juvenil em particular, enfrentamos dificul-dades diferentes. Quanto à definição do leitor, as nossas dificuldificul-dades sào maiores do que as de Kast: Como provar, por exemplo, e independentemente do que nos diz a intuição ou a experiência pessoal, que o público leitor de Treasure Island é

5Objectar-se-á que caio aqui no erro que acabo de apontar a Kast. Veja-se, porém, que este

erro não está na definição de um leitor abstracto excessivamente limitado (em abstracto, Kast tem toda a legitimidade para definir os seus conceitos dentro dos limites que lhe pareçam mais úteis), mas sim em definir um conceito abstracto de literatura juvenil que pressupõe a existência em con-creto de um grupo homogéneo de leitores.

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estatisticamente mais jovem do que o de qualquer outro romance? Mesmo que o possamos provar no que respeita as edições correntes, como fazê-lo em relação a todas as edições desde a primeira? Esta dificuldade só parcialmente pode ser su-perada. Para tal podemos recorrer ao que for possível apurar sobre as intenções do autor tal como se exprimem em prefácios ou dedicatórias, ao que se deduz das in-tenções do editor tal como se manifestam na apresentação física da obra ou em elementos do seu contexto editorial, e principalmente ao facto, em si mesmo signi-ficativo, de determinadas obras, e não outras, serem objecto de adaptações juvenis. Quanto à definição do texto pelas suas características intrínsecas, as nossas difi-culdades são menores. Há, com efeito, um conjunto de características que é quase sempre observável nas obras que a tradição cultural e a prática editorial têm conside-rado romances de aventuras juvenis, e naquelas que ao longo do tempo têm sido adaptadas para esse efeito. Estas características são cinco: um protagonista não-adulto, normalmente do sexo masculino; a orfandade como tema; a viagem, muitas vezes marítima, como estrutura; uma batalha colectiva como climax; e um enredo em três tempos, caracterizado pela fuga do protagonista à ordem social, pelo seu confronto com a desordem moral do universo, e pela superação desta por um novo comprome-timento do protagonista com a ordem social que tinha abandonado6. A menoridade do

protagonista pode ser cronológica ou corresponder apenas a um estatuto inicial de de-pendência em relação a uma autoridade que se exerce in loco parentis - ou pode ser uma menoridade em ambos os sentidos, como a de Richard Shelton, personagem principal de The Black Arrow, de Stevenson; a orfandade pode ser real e permanente, ou corresponder apenas a uma separação prolongada, ou ainda a uma circunstância que se aplica apenas a uma de entre várias personagens; a viagem pode ter como des-tino os antípodas ou o fundo do jardim; a batalha é normalmente real, mas pode ser parcialmente fantasiada, como em Tom Sawyer: e o regresso à ordem social vigente quase nunca se verifica sem que o protagonista tenha adquirido em relação a esta uma nova capacidade crítica - para não falar dos meios de fortuna que lhe vão permitir es-capar aos seus piores constrangimentos.

Ao abstrair da literatura juvenil o caso particular que é o romance de aven-turas juvenil não pretendo negar a continuidade existente entre este e outros géne-ros: basta ver o que há de romance de aventuras em Alice ou no Capuchinho

6Este enredo é uma simplificação dos arquétipos narrativos que alguns autores encontram em

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Vermelho. Mas as características que enunciei permitem compreender, por exemplo, algumas das razões pelas quais a classificação de Tom Sawver como ro-mance de aventuras juvenil tem sido mais consensual do que a de Huckleberry Finn. Em Tom Sawver há, para além das várias batalhas fantasiadas pela persona-gem principal, pelo menos um esboço de batalha final que está ausente em Huckleberry Finn:

Three minutes later the old man and his sons, well armed, were up the hill, and just entering the sumach path on tiptoe, their weapons in their hands. Huck accompanied them no farther. He hid behind a great boulder and fell to listening. There was a lag-ging, anxious silence, and then all of a sudden there was an explosion of firearms and a cry [Twain 181].

Acresce que em Huckleberry Finn o protagonista nunca chega a superar a desordem moral do universo pelo regresso à ordem social de St. Petersburg: no fim de narrativa esta ordem e aquela desordem sã.o, tanto como no princípio, elemen-tos e factores do mesmo caos. Por isso o último parágrafo anuncia uma nova via-gem para longe da civilização, e avisa que desta vez a viavia-gem não vai ser ordenada

a posteriori por nenhum registo escrito:

[...] because if I'd a knowed what a trouble it was to make a book I wouldn't a tackled it and aint agoing to no more. But I reckon I have to light out for the Territory ahead of the rest, because Aunt Sally she's going to adopt me and sivilize me and I can't stand it. I been there before. [Twain 369].

Mais significativamente: em Lord of the Flies, de William Golding (urn ro-mance "para adultos" que é, entre outras coisas, uma sátira ao roro-mance de aventu-ras juvenil), o distanciamento em relação a este género opera-se precisamente pela radical subversão da característica que enunciei em primeiro lugar (as persona-gens sofrem um processo de tribalização que lhes veda o estatuto individualizado de protagonistas) e da que enunciei em último lugar (uma vez estabelecido con-tacto com a desordem fundamental do universo, todo o regresso à ordem social se torna impossível). A batalha decisiva, que constitui o quarto elemento definidor do romance de aventuras juvenil, não é nesta narrativa o antecedente imediato de um final feliz, mas sim, realisticamente, o sinal e a face da catástrofe moral. Mesmo que Lord of the Flies tenha, eventualmente, um público leitor mais jovem do que o de outros romances, não é um romance juvenil.

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3. Mito, arquétipo e cânone.

Contrariamente ao texto ficcional, o texto poético pode ser tratado, e tem-no sido por vezes, como se tivesse uma única função - a função estética, que consisti-ria no prazer produzido no leitor pela harmonia da sua organização interna. Postulada esta simplicidade, é possível referi-lo a um leitor universal, ilimitado, sem que a possibilidade da crítica ceda à impossibilidade de pensar holisticamente a totalidade das relações potenciais entre texto e leitor. A ficção, pelo contrário, tem múltiplas funções - estética, social, cultural, terapêutica, política, pedagógica, psicológica, mítica, referencial, religiosa, informativa, filosófica - que se sobre-põem e combinam de tal maneira que, referidas a um leitor ilimitado, tornariam o objecto crítico num universo tendencialmente infinito. Podemos imaginar um crí-tico universal, capaz de abarcar esse universo; mas tudo o que essa inteligência demiúrgica acabaria por produzir seria esse instrumento soberanamente inútil, um mapa idêntico ao território.

Perante um texto, um crítico, necessariamente limitado, tem duas alternati-vas: a primeira, sugerida pela simplicidade perfeita que é possível ver no texto poético, consiste em manter toda a panóplia dos seus instrumentos interpretativos e limitar, artificialmente embora, o objecto da sua interpretação. A complexidade caótica do texto narrativo, por outro lado, apela à escolha da segunda, que consis-te em limitar, não o objecto, mas os instrumentos inconsis-terpretativos. Se entre esconsis-tes se conta um conceito de leitor, terá necessariamente de ser um leitor limitado.

O adaptador duma narrativa procede a ambas as operações. A limitação do leitor é um dado objectivo das suas condições de trabalho, e a limitação do texto consiste primariamente em isolar algumas de entre as suas funções. Ao proceder a esta operação retira, obviamente, alguma coisa ao texto, mas também lhe acres-centa alguma coisa, e isto mesmo que as funções que isola e põe em evidência este-jam já presentes no original. Cada uma das funções do texto é condicionada por

todas as outras, e sofre uma transformação se as outras forem modificadas ou eli-minadas. A função mítica do texto, por exemplo, é exercida através de arquétipos que tanto estão presentes nas adaptações como no original (veja-se o arquétipo do Selvagem em Mobv-Dick). Mas a eliminação de outros arquétipos (como o Livro) faz com que o mesmo arquétipo venha a desempenhar uma função radicalmente nova. Queequeg, enquanto manifestação do arquétipo, tem na versão original uma

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função oposta à de Friday em Robinson Crusoe, que é a de ser personagem no mito da criação - isto é, da racionalização - do mundo.

O arquétipo mais importante através do qual se exerce a função mítica de uma narrativa é, porém, o próprio arquétipo narrativo que contém, isto é, o enredo essencial. Joseph Campbell, Lord Raglan e Vladimir Propp dão definições muito aproximadas destes enredos arquetípicos: um "herói" deixa a sua casa, pátria ou família, viaja até aos limites de um "outro mundo" (reino encantado, Inferno, gruta do dragão), vence ou seduz o guardião, inicia uma viagem por esse novo reino, é sujeito a provas e a testes, obtém o que procurava (velo de ouro, princesa cativa, oráculo, mina de diamantes) e inicia a viagem de regresso, durante a qual é sujeito a novos testes. Durante ou após as suas aventuras, o herói une-se a uma deusa ou princesa que simboliza o princípio feminino.

Em adaptações juvenis de ficções pré-existentes, verifica-se uma depuração que as aproxima do arquétipo narrativo, alterando deste modo, em grau e em es-pécie, a função mítica (isto é, segundo Mircea Eliade, de explicação e validação do real) que desempenha. A narrativa deixa de ser apenas conteúdo de um mito7 e

passa a ser mito ela própria.

Quando falamos de arquétipos narrativos, e de narrativas míticas, levanta-se a questão do relacionamento destes conceitos com o de modelo narrativo. Com efeito, o mito é simultaneamente um arquétipo, isto é, uma estrutura ideal a partir da qual o "tipo" se realiza por um processo de concretização e adição, e um mode-lo, isto é, uma estrutura existente no mundo concreto, a partir da qual as narrati-vas concretas se realizam por subtracção, imitação, idealização, ou subversão. Se bem interpreto Northrop Frye, esta é uma das funções das "narrativas enciclopédi-cas" que segundo ele subsumem as quatro formas ideais da ficção: novel, romance,

anatomy, e confession (312-314).

Para os meus propósitos, as ficções podem ser ordenadas segundo a sua maior ou menor proximidade com os arquétipos narrativos definidos por Campbell, Raglan e Propp, ou com o modelo implícito na teoria dos géneros de Frye. Essa ordenação pode ser feita diacronicamente (epopeia arcaica epopeia clássica epopeia renascentista

-romance - novel) ou sincronicamente (epopeia - tragédia - comédia). Cada género tem

funções míticas que lhe são peculiares, e essas funções são tanto mais marcadas e de-terminantes quanto mais arcaica - isto é, mais próxima do arquétipo - for a narrativa.

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Segundo esta perspectiva, Mobv-Dick é uma curiosa mistura de modernidade e arca-ísmo. Na sua versão original está próxima das narrativas enciclopédicas de Frye; o pro-cesso de adaptação aproxima-a do arquétipo.

A canonicidade de Mobv-Dick está, não em ter dado origem, meramente por subtracção e idealização, a adaptações juvenis, mas sim por estar na origem, por subtracção e idealização e também por imitação e subversão, de narrativas como por exemplo as de Faulkner. Mobv-Dick não influencia as suas adaptações, de-termina-as. Se o capitão Marryat influenciou tanto Melville como os seus adapta-dores, influenciou-os independentemente.

As grandes narrativas enciclopédicas são por definição canónicas; e se con-siderarmos que, dos modos de influência que mencionei, a subversão é o modo de-terminante e definidor, estaremos próximos do conceito de cânone de Harold Bloom, para quem

[...] there can be no strong, canonical writing without the process of literary influence [...]. Any strong literary work creatively misreads and therefore misinterprets a precursor text or texts [8].

O original e a adaptação de Mobv-Dick têm assim de ser referidas ao cânone separadamente, uma vez que a sua relação não é ela própria canónica. Esta refe-rência será feita, necessariamente, por via do símbolo, do arquétipo e do mito, uma vez que no caso das adaptações não teria sentido fazê~lo por via da comparação textual. Ressalve-se, contudo, a este propósito, que há figuras de estilo que podem ser elas próprias arquetípicas; esta característica é mesmo um dos traços distintivos das narrativas arcaicas.

Esta abordagem do cânone exige uma especial atenção aos géneros mais próximos do arquétipo narrativo, ou seja, ao conto infantil e à epopeia. Há no entanto uma continuidade entre os géneros arcaicos epopeia, tragédia, comédia -no que respeita as suas funções psico-sociais. Neste contexto, a ficção juvenil é também ela um género arcaico. A referência de Moby-Dick a King Lear ou zMacbeth, por um lado, e das suas versões juvenis a Édipo Rei ou a Medeia, por outro, tornará claras as transformações funcionais operadas pelo processo de adaptação: enquanto em Shakespeare as funções psico-sociais da tragédia são complexas e concernem sobretudo o relacionamento do espectador com os poderes arbitrários de um universo sem centro e sem significado que já é moderno, na tra-gédia grega essas funções SSLO comparativamente simples e concernem o relacio-namento dos homens com as potestades divinas.

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A função das narrativas juvenis é obviamente mais simples do que as da tra-gédia arcaica. Os poderes com que o leitor juvenil deve aprender a relacionar-se têm em comum com o de Lear ou Macbeth a génese temporal e terrena, e parti-lham com o dos Deuses a legitimidade que lhe advém de estar inscrito na natureza mesma de um universo que é o que é. Mas o relacionamento dos homens com os poderes terrenos ou divinos não pode limitar-se ao temor e à reverência. As ficções juvenis estão cheias de personagens poderosas a quem o herói não deve qualquer respeito: piratas, chefes tribais, feiticeiros.... São personagens inevitavelmente ridí-culas, e o seu tratamento não pode ser senão cómico.

Igualmente ridículos são, na comédia grega, os deuses. Ou os ídolos - cor-rigir-nos-á o autor de qualquer um dos avatares de Robinson Crusoe. Defoe, esse, não achava os ídolos ridículos: a idolatria "papista" estava-lhe ainda demasiado próxima, no tempo e nos efeitos, e a sua ameaça era ainda demasiado premente, para que lhe pudesse suscitar o riso. Quanto a Swift, os ídolos que lhe interessa ridicularizar são os seus próprios manes.

Toda a comédia e toda a sátira têm por alvo a idolatria, e é por isso que estão sempre tão próximas da blasfémia. Esta pode ser combatida, e é-o na literatura ju-venil, pela projecção no outro, no Selvagem, no canibal, da propensão idolátrica do herói - e do leitor. A dificuldade deste processo está em que o estatuto heróico é em si mesmo blasfemo - lá está a tragédia clássica para o provar, e Némesis para o punir - e portanto ele próprio cómico. Contrariamente ao protagonista da tragédia, o herói juvenil age com a bênção dos deuses, isto é, em nome de um princípio moral sancionado pelo poder; e contrariamente ao herói da epopeia, pode ser ob-jecto do riso dos seus companheiros, ou do seu próprio.

Uma evolução neste sentido é já observável, de resto, na tragédia e na epo-peia modernas, e é particularmente evidente nas obras mais tardias de Shakespeare, tanto como n'Os Lusíadas. lago opõe-se a Othello pela diferença não só no propósito, mas também no estatuto moral. Isto representa uma evolução em relação à tragédia grega, em que entre o protagonista e o antagonista há uma opo-sição de propósitos irreconciliáveis mas igualmente nobres.

Na epopeia verifica-se uma evolução semelhante, como podemos ver pela comparação de três Concílios dos Deuses. N'A Ilíada. Aquiles é protegido por Tétis no seu orgulho; e na Odisseia Zeus reconhece que "o divino Ulisses"

[...] leva a palma a todos os homens em inteligência, e [leva-a] também pelo número de sacrifícios oferecidos aos deuses [Homero 15],

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e por tais qualidades merece a protecção de Atena. Mas n'Os Lusíadas, Vénus, em oposição a Baco, vê "na gente lusitana" as

[...] qualidades [...]

Da antiga, tão amada sua romana,

Nos fortes corações, na grande estrela [Camões I, 33],

que, continuando a ser guerreiras, sà.o já mais morais do que litúrgicas. São as qualidades de um povo antigo e grave - conceitos muito camonianos, mas muito pouco homéricos8 - oposto a Baco pela contenção e pela sobriedade.

Acresce que n'Os Lusíadas, e precisamente porque a gravidade deixou de ser ritual, já é possível o riso à custa de um herói:

Disse então a Veloso um companheiro (Começando-se todos a sorrir):

- «Olá, Veloso amigo, aquele outeiro É melhor de decer que de subir...»

[V, 35].

Em Shakespeare e em Camões a tragédia e a epopeia, enquanto géneros lite-rários convencionais e autónomos, estavam já perto do fim do seu percurso histó-rico - percurso este mais acidentado para a tragédia, que é um género literário mais vulnerável que a epopeia às vicissitudes da História. Na sua fase tardia, am-bos os géneros apresentavam já marcadas características dos géneros modernos. Nem Othello, nem Os Lusíadas são romances, e contudo é mais verosímil que um adaptador construa uma novel sobre o primeiro, ou um romance de aventuras so-bre o segundo, do que soso-bre as suas contrapartidas arcaicas.

Algumas das funções psico-sociais da tragédia estão modernamente cometi-das à novel; a confrontação do espectador ou do leitor com a futilidade da sua existência pessoal perante a indiferença dos deuses ou da sociedade, a sugestão de que não há solução que não seja moral para este dilema, e em certa medida a própria função catártica. Para além destas, a novel assume as funções míticas de explicação do real que noutras circunstâncias pertenceram às escrituras sagradas e à epopeia. Algumas das funções desta estão cometidas, na modernidade, não à

no-vel mas ao romancer, a celebração da força, da beleza e da virtude como qualidades

com que o leitor se possa identificar, e a construção de universos alternativos em

8Em Homero a gravidade é sobretudo ritual, e está mais adequada às "dignas intendentes" que

servem o vinho do que aos heróis que o bebem. A estes adequa-se antes a prudência, qualidade que, como a inteligência e a força, é pragmática e moralmente neutra.

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que o heroísmo tenha sentido. A ficção juvenil partilha com o romance (e com a epopeia) estas funções, e com a novela, função mítica.

4. Temas e motivos

As correspondências funcionais entre os géneros arcaicos e os modernos não se reflectem nas correspondências temáticas. Sob este ponto de vista, a tragédia não tem qualquer correspondência com a novel, que do ponto de vista da inserção social das personagens é cómica, e não trágica. Quem condiciona o protagonista, na novel e na comédia, são os vizinhos e a família; na tragédia são os Fados e os Deuses.

A fúria e a paixão sã.o temas da tragédia e do romance, como a vida quotidi-ana o é da novel e da comédia. Na ficção juvenil a primeira destas temáticas apa-rece atenuada e a segunda valorizada. Para Bernd Kast, a segunda temática paapa-rece mesmo ser definidora da literatura juvenil:

[...es gjbt eine Literatur], die fur Jugendliche relevante Themen behandelt, ihre Fragen und Problème, ihre Wunsche und Bedurmisse, ihre subjektiven und objektiven Interessen thematisiert [16].

Podemos objectar que nem sempre a temática de um texto corresponde à te-matização que o seu autor pedagogicamente se propõe, mas Kast refere-se a toda a literatura juvenil, e não só à ficção. No seu quadro de referência, a tematização pe-dagógica e programática do quotidiano é de inegável relevância, e para o projecto que lhe está subjacente a novel é mais útil que o romance. Mas se considerarmos apenas o romance de aventuras juvenil, os temas dominantes não são os do

ro-mance nem os da novel, mas sim os da epopeia. Não se trata aqui de "tematizar" a

escola, a droga ou os conflitos familiares, mas sim outros mundos, outros adversá-rios e outras batalhas. A viagem é sempre uma libertação, mesmo quando leva ao cárcere, e passa sempre por uma ilha encantada de comprazimento, que está para o universo ficcional como este para o mundo real.

A partida, que liberta; a aventura, que ensina; a prisão, que tempera e põe à prova; a Ilha dos Amores, que recompensa e cura; e o regresso, que repõe a ordem - sko estes os temas por excelência do romance de aventuras juvenil. Temas sub-versivos, por certo, com a possível excepção do último, mas para o autor de ficções juvenis é sempre preciso fazer pelo menos uma vénia à subversão.

5. Tempo e Eternidade

A explicação do presente é sempre uma evocação do passado, e o passado é sempre, por definição, mítico. Toda a narrativa, seja ela mítica, ficcional ou

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histó-rica, tem por função essencial criar ou recriar o tempo. A primeira e a última frase de Mobv-Dick fazem referência expressa à Eternidade, de onde provém um narra-dor sem passado (ou com um passado mítico, isto é, a-histórico ou pré-histórico) e onde rola um oceano imutável. Entre as duas desenrola~se a História, isto é, a tota-lidade do tempo.

Noutras narrativas, a Eternidade é o que o herói procura trazer para o mundo temporal: um prémio, um troféu, um elixir, Eurídice arrancada aos Infernos. O ro-mance She, de H. Rider Haggard, é um exemplo entre muitos: o herói histórico desco-bre que tem raízes num passado mítico, que esse passado esconde o segredo da imor-talidade, e que há uma guardiã imortal desse segredo. O acesso à Eternidade far-se-á pela união sexual com essa mulher, mas o que se vem a passar é que em vez de ela dar a imortalidade ao herói, é ele que lhe traz a morte, e todo o projecto é mais uma vez adiado para um futuro mítico e recorrente.

Há que distinguir, quando se fala de narrativas, entre a eternidade real e a ficcional; e do mesmo modo entre dois tempos históricos. No plano da relação en-tre o mundo real e o ficcional, o tempo histórico é o do leitor, e nessa medida a narrativa é um intervalo intemporal na História. É isto que escreve Wallace Martin (84) quando discute a função dos epílogos na narrativa picaresca e no romance de aventuras. No plano interno da ficção, o tempo histórico é o da narrativa (no caso da Bíblia, e no caso, como vimos, de Mobv-Dick. o tempo da narrativa é a totali-dade do tempo), e tudo o que está fora da narrativa está na Eternitotali-dade.

O romance, o romance de aventuras, o mito, a epopeia e a narrativa sagrada têm com a Eternidade uma relação muito mais fácil do que a novel. Esta pressupõe uma inserção da narrativa no tempo quotidiano, e isto implica que não haja dife-rença qualitativa entre o tempo narrativo e o tempo histórico. O princípio ético implícito na novel é o de que não se foge ao tempo, e é deste princípio que deri-vam as opções estéticas que a caracterizam, entre as quais a preferência pelo enre-do aberto. Se da opção estética subjacente à novel se fizer princípio ético norma-tivo para as outras formas narrativas, fica aberto caminho à acusação, que com injustiça se tem feito a muitas, de que promovem o escapismo e a fuga ao tempo.

A questão, porém, é mais complexa: se o leitor do romance sai do tempo real da sua vida para entrar na intemporalidade da ficção, o mesmo acontece obvia-mente com o da novel, mas se o que nos interessa é o tempo ficcional, então o lei-tor do romance é conduzido de uma eternidade que é explicitamente ficcional para um tempo que também ele é explicitamente ficcional. Quanto às

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persona-gens, a diferença entre romance e novel é que as do primeiro são trazidas ao tempo por via do processo narrativo, enquanto as da segunda são mantidas no tempo em que, por convenção, sempre estiveram, e onde o narrador, por conven-ção, as surpreendeu.

Na narrativa, não há fuga do Tempo para a Eternidade. A Eternidade não pode, por definição, ser narrada. O que há é personagens que sempre estiveram no Tempo, ou personagens que fogem para o Tempo. Fogem de quê? Do presente. De um mundo onde nada muda. Do ciclo imutável dos nascimentos, das estações, das colheitas e das mortes. Mesmo quando se procura, como o Peter Pan de Barrie ou o Leo Vincey de Haggard, a imortalidade, enfrenta~se a morte nessa procura - mas uma morte heróica, individual, única. Para Haggard e para Barrie, como para Melville, o presente não passa de uma fronteira virtual entre o passado e o futuro: nisto reside a sua importância e o seu significado. Qualquer deles subscreveria a afirmação de Carlyle:

Meanwhile, we too admit that the present is an important time - as all present time necessarily is. The poorest day that passes over us is the conflux of two EternitiesI and is made up of currents that issue from the remotest Past, and flow onwards into the re-motest future. [Levine 22-23].

Os "universos masculinos" do romance de aventuras não representam uma fuga a uma qualquer completude feminina, a menos que essa completude seja en-tendida como algo que está ou se pretende fora do tempo. A completude "feminina" da novelé na epopeia e no romance de aventuras uma contrafacção da Eternidade. Ulisses, Telémaco, Ishmael, Ahab, os heróis de Haggard e o próprio Peter Pan não fogem do tempo: fogem em direcção ao tempo - mesmo que no caso de Peter Pan o tempo seja um tempo infantil em que em que a ausência de memória torna possí-vel um devir sem entropia. A prisão que querem estilhaçar não é a do compromis-so compromis-social nem a da responsabilidade familiar - valores que de resto exigem uma aguda consciência da continuidade entre o passado e o futuro - mas sim a do eter-no e estático Presente em que sentem mergulhada a Casa e a Pátria.

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I

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Capítulo 1

VERSÃO ORIGINAL E VERSÕES JUVENIS DE MOBY-DICK. QUADRO COMPARATIVO

Quando falamos em adaptação de um texto estamos implicitamente a falar de um leitor modelo. Para adaptar um romance ao cinema ou ao teatro é preciso primeiro transformá-lo num guião ou numa peça teatral, ou seja, num texto; e o leitor modelo desse texto é alguém, actor, encenador, realizador, que depois criará, a partir dele, um outro objecto ou um outro evento. Do mesmo modo, a adaptação "trans-genérica" de um texto (Os Lusíadas em prosa, a História de Portugal em verso, etc.) implica um leitor que não é o mesmo da versão original. Uma tradução, um resumo, uma condensação, são adaptações de textos. A edição em fac-simile de um manuscrito adapta o texto às necessidades particulares do coleccionador, ou do estudioso que quer investigar a sua génese.

A adaptação é feita no texto e no paratexto, e consiste numa variedade de processos. Uma edição crítica, por exemplo, é uma adaptação da obra original di-rigida a um leitor modelo que é um estudioso. Os processos adaptativos são, neste caso, fundamentalmente dois: selecção do texto tido por fidedigno, e adição de elementos paratextuais como prefácios, introduções, notas críticas e biográficas, glossários, apêndices, e, no caso de subsistirem dúvidas quanto à fidedignidade de partes do texto, versões alternativas dessas partes.

No outro extremo situam-se as adaptações dirigidas a leitores que não po-dem ou não querem 1er grandes quantidades de texto. O processo fundamental da adaptação já não é aqui de adição, mas de subtracção. Estão neste caso as versões juvenis de narrativas como Mobv-Dick. Ao compará-las com a versão original a primeira questão será a de saber o que nelas foi mantido. Subsidiariamente, consi-deraremos o que foi elidido e o que foi modificado.

Foram estudadas sete versões juvenis de Mobv-Dick. Duas delas, a de J. Fernandes e a de M. Henriques, são traduções da adaptação espanhola de Vidal Sales. Estas duas versões serão consideradas separadamente quando o contexto o justifique, mas para efeitos de estudar a organização do texto serão consideradas como se de uma única versão se tratasse, o que reduzirá a seis as versões estudadas.

Considerarei que as partes do texto geralmente mantido nas adaptações correspondem a um formato que é em linhas gerais o do romance de aventuras

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ju-venil. Neste formato incluirei uma forma característica que é o monólogo narrativo e/ou o diálogo narrativo; uma voz narrativa que é a de uma personagem contem-porânea da acção; um ponto de vista que é geralmente o do narrador na primeira pessoa mas que pode em alguns casos derivar para uma omnisciência autorial; e a predominância da narração e descrição como categorias retóricas. Temos assim três parâmetros iniciais, a que darei os títulos de "forma", "voz e ponto de vista", e "categorias retóricas", e que sempre que possível referirei por esta ordem.

Define-se assim um modelo preliminar das partes do texto que tendem a ser mantidas nas adaptações juvenis de Mobv-Dick. Não se trata de um formato a que o romance de aventuras juvenil corresponda necessariamente, mas sim e apenas de um modelo elaborado empiricamente a partir de uma primeira abordagem das adaptações. Uma abordagem comparativa mais pormenorizada permitir~me-á, no próximo capítulo, confirmar a validade destes parâmetros e acrescentar-lhes ou-tros, definindo deste modo um modelo mais exacto do texto "adaptável". De mo-mento interessa-me estabelecer algumas das linhas gerais a que todas as adapta-ções juvenis parecem â priori corresponder.

O modelo contrário e complementar, isto é, o modelo do texto omitido, é mais diverso e por isso menos reconhecível. Este modelo diverge do anterior na forma (pode tratar-se de ensaio, tratado, monólogo ou diálogo dramático, sermão, etc.), na voz narrativa (muitas vezes mal definida, ou atribuível a um Ishmael/Melville contemporâneo da leitura),9 e nas categorias retóricas, que

po-dem incluir a exposição e a persuasão.

A prática editorial de produzir adaptações juvenis de obras literárias parece ser relativamente recente. As versões mais antigas de Mobv-Dick de que tenho conheci-mento, publicadas em Portugal com menção específica de se destinarem ao leitor ju-venil, datam dos anos cinquenta. Destas versões, a primeira a aparecer com data de

9A leitura e a escrita são convencionalmente simultâneas, apesar de nunca o serem de facto.

Um autor que escreve "para a posteridade" convoca o futuro para melhor se dirigir aos seus contemporâneos. As excepções a esta convenção são obviamente os testamentos, tanto os pro-priamente ditos como os "testamentos políticos" e as ficções testamentárias em que explicitamen-te se invoca uma ruptura - e consequenexplicitamen-temenexplicitamen-te uma igualdade de estatuto - entre o explicitamen-tempo do es-critor e o do leitor, a quem é cometida a função de guardião e testemunha de uma memória Ou seja, tanto os testamentos como as ficções testamentárias procuram explicitamente articular com o tempo histórico o tempo parcelar da narração. Não é este o caso de Mobv-Dick: pelo contrá-rio, o parágrafo inicial e o epílogo estabelecem uma fronteira dentro da qual se encontra a história e fora da qual se encontra a eternidade.

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publicação é de 1958. Trata-se de uma edição ilustrada, em dois volumes, da Livraria Civilização, "novelizada" por Pedro Rosal. Os dois volumes intitulam-se Mobv Dick, a Baleia Branca e Mobv Dick, a Vingança do Capitão10 A autoria é atribuída a Hermann

Merville (sic). De todas as versões, é a única em que o texto não está dividido em capí-tulos e a única em que a narração é feita na terceira pessoa. O protagonista adquire nas primeiras páginas um sobrenome (Warren) e uma mãe de quem se despede:

Depois, é preciso dizê-lo, Ismael sentia-se possuído pela paixão do Marí Despediu-se de sua mãe que ficou a rezar pela sua boa sorte. E, agarrando no seu saco, partiu. [Rosal I, 6J.

Contudo, nas últimas páginas volta a ser órfão:

[O Rachel,] voltando atrás a fim de procurar os seus filhos perdidos, acabava de reco-lher aquele que então era órfão. [II, 12 7]

Do texto de Melville, esta versão é a única que omite totalmente os capítu-los 15, Chowder, e 30, The Pipe, e a única que utiliza os capítucapítu-los 37, Sunset, e 38,

Dusk. É também a única a utilizar o capítulo 40 {Midnight, Forecastle), mas

transforma-o de diálogo dramático em diálogo narrativo. Diverge ainda do con-senso ao omitir o capítulo 52, The Albatross, juntamente com a versão da Biblioteca dos Rapazes, omite o capítulo 64, Stubb's Supper, esta omissão, junta-mente com a já referida omissão do capítulo 15, parece indicar que Pedro Rosal rejeita a convenção épica, consensual nos outros adaptadores, do banquete homé-rico. Omite sozinha o capítulo 68, The Blanket. Do capítulo 87, The Grand

Armada, a versão de Rosal é a única a omitir a segunda parte, omissão esta que

indicia a rejeição de outra convenção épica, a Ilha dos Amores. É também a única a omitir o capítulo 116, The Dying Whale, e o capítulo 131, The Pequod Meets the

Delight. Mantêm-se os três capítulos finais e o Epílogo.11

A versão de Rosal é aquela em que menos se verificam as convenções narra-tivas da epopeia e em que mais especificamente se verificam as do conto juvenil. A má qualidade da tradução e da adaptação não permite concluir seja o que for sobre a intencionalidade destas ou de outras transformações. É evidente, contudo, o pro-pósito pedagógico de apresentar ao jovem leitor um conjunto suficiente de factos

10Nas referências bibliográficas referirei estes volumes por I e H, respectivamente, e indicarei a

seguir o número da página, separado por uma vírgula.

(32)

validadores do real,12 mesmo que isso implique a transformação da gélida

Nantucket numa ilha tropical:

A ilha [Nantucket] era selvagem, árida e seca.

As térmitas, ou seja, a formiga branca, insecto que abunda nos países quentes, onde destrói tudo o que encontra, pois constroem ninhos - "termiteiras" - que podem atingir dois metros de altura, abundavam. [1,45]

Descuidada e apressada como é, inconsistente no enredo e na apresentação das personagens, ignorante do Inglês, e redigida num Português de que a última citação é um exemplo, esta versão de Moby-Dick consegue cumprir algumas das funções principais das adaptações. Estamos ainda longe do tempo em que entre estas funções se contará a de estabelecer um primeiro contacto com a obra original enquanto objecto de fruição literária. Mas se o misreading de Rosal resulta num

miswríting - se este processo não desemboca, para o adaptador, numa bloomiana

angústia de influência, nem para o leitor num barthesiano prazer do texto - seja-nos permitido pensar que desemboca ao meseja-nos no prazer da aventura.

Numa data que não é indicada, mas que é, tanto quanto pude apurar, anterior a 1959, a Livraria Bertrand publicou uma tradução de J. Fernandes da versão em caste-lhano de Vidal Sales, com o título Moby Dick por Herman Melville. Trata-se de uma tradução e de uma edição cuja qualidade, tanto no que toca o texto como o paratexto, é consideravelmente superior à da versão de Rosal. Esta versão está dividida em 28 capítulos numerados e sem título, e num epílogo. Exclui, ao contrário de todas as ou-tras, o capítulo 28, Ahab, e também diverge das outras adaptações ao incluir o capítulo 32, Cetolcgy. Deste capítulo, conserva a metáfora bibliográfica de Melville (mas não a afirmação de Ishmael de que a baleia é um peixe) e acrescenta-lhe uma peculiar taxi-nomia segundo a qual a baleia azul é um "balenóptero". Também o capítulo 34, The

Cabin Table, é incluído contra o consenso dos restantes adaptadores. A versão utiliza

12Uma narrativa nunca apresenta factos, representa-os. Em muitas narrativas, no entanto, está

implícita a convenção de que essa representação é uma apresentação, o que nos permite distin-guir entre as narrativas que (por convenção) apresentam factos as que (por convenção e na reali-dade) os representam. Esta convenção, como todas as convenções literárias, contém em si uma margem de ambiguidade suficiente para que a linha divisória entre apresentação e representação seja pouco definida; no entanto, podemos dizer que a margem de apresentação é sempre mais larga numa narrativa em que os factos validem o real e que a margem de representação é mais larga numa narrativa que os empregue para se validar a si própria enquanto ficção. Uma narrativa em que todos os factos são apresentados como validadores do real é pura não-ficção, ou puro mito; e uma em que todos os factos fossem representados como validadores da ficção seria puro enredo.

Referências

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