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DIREITOS HUMANOS OU HUMANITÁRIO: MISERABILIDADE E VIOLÊNCIA NAS RUAS DO RIO DE JANEIRO

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REPATS - Revista de Estudos e Pesquisas Avançadas do Terceiro Setor

REPATS, Brasília, V. 5, nº 2, p 378-401, Jul-Dez, 2018

DIREITOS HUMANOS OU HUMANITÁRIOS? MISERABILIDADE E VIOLÊNCIA NAS RUAS DO RIO DE JANEIRO.

HUMAN OR HUMANITARIAN RIGHTS? MISERABLENESS AND VIOLENCE IN THE STREETS OF RIO DE JANEIRO.

Lara Denise Góes da Costa*

RESUMO: Este artigo analisou as representações sociais sobre a situação de pessoas nas ruas via cartas de leitores dos jornais que possuem matéria jornalística a respeito do tema a partir da ótica normativa dos Direitos Humanos e apontou para a abertura epistêmica dos Direitos Humanitários no intuito de se largar a abordagem para a responsabilidade de proteção do Estado em situações de emergência complexa

Palavras-chave: Direitos Humanos; Humanitarismo; Miserabilidade; Violência

ABSTRACT: This article analyzes the social representations about the situation of people in the streets through letters from readers of the newspapers that have journalistic material on the subject from the normative perspective of Human Rights and pointed to the epistemic opening of Humanitarian Rights in order to abandon the approach to state protection responsibility in complex emergencies Keywords: Human Rights; Humanitarianism; Miserableness; Violence

Recebido em: 05/07/2018 Aceito em: 12/08/2018

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As desigualdades sociais e econômicas históricas, somadas às novas configurações globais capitalistas contemporâneas vêm sendo discutidas ao longo do final do século XX e adentram o século XXI como uma das principais problemáticas mundiais e em particular do Brasil. Há uma grande vulnerabilidade dos direitos básicos na medida em que os sistemas públicos de proteção social ainda são precários A partir dos anos 90, o crescimento econômico e o aumento do salário mínimo1 levaram a uma diminuição considerável do desemprego e da

pobreza, no entanto, a pobreza extrema, na forma de condições precárias de acesso aos bens básicos de sobrevivência, ainda representa um contingente considerável da população, chegando ao mínimo diário para alimentação, caso de muitas pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro.

As pessoas que vivem nas ruas, tanto aquelas que possuem algum tipo de trabalho precário ou não, são classificadas como “população de rua” de uma maneira geral ou pessoas em “situação de rua2”. São aqueles cariocas ou

imigrantes que aqui chegaram buscando melhores condições de vida e que, no entanto, vivem em condições de extrema pobreza e que ganham apenas o suficiente para a sobrevivência diária. A vulnerabilidade com que as relações de trabalho se estabeleceram, assim como as flutuações econômicas desfizeram a solidariedade e a integração social, transformando-as num ambiente hostil e competitivo, gerando, assim, uma massa de pessoas desempregadas e no seu aspecto mais cruel, dissociadas do convívio social. A pobreza e a imensa disparidade socioeconômica no Brasil sempre estiveram visíveis aos olhos da população em geral e banalizada tal como a escravidão – esta última por mais de três séculos. O contraste histórico da “Casa grande e senzala” foi se

1 De acordo com Sonia Rocha, embora a partir da estabilidade da moeda brasileira e o aumento do salário mínimo, o contingente da população do Rio de Janeiro que vive em pobreza extrema segundo os dados da Prefeitura, é de 8,7%, um pouco abaixo do nacional, 12,9%. Entretanto, com a nova pesquisa que a autora tem desenvolvido, subdividindo a metrópole em Uphs (unidade de população homogênea), os dados se mostram divergentes e explicitam e detalham com maior exatidão as situações-limite de pobreza por município. No caso do município do Rio de Janeiro, tem-se um aumento para 21,9%. Cf. Pobreza Extrema no Rio de Janeiro: uma

espacialização alternativa.

2 Segundo o caderno do SMAS da Prefeitura do Rio de Janeiro, esta designação visa desviar o foco do grupo para indivíduos para que se possa tratar as problemáticas individuais caso a caso e ainda para designar o caráter transitório da situação em que estas pessoas se encontram.

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modificando com a ascensão do capitalismo global para o novo contraste entre condomínios de luxo e favelas na zona sul do Rio de Janeiro. E a partir dos anos 90 no contraste com a periferia. No entanto, os resultados da imensa desigualdade social do Brasil não ensejam a indignação de parte da sociedade carioca. A pobreza é vista com desgosto e o pobre com rejeição a partir de um critério de responsabilidade individual meritocrático que aceita e legitima a existência da pobreza, assim como normaliza e banaliza as condições degradantes a que são submetidas esta parcela da população. O incômodo e a repulsa que as pessoas em situação de rua causam não são atitudes isoladas ou individuais, mas um fato social, objeto de estudo a partir da metade dos anos 1980 e fruto de uma representação social, lentamente desenvolvida num sistema que cada vem mais se torna meritocrático e individualista. O pobre é visto como responsável pela própria pobreza. Além disso, é julgado como inapto ou preguiçoso, quando não é associado ao “malandro”, sendo que seu fardo é explicado como única e exclusivamente de sua responsabilidade. E a expectativa da população em geral é que o Estado resolva o “problema”. A pobreza é tornada banal e o pobre é levado a julgamento.

Se no Brasil, foi no interior de um contexto de defesa da justiça e da igualdade que se construiu a figura da pobreza, aquelas construções morais foram desfiguradas de forma a manter o caráter da pobreza como natural. Não enxergamos a existência de classes, preferimos atribuir ao indivíduo uma ideologia do mérito, ficando assim à responsabilidade individual toda a culpa pelo insucesso econômico. Tal ideologia está relacionada a uma “cultura do novo capitalismo” de que fala Sennett (2006), na qual o talento e a aptidão pessoal se transformam em prestígio moral de forma que se assegure a superioridade do criativo como capacitação para o trabalho. Daí resulta a objetificação do fracasso como responsabilidade única e exclusivamente pessoal, qualificadora moral dos indivíduos de acordo com a competência ou incompetência para determinados ofícios. A aptidão pessoal, deste modo, colore uma sociedade que focaliza apenas a individualidade, afirmando reiteradamente um sentimento de inutilidade para aqueles que não conseguiram se adaptar por força das

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condições sociais adversas a que foram submetidos desde o momento de seu nascimento.

Assim, este processo que se configura no Brasil se firma em um sistema social que glorifica o esforço individual de superação de barreiras sem que, no entanto, se pense em quebrá-las. Como apontou Celi Scalon, em sua pesquisa sobre o imaginário social da desigualdade entre a elite e o povo, as imagens que os dois grupos têm da sociedade brasileira revelam divergências e convergências3.De acordo com os dados da pesquisa, há uma consciência da

desigualdade entre ambos os grupos e uma grande convergência entre povo e elite sobre a perspectiva da igualdade, sendo o Estado a instituição considerada responsável por garanti-la. Contudo, nenhum dos grupos assume o papel nas resoluções, nem se identificam como responsáveis. A maior preocupação do povo é o desemprego (daí o fantasma da mendicância) e o da elite é a segurança. A interpretação de Scalon, que se aproxima da de Elisa Reis, é a de que a elite estabelece uma distância e não confia na possibilidade de transpô-la, assim como não vê a possibilidade de pagar mais impostos mesmo que sejam utilizados para benefícios sociais. Assim, além da desigualdade propriamente dita, oriunda tanto de um histórico de uma sociedade excludente em sua formação, quanto de um sistema globalizante da economia no qual o Brasil está inserido, possuímos paralelamente um sistema social de representação que legitima essa desigualdade, que ignora a injustiça social sub-reptícia que embasa todo o sistema de distribuição social e colabora para sua perpetuação na medida em que banaliza a pobreza e culpabiliza o pobre. Naturaliza a desigualdade e artificializa a igualdade, hierarquizando e meritocratizando o esforço e a responsabilidade individual, tornando cega e normalizada a rotina da pobreza no Brasil.

3 Celi Scalon buscou a percepção que a população brasileira tem da desigualdade, como e se vêem o Brasil como desigual. A elite em sua atribuição é entendida no sentido relacional, isto é de acordo com a renda em relação com outros grupos. A quem atribui a responsabilidade da tarefa de resolver a desigualdade? Segundo a autora, uma sociedade será mais justa quanto melhor for a distribuição dos indivíduos pelos diversos estratos que a estruturam. Cf. “Justiça

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Como resultado desta configuração, possuímos no Brasil e mais especificamente no Rio de Janeiro, a recorrente falta de solidariedade social com os mais pobres que se expressa na omissão ou na responsabilização pelo seu próprio estado no interior de um sistema hierárquico que, implicitamente, deixa tudo como está e legitima e invisibiliza pessoas que nada possuem, pois são consideradas como nada sendo4. Em muitos casos, como se verá através das

cartas dos leitores, o indivíduo morador de rua é visto com desconfiança, como vagabundo ou possível (futuro) bandido. De forma conjunta, é tratado no convívio social por parte da população como alvo de críticas e discriminação.

A questão social que sobressai no Brasil, portanto, é a dificuldade de expandir os direitos de cidadania e em se atribuir direitos para fora do ambiente familiar. Como lembra o autor, “eles podem estar na Constituição Federal de 1988, mas não se traduzem em políticas sociais de alcance massivo” (p.77). Esta fragilização dos direitos não decorre, contudo, somente da sociedade salarial, ou seja, não é dependente unicamente da possibilidade de emprego, mas também de direitos mais amplos no mercado de trabalho e do imaginário social sobre a condição de vida nas cidades. Podemos entender, portanto, que a pobreza possui dois lados: um desenraizamento econômico e outro social. Isso significa dizer que, de um lado, tem-se o desemprego de larga escala ou duração, ou trabalho irregular, informal, ou ocasional, que advém de várias modalidades de desinserção no sistema produtivo. E de outro, como consequência ou reafirmação deste, o enfraquecimento de laços da sociabilidade primária – família, parentela, bairro, vida associativa, e o próprio mundo do trabalho. Desta forma, a análise das cartas dos leitores visou compreender o que as pessoas5

pensam sobre a “população de rua” e como estas representações sobre este

4 Em sua análise, DaMatta enfatiza o aspecto cultural dessa organização social, mostrando que uma visão orgânica da sociedade guarda afinidade com a discussão sobre a naturalização da pobreza. Cf. Da Matta, Roberto. “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema

brasileiro”.

5 Deste grupo analisado. Embora alguns comentários tenham identificação de nome, a maioria são apelidos ou endereços de e-mails. Isso impossibilita a investigação da faixa etária, gênero, dentre outras informações de quem escreve. Considero que o fato de não ter estas informações bastante valioso, pois acredito que os comentários sejam mais verdadeiros do que se fossem perguntados em um método de entrevista.

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grupo em nada contribuem para que consigamos uma efetivação maior de uma prática cidadã.

Em 2005, a Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) realizou o I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua, onde foram discutidos, em conjunto com os movimentos sociais desse segmento social, os desafios para a formulação de políticas públicas para essa parcela da população. Os motivos declarados para que uma pessoa vá viver nas ruas estão absolutamente correlacionados. O baixo grau de escolaridade de quem vive nas ruas decorre, em última instância, de uma situação pouco estável quanto ao emprego. Para a população mais pobre, viver de “bico” é regra e não exceção6.

Segundo a média destes dados no Brasil, de cada 100 pessoas em situação de rua, 71 trabalham e 52 têm pelo menos um parente na cidade onde vivem. A atividade mais frequente é a coleta de material reciclável e uma significativa parcela deste público considera boa a relação com os seus familiares. O trabalho e o vínculo familiar são aspectos que compõem a primeira Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de Rua, realizada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Segundo análise da SMAS7, viver nas ruas revela todo um processo de rompimento,

desde seus vínculos de trabalho, passando por familiares e comunitários, e terminando por deixá-lo em uma situação de isolamento, sem sua identidade de provedor e sem uma família e, ou amigos por perto. Se chegam às ruas como fracassados porque não provêm o sustento da família, passar a receber tudo que precisam acaba por reforçar a idéia de que não são capazes.

Isso talvez indique que as soluções fornecidas pela Prefeitura, apontadas como bem-sucedidas e que envolvem o recolhimento compulsório, provocam falsas impressões de solução e configuram-se apenas em re-acomodoções

6 Cf. Pesquisa Nacional sobre a população em situação de rua do Meta Instituto de Pesquisa de Opinião da Secretaria de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome: Abril de 2008. A população em situação de rua não é incluída nos censos demográficos brasileiros, e de outros países, fundamentalmente porque a coleta de dados dos censos é de base domiciliar.

7 Cf. SMAS- Relatório anual sobre pessoas em situação de rua - Cadernos de Assistência Social, vol. 18, levantamento de População em Situação de Rua na cidade do Rio de Janeiro/2008

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territoriais8, que perpetuam a questão e corroboram para eles se sentirem como

um problema. Além disso, o imaginário social acerca da população de rua se configura de forma extremamente negativa, o que agrava ainda mais o sentimento de culpa e inutilidade destas pessoas. O ciclo que temos, portanto, se inicia em geral, numa situação de instabilidade empregatícia9, que envolve a

família e a rede de relacionamento comunitário. Diante da impossibilidade de prover a família e diante das conseqüências que surgem das privações da pobreza, a culpa e a falta de motivação, assim como o consumo de álcool e drogas apresentam-se como saída.

As cartas dos leitores foram selecionadas de forma totalizante, ou seja, não passaram por nenhuma avaliação pessoal prévia10. Foram selecionadas

todas as matérias disponíveis sobre população de rua nos anos de 2007 a 2010. A partir de cada matéria que detivesse conteúdo sobre população de rua (mendicantes, morador de rua), o trecho abaixo da matéria on-line possuía uma pequena seção denominada “comente” e foi copiado integralmente. Nesta seção, cada matéria detinha cerca de 5 a 100 comentários. No total foram analisados 494 comentários. Todos foram incluídos, recortados e colados em um novo arquivo. Daí, a partir da leitura deste material, de ano para ano, fui categorizando de acordo com os conteúdos, para depois criar a pizza com os resultados.

8 O choque de ordem e a retirada da população de rua para os abrigos municipais constituem medidas atuais da Prefeitura do Rio de Janeiro para resolver o “problema” da população de rua. Entretanto, o número de pessoas vivendo nas ruas do ano de 2006 a 2008 revela-se estável, indicando a pouca eficácia destas medidas.

9 Os dados da Prefeitura do Rio de Janeiro dos anos de 2006 a 2008 revelam que em média 30% dos casos são de desemprego, seguido por conflitos familiares. Pode se interpretar também que embora o segundo motivo seja de conflitos familiares, em geral as pessoas que chegam ao ponto de ir para a rua por conflitos em casa, são de lares pobres também, embora não se possa mensurar se os motivos dos conflitos estariam relacionados à situação financeira familiar. 10 Os comentários se situam no final à direita de cada matéria publicada. Algumas matérias não possuíam comentários, portanto foram selecionadas apenas aquelas que possuíssem. Não entraram na seleção as matérias que vinculam população de rua a crimes. Isso se deu para que o comentário fosse somente sobre a existência deles em determinado local e não sobre algum ato que o vinculasse a algum crime ou que pudesse estar relacionado à violência. O objetivo era entender o que as pessoas pensam sobre população de rua em contextos onde não há crime, isto é, apenas o fato de eles existirem. Cf.matérias em: http://oglobo.globo.com/rio/mat/2010/08/27/choque-de-ordem-no-largo-do-machado-recolhe-16-moradores-de-rua-917492462.asp

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Alguns problemas, no entanto, precisam ser esclarecidos:

a) Muitas cartas são respostas diretas a outros leitores, com ofensas e às vezes concordando com outro leitor. Outras são indicações de outros problemas que eles consideraram correlatos. Todos estes tipos de comentários foram agrupados à categoria “Outros”.

b) Embora possa se interpretar o número crescente de cartas em 2010 como uma maior participação social, não há explicação certa sobre o número reduzido de cartas no ano de 2008 sendo o número maior em 2007, 2009 e 2010. Pode-se fazer algumas suposições, como mudança do governo César Maia para Eduardo Paes ou alguma problemática no arquivo do jornal. Isso, no entanto, não foi confirmado através de conversa por telefone com o arquivo do jornal O Globo.

c) A escolha do jornal O Globo se deu pelo simples fato de não haver até o ano desta pesquisa a seção “comente” no jornal O DIA e no EXTRA, apesar de estes dois jornais também terem divulgado diversas matérias sobre população de rua e reclamação dos bairros, principalmente na Zona Norte.

d) Por fim, organizei as cartas, tentando ao máximo me deter ao conteúdo dos discursos de forma a entender o objetivo do comentário ou da crítica do leitor, embora muitos comentários sejam controversos e detenham, acredito, múltiplas interpretações de sentido. Procurei estabelecer os critérios de “Responsabilidade e solução” como dois parâmetros para classificação dos comentários. Aqueles que não detinham estes critérios foram, para uma nova categoria, caso tenha sido um número relativamente alto ou mais uma vez, para a categoria “Outros”.

Foram criados alguns subtipos nos tipos principais. Na categoria Responsabilidade, há dois subtipos: Estado e Indivíduo. Nas soluções, há como subtipos principais: morte, esterilização, internação e migração forçada. Os comentários sobre responsabilidade do Estado versavam desde a atribuição de culpa pelo problema da existência de população de rua à falta de providências do governo. Sobre a responsabilidade do indivíduo, os comentários expressam a opinião de que há uma escolha individual de viver nas ruas ou de querer estar

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nesta situação. Também expressam que viver nas ruas seria o resultado de não quererem trabalhar ou conseqüência de escolhas erradas. Na categoria Soluções, os comentários expressam possibilidades para acabar com o “problema” da população de rua. Neste quesito alguns apontam ser contra direitos individuais. Estes são comentários que expressam o conteúdo de que, pelo fato de não quererem trabalhar, não devem possuir o direito de ficar nas ruas, portanto, devem ser presos ou mandados para outro lugar. Este quesito se relaciona com a responsabilidade individual, na medida em que ter direitos não seria justo para aquele que “escolheu” esta vida. Direitos, portanto, estariam relacionados às pessoas que “escolheram” trabalhar.

Na categoria Outros, entraram os comentários que não dizem respeito especificamente à população de rua, como reclamações de bairro, outras questões sociais, reclamações diretas ao prefeito, diálogos com outros leitores, e respostas e perguntas, como uma sala de bate-papo. Em todos os anos analisados, a maioria dos comentários versou sobre a responsabilidade ou culpa da existência de pessoas vivendo nas ruas. No ano de 2007, dos 106 comentários, há que se destacar que 22,64% versavam sobre atribuição de responsabilidade, enquanto 8,49% versavam sobre soluções. Houve a inclusão de uma nova categoria “moradores como vítimas” pelo elevado percentual de 10,6%. Foram comentários nos quais os leitores se queixam que estariam cercados pela população de rua e que eles seriam os “verdadeiros donos da rua”.

No ano de 2008, dos 75,80% de conteúdos sobre responsabilidade, 32,3% dos leitores responsabilizaram o Estado, 18% responsabilizam o Estado e o indivíduo enquanto 11,5% responsabilizaram unicamente o morador de rua pela sua condição. Apenas 4,8% dos comentários apontavam soluções para a população de rua. Destas, todos (100%) apontaram a esterilização obrigatória pelo Estado como solução.Nos quadros em anexo, foram separados, ano a ano, os conteúdos dos comentários:

Como vimos nas escalas de ano para ano, houve um aumento gradativo na atribuição da responsabilidade do Estado de 2007 a 2010. Na

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responsabilidade do indivíduo também houve aumento de 2007 (4,8%) a 22% em 2008, 19,72% em 2009 e uma queda para 12,89% até julho de 2010.Nas soluções, tivemos uma queda de 33,3 % de solução por morte em 2007 a 10,5% em 2010, sendo que a solução por internação paralelamente aumentou de 11% para 36,84% em 2010. A migração forçada também caiu de 54,5 % em 2008 para 47,36% em 2010. Podemos notar que no ano de 2008 a responsabilidade individual foi maior conjuntamente com a solução da migração forçada para pessoas em situação de rua. No ano de 2009 a responsabilidade do indivíduo diminui e a migração forçada também e reaparece a morte como solução. Em 2010, pelo menos até julho, temos uma queda em todos os quesitos de solução, com exceção da internação compulsória que aumenta significativamente.

Abaixo, estão alguns dos comentários selecionados por categoria, começando pelos de solução até os de responsabilidade.

Exemplos de comentários sobre solução morte:

“Tem que passar o CEROL nessa pivetada !!!!!”( leitor 25.2007) “Pra tirar essa galera da rua, só com uma chacina!!” ( leitor 38.2007) “hahaha, o velho papo furado de sempre, tem gente que tapa o sol com a peneira mesmo, viu. Sendo realista... ainda bem que morreram, 6 drogados a menos.Quem entra nessa vida já sabe seu fim... fez por merecer. Enfim uma boa noticia para começar o dia.” ( leitor 1. 2010)

“Claro que não sou um nazista, mas daí você entende por que às vezes um cidadão surta e coloca fogo num mendigo ou arrebenta um de pancada... Imagina um bando de marmanjos cantando sua esposa ou impedindo sua filha de passar pela calçada?”(leitor 20.2010)

“ACORDEM: RODO NESTES V.A.G.A.B.U.N.D.O.S” (84.2007)

“Sem brincadeira, o melhor lugar para esse pessoal de rua ou é bem afastado das ruas do Rio, ou então põe dentro de um navio e afunda no Atlântico. Eu tô cansado de ouvir falar que tem que ter assistência social. Que nada! Se não querem trabalhar e preferem pedir esmolas, então que sejam mandados para o Atlântico. Em outros países do mundo CIVILIZADO é simplesmente proibido, pela lei e pelos costumes, mendigos morando nas ruas e pedindo esmolas. Só aqui, nessa bagunça chamada Rio de Janeiro, é que tudo é permitido. Uma lástima. Deveria haver uma campanha proibindo o povo de dar esmolas. Ah, e nada de assistência social também.”(leitor 06.2009)

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“Nosso erro é ser um bando de cordeiros e aceitar pessoas de outras localidades (até mesmo trazidas pela própria prefeitura de outras cidades). Temos de despejar essas pessoas no rio.” (leitor 47.2009)

Exemplos de comentários de solução internação:

“Deviam criar uma lei que obrigasse os moradores de rua se instalarem nos abrigos ou serem encaminhados a hospitais para tratamento. Eles não deveriam ter a liberdade de recusar assistência. Deveria ser ilegal morar na rua. Na minha rua "moram" umas 20 pessoas, há mais de um ano. São jovens, alcoolatras, drogados e assaltantes. Eles não querem nem ouvir falar em abrigo. De vez em quando, a polícia leva um ou dois. Mas, no dia seguinte, o grupo se recompõe. Malandragem pura.” ( leitor 101.2007)

“SE NAO INTERNAREM ESSA GENTE, O PROBLEMA NUNCA

ACABARÁ! eles tem que ficar retidos até terem condicões de terem um trabalho. Se nao se recuperarem e voltarem pra rua, tem de ir presos.” (leitor 23.2010)

“Fazenda no interior do estado com um galpão divididos em quartos com cama e roupa de cama limpa e banheiros coletivos separados por sexo. CERCA TUDO para não fugirem, só sai de lá recuperado!!PRONTO!! PROBLEMA RESOLVIDO! AREA TEM! GRANA TEM! SÓ FALTA VONTADE POLITICA” ( leitor 31.2010)

Exemplos de solução migração forçada:

“Tem que ver de onde vieram, quem os mandou pra cá e devolvê-los à sua origem e agir com rigor com essas pessoas que os enviaram, senão vamos ficar enxugando gelo eternamente. O Rio não pode ficar

resolvendo o problema dos outros.”(leitor 32.2008)

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“O que cria isso tudo é a falta de repressão. Se houvesse uma lei que estabelecesse o recolhimento a um abrigo como pena obrigatória pra quem fosse encontrado vivendo nas ruas, não haveria essa palhaçada. Sim, porque boa parte desse pessoal tem casa em outros lugares, mas acha mais fácil viver aqui como mendingo, e não aceita ser levado para abrigos. Não pode haver "opção": se não tem aonde morar, na rua é que não pode ficar.” (leitor 07.2009)

“O morador de rua é tipicamente igual ao camelô, não quer ficar em locais sem movimento preferem pontos da cidade onde haja circulação de muitos pedestres, o morador de rua, visando esmolar, e os camelôs a possibilidade de vender mais. Na verdade ambos tem que ser retirados da rua, pois a razão do Rio de Janeiro imperar na fabricação do lixo, os autores dessa produção que inferniza nossa cidade tanto é o morador de rua quanto o camelô.” ( leitor 64.2009)

Exemplo de Responsabilidade individual:

“Nem todos são vitimas. Existe oportunidade de estudo para todos, por mais que a educação não seja de grande qualidade, ela existe e é universal no Brasil. Só fica perambulando pelas ruas que prefere o caminho fácil das esmolas e do roubo do que o arduo caminho da educação e do trabalho honesto” ( leitor 38.2008)

“Também acho que muitos deles se acostumaram à vida fácil das esmolas. Muitas dessas pessoas de rua são pegas para ficarem em abrigos, mas acabam fugindo. O problema é bem mais difícil de ser resolvido pois não é só de oportunidades, mas também de caráter.” ( leitor 28.2008)

“A prefeitura cansa de tentar tirar esse pessoal das ruas, mas não querem. Porque nos abrigos há horário, não podem beber alcool, têm que tomar banho...enfim, disciplina, que é o que não querem.”( leitor 09.2008) “Se esses mendigos estão aboletados ali é porque alguém lhes dá vida mansa. Na hora que a população parar de fazer assistencialismo e parar de distribuir quentinha e cobertor eles vão embora. Enquanto isso o abrigo

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da Prefeitura tá vazio, vazio, porque esses mendigos não gostam de cumprir regras, e lá no abrigo é proibido tomar cachaça.”

Exemplo de solução esterilização:

“Enquanto o Rio não adotar um plano intensivo de Controle de Natalidade entre na população de miseráveis, que inclusive não querem ter filhos, apenas os têm por ignorância, estaremos vendo a quantidade de marginais nas ruas cada vez maior. Onde vamos parar não sei, mas é inevitável que algo seja feito, nem que seja preciso dar comida com

anti-concepcional para esse

povo descontrolado que se auto-perpetua na miséria” (leitor 41.2008) “Esterilização ampla, geral e irrestrita. URGENTEMENTE!” (03.2009) “Moro na Tijuca e o meu bairro acabou ou melhor, acabaram com ele. Aqui tem tanta população de rua que chega a assustar.Esterilização já!!!” (13.2009)

Exemplo de Responsabilidade do Estado:

“É triste tudo isto, como resolver se os políticos não querem trabalhar a favor da cidade e dos cidadãos?” ( leitor 18.2008)

“Onde estão as autoridades? Andando de bicicleta em Paris? Ou se escondendo atrás de notebooks, despachando via e-mails?” (leitor 29.2008)

“O Estado tem dar uma solução para este problema, porque é um problema. A população por sua vez tem que parar de achar que é bonito dar esmola e que isto vai comprar um lugar no céu ou diminuir o peso dos pecados cometidos.”(leitor 45.2008)

“Que pena. O Rio de janeiro merece mais respeito desses políticos que só sabem usufruir os votos e depois o povo que se lixe” (46.2009) “E cadê o choque de ordem?? Manter a cidade bonitona??” (leitor 48.2009)

Exemplos de Responsabilidade social:

“O maior culpado é o povo, que fica dando dinheiro pra esses inúteis. Se ninguém desse dinheiro, no mínimo eles iam tentar trabalhar ao invés de vagabundar” ( leitor 3. 2009)

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Outros comentários:

“O DIREITO É DE IR E VIR, NÃO DE PERMANECER!!!” ( leitor 11/2010) “PRAGA VOLTA! um bando de pivetes e mendigos fumados de crack vão te cercar e aí você vai ver o que é bom!” (leitor 6.2010)

“Ficam falando que tem que dar moradia digna?!?!?!fala serio?!?!?!?! o Estado nunca me deu nada!?!?!?! Tem que retirar eles de lá...saber fazer filho eles sabem...tem é que prender esses bandidos!!!!!!!!!! ( leitor 14.2010)

“Não adianta! Essas pessoas são alcoólatras, desprovidas de qualquer dignidade.” (leitora 03.2010)

“Espalhem creolina na rua, que eles somem rapidinho” (leitor 09.2009) “É horrivel o cartão postal do Brasil ter esses mendigos.” ( leitor 72.2009) “SUGIRO QUE FIQUEM COM ELES, QUEM ELABOROU E APROVOU O ECA, E TAMBEM OS QUE PREGAM E FAZEM PARTE DOS DIREITOS HUMANOS! MUDAR O ECA JA. FAZER CAMPANHA EM MASSA PARA QUE NAO DEEM NADA A ELES. REMOVE-LOS PARA SUAS ORIGENS.” ( leitora 12.2010)

O crescimento do desemprego, do individualismo e da falta de solidariedade social são os fatores que irão demandar um profundo questionamento da própria concepção de direitos sociais, do que seria justo e equitativo como prática fundamentalmente democrática. A obrigação moral a que fica sujeito o Estado (Freitag:1992), implica uma redefinição dos termos “contratuais” como medida eficaz para associar direitos com contrapartidas positivas, isto é, haveria uma demanda por uma socialização da responsabilidade individual como tarefa política, na qual o Estado passa a ter como função restabelecer e reforçar o vínculo social, tornando-o visível.

Seguindo a mesma linha, Bernardo (Sorj; 2004) discorre sobre a forma como a globalização passou a afetar a vida nas sociedades e como a oposição original “trabalhador/povo x capitalismo/elite” foi substituída por novas categorias fragmentadas e fragmentadoras da vida social que colocam em xeque o “bem comum” através da fragmentação simbólica, que é resultado do individualismo triunfante, da desigualdade social e do rompimento dos laços de solidariedade.

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O enfoque dos direitos humanos passa a ser a língua da globalização e a questão da cidadania se transforma em questão de justiça, no sentido Rawlsiano. Das diversas teorias políticas de cunho liberal, um ponto central se desenvolveu em torno do ideal de indivíduo autônomo e livre, compatibilizado com o Estado como protetor e garantidor deste ideal. Paralelamente ao desenvolvimento capitalista e as consequências urbanas e sociais que advém deste fenômeno, a partir dos anos 60 há um fervilhamento de correntes teóricas sociais e políticas que visam entender as novas configurações sociais e econômicas que vêm se instalando no mundo. Muitas destas teorias exerceram forte influência no pensamento social brasileiro na medida em que buscam novas formas equitativas de distribuição econômica e social. Um ponto em comum com as variadas correntes teóricas é a ênfase na defesa de uma sociedade democrática liberal. O debate teórico se volta tanto para a lógica liberal da liberdade – no sentido dos Direitos Humanos sob viés republicano quanto à lógica democrática da igualdade no sentido da soberania popular11.

A falta de percepção de parcela da sociedade brasileira para a existência de classes se dá como processo histórico no qual a cultura da família portuguesa teria formado e influenciado a formação da identidade nacional. As formas de comportamento apreendidas através das instituições econômicas e sociais constituem “habitus”. Assim, as instituições devem ser entendidas como constituidoras de valores, na medida em que são o Estado e o mercado que contribuem para formar ideais de comportamento no cotidiano. A influência do mercado e do Estado no nosso comportamento se dá de tal forma que a dimensão moral se confunde com tais instituições, tornando invisíveis certas formas inconscientes de agir, tornando-as banalizadas. Essas fontes morais são naturalizadas e impessoais. É o caráter de classe, ou seja, das precondições sociais que constituem a valorização do mérito como forma cruel, cega e degradante de atribuir ao indivíduo a responsabilidade unicamente individual dos

11 Para ver a convergência da concepção republicana à liberal num logica democrática, Cf. Gisele Cittadino: “Pluralismo, Direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional

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seus atos, transformando a desigualdade como algo dado e normal. Só podemos falar de sociedade justa na medida em que pensamos o social como um todo, ou seja, através da análise das formas sociais de comportamento que advém das instituições sociais que criamos.

A importância desta discussão reside no fato de que é importante verificar novas formas de análise das desigualdades no Brasil, que conjugue tanto as desigualdades socioeconômicas como as dimensões simbólicas que reafirmam aquelas. Ressaltando a inter-relação econômica e política que perpassava a estrutura social, Simon Schwartzman (2004) ressalta que como a sociedade brasileira no final do século XIX ainda era constituída de uma pequena elite branca, um grande número de escravos, imigrantes pobres europeus e uma economia escravista decadente, o que resulta deste processo histórico é a conjugação da nova configuração econômica mundial na qual estamos inseridos com uma economia de mercado globalizante que prolonga a desigualdade social com um número crescente de pobres e não cumpre a promessa de modernização e mobilidade social. A pobreza se torna aliada do imaginário do crime, quando não está de fato entrelaçada a ele, e o escasso acesso aos bens disponíveis, tais como saúde, segurança e educação são sucateados pelo Estado.

A falta de desenvolvimento da periferia e a crescente favelização do espaço urbano não é apenas o resultado da imensa disparidade social, mas causadora de uma rede de simbolismos aliados a esta desigualdade. Para a autora, quando a cidade se torna objeto da apropriação privatista onde residem a desconfiança e o ressentimento sociais, o padrão de exclusão aumenta e a cidadania se torna residual. Neste ponto, cabe ressaltar que de uma maneira geral, as noções de justiça e de solidariedade quando associadas ao conceito de cidadania remetem a dois debates teóricos: de um lado, ao debate da teoria ou filosofia moral, na qual se enfocam os ideais de justiça e de dever moral que identificamos a partir das teorias contratualistas do século XVII até as novas abordagens neo-contratualistas, tendo a teoria Rawlsiana como ponto de partida. Por outro lado, na literatura sociológica, a noção de solidariedade

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norteia a articulação entre interesses individuais e bem comuns, numa concepção de indivíduo autônomo, porém situado numa determinada identidade comunitária, e pertencente a uma totalidade social.

A articulação entre direitos e valores está, portanto, no cerne da discussão da cidadania, permitindo um equilíbrio entre justiça e solidariedade, que de forma conjunta, superadas as dificuldades conceituais, possam relacionar respeito mútuo e dignidade humana como afirmação de uma prática cidadã efetiva. Como resultado, podemos apontar que hoje algumas concepções acerca dos Direitos humanos, sua recepção no Brasil como signatário dos tratados internacionais em matéria de Direitos Humanos e a efetivação destes direitos se dão através da luta por uma cidadania inclusiva12. Mas, mais do que isso, cabe

nos dias de hoje acrescentar que a responsabilidade de proteger é uma nova doutrina sob o marco normativo para as ações humanitárias que visa aprimorar o sistema humanitário internacional e que creio seja pertinente alarga-lo para o cenário interno. Da perspectiva dos Direitos Humanos, pode-se dizer que a primeira tentativa de entendimento mútuo entre as nações surgiu no período pós-primeira guerra. A Liga das Nações, criada em 1920, tinha como princípio norteador a paz mundial através da doutrina de segurança coletiva13. Tal

princípio visava evitar a possibilidade de um novo conflito através do equilíbrio dos poderes. A harmonia entre as nações durou, no entanto, muito pouco. Os interesses econômicos decorrentes da pobreza gerada pela guerra naufragaram a instituição internacional, enterrando de vez a possibilidade de paz baseada no poder. O surgimento das Nações Unidas e a Declaração dos Direitos Humanos foram momentos decisivos de expansão mundial dos princípios de respeito à vida e à dignidade humana.

12 Embora a Carta das Nações Unidas sobre os Direitos Humanos por ter nascido, segundo Norberto Bobbio, como forma de proteger o indivíduo do Estado, hoje a concepção de Direitos Humanos reflete a vontade dos estados signatários de garantir a proteção do indivíduo seja de um Estado opressor, seja de condições desumanas de tratamento. Cf. Bobbio, N. “A era dos direitos”

13 A doutrina da segurança coletiva incorpora dois conceitos inter-relacionados: a soberania e o Direito internacional. A soberania garantiria a supremacia legal no interior de um determinado território e o direito internacional às regras para a segurança coletiva. Cf. Seitenfus, R. “Manual das organizações internacionais”. Ed. Livraria do advogado, 2000.

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O conjunto de normas aplicados para os conflitos armados conhecido como Direito Humanitário teve como início as quatro convenções de Genebra no contexto da segunda guerra e os Direitos Humanos e dos Direitos internacionais dos Refugiados. Para Além das ajudas humanitárias em desastres naturais, o sistema da ONU desempenhou assistência humanitária em situações de emergência e crise que não foram provocadas por desastres naturais, como ocasionadas por conflitos armados, guerra civil ou “emergências similares14”. A

partir da diversificação dos fundos nas Nações Unidas em diversos órgãos e organizações especializadas, a Resolução da Assembléia Geral 46/182 de 1991 ressaltou a importância de vítimas em situações de emergência, perda de vidas humanas, deslocamento em massa de pessoas e destruição material. A partir daí o tema passou a ser tratado como situações humanitárias complexas a ser analisado no Conselho de Segurança, e a proteção humanitária passou a fazer parte do mandato das forças da paz, gerando discussões mais amplas sobre o tema.

Após a formulação kantiana sobre os direitos cosmopolitas como meio de integração entre a ordem doméstica e a lei internacional, no sentido jurídico como sistema moral, foi Hannah Arendt quem criou um novo legado de direitos cosmopolitas ao dissecar os paradoxos territoriais baseados na soberania no Estado. Benhabib analisou a expressão “direito a ter direitos” em Hannah Arendt para desenvolver a tese de que o valor moral contido na expressão decorreria de uma concepção kantiana de direito no sentido de que haveria uma transcendência humanitária acima dos valores culturais, lingüísticos e religiosos que os diferenciaram. Com milhões de pessoas apátridas e refugiadas em outros Estados a partir do advento de duas guerras mundiais, não foi apenas o acesso aos direitos de cidadania que foram instantaneamente negados para estas pessoas, mas direitos humanitários. A partir da discussão sobre a corrida para a África e sua colonização, Arendt examinou os episódios que a partir daí ilustraram uma quebra nas regras de direito e nos valores morais. Os princípios de Direitos Humanitários tornaram-se frágeis em prol de decisões políticas

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imperialistas. A expressão “direito a ter direitos” denotaria duas acepções diferentes de direito. O primeiro “direito” significaria uma extensão do reconhecimento da humanidade aos membros de qualquer grupo humano. Neste sentido, o uso do termo “direito” evocaria um imperativo moral. Já o segundo uso de “direitos” sugeriria o primeiro direito como premissa. “Direitos” na frase de Arendt dependeriam de uma relação triangular entre o receptor, o reconhecedor e a instituição que media tais direitos, dentro da qual a pessoa que detêm direitos já faz parte de uma comunidade ou é reconhecida como membro ulteriormente. Assim, o uso do primeiro direito teria uma estrutura discursiva diferente da segunda, na medida em que requer a identidade e o reconhecimento da pessoa como membro de algum grupo humano.

Segundo a filósofa, para que seja possível o reconhecimento de uma pessoa como membro de um agrupamento humano torna-se necessário anteriormente que ela seja reconhecida como humana. Este ponto revelaria o valor moral do primeiro direito, no qual a concepção kantiana de valor universal de humanidade acima de qualquer contexto cultural transcenderia qualquer possibilidade de não-reconhecimento. Este direito imporia como consequência obrigações mútuas, no sentido de obrigar-nos a nunca violar o direito de humanidade de cada pessoa. Hannah Arendt tinha em mente a humanidade como membro reconhecido no interior de uma sociedade civil e a liberdade decorreria apenas deste direito. O Estado-nação sempre possuiu um grau elevado de exclusão e de injustiças sociais decorrentes de lutas por motivos identitários e ideológicos. Os cidadãos do Estado moderno como membros de uma nação, possuem uma história, uma língua e uma tradição particular. Quanto mais a nação defende a identidade acima da política, mais conflitos por igualdade surgem e menos respeito pelas diferenças se instala. Assim, “direito a ter direitos” no contexto atual constitui um reconhecimento de um status universal de ser pessoa humana, independentemente de sua identidade nacional.

A falta de distribuição de bens sociais para a satisfação de necessidades básicas gera uma massa de “pobres” ou “indigentes” que são vistos como perigosos e geradores de violência. A responsabilidade estatal é vista como a

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forma de proteger as elites dos pobres perigosos que seriam perigosos por serem invejosos da riqueza das elites. Isso nos mostra como a forma de culpabilizar o Estado também é a forma de se eximir de qualquer responsabilidade assim como também transforma a desigualdade em natural, para que se mantenha o status quo do sistema estrutural existente. Em contraste, a responsabilidade de proteger humanitariamente vulneráveis se distancia cada vez mais da função do Estado, comprometido com o mercado e menos comprometido com a integração social.

Uma situação de privação econômica e social em si mesma já possui inúmeras consequências e a reafirmação disso através de um universo simbólico que exclui, responsabiliza e hierarquiza pessoas ao invés de ajudá-las, não colabora em nada para a reinserção social destas pessoas, muito pelo contrário, só legitima este sistema e aumenta a desintegração social na nossa relação diária com o outro. Pelas cartas, vemos um microcosmo das representações sobre a pobreza, a miséria e como esta situação não enseja empatia humanitária, mas hostilidade. Ao atribuir responsabilidade ao Estado, os leitores compreendem não a responsabilidade do Estado de protegê-los, mas serem protegidos do convívio com miseráveis.

O reconhecimento dos Direitos Humanos e do Direito Humanitário é o reconhecimento da independência destes mesmos direitos. No Brasil, os tratados de Direitos Humanos não são recepcionados automaticamente pelo nosso ordenamento jurídico, de forma que para sua aplicação, é necessária a aprovação do Poder Legislativo15. Além disso, a consciência da importância

destas normas ainda é muito incipiente. Como lembra Ferdinand Tönnies (1942), conceder a alguém um direito é mais do que dar uma simples permissão ou arbítrio ao outro. Significa que a ação que eu permito é justa, correta, isto é, que ela é igualmente válida para todos. Tendo isso em mente, podemos dizer que a viabilização de uma sociedade mais justa depende inexoravelmente da nossa atribuição recíproca de direitos.

15 Art. 5º, § 3º da Constituição Federal, com a modificação da Emenda Constitucional nº 45 de 2004.

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A garantia de direitos universais é o núcleo da moral do respeito igual e universal. Este respeito se traduz como reconhecimento do ser humano como sujeito de direito. O sofrimento humano é agravado pelas restrições de ajuda humanitária e pela omissão do Estado na proteção aos vulneráveis. A declaração do Milênio de 2000 mostrou a importância de desenvolvermos uma cultura da proteção civil em matéria de emergências complexas de acordo com o Direito Internacional Humanitário, neste sentido, podemos incluir tanto deslocados internos quanto massas de pessoas em situação de destruição material como forma de alargarmos a Responsabilidade de proteger do Estado.

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