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Poetas em fuga: derivas da poesia (I)

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Academic year: 2021

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EDIÇÃO JOHN GREENFIELD FRANCISCO TOPA

TEXTUALIDADE

E MEMÓRIA

PERMANÊNCIA, ROTURA,

CONTROVÉRSIA

(2)

Comissão editorial: John Greenfield (U. Porto / Coordenador), Francisco Topa (U. Porto),

Ingrid Kasten (F.U. Berlin), Laura Auteri (U. Palermo), Solange Fiuza Cardoso Yokozawa (U.F. Góias) Design gráfico: Helena Lobo Design | www.hldesign.pt

Paginação: Carlos Gonçalves | www. carlosgoncalves.net Imagem da capa: Fuselog – Gabinete de Design, Lda.

Edição: CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória Via Panorâmica, s/n | 4150‑564 Porto | www.citcem.org | citcem@letras.up.pt Depósito legal: 454106/19

ISBN: 978‑989‑8351‑96‑8

DOI: https://doi.org/10.21747/978‑989‑8351‑96‑8/tex Porto, dezembro de 2018

Produção: www.decadadaspalavras.com

Impressão e acabamento: Clássica, Artes Gráficas. Porto.

Trabalho cofinanciado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) através do COMPETE 2020 — Programa Operacional Competitividade e Internacionalização (POCI) e por fundos nacionais através da FCT, no âmbito do projeto POCI‑01‑0145‑FEDER‑007460.

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ANA PAULA COUTINHO MENDES*

E, desde aí, tenho-me banhado no Poema Do Mar, infuso de astros, e lactescente,

Devorando o verde azul-celeste; onde, flutuante lívido E arrebatado, um afogado pensativo, por vezes, aparece.

Rimbaud, Le bateau ivre1

Porque, quando se parte de um lugar, vai a gente a fugir, sempre.

Herberto Helder, Photomaton & Vox

Falarei aqui de fuga como quem fala de exílio num sentido deliberadamente abrangente, apoiando‑me na etimologia «ex‑hilium» que acentua a ideia de «saída de» [um lugar/país de origem], e que tem acolhido conotações diversas, não raro paradoxais, todas elas suscitadas por uma experiência antropológica universal, narrativizada, por supremo e simbólico exemplo, nos textos sagrados das três tradições monoteístas (êxodo do povo hebreu; a Sagrada Família no Egito; a hidjra ou a fuga de Meca para Medina), como em muitos outros textos da literatura universal. E falarei também de «experiência exílica», não apenas no sentido de expatriação forçada, por «expulsão» ou por «banimento», mas também como autoexílio ou exílio voluntário, isto é, como abandono e ausência do país de origem por moto‑próprio, mesmo se a montante existam sempre razões políticas, económicas, religiosas, culturais ou afetivas. É verdade que, do ponto de vista sociológico ou para efeitos de categorização estatística, estaremos perante atos e condições distintos, mas outro é o meu ângulo de análise que se foca na vertente experiencial do sujeito e, por conseguinte, no manancial heurístico de processos de subjetivação e de memória que acabam por ser comuns a todas essas experiências de

* Universidade do Porto/Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa. Este artigo foi desenvolvido no âmbito do Programa Estratégico Integrado UID/ELT/00500/2013 e POCI-01-0145-FEDER-007339.

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desterritorialização, de transgressão, de suspensão ou de descontinuidade na relação entre ser/estar e território2.

A minha proposta de leitura vai, pois, no sentido de articular a «experiência exílica» com a ideia de «fuga», de acordo com o modelo rimbaldiano de «mudança de vida» ou de manifesta insurreição existencial, diferente de um simples impulso romântico de evasão, e tem também como objetivo alargar a base de referência do exílio na poesia portuguesa pós‑1950, para a fazer extravasar quer dos exemplos mais correntes de Manuel Alegre ou Jorge de Sena e respetivas idiossincrasias poéticas, quer das evocações pontuais a outros autores, mais por nota biográfica do que por referência e transfiguração poéticas.

Ao longo do século XX, a crítica foi progressivamente desvalorizando a ausência ou a «passagem de estar»3 fora de Portugal dos escritores (como, aliás, também de outros

artistas). Durante o Estado Novo, fê‑lo muitas vezes por censura, ou por autocensura, àquilo que inevitavelmente sugeria «falhas» no Regime, e poderia estimular a resistência, se não mesmo a «dissidência», dos seus intelectuais, quando não provocar a deserção, a alegada traição, dos «filhos da Nação». Depois da Revolução de 74, essa vertente considerada «extraliterária» continuaria a ser subestimada por fidelidade aos ditames da «Nova Crítica» que esconjurava incursões biográficas ou históricas, assim como as ditas falácias de intencionalidade autoral, umas e outras ligadas ao afã explicativo ou ao diletantismo impressionista da crítica tradicional, de indisfarçável pendor positivista. Os escritores, e muito em especial os poetas, tenderam também, por sua vez, a desviar‑se da enunciação autobiográfica, chegando a omitir ou a silenciar uma eventual experiência exílica, fosse porque desejassem romper ou, pelo menos não quisessem ver‑se associados a um confessionalismo lírico ou à «universal reportagem», como depreciativamente se lhe referira Mallarmé; fosse porque o «peso» real e simbólico das circunstâncias em que viviam ou tinham vivido o desenraizamento os impedia de escrever; fosse porque não tinham encontrado a forma literária ou poética para o dizer; fosse ainda porque estavam de antemão certos de que a censura acabaria por apagar tudo aquilo que pudesse de algum modo denunciar os motivos sociais e políticos que haviam levado ao abandono do país natal. Ou fosse ainda, a montante e a jusante de qualquer uma dessas razões, porque estivessem conscientes da cesura ontológica entre «as palavras» e «as coisas» que a modernidade havia definitivamente selado, e que tornara problemática qualquer representação da realidade.

2 Na sua reflexão sobre a condição do exilado na atualidade, Alexis Nouss (NOUSS, 2015) propõe o neologismo

«exiliance» (que traduzo por exiliência) para abranger esses vários tipos de experiência de desterritorialização naquilo que todos eles pressupõem de condição e/ou de consciência de exílio.

3 Uma expressão sugestivamente ambivalente que tomo de empréstimo a Maria Velho da Costa, no seu livro de crónicas

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À parte aquele que é um truísmo (direta ou indiretamente, a obra de arte está sempre ligada à vida do artista), e procurando evitar uma leitura mecanicista dos textos por ilustração biográfica, gostaria de contribuir para a reabilitação da hermenêutica da «experiência» na literatura, no seu sentido existencial e etimológico de «travessia de um perigo», um trajeto feito de «esquecimento» e de «lucidez»4, procurando

em concreto fazer ressaltar a vertente heurística da «experiência exílica» que, em si mesma, se abre a um aprofundamento dialético da existência, com contornos topográficos, identitários e até metafísicos. Utilizando o par lexical oferecido pela língua alemã e pela história poética e filosófica que dele foi sendo feito, interessa‑me dar a ver como, nos textos, o exílio de alguns poetas passa do plano concreto, mais ou menos anedótico, da experiência enquanto «erfahrung», para o plano do «erlebnis», enquanto vivência interiorizada, fazendo com que o exílio não signifique (apenas) uma experiência a montante da poesia, mas que, através desta, absorva também um sentido «formal‑existencial» de «poéthique» (pro‑ética) como tem defendido o poeta e ensaísta Jean‑Claude Pinson5. Julgo que este processo hermenêutico aberto a um pensamento

dialético nos permite ultrapassar alguns impasses ou binarismos das «epistemologias sedentárias», pouco permeáveis à tensão, à instabilidade e negociação entre diferentes dimensões e perspetivas tanto da existência como da literatura. Ajudará, em todo o caso, a questionar os limites da abstração numérica das estatísticas e da generalização e rigidez de categorias de certos discursos históricos e/ou sociológicos sobre o exílio.

A epígrafe de Herberto Helder já deixava adivinhar que, nesta análise da «experiência exílica» na poesia portuguesa contemporânea, o caso herbertiano iria ser privilegiado, não obstante estarmos perante o poeta que mais expressa e continuadamente quis desvincular, e ver desvinculada, a obra da vida concreta do Autor. Não obstante, por ocasião da sua morte, assistiu‑se a uma exposição (ou explosão…), completamente extra‑ordinária e paradoxal6, porque em torno de um indivíduo que, como ele, durante

quase seis décadas, quis desaparecer por detrás dos poemas, determinado a inventar a [sua] vida verdadeira7.

Mas se é certo que o Autor de Photomaton & Vox recusou liminarmente ser vítima de qualquer facto hasteado como bandeira ilusória do conhecimento8, e evitou deixar‑se

apanhar «por tentações biográficas, a memória, os mitos»9, também é verdade que não

deixou de construir o seu próprio «ensaio concentrado» de rizoma autobiográfico,

4 Recupero aqui uma pista de leitura apresentada por Yves Bonnefoy na sua releitura dos Tableaux parisiens de Bau‑

delaire, e sugerida como ponto de partida de releitura de certos aspetos da poesia francesa moderno‑contemporânea (BONNEFOY, 2002: 164). 5 PINSON, 2002: 66; PINSON, 2013: 36. 6 GEORGE, 2015. 7 HELDER, 1995: 33. 8 HELDER, 1995: 12. 9 HELDER, 1995: 32.

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num tom onde a solenidade elíptica do percurso iniciático se confunde com a (auto) ironia, concorrendo assim, malgré lui, para a mitografia da existência suprema do sujeito poético, acima de todos os factos, atos ou deslocações:

Ao princípio era uma ilha. Em seguida o conhecimento de tudo: infância e adolescência. Depois venho por sobre as águas, caminhando em cima das águas sem me afundar. Chega Lisboa. Portugal é um mapa: vou daqui para ali; não gosto. E a Espanha, a França, a Bélgica, a Holanda. E a Inglaterra? Diz? Dizem que sim, que Londres. Ora, ora. Vai-se ver e a Europa já não está. Na Espanha, oh não. Na França a mitologia literária fica para além das revelações. A Bélgica cheira a batatas fritas. (No entanto, é bom chegar num comboio a Antuérpia, e depois haver muito frio, e se calhar tramarem-se coisas no nevoeiro. Não se sabe.) A Holanda é uma monarquia com vacas devagar para cá e para lá. De repente não se tem nada a ver com aquilo[…]10.

Respeitadas as distâncias, omissas as circunstâncias concretas, destacada a ironia e a autoironia, tudo em formas enxutas como despedidas rápidas, não pode deixar de ser significativo que os poucos topónimos que aqui surgem, como em geral na obra toda de Herberto Helder, digam respeito aos locais por onde o autor passou ou viveu no estrangeiro, primeiro no final da década de 50 e, depois, em inícios dos anos 70. Seria, contudo, redutor circunscrever a representação da «experiência exílica» na obra herbertiana a esse tipo de referência, mais da ordem do «erfharung» do que do «erlebnis». Aquilo que me parece mais significativo, em termos poéticos, é que os seus únicos livros em prosa (ou pelo menos discursivamente híbridos) — Os Passos em

Volta (1963), Apresentação do Rosto (1968) e Photomaton & Vox (1979) — foram os três

publicados pouco depois (pelo menos o primeiro) da sua «experiência exílica» mais prolongada no estrangeiro: de 1958 a 1960. Além disso, com exceção de Apresentação

do Rosto, que foi apreendido pela Censura e nunca reeditado por vontade expressa

do Autor, os outros dois livros deram origem a várias edições, se bem que com menos alterações do que aquelas que mereceu sempre a sua poesia. Quer‑me então parecer que não será forçado relacionar os seus afastamentos do país natal a etapas de ponderação (meta)poética, dando lugar a momentos de fuga — desvio pela prosa à procura de um estilo próprio. Essa autoconsciencialização de um «arte poética» individual ficaria assim indelevelmente marcada pela experiência da distância física de Portugal e de muitos dos seus atavismos à época, designadamente a nível literário, e mais em concreto, a nível poético.

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Lembre‑se que, aquando da sua primeira «fuga», Herberto Helder havia publicado apenas Amor em visita, e depois disso, o seu trabalho poético demarcar‑se‑ia cada vez mais das «associações» e «conjeturas» da vida literária em Portugal. Desse ato de emancipação e de reconstrução pós‑exílio, houve uma reconstrução‑síntese em terceira pessoa que se deixava perceber no poema de abertura, autointitulado «Prefácio» do seu segundo livro, A Colher na Boca, vindo a lume já depois do regresso do poeta a Portugal:

Alguém trouxera cavalos, descendo os caminhos da montanha Alguém viera do mar.

Alguém chegara do estrangeiro, coberto de pós. Alguém lera livros, poemas, profecias, mandamentos, inspirações.

— Estas casas serão destruídas11.

Ainda no mesmo livro, no poema intitulado «As Musas Cegas», que também apresenta um início raro no discurso herbertiano, porque geo‑cronologicamente referenciado — «Bruxelas, um mês.» — destaca‑se o facto de o poeta pretender como que redimir, fixando‑a, a irrelevância ou impureza da sua vida pessoal:

— Cantar fixa e fria e intensamente Sobre a minha vida suja,

Admirável vida ou sobre os campos transparentes e negros De Bruxelas do Mundo12!

Curiosamente, A Colher na Boca termina com o poema «Narração de um Homem em Maio», como se esse «Livro da poesia arrebatada» precisasse de um fio narrativo, de um espaço e de um tempo para acompanhar a metamorfose de um homem situado, se não mesmo sitiado, nas palavras e no pensamento. Ainda assim, o sujeito poético cala mais a experiência daquele que «saiu/ violenta e violentamente para o campo» [entenda‑se, um espaço aberto, por oposição às «casas» do início, baluartes de um poder firme e silencioso], do que propriamente a conta ou a expande, segundo os parâmetros habituais ao discurso narrativo. Não deixa, contudo, de enumerar uma série de atividades por que passou — verídicas, inventadas ou simbólicas, pouco interessa —, pelo que, no final (do livro da viagem/do exílio), já não é um homem

11 HELDER, 1961: 13.

12 HELDER, 1961: 100. No processo de constante reescrita a que foi submetendo a sua «poesia toda» ou o seu «poema

contínuo», Herberto Helder viria a reformular estes versos finais, alterando curiosamente o topónimo inicial para uma expressão minusculada, interna ou intrínseca ao poema — «bruxelas do mundo», assim como «a minha vida suja», da edição de 1961, foi transformada em «a minha rasa/ luminosa vida» (HELDER, 1990: 69).

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ou um poeta que mexe apenas a boca, ou os dedos, mas aquele que altera também a ideia de experiência, sem perdão ou esquecimento, podendo por isso verdadeiramente entrar na «Idade de poesia»13.

Será, pois, possível ler A Colher na Boca como o livro de um percurso iniciático a que não é de todo alheio o deslocamento, mais ou menos prolongado, de Herberto Helder para fora de Portugal, cuja narração simbólica iremos, depois, reencontrar no livro, a todos títulos híbrido, Os Passos em Volta (1963). Mas antes, e seguindo a ordem de publicação, deparamos em Poemacto (1961) com a insistência em utilizar a força criativa do esquecimento14, o talento teatral da transformação15, além de ser

possível discernir, como que em palimpsesto, em Lugar, livro publicado na mesma altura, um dos textos mais simbólicos da tradição literária do exílio. Refiro‑me ao Salmo 137 (136), recriado por muitos outros poetas que viveram o exílio, como Luiz de Camões. Na composição herbertiana, o poeta diz‑se habitado pela pressão de cantar a sua experiência, «em cidades estranhas»16, mas ao contrário do silenciamento de

reverência e de fidelidade à terra de origem do sujeito coletivo bíblico, opta claramente por um discurso individual de transformação violenta, condição para renascer das cinzas do vivido:

Canta — dizem em mim — até ficares como um dia órfão contornado por todos os estremecimentos.

E eu cantarei transformando-me em campo de cinza transtornada.

Em dedicatória sangrenta17.

Operada a transmutação poética, expurgados os detalhes mais comezinhos da vida, a experiência exílica passa a poder ser partilhada «num amargo fundo de vozes/ universais»18. Uma experiência individual de desterro e solidão, a montante,

ressurge a jusante, depurada e transformada em condição partilhada, seja com o leitor, seja com todo aquele que se reconhecerá, refletido, na possibilidade aberta, não inscrita, não fechada, daquilo que lê:

13 HELDER, 1961: 130. 14 HELDER, 1990: 98. 15 HELDER, 1990: 104. 16 HELDER, 1990: 154. 17 HELDER, 1990: 121. 18 HELDER, 1990: 148.

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Alguém procura onde eu estou só, e encontra o campo desbaratado

e branco da sua solidão19

Retomando o poema–narração final de A Colher na Boca, o também último poema de Lugar, «Retratíssimo ou Narração de um Homem Depois de Maio», logo pelo superlativo absoluto e pela referência a um tempo posterior, multiplica os ângulos de observação do poeta metaforizado no «homem de Maio», dividido entre o exterior e a «pessoalíssima vida»20. Assim, ao invés de iluminar retroativamente os traços da

existência, o poema enfatiza o facto de tudo ser oblíquo, invisível, incerto e misterioso. A condição de perenidade desse retrato do «eu» do poeta alterado, ou melhor alterizado em homem mudo, é a morte21 que, de certo modo, liga o «desaparecimento elocutório

do poeta» proclamado por Mallarmé, àquela outra proclamação de «morte do autor», ficando o sujeito poético circunscrito ao instante da sua enunciação.

Logo a seguir, em 1963, Herberto Helder publicaria Os Passos em Volta, um livro que, num registo estranho ou de difícil categorização, sobretudo para a época, não deixava de evocar lugares do exílio do autor entre 1958 e 1960, alternando com outros espaços e breves narrativas alegóricas de deslocação e metamorfose. No que à representação da experiência exílica diz respeito, interessa sobretudo realçar o modo como Herberto Helder aí percorre alguns dos tópicos mais habituais às narrativas do exílio: o estranhamento, a despersonalização ou o desdobramento identitário a partir do qual o sujeito passa a ver‑se e a dizer‑se como um outro, uma personagem separada de si mesma, despojada de quase de tudo, inclusive de um nome próprio.

De notar que Os Passos em Volta não se limita a evocar o exílio de um indivíduo, mas representa muito concretamente o exílio de um poeta, para quem estar no estrangeiro significa deixar de escrever ou de procurar nomear quem o rodeia — «Ele próprio, visto estar destinado à inteira perdição, vai perdendo o nome pelo país adiante»22,

deixando‑se inclusive habitar pela ideia de expiação de alguma culpa insondável. No texto «Vida e obra de um poeta», escrito na primeira pessoa, deparamos com outras consequências da experiência exílica, designadamente a dispersão dos textos23,

espalhados pelas mãos de conhecidos e desconhecidos em vários países; a cumplicidade entre exilados24; as condições de uma vida frugal nos limites da miséria, onde lugar

19 HELDER, 1990: 148.

20 Cf. «Narração de um Homem de Maio» (HELDER, 1990: 90). 21 HELDER, 1990: 58.

22 HELDER, 2001: 15. 23 HELDER, 2001: 147. 24 HELDER, 2001: 148.

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verídico e/ou simbólico, a retrete surge como o único espaço possível de isolamento, de refúgio criativo, com uma enumeração de traços metapoéticos que não escondem a autoderisão, como num último grau de desconstrução da aura poética:

O mundo não me tocara e fecundara em vão. Eu apurara a experiência, encontrara os meus centros. Levava tudo para a retrete: o amor, o terror, a grande cidade, o anjo da guarda com quem atravessar o bairro atulhado de putas. A minha obra nascia. Às vezes, no meio dos perigos, medos e vertigens destas experiências, olhava a cara num pequeno espelho de bolso, para ver se eu próprio me transformava por fora, ao sabor do sensível movimento do espírito, este conhecimento que ia ganhando da vida e da poesia. Vi que sim25.

Não faltam também os repetidos tópicos da partida e do abandono (in «Lugar Lugares» e «Coelacanto»); as alusões à liberdade, à topografia das periferias e da marginalidade, como em Antuérpia26, à solidão, ao confinamento a um quarto, à sensação de perda, de

errância e de dolorosa descoberta27 de tudo aquilo que começa por surgir ao exilado como

difícil e estranho, além dos gestos tanto de solidariedade como de ludíbrio de que é alvo28.

Apesar da fragmentaridade e da hibridez alegadamente louca do «estilo» de quem viu e ouviu muita coisa como «acontecimento excessivo» (vd. texto inicial, intitulado «Estilo»), Os Passos em Volta não é uma mera recolha de textos (há quem lhe chame contos…), mas deixa perceber uma rigorosa estrutura interna que contempla um trajeto de ida e volta, começando pela estada no estrangeiro (vd. «Holanda») e a acabar no regresso à terra natal, completando‑se assim um círculo de «Trezentos e Sessenta Graus» — título do texto final.

De todas as referências a um pós‑exílio do sujeito poético‑narrativo, que chega a ser inclusive identificado como regresso a Lisboa (in «Escadas e Metafísica»), sobressaem quer a insatisfação existencial, quer a sensação de um generalizado absurdo, representadas como uma lepra ou como uma «memória mortal»29, formas de inquietação e de dúvida

que tanto atingem o «homem estrangeiro» perdido nas ruas e ruelas de Antuérpia, como questionam e desestabilizam o lugar‑nação de um sujeito coletivo: «Mas quem pode confiar em nós, que somos desta terra, e por isso tão pouco a conhecemos» — lê‑se no final do «capítulo» «Descobrimento», numa versão singular, completamente interiorizada e perturbadora, de um ato particularmente caro à mitografia de Portugal.

25 HELDER, 2001: 141. 26 HELDER, 2001: 48. 27 HELDER, 2001: 86. 28 HELDER, 2001: 113. 29 HELDER, 2001: 82.

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Mais adiante, no texto intitulado «Duas pessoas», o sujeito poético‑narrativo, de regresso do estrangeiro, confessa‑se farto de viagens30, rendido aos «espaços ascéticos»,

enquanto na versão seguinte da prostituta, é visto como «um ser minado, destruído» que «cheira a desespero a quilómetros de distância»31. Todavia, é no último texto —

«Trezentos e Sessenta graus» —, que vemos sublimemente representada a alegoria de qualquer regresso do exílio, ou seja, toda a complexidade de sensações e sentimentos de quem volta a casa, depois de uma ausência prolongada. Não faltam, por conseguinte, a inexorável passagem do tempo que tudo transforma, desde logo os progenitores, em «raízes exaustas»; a efetiva incomunicabilidade entre quem ficou e quem regressa; a interiorizada sensação de remorso e estranheza de quem volta com um «ganho obscuro»32;

o apelo das origens como de um redil33; o «equívoco sentimento de plenitude» que o

exilado sente «no comboio de regresso», como numa ilusão de paragem do tempo34;

os cruzamentos espontâneos de memórias de casa e do estrangeiro e a sensação a um tempo reconfortante e angustiante de um voltar à teia familiar, representada pela figura incansável e terrível da «mãe velha»35, que sugestivamente surge a dominar um bordado

transtemporal, a armadilha fatal da ligação de sangue, da força da imobilidade sobre toda a rede da existência36.

À parte algumas passagens de Photomaton & Vox, nunca mais Herberto Helder voltaria à narrativa poética da «experiência exílica», a não ser talvez sob a forma de «Bebedor Nocturno», permeável ao dizer disseminado, babélico, do mundo.

É natural que, com a passagem dos anos, a sua experiência do estrangeiro acabasse por se transformar numa paradoxal teia de memória e esquecimento: por um lado, uma experiência destilada até à dissolução, por outro, uma experiência sempre latente, molde do seu distanciamento — ou exílio interno — em relação a tudo aquilo que sentisse invadir a sua solidão e liberdade criativas37. No entanto, no seu penúltimo livro publicado

em vida, intitulado Servidões (2013), o poeta iria recuperar para abertura um texto em prosa que tivera, nos anos 90, uma primeira versão publicada na revista «A Phala» e num suplemento do «Diário de Notícias» do Funchal38. Trata‑se de uma referência implícita

à sua condição, a um tempo existencial e poética, de exilado da sua ilha natal, através da evocação do regresso a esse espaço. Pouco importa saber ou discutir se esse texto

30 HELDER, 2001: 156. 31 HELDER, 2001: 162. 32 HELDER, 2001: 191. 33 HELDER, 2001: 191. 34 HELDER, 2001: 193. 35 HELDER, 2001: 194. 36 HELDER, 2001: 194.

37 Dessa condição e necessidade de «exílio», testemunham inclusive algumas das suas cartas enviadas a Gastão Cruz,

e que a revista «Relâmpago» publicou após a sua morte (cf. «Relâmpago», n.º 36/37 (abril‑out. 2015) 147 e 164).

38 Vd., a propósito, o depoimento do seu conterrâneo, António Fournier, intitulado «A ilha de todos os mitos»

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corresponde ou não à viagem que nos, anos 80, Herberto Helder fez ao Funchal, depois de quase três décadas de ausência. Mais importante aqui será saber que essa «viagem de regresso às origens» faz parte da nossa condição humana de exilados da infância, e atentar também no modo como à época se referiu Herberto Helder a essa efetiva viagem, numa das cartas enviadas a Gastão Cruz:

Não lhe falarei muito extensamente da viagem à Madeira, pois nem sequer sei muto bem o que representou para mim. Acho que qualquer coisa se transformou. Não estive lá todo o tempo que tencionava: apressei o regresso. Depois, acho eu, terei de falar ou escrever acerca disto. De qualquer modo, nunca mais voltarei à ilha. É tudo quanto posso dizer por enquanto39.

Talvez o texto publicado em 1995, revisto e integrado em livro em 2013, seja aquilo que, em 1984, o poeta não quis ou não pôde dizer. Em todo o caso, não poderá deixar de se prestar atenção a duas alusões muito sintomáticas na epístola citada: uma à transformação ocorrida, outra ao regresso. Quanto à primeira, não me parece óbvio que o poeta estivesse a apontar apenas ou fundamentalmente para mudanças na ilha; a segunda, inverte por assim dizer o sentido do regresso. Herberto Helder não se refere explicitamente a um regresso à Madeira, mas invoca a palavra para designar a viagem de volta a Lisboa, sugerindo assim que o laço umbilical com esse lugar genesíaco já estava definitivamente cortado… Mas, então, porquê voltar textualmente à ilha natal, vinte anos depois? Porquê escolher esse texto em prosa, essa «ficção da história que serve a verdade biográfica» para abertura daquele livro de poemas que foi considerado por muitos (e talvez pelo próprio Herberto Helder) como o seu último e testamentário livro, mesmo que depois tivesse publicado, ou deixado publicar, A Morte sem Mestre (2014)? Julgo que a resposta acaba por ser dada ou, pelo menos, sugerida no final dessa espécie de contraponto dos «Trezentos e Sessenta Graus» de Os Passos em Volta. Além de concordar com a ideia de que, ao recuperar este texto, Herberto Helder pretendia de algum modo despedir‑se da ilha de todos os mitos40, parece‑me que ele vem também

confirmar o sentido epifânico de incorporação, de subjetivação da «experiência exílica» que, como aqui procurei mostrar, representou para Herberto Helder uma daquelas experiências enérgicas e fundadoras do ato poético, a que o próprio autor fez referência em Photomaton & Vox.

39 Cf. «Relâmpago», n.º 36/37 (abril‑out. 2015) 167. 40 FOURNIER, 2015: 205.

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Neste sentido, esta derradeira deslocação textual à ilha natal não tem a ver com nostalgia, que significa literalmente «dor do regresso», representa antes o discernimento consumado de um projeto que é ao mesmo tempo de rutura e de aliança:

Compreendi então: cumprira-se aquilo que sempre desejara — uma vida subtil, unida e invisível que o fogo celular das imagens devorara. Era uma vida que absorvera o mundo e o abandonara depois, abandonara a sua realidade fragmentária. Era compacta e limpa. Gramatical41.

Mais uma vez, essa viagem não lhe permitia reencontrar ou recuperar um lugar há muito abandonado, mas antes aceder a um território hermenêutico de compreensão efetiva, unitária, das palavras, do mundo e da vida, uma visão plena que costuma ser privilégio de lucidez de quem da morte se aproxima, e que vem, neste caso, se não propriamente inaugurar, pelo menos acentuar uma escrita de «súmula existencial»42. E a

existir regresso do exílio, leia‑se, a haver resgate de uma rutura fundamental, a um tempo histórica e metafísica, talvez esse tenha sido literalmente o único regresso. O regresso possível e definitivo.

BIBLIOGRAFIA

BONNEFOY, Yves (2002) — Sous l’Horizon du Langage. Paris: Mercure de France.

COSTA, Maria Velho (2002) — O Mapa Cor-de-Rosa. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 1.ª ed. de 1984. FOURNIER, António (2015) — A ilha de todos os mitos. «Relâmpago», n.º 36/37 (abr./out.), p. 201‑209. GEORGE, João Pedro (2015) — Herberto Helder: sociologia de um génio. «Observador», 8 de abril. Disponível

em <http://observador.pt/especiais/herberto‑helder‑sociologia‑de‑um‑genio/>. [Consulta realizada em 13/07/2015].

HELDER, Herberto (1961) — A Colher na Boca. Lisboa: Ática. ____ (1990) — Poesia Toda. Lisboa: Assírio & Alvim.

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41 HELDER, 2013: 18. 42 SOEIRO, 2014: 32.

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Referências

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