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O Que Significa Ser Português? Algumas considerações a título de resposta

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Olhares sobre as

Migrações, a Cidadania

e os Direitos Humanos

,

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NA HISTORIA E NO SECULO XXI

ORGANIZAÇÃO

TERESA PIZARR0 BELEZA, CRISTINA NOGUEIRA DA SILVA, ANA RITA GIL E EMELLIN OLIVEIRA

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Olhares sobre as Migrações, a

Cidadania e os Direitos Humanos

NA HISTÓRIA E NO SÉCULO XXI

ORGANIZAÇÃO

TERESA PIZARRO BELEZA, CRISTINA NOGUEIRA DA SILVA, ANA RITA GIL E EMELLIN ÜLIVEIRA

© Agosto 2020 by Petrony Editora®

marca Quimera Etlilores E-mail: geral@petrony.pt Coordenação Editorial Raquel Almeida ISBN 978-972-685-287-2 DepósitoLegaln.º 473 290/20 Capa Tiago Oliveira Paginação Aresta criativa Impressão e Acabamentos

Manuel Barbosa & Filhos, Lda.

«Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e a Tecnologia, I.P., no âmbito do projeto

UID/DIR/00714/2019»

ÍNDICE

Introdução... 7

Teresa Pizarro Beleza, Cristina Nogueira da Silva

I - Olhares sobre as Migrações no Século XXI

Migração, Crises e Conflitos: Novos-Velhos Desafios... 19

Constança Urbano de Sousa

O "direito à imobilidade" frente a hipermobilidade selectiva

e as migrações forçadas .. 3 7

Alfredo dos Santos Soares

Migração, Terrorismo e Racismo: A igualdade como princípio norteador da Segurança... 53

Emellin de Oliveira

Deve distinguir-se entre Refugiado e Imigrante?... 69

Ana Rita Gil

Que Impacto Tem a Imigração no País de Acolhimento?... 87

Sónia Dias e Ana Gama

Qual o impacto da imigração no país de acolhimento? - A questão

da educação... 97

Maria Margarida Marques

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6 Olhares sobre as Migrações

II - A Cidadania: na História e no Século XXI

Imaginando as comunidades e explicando a Imigração: o caso da Europa

moderna e seus territórios ultramarinos 105

Tamar Herzog

"Negros e Negras de Portugal" 119

Cristina Nogueira da Silva

Há Afrodescendentes em Portugal? 147

Regina Queiroz

O Que Significa Ser Português? Algumas considerações a título

de resposta... 171

José Manuel Sobral

Deve ser português quem nasce em portugal? O Império e a reforma

da lei da nacionalidade 183

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O Que Significa Ser Português?

Algumas considerações a título de resposta

José Manuel Sobral'

1. É uma pergunta para a qual não existe uma resposta simples. Os por- tugueses - como qualquer outro povo - terão opiniões muito variadas sobre o que será ser-se português, que dependerão, por certo, da sua educação, da exposição maior ou menor ao nacionalismo oficial do Estado e da sua própria ideologia. Tal reflete-se diretamente na apreciação de um elemento central dessa identificação: a história. Em finais dos anos sessenta, muitos dos que se opunham ao Estado Novo contestavam o seu nacionalismo oficial, e em par- ticular a sua visão de um país pluricontinental, sem racismo, em que todos, do Minho a Timor, eram igualmente portugueses. Face a esta representação, erguiam a de um país colonizador e desigual, pois as relações coloniais esta- vam assentes na dominação e na exploração.

Esta perceção inseria-se num contexto global crítico do colonialismo, em expansão nos anos sessenta. Mas esta não era a imagem da nação e da sua história de uma figura como o candidato republicano e antifascista às eleições presidenciais de 1949, Norton de Matos, que havia sido uma figura de relevo na colonização portuguesa de Angola e permanecia um defensor da unidade nacional entre Portugal e as colónias. Nem seria a da maioria dos seus apoian- tes. A clivagem em torno da identificação da definição da nação, que ainda surgiria a seguir ao 25 de Abril entre os partidários de uma solução federalista

1 Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa.

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172 Olhares sobre as Migrações

e os favoráveis à independência das colónias, mostra que, como em todas as coletividades nacionais, há diferenças importantes de opinião inclusivamente quanto à própria definição do que constitui a nação. De facto, as coletividades nacionais não são algo de homogéneo, mas comunidades divididas perpassa- das pelo conflito (Hutchinson, 2005) e sujeitas à mudança.

2. A identidade nacional não é algo definível por um conjunto de traços de personalidade, que aparecem nos estereótipos coletivos que os grupos étnicos e nacionais constroem uns dos outros, ou nas tentativas modernas de siste- matização do chamado "caráter nacional", como a que a antropóloga Ruth Benedict oferece num livro famoso sobre os padrões de comportamento dos japoneses, O Crisântemo e a Espada, publicado no decurso da guerra de 1939- -1945, em que o crisântemo representaria o elemento estético e a espada o militarismo presentes na cultura japonesa (Benedict, 1946). O livro, que visava entender o comportamento dos japoneses no conflito, foi um enorme êxito internacional, o que não impediu a crítica, que insistiu no facto de a antropóloga tratar uma cultura nacional sem atender nem à sua diferenciação interna - regional, etária, entre os estratos sociais, etc. -, nem à sua evolução histórica (Aalpoel & Van der Heide, 2014).

Com muito maior fundamento, podemos alargar tais críticas à tentativa do etnólogo Jorge Dias, a quem os trabalhos de Benedict e de outros membros da escola da "cultura e personalidade" muito influenciaram, de expor as cons- tantes ou invariantes da cultura portuguesa (Sobral, 2007: 499). Apesar de exprimir algumas reservas quanto à permanência no tempo das tradições cul- turais nacionais, e por entender que havia variações regionais, por exemplo, ainda assim estava crente na existência de constantes culturais que definiam uma "personalidade-base" da nação. Nessas constantes culturais destacam-se elementos que vão da "atração pelo Atlântico", o que explicaria a sua história expansionista, aos sentimentos - distinguindo nestes a saudade - pois "para

0 português o coração é a medida de todas as coisas". Outros elementos fun-

damentais seriam a prevalência dos "valores humanos" que representariam uma mentalidade que é a "negação do espírito capitalista", a crença no milagre

O Que Significa Ser Português? 173

que explicaria a popularidade da lotaria, e a capacidade humana, a simpatia, a adaptabilidade, o sentimento amoroso, sem "repugnância por outras raças", que estabeleceriam a especificidade da colonização portuguesa (Dias, 1961). Estas considerações valem-nos como testemunho da visão do autor e das suas posições no campo político-ideológico do seu tempo - era crítico do capitalismo em nome dos valores comunitários que acreditava prevalecerem no mundo rural tradicional e a sua visão da nação e da sua história "ultra- marina" era afim à do regime - mas não como uma abordagem credível dos portugueses. Quase nem vale a pena acrescentar que a saudade é a mesma emoção que a nostalgia, que há capitalistas em Portugal desde os primórdios desse sistema económico e que na economia capitalista entrava o tráfico de escravos a que muitos portugueses se dedicaram durante séculos.

O tentame de Jorge Dias não se pode comparar em complexidade e sofisti- cação com a obra de Benedict sobre o carácter nacional japonês, que continua a oferecer pistas importantes relativamente ao modo como somos socializados em determinados valores. Mas as críticas que foram colocadas à antropóloga norte-americana são válidas naturalmente para ele. Tentativas de caracteri- zação deste teor constituem uma manifestação de essencialismo, ou seja, da redução de um coletivo a determinadas invariantes, que não tem em conta o carácter diversificado das identidades sociais, pressupondo que elas radi- cam numa essência interna (Appiah, 2018: 25-29). Não considera, no caso das nações, o seu carácter histórico, mutável e internamente diversificado.

Isto não significa, todavia, que caracterizações deste teor não sejam socialmente relevantes, pois o que é importante é pressupor-se que existe uma homogeneidade, não a sua realidade (Jenkins, 2011: 100). Os estereótipos sobre o "carácter nacional" são antigos, muito anteriores às abordagens antropoló- gicas que mencionámos; remontam, no caso europeu, ao período medieval (Hoppenbrowers, 2007; Leerssen, 2007). A interação humana está associada aos estereótipos coletivos profundamente enraizados que construímos uns dos outros. Ainda recentemente, no contexto dos debates sobre a crise na Europa, um responsável da União Europeia afirmava que os europeus do Sul gastavam o dinheiro em "copos e mulheres" (Alvarez, 2017). Representações

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174 Olhares sobre as Migrações

deste tipo constituem orientações para a ação e devem ser tidas em consi- deração se quisermos entender cabalmente atitudes como as que os dirigen- tes políticos da Europa do Norte e do Centro mantiveram face aos do Sul no decurso da recente crise financeira.

3. Podemos decompor para fins de análise uma identidade nacional em diversas dimensões. Há uma dimensão psicológica, ligada à consciência de pertença a um grupo específico, face ao qual se sente afinidade; uma dimen- são cultural, que decorre da partilha de símbolos e crenças (como a religião), e, na maior parte dos casos, de um instrumento crucial que é a língua comum; um passado histórico seletivamente construído, e mitos de ascendência; um território, uma pátria, ao qual estão vinculados, material, simbólica e emoti- vamente; e finalmente uma dimensão política, vinculada a um sentimento de lealdade para com o grupo - caracterização inspirada por Guibernau (2013: 125-128). Mas há que atender que estas dimensões surgiram com o trajeto do grupo no tempo, pois cada nação é um produto de processos históricos e não algo de fixo (Smith, 2001), e que cada um se identifica de modo extremamente diversificado com alguns destes atributos. Podemos sentir-nos portugueses e não sermos religiosos, por exemplo.

A nação portuguesa é o resultado do que começou por ser um reino cris- tão medieval formado por um príncipe da família real castelhano-leonesa e os seus partidários e que conseguiu manter uma existência separada de outros reinos peninsulares como o foram Leão, Castela, Aragão, o Principado da Catalunha. Ao longo da história e a partir da sua formação como entidade política, como Estado, com fronteiras delimitadas, a coletividade cria-se por obra de uma administração crescentemente centralizada, da construção de um espaço económico e através de conflitos - nomeadamente com o vizinho poderoso, que é Leão e Castela - através dos quais consolida a sua autono- mia no plano político. Adquire símbolos - a bandeira, a moeda - e mitos próprios, como o mito étnico da ascendência lusitana, ou o mito de Ouri- que, a variante portuguesa do mito do povo eleito de Deus, tão influente desde os tempos hebraicos (Albuquerque, 1974). Os escritores produzem um

O Que Significa Ser Português? 175

conjunto de narrativas, estereótipos e lugares-comuns sobre os portugue- ses - da bravura (a "gente forte" que exalta Camões nos "Lusíadas"), ao seu saudosismo - que serão reproduzidos e com as quais muitos portugueses se foram identificando. A formação e autonomia do Estado foram cruciais para criar uma certa homogeneidade cultural, pois o Estado tem o poder de tornar rígido e de fixar (Appiah, 2018: 97) práticas sociais e culturais mais fluidas. Foi o Estado quem criou a homogeneidade religiosa, através da imposição do cris- tianismo católico e consequentemente da perseguição feita a judeus e mouros, que culminou com a sua expulsão no século xv, a homogeneidade linguística, conseguida com a imposição do português como língua oficial, quem definiu um espaço económico, com fronteiras e uma moeda própria e impôs a sua Lei (Sobral 2012).

A ação uniformizadora do Estado foi assim crucial na construção de uma identidade coletiva, a de um país, Portugal, e de uma população, os portugue- ses. É ela que explica que em Portugal nunca tenha havido qualquer reivindi- cação da existência de outras identidades nacionais, ao contrário do sucedido na Espanha ou no Reino Unido, onde ainda hoje outras entidades concorrem em termos nacionais com a identidade espanhola. São países que resultaram da agregação de outras entidades outrora soberanas, como a Escócia e a Cata- lunha (com Aragão) (Elliott, 2018). A fase imperial, nos séculos XVI e xvrr, teve um papel crucial na "nacionalização cultural", entendendo por esta a pro- liferação de discursos e narrativas que celebram os portugueses, como ocorre com a poesia épica - e em particular com Os Lusíadas - com as narrativas históricas, que exaltam os seus feitos, e em particular os ligados à expansão marítima e à colonização, com o próprio estudo de uma expressão cultural identificadora, que é a língua própria. Este esforço intensifica-se a partir do século XIX, com o triunfo das ideologias do nacionalismo político e do nacio- nalismo cultural, a instrução - com o ensino da língua, da história e da geo- grafia - os meios de comunicação e a circulação de jornais ou livros, que permitem uma maior difusão de discursos através dos quais se reproduzem imagens e lugares-comuns sobre os portugueses. As comemorações coletivas e a construção de monumentos, que proliferam a partir do fim de Oitocentos,

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são também fatores que permitem difundir imagens do passado português (Sobral, 2012). Deve mencionar-se, também, que a crença inquestionada de que se constitui um mesmo povo, um nós, passou pela via de um dia-a-dia partilhado, pelo nacionalismo banal (Billig, 1995) ou quotidiano (Edensor, 2002). Não é só feita das imagens épicas da narrativa marítima; é também construída, no caso português, como nos outros, pelo apoio a clubes de fute- bol, à seleção nacional, pela celebração da cozinha portuguesa (Sobral, 2007). E. para lá das imagens, narrativas e símbolos, pelo simples facto de se viver em comum.

4. Seja como for, o facto de a história específica de uma identificação ser diferente de outras, não significa que os materiais de base - a crença num mito étnico, num território próprio, numa história, num carácter nacional, a crença até que se constitui um povo eleito - não façam parte de um repor- tório comum dos diversos nacionalismos. A representação do passado dos nacionalismos oficiais é seletiva, de exaltação do tido como excecional. No caso português, por exemplo, recordam-se os feitos marítimos, tidos como a Idade do Ouro, mas não o tráfico de escravos que lhe andou associado.

Diz-se que as nações são comunidades imaginadas (Anderson, 1991), e que há tradições inventadas (Hobsbawm & Ranger, 1983). São, de facto, ima- ginadas, pois sem o recurso à imaginação não se consegue conceber a exis- tência de um grupo humano que abranja quem não conhecemos em termos pessoais. E sem invenção, isto é, sem criação num dado momento, não have- ria mitos como os de ascendência, que são não apenas próprios das nações, mas dos grupos étnicos, ou os que estão na base das religiões. Aliás, qual- quer comunidade religiosa, seja ela pequena, seja ela maior do que as nações, como o Cristianismo ou o Islão, é também imaginada e um produto da cria- ção humana. Isso não lhes retirou vitalidade e a importância que continuam a ter como identidades nos dias de hoje. Por sua vez, a antiguidade maior ou menor, embora um fator importante, não torna necessariamente uma formação nacional radicalmente distinta de outras. Como escreveu recente- mente um filósofo, filho de um nacionalista ganense: "( ... ) os ganenses estão

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lentamente a tornar-se um povo, agregando-se durante algumas décadas, como os escoceses durante séculos, vivendo juntos sob um único governo. É

este processo que conta" (Appiah, 2018: 101-102). As identidades nacionais são o resultado de processos sacio-históricos.

5. Pelo que dissemos atrás acerca das generalizações em torno do chamado "carácter nacional" e do que as identidades nacionais encerram de mutável e conflituoso, só poderemos responder de modo indireto à questão colocada do q_ue é ser-se português. Há cerca de uma década e meia, realizou-se um inqué- rito sobre a identidade nacional, que envolveu diversos países. Nele existia uma pergunta em que se solicitava às pessoas que dissessem em que consistia "ser-se verdadeiramente português", a partir de um leque de oito atributos, que não se excluíam. Sentir-se português (94,9%), falar a língua (94,7), ter a nacionalidade (93%), respeitar as leis (92%), e ter nascido no país (91,4%) era~ os atributos que ultrapassavam os 90% de concordância (na soma do que consideravam muito importante e importante). Depois seguiam-se "ter vivido quase sempre no país" (89%), ter "antepassados nacionais" (83,4%) e, final- mente, bastante distanciado, a religião (68,5%). Neste conjunto, encontramos, por um lado, atributos caracterizados como étnicos _ ter antepassados, por exemplo - e outros tidos como cívicos - respeitar as leis, ter a nacionali- dade (isto é, a cidadania) - e culturais, ou etno-culturais (falar a língua). Portugal encontrava-se entre os países em que se dava simultaneamente uma ênfase muito grande à dimensão cívica e à dimensão étnica. Não era assim em todos os eles: a Rússia ou o Japão davam uma enorme importância à dimensão ~tnica, por exemplo, enquanto na Alemanha esta era muito fraca. Este traço e uma consequência do estigma ligado à ao nazismo e ao Holocausto (Sobral, 2010). De facto, o nacionalismo étnico atingiu a sua dimensão mais horrenda sob o nazismo, a ponto de a nacionalidade ser definida pela - suposta _ raça. Antes de serem eliminados, os judeus alemães e austríacos viram ser-lhes reti- rada a nacionalidade, tal como os ciganos ou os identificados como negros (Sobral, 2015: 77).

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6. Dada a importância das "auto-imagens" - e também das "hetero-ima- geris" com as quais estas coexistem - na construção das identidades, vale a pena ter em consideração os dados do mesmo Inquérito sobre as "fontes de orgulho nacional". As respostas dadas mostram uma imagem absolutamente contraposta do seu presente e do seu passado. Poucos se orgulham do presente em termos sociais, económicos ou políticos - Segurança social (18, 5%), Eco- nomia (21, 5%), Democracia (38,7%). Orgulham-se incomparavelmente mais da sua cultura e desporto (em torno dos 85%), para o que terão contribuído factos como o Nobel recente de Saramago, feitos desportivos de atletas e de futebolistas como Eusébio. Mas a maior fonte de orgulho para os portugueses reside na sua história (91,8). De facto, em 35 países, os portugueses estavam entre os três primeiros com maior orgulho, encabeçados pela Venezuela - a pátria de uma figura simbólica dos movimentos nacionalistas latino-ameri- canos, Simón Bolívar - e praticamente a par dos EUA, o que é muito signi- ficativo.

7. Este orgulho na história não deve constituir surpresa. Os portugueses foram socializados, durante séculos, na ideia de que possuíam um passado nacional glorioso - e a ideia de que as nações possuem "Idades do Ouro" é comum nas narrativas nacionalistas. A própria perceção da decadência, tão importante nas elites intelectuais e políticas do século XIX - que, com a inde- pendência do Brasil, viram reduzir de modo drástico a importância do país, que quase ficou sem império - serviu para alimentar a ideia de uma história excecional protagonizada pelos habitantes de um país pequeno e pobre que levara o seu domínio a diversos continentes. Portugal chegaria ao século xx como um império colonial, na companhia de uns poucos mais de Estados, incomparavelmente mais poderosos. A perceção de que o país não se pode comparar económica e mesmo institucionalmente com os outros para onde emigraram milhões de portugueses em busca de uma vida melhor coexiste, assim, com a ideia de que possuem um passado excecional. Permitirá, por- ventura, a muitos deles lidar melhor com as discriminações que ser português pode trazer consigo, nomeadamente quando se é um emigrante em outro país,

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como se pode ler nas memórias de um historiador norte-americano, descen- dente de portugueses pelo lado materno. Na década cinquenta do século xx, os portugueses eram vistos, na Nova Inglaterra, como portadores de sangue negro e sofriam as discriminações inerentes. Eram os "black Portagee" (Con- forti, 2013). A experiência que relatou é similar à de muitos outros migrantes de então e dos nossos dias.

8. A discriminação sofrida por quem não é identificado como nacional do Estado em que se encontra é uma dimensão importante inerente a um mundo dividido em nações. A pertença nacional pode traduzir-se em benefí- cios, alguns materiais - como o direito a viver no território nacional, a tra- balhar nele, a beneficiar do seu sistema escolar público, da sua infraestrutura de saúde, da sua segurança social. Proporciona igualmente "segurança onto- lógica", isto é a sensação que se vive num mundo estável e previsível, cujas normas são conhecidas, o que contribui para a estabilidade do eu (Giddens, 1991: 243). Por outras palavras, confere aos membros do coletivo uma terra, uma pátria, um lugar num mundo imaginado como constituído por outras pátrias, direitos de cidadania (Skey, 2013). Mas também os pode segregar pelo preconceito e alimentar o ódio no contexto de confrontos intensos, como os que continuam a ter lugar nos nossos dias. Como escreveu Amartya Sen, uma testemunha em jovem dos violentos confrontos entre hindus e muçulmanos por altura da divisão do subcontinente indiano entre a Índia e o Paquistão, se o sentido de pertença a uma comunidade nos enriquece e fortalece as nossas relações com o coletivo a que estamos vinculados, também pode ser um fator de exclusão de outros (Sen 2006: 3).

9. A globalização das últimas décadas foi marcada por movimentos inten- sos de migração, que estão a afetar de um modo inédito as configurações nacionais, incluindo a portuguesa. Serão estas, produtos históricos, capazes de se adaptarem a este desafio? Para o fazerem, terá de se promover o lado cívico - o respeito pelas mesmas leis e instituições - cultural - partilhar uma língua, por exemplo - social - o viver em comum de culturas diversas,

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pois esses novos cidadãos terão filiações étnicas e religiosas, bem como nar- rativas históricas distintas daquelas que foram durante muito tempo as da população nacional. Será necessário aceitar uma diversidade e um pluralismo muito maior das identidades nacionais e aceitar novas aquisições culturais. É esse lado que permite construir uma vida em comum, inclusiva, contra os preconceitos de todo o tipo que acompanham a ênfase nas definições étni- cas - e raciais - dos nacionalismos radicais, que atravessam uma fase deres- surgimento. Assiste-se a apelos renovados ao fecho das fronteiras e à exclusão. Será possível ver emergir num tempo próximo um nacionalismo cosmopolita em que se juntaria ao respeito pelos conacionais, uma consciência universa- lista do respeito, dignidade, liberdade e igualdade que devem merecer todos os seres humanos (Guibernau 2007:186-188)?

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