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A palavra distribuída: figuras da interlocução grupal no campo católico

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Academic year: 2021

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Figuras da interlocução grupai no campo católico

On peut résumer de la manière suivante les relations entre intelligence narrative et intelligence pratique. En passant de l'orde paradigmatique de l'action à l'orde syntagmatique du récit, les termes de la séman-tique de l'action acquièrent intégration et actualité.

Paul R I C Œ U R , Temps et récit, I. L'intrigue et le récit historique, Paris, Seuil, 1983, 112

Introdução

Sob o ponto de vista da antropologia política a instituição é, para além de outras caracterizações, u m contexto de autorização. Isto quer dizer que as acções que nela se desenvolvem dependem de condições de legitimidade. Mas o reconhecimento desse carácter estratégico não deve descurar uma aguda atenção às zonas de apro-priação prática do habitat institucional, o c a m p o dos usos e dos modos de fazer, zona onde se exploram as m a r g e n s de m a n o b r a . Sob este olhar em «modo menor», a instituição descobre-se prati-cada, terreno de compromissos que não pode ser exaustivamente delimitado pela norma.

Pretende-se mostrar, neste ensaio, que os contextos de inter-acção grupai no habitat institucional católico são u m lugar privile-giado p a r a o estudo das actuais vias de recomposição do c a m p o religioso nas sociedades da modernidade tardia. Esses dinamismos grupais podem depender de formas religiosas de tipo associativo, de tipo comunitário ou de tipo electivo, segundo procedimentos de maior ou menor regulação. Sublinhe-se que nem sempre nos

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r a m o s com identidades grupais estrategicamente reguladas pelos recursos normativos da instituição. Os protocolos que organizam essas interacções d e p e n d e m de outras modelações sociais: podem resultar da acumulação de experiências, da referência a «espiritua-lidades» que r e ú n e m os crentes num território de afinidades, da integração em dinamismos associativos inter-transparoquiais (neste caso a regulação estratégica é mais evidente), ou da necessidade de «interiorização» das acções a desenvolver em determinado terreno da actividade institucional.

A experiência de pesquisa do autor situa-se, preponderante-mente, no terreno das comunidades paroquiais urbanas, mas ensaia--se neste artigo u m percurso epistemológico que visa a construção de u m modelo de análise desta região interior do campo religioso católico que p o d e r á ser testado em diversos contextos de eclesiali-dade. Neste percurso, explora-se u m a hipótese: que o crédito insti-tucional depende, mesmo se não exclusivamente, da capacidade de gerir os dispositivos grupais de interlocução, e que estes, na medida em que desenvolvem a metodologia da n a r r a ç ã o de si, facilitam a integração da p e q u e n a narrativa pessoal no tecido da metanarra-tiva e c l e s i a l A s s i m , n u m a cultura de desinstitucionalização do

reli-1 Este quadro epistemológico implica a consideração das recentes transições paradigmáticas no domínio do estudo dos fenómenos religiosos. Na pesquisa sobre a religião na Europa, o macroconceito «secularização» teve efeitos sobre-interpreta-tivos duradouros. A descoberta da sua insuficiência tem vindo a consolidar-se não só em razão do seu euro-cristianocentrismo, mas também por aparecer cada vez mais como u m a categoria legitimadora da grande metáfora da modernidade, a auto-afir-mação do sujeito como centro do mundo. A secularização viu-se, pois, transformada em categoria meta-social que promove um determinado sentido de evolução social e em modelo hétero-explicativo que inibiu a pesquisa de terreno no domínio do reli-gioso na Europa - ou seja, à medida que se modulavam os discursos acerca da obso-lescência da religião, a investigação afastava-se do próprio terreno da religião, sobretudo nas suas dimensões mais comuns - cf. Alfredo TEIXEIRA, «Berger versus Berger. O ocaso da religião ou o seu regresso à cidade secular?», in Theologica 38/2 (2003) 249-272. Quer a «micro-sociologia» quer a «etnografia da situação» actuais (na linha da microstoria italiana) a b a n d o n a r a m o p a r a d i g m a que fazia de toda a "situação" um estado particular dessas estruturas. Ora, o problema fundamental das ciências sociais tornou-se, como observava Michel de Certeau, chegar à compreen-são das formas de ajustamento das práticas em relação às estruturas (cf. L'Invention du quotidien, I. Arts de faire [1980], Paris, Gallimard ,1990, 91). Para o antropólogo norueguês F. Barth, a interacção entre pessoas deve ser a unidade de análise privi-legiada, na medida em que nesse contexto os indivíduos estão a tomar decisões, mobilizam valores de referência e assinalam as margens de m a n o b r a do sistema (cf. Process and Form in Social Life, London, Routledge & Kegan Paul, 1981, 76). Ou seja, os resultados do estudo antropológico, para além das abstracções e teorizações

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gioso, os contextos sócio-grupais podem revelar agilidade perante o desejo de apropriação pessoal da m e m ó r i a autorizada gerida pela instituição2.

O campo da interlocução grupai

O estudo das formas de interacção grupai em meio institucio-nal católico pode encontrar u m a via eficaz de teorização naquilo que Charaudeau designou de «contrato de c o m u n i c a ç ã o »3. Esse

contrato comunicativo é constituído por um «dispositivo comunica-tivo», um «campo temático» e um «espaço de estratégia». O disposi-tivo comunicadisposi-tivo inclui não só as condições materiais da comuni-cação (o espaço e os corpos no espaço), mas t a m b é m as condições políticas (as finalidades em vista e os lugares distribuídos previa-mente pelos parceiros da troca comunicativa). O c a m p o temático sobre o qual se apoia o dispositivo comunicativo prevê a existência de um conjunto de tópicos susceptíveis de produzir u m efeito de empatia, ou mais genericamente de «patemização» 4. O campo

temá-tico integra aquele terreno que o dispositivo comunicativo deixa livre aos recursos mobilizados pelo locutor com finalidade patémica -a n-arr-ação de si é, precis-amente, u m dos recursos m-ais recorrentes. Tome-se a narrativa não apenas enquanto modelo retórico de inter-locução, mas também como expressão do que os crentes classificam

necessárias, terá de e n c o n t r a r lugar p a r a a descrição eficaz da a c ç ã o - registo em que os actores vão surgir em situações diversas, c o n s t r u i n d o alianças várias - , de modo a possibilitar u m a leitura dos itinerários possíveis dos indivíduos e dos grupos d e n t r o de u m a e s t r u t u r a específica - é necessário n ã o e s q u e c e r que, nesses itinerá-rios, os i n f o r m a n t e s são t a m b é m , em r e l a ç ã o ao investigador, co-intérpretes. Estas propostas metodológicas f o r a m a p r o f u n d a d a s em: Alfredo T E I X E I R A , «A a c ç ã o reli-giosa. O contributo das etnografias p a r a u m a Ciência das Religiões», in Revista

Lusó-fona de Ciência das Religiões 3 ( 2 0 0 4 ) 9 - 1 8 .

2 As dificuldades actuais dos «programas institucionais» são b e m identificadas

por François D U B E T , Le déclin de l'institutuion, Paris, Seuil, 2 0 0 2 . No p l a n o

especí-fico do catolicismo, pode e n c o n t r a r - s e u m a a b o r d a g e m p a n o r â m i c a em: Danièle

H E R V I E U - L É G E R , Catholicisme, la fin d'un monde, Paris, Bayard, 2 0 0 3 , 2 6 7 - 3 1 1 . 3 Cf. Patrick C H A R A U D E A U , «Une p r o b l é m a t i s a t i o n discursive de l'émotion», in Christian P L A N T I N , M a r i a n n e D O U R Y e Véronique T R A V E R S O (dir.), Les émotions

dans les interactions, Presses Universitaires de Lyon, 2000, 125-155.

4 Isto é evidente, t a m b é m , n o u t r o s casos de c o n t r a t o s de c o m u n i c a ç ã o : p a r a

os media será o universo dos tópicos da d e s o r d e m social e da r e p a r a ç ã o , p a r a a publicidade serão os tópicos do p r a z e r e d a felicidade. Cf. Alfredo T E I X E I R A , «Entre

a exigência e a ternura». Uma antropologia do habitat institucional católico, Lisboa,

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de «fé», que sob o ponto de vista antropológico pode ser visto como competência p a r a a interacção. Para já, interessa perceber o funcio-n a m e funcio-n t o da funcio-narrativa funcio-nas modalidades de ifuncio-nter-acção grupai (Quadro 1):

O espaço da interlocução desenha-se triangularmente. A meto-dologia que produz esse espaço visa, em última análise, manter bem articulado o sistema que permite a comunicação com o ser divino. A comunicação desenha-se num jogo de preponderâncias entre dois pólos, o «eu» e o «grupo», mas o referente e o respondente último das transacções estabelecidas é o ser divino. Os actos de interlo-cução desenham-se entre a exploração daquilo que é a exibição de si, na sua singularidade (narrativas biográficas, expressão de prefe-rências pessoais, motivações e modos de sentir a pertença católica), e o trabalho religioso sobre os códigos recebidos e os valores parti-lhados. A inteligência narrativa que se exibe nesse espaço de inter-locução permite que os fragmentos do quotidiano dos sujeitos co-presentes, ou as teorias emergentes, se inscrevam n u m processo de construção do sentido - fragmentos vários, de sujeitos distintos,

5 Este modelo desenvolve as propostas de Marisa Zavalloni para a «análise psicocontextual» dos processos de construção da identidade (cf. «Identité et ego--écologie: un modèle de l'interaction entre culture, affect et cognition», in Anne--Marie C O S T A L A T - F O U N E A U [dir.], Identité sociale et langage. La construction du sens,

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ao serem inseridos n u m a intriga reconstruída grupalmente, rece-bem sentido 6.

O espaço da interlocução grupai está saturado de representa-ções que aqui se qualificam de sócio-discursivas. As representarepresenta-ções sócio-discursivas são como que mini-narrativas que descrevem os sujeitos e as cenas da sua vida, são fragmentos n a r r a d o s que reve-lam o ponto de vista de u m sujeito 1. Estes enunciados circulam no

grupo criando uma vasta rede de intertextos - à reunião dessa com-plexidade pode chamar-se «imaginário sócio-discursivo».

Os enunciados que constituem as sequências de interlocução podem produzir efeitos diversos 8: a) efeito cognitivo, se se trata da

palavra de um perito (nos casos observados tal traduzia-se frequen-temente na remissão p a r a u m autor que se leu ou p a r a u m texto informativo que se trouxe p a r a a reunião); b) efeito pragmático, se conduz à execução de uma determinada tarefa (quando há tarefas a preparar, h á desempenhos práticos a coordenar); c) efeito axioló-gico, se a situação tem como referência u m sistema de grandezas de valor (é o terreno onde se pode perceber o rasto de algumas cliva-gens ideológicas; d) efeito patémico, se desencadeia u m estado emo-cional (tal é recorrente não só nos enunciados explicitamente auto-biográficos como também naqueles em que o crente se dirige ao ser divino, ou fala do ser divino aos outros).

Este quadro analítico segue u m a tradição aristotélica de trata-mento retórico do discurso quanto aos objectivos pretendidos e quanto aos fins produzidos. Deve assinalar-se que o efeito patémico tende a tornar-se preponderante. No habitat institucional católico, é frequente que dispositivos de interacção que têm previamente

assu-6 Essa reconstrução, a partir da narrativa, pode e n c o n t r a r u m a chave escla-recedora neste texto de Paul Ricceur: «On peut r é s u m e r de la manière suivante les relations entre intelligence narrative et intelligence pratique. En passant de l'orde paradigmatique de l'action à l'orde syntagmatique du récit, les termes de la sémanti-que de l'action acquièrent intégration et actualité. Actualité: des termes qui n'avaient qu'une signification virtuelle dans l'ordre paradigmatique, c'est-à-dire une pure capacité d'emploi, reçoivent une signification effective grâce à l'enchaînement séquentiel que l'intrigue confère aux agents, à leur faire et à leur souffir. Intégration: des termes aussi hétérogènes qu'agents, motifs et circonstances, sont rendus compa-tibles et opèrent conjointement dans des totalités temporelles effectives» (Temps et récit, I: L'intrigue et le récit historique, Paris, Seuil, 1983, 112).

7 Estes conceitos remetem com bastante evidência p a r a a retórica de Roland Barthes (cf. Fragments du discours amoureux, Paris, Seuil ,1977).

8 Desenvolve-se aqui u m a grelha proposta por Patrick C h a r a u d e a u (cf. «Une problématisation discursive de l'émotion», 136s).

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midas finalidades organizativas e informativas, acabem por investir na metodologia da narrativa, processo que tenderá a acentuar a polaridade patémica do acontecimento. Esta estreita relação entre enunciados e estados emocionais poderá advir do facto de exigirem u m a aceitação, u m regime de adesão, por parte dos sujeitos - ou seja, eles só recebem sentido na medida em que há uma lógica forte de pertença que os antecede.

Identidades narradas

Os diversos dispositivos da institucionalidade católica (paró-quia, pólos comunitários, fratrias religiosas, grupos de associados, etc.), enquanto conjunto de contextos de actualização e socialização das experiências individuais têm, entre outras, uma função de regu-lação dos limites da exibição emocional. Dir-se-ia, na senda de um filão clássico (entre W. James e R. Bastide), que a instituição tem a missão de defender a sociedade das incursões do extraordinário. O principal meio de controlo é a incorporação da emoção na lingua-gem articulada, a integração da experiência num quadro simbólico localizado socialmente9. Mas, m e s m o se estruturalmente instável,

esse plano da experiência religiosa, traduzido na evidência das emo-ções, continua a ser u m a fonte importante de renovação do habitat institucional, exigindo investimento e controlo por parte do poder pastoral. Nesse desenho complexo de compatibilização entre o desejo e a n o r m a 10, a reactivação das referências emocionais

acon-tece no quadro de dispositivos de regulação: u m calendário, uma delimitação do espaço, u m a delimitação do grupo 11.

9 Acerca dessa função das instituições religiosas, cf. Peter B E R G E R , The Heretical Imperative, New York, Anchor Press, 1979, 43s. Quanto à linguagem, no quadro do catolicismo paroquial, é fácil e n c o n t r a r testemunhos de u m a grande desconfiança face aos fenómenos típicos do carismatismo cristão como a glossolália - aí a lingua-gem não visa a comunicação de u m a mensalingua-gem, ela reifica-se enquanto expressivi-dade comunicada (cf. Nathalie D U B L E U M O R T I E R , Glossolalie. Discours de la croyance

dans un cultepentecôtiste, Paris, L'Harmattan, 1997).

10 «Le désir doit être mis en synergie avec le normatif» (Paul R I C C E U R , Du texte à l'action. Essais d'herméneutique II, Paris, Seuil, 1986, 251).

1 ' Poderá ser, aqui, de alguma utilidade o conceito de «comunidades emocio-nais» desenvolvido por Fançoise Champion e Daniele Hervieu-Léger numa obra diri-gida pelas sociólogas (cf. De l'émotion en religion. Renouveaux et traditions, Paris, Centurion, 1990). E no entanto necessário ter em conta as críticas de Jeanne Favret--Saada à reivindicada ascendência weberiana do conceito. Cf. «Weber, les émotions et la religion», in Terrain 22 (1994) 93-108).

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No campo da interacção grupai, os conjuntos doxológicos não são apresentados, em primeira linha, sob uma forma didáctica, não são recitados sob a forma de credo, não são elencos de doxemas. São inseridos na trama da experiência, no intervalo das hesitações, segundo u m trabalho de a p r o p r i a ç ã o pessoal e grupai. Em muitas das reuniões de grupo no c a m p o católico, boa parte dos processos de interacção concretiza-se em narrativas dilemáticas e verbali-zações de representações comuns. Mas o quadro social do discurso não é, de forma preponderante, o da exploração polémica (debate) ou da troca didáctica (formação). O sujeito, na sua narrativa biográ-fica, é o lugar do complexo sócio-discursivo. Essa observação per-mite colocar a hipótese de que, em última análise, o que se pretende não é a troca de informação, mas uma troca de expressões de afectos, tendo como referente o ser divino e a sua alteridade em relação ao grupo reunido - estamos, pois, no «universo patémico» da empatia1 2.

A sequência seguinte permite perceber como as dificuldades de ordem intelectual, que dizem respeito à compatibilização dos atributos do ser divino (o recebido), são apresentadas como expe-riências do sentido a descobrir (o vivido). O sentido é u m a evidência suposta, u m a vez que é do domínio do recebido, mas a sua apro-priação implica a descoberta, a fé fica nesse c a m i n h o hesitante entre o «sentir» e o «perceber pela fé». Apesar da extensão deste exemplar etnográfico pensa-se útil a sua apresentação no articulado deste artigo, já que nele se concentra u m conjunto amplo de vias de actualização do crer nestes contextos grupais:

Fátima - E u s i n t o q u e n ã o t e n h o m u i t a e x p e r i ê n c i a d o Espí-rito Santo. N ã o sei, n ã o sinto [risos].

André - Eu p o s s o d i z e r a m i n h a experiência. E u d u r a n t e m u i t o t e m p o n ã o p e r c e b i a o que e r a isto do E s p í r i t o S a n t o . Tinha fé, acre-d i t a v a . Até q u e a c a b e i p o r p e r c e b e r , n ã o é b e m p e r c e b e r , interio-rizei, senti a a c ç ã o do E s p í r i t o S a n t o c o m efeitos r e t r o a c t i v o s n a m i n h a vida. Percebi que se n ã o fosse o E s p í r i t o S a n t o , eu n ã o t i n h a fé, n ã o a c r e d i t a v a . Se o E s p í r i t o n ã o tivesse agido e m m i m ao longo d a vida eu n ã o t i n h a feito as m u d a n ç a s , a s c o n v e r s õ e s , q u e fiz. Só pelo E s p í r i t o foi possível eu m u d a r a l g u m a s coisas, e s o b r e t u d o a c r e d i t a r , a c r e d i t a r n ã o se explica, sente-se. A fé q u e eu t e n h o , a r e l a ç ã o c o m J e s u s e c o m o Pai só foi possível p e l a a c ç ã o do Espírito. A p a r t i r daí c o m e ç o u a f a z e r sentido.

12 Sobre a noção de «empatia»: cf. N. B E S N I E R , «Language and affect», in Annual Review of Anthropology 19 (1990) 419-451.

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Sandra - E u t a m b é m s i n t o d i f i c u l d a d e s . O Pai está b e m defi-nido, o Filho t a m b é m , m a s o Espírito S a n t o . . . Eu acabei p o r concluir q u e o E s p í r i t o S a n t o é a f o r ç a q u e n o s m o v e p a r a a c r e d i t a r , p a r a f a z e r m o s o b e m , é a f o r ç a , é t u d o o q u e nos faz mover. E s t a foi a ideia q u e m e a j u d o u . Antes t a m b é m n ã o t i n h a m u i t o s e n t i d o p a r a m i m . N ã o havia n a d a de palpável.

Lucília - E u p o r a c a s o vejo o Espírito m u i t o n a ideia d a ilumi-n a ç ã o , d a luz. R e c o r r o a o E s p í r i t o S a ilumi-n t o q u a ilumi-n d o t e ilumi-n h o u m pro-b l e m a , q u a n d o t e n h o q u e r e s o l v e r u m a s s u n t o , p r o n t o , q u e eu n ã o m e s i n t o c o m p l e t a m e n t e à v o n t a d e . R e c o r r o q u a n d o de f a c t o pre-ciso de luz, e m t e r m o s de s o l u ç ã o . . .

Conceição - E m t e r m o s de d i s c e r n i m e n t o .

Lucília - Isso. De r e s t o só p e n s o no Pai e no Filho. O Espírito S a n t o é só p a r a a luz [risos].

Maria - M a s n o f u n d o é isso. A c a d a u m a d a s p e s s o a s d a San-t í s s i m a T r i n d a d e a g e n San-t e a San-t r i b u i u m a c e r San-t a f u n ç ã o específica. U m a d a s c o i s a s q u e faz s e m p r e p e n s a r i m e n s o é q u e é o m e s m o E s p í r i t o q u e d e u f o r ç a a Cristo, foi n e l e q u e Cristo r e s s u s c i t o u , a g e n t e p õ e isso u m b o c a d o e m s e g u n d o p l a n o . O S ã o Paulo u m a vez p e r g u n t o u a o s c r i s t ã o s . . . j á n ã o m e l e m b r o b e m , e eles: a g e n t e n u n c a ouviu f a l a r n o E s p í r i t o S a n t o .

[ U m a d a s m u l h e r e s p a r t i c i p a n t e s lê u m texto de n a t u r e z a teológica que p r o c u r a c o n f i r m a r e a l a r g a r a reflexão feita].

Filipa - E u p o r a c a s o gosto m u i t o d o E s p í r i t o S a n t o [risos]. A s é r i o . D e u s m e p e r d o e [risos]. P a r a m i m o E s p í r i t o S a n t o faz m u i t o m a i s clic d o q u e o Pai e o Filho. N ã o sei, eu gosto m e s m o do E s p í r i t o S a n t o , p o r q u e eu a c h o q u e o E s p í r i t o S a n t o é u m a coisa tipo, m e s m o f a n t á s t i c a . P r o n t o , h a v i a Deus, D e u s faz as r e g r a s , a n a t u r e z a , etc., e veio J e s u s . J e s u s veio p a r a n ó s p e r c e b e r m o s , e tal. Depois J e s u s m o r r e u p o r nós, e d e s d e aí até a g o r a , o que nós t e m o s cá, c o n n o s c o , é o Espírito S a n t o . E o Espírito S a n t o que fez c o m que n ã o fossem d e s t r u í d a s as Bíblias, que faz c o m que estes livros s e j a m i m p r e s s o s e t o d a a gente, p o s s a t e r u m livro destes b a r a t i n h o , que faz c o m q u e as p e s s o a s se m o v a m p a r a as Igrejas, é o Espírito S a n t o q u e faz c o m q u e a g e n t e v e n h a p a r a aqui, q u e nos faz falar, ter ideias, c a d a vez q u e a gente a b r e a b o c a se c a l h a r é o Espírito S a n t o q u e n o s a j u d a . E u a c h o o E s p í r i t o S a n t o d e m a i s [risos]. P a s s a d o s dois mil a n o s n ó s só nos l e m b r a m o s de J e s u s p o r c a u s a do Espírito S a n t o .

Maria - M a s eu a c h o q u e nós n ã o p o d e m o s s e p a r a r , nós sepa-r a m o s p o sepa-r q u e é u m a n e c e s s i d a d e h u m a n a .

Laurinda - E u d e v o d i z e r q u e este a n o c o m as c r i a n ç a s quis p a s s a r a c a t e q u e s e d o E s p í r i t o S a n t o p a r a lá d a p o m b a , m a s devo d i z e r que n ã o fui c a p a z [risos]. Mas isto é só u m a m a n e i r a airosa de eu c o n t i n u a r a d i z e r q u e t e n h o as m a i o r e s d i f i c u l d a d e s em sentir. E u e s t o u c o m o a M a r i a , s e n s i v e l m e n t e t a m b é m n ã o t e n h o m u i t o a n o ç ã o d o E s p í r i t o . M a s h á a l g u m t e m p o que eu t e n h o a n d a d o a

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p e n s a r m u i t o n a b a s e d a q u e l e s a l m o q u e diz, o E s p í r i t o d o S e n h o r e n c h e a t e r r a i n t e i r a . E eu r e z o m u i t a s vezes este b o c a d i n h o . Q u a n d o rezo assim, aí sinto q u e h á r e a l m e n t e u m a i m p r e g n a ç ã o , é c o m o se eu ficasse e m b e b i d a t a m b é m p o r esse E s p í r i t o , o E s p í r i t o e n c h e a n a t u r e z a , e n c h e o q u e os h o m e n s f a z e m e t u d o n o m u n d o existe pela s u a f o r ç a . A esse nível, eu e n c o n t r o u m a m a n e i r a de m e a p e r c e b e r do E s p í r i t o , c o m o s o p r o d a vida t o d a . Isto u l t i m a m e n t e t e m - m e a j u d a d o a p e r c e b e r , n ã o p e l a s e n s i b i l i d a d e , m a s p e l a fé. E t e n h o a n d a d o n u m e s f o r ç o i m e n s o p a r a s u b s t i t u i r a i m a g e m d a p o m b a p e l a luz. A c e n d o m u i t o m a i s u m a vela e m c a s a , r e z o m a i s d i a n t e de u m a luz, t e n h o n e c e s s i d a d e de r e z a r c o m a luz, e p e n s o que isso está ligado a essa c o n s c i ê n c i a .

(Reunião de reflexão. Uma paróquia na cidade de Lisboa, 20.03.02)1 3 Neste exemplar é possível discernir u m itinerário de reconstru-ção narrativa do objecto do crer caracterizado pelo jogo de m ú t u a implicação do recebido e do vivido. E na narrativa de si que frequen-temente se torna patente a relação que o crente estabelece com a doxa recebida, jogo que se desdobra em regimes de credibilização diversos com uma clara preponderância por parte das modalidades de autocredibilização e de credibilização mútua. No caso apresen-tado, estão em causa os doxemas relativos à identificação de Deus enquanto Trindade. As dificuldades levantadas pela impertinência cognitiva dessa trinomeação são traduzidas no âmbito da expe-riência subjectiva e são nesse domínio resolvidas. Estes crentes, reunidos n u m espaço de interlocução privilegiam a autoridade da sua própria experiência no trabalho de compatibilização de enun-ciados e de articulação dos mesmos com a vida quotidiana. Observe-se o elenco dos elementos discursivos que investem nessa autocredibilização (Quadro 2).

A narrativa de si é um instrumento de implicação do ser divino na biografia do crente e é um lugar de verificação das qualidades do ser divino 14. As qualidades do ser divino são, assim, apropriadas a

13 Apesar da extensão deste exemplar etnográfico pensa-se útil a sua apresen-tação no articulado deste artigo, já que se descobriu nele as notas de exemplaridade que permitem perceber a forma como o espaço de interlocução se pode t o r n a r um contexto de reconstrução contextual das representações crentes: do sentido como evidência suposta (o recebido) até ao «sentir e perceber pela fé» (o oportuno). Cf. A.

TEIXEIRA, «Entre a exigência e a ternura», 297s.

14 Sem chegar ao p a t a m a r da confidência, o discurso é, mesmo que o c a m p o temático seja o credo, uma forma de desvelamento de si - no sentido de self-disclo-sure (cf. J . D E R L E G A , S. M E T T S , S. P E T R O N I O e S. M A R G U L I S , Self-disclosure, London, Sage, 1993).

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partir de u m a reconstrução pessoal ex eventu, processo que pode desvelar os traços de u m a teoria emergente unificadora dos f r a g m e n t o s autobiográficos. A narrativa autobiográfica coloca o

S n ã o sei, n ã o sinto

S n ã o é b e m perceber, interiorizei, senti S a c r e d i t a r n ã o se explica, sente-se S sinto d i f i c u l d a d e s

foi possível eu m u d a r a l g u m a s coisas esta foi a ideia q u e m e a j u d o u

a n t e s t a m b é m n ã o t i n h a m u i t o sentido p a r a m i m s n ã o havia n a d a de palpável

•f q u a n d o t e n h o u m p r o b l e m a

S u m a d a s coisas que m e faz s e m p r e p e n s a r i m e n s o gosto m u i t o do Espírito S a n t o

S o E s p í r i t o S a n t o faz m u i t o m a i s clic do que o Pai e o Filho S eu gosto m e s m o do E s p í r i t o S a n t o

S eu a c h o que o E s p í r i t o S a n t o é u m a coisa tipo m e s m o fantástica S eu a c h o o E s p í r i t o S a n t o d e m a i s

Q U A D R O 2 : Autovalidação do crer: elenco de elementos discursivos

sujeito no espaço de interlocução do grupo inserindo as retóricas de autovalidação do crer n u m contexto de credibilização mútua. A expressão narrativa de si traduz-se tanto na exibição das explica-ções acerca de si, como na solicitação de esclarecimentos aos outros: o sujeito implica-se na história do grupo e o grupo é impli-cado na sua história 15. O quadro ideal típico de Danièle

Hervieu--Léger pode transformar-se, neste contexto, n u m a grelha de varia-ções (Quadro 3).

O circuito afectivo-representacional que se desenha no espaço sócio-discursivo grupai, m e s m o se claramente inserido no campo católico, tende a subalternizar o regime de credibilização institucio-nal, isto porque muito frequentemente não estão presentes sujeitos

15 Estamos no domínio do que Anthony Giddens chamou «pensamento auto-biográfico», um dos recursos identificadores do moderno investimento na auto-iden-tidade (self-identity). Grande parte das aproximações a esta trajectória do self em contexto religioso privilegiam as perspectivas terapêuticas. Aqui prefere-se abordar este processo sócio-discursivo como percurso de (re)construção prática de sentido p a r a a actualização de u m a tradição. Cf. Modernidade e identidade pessoal, Oeiras, Celta, 1994, 63-72.

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politicamente qualificados (no sentido de «representantes» da insti-tuição), mas t a m b é m porque não são p r e p o n d e r a n t e s os procedi-mentos discursivos que façam apelo às «autoridades». Estes actos de interlocução repousam, assim, sob modos de comunicação que renunciam ao apelo à autoridade em benefício de jogos de argu-mentação e de distribuição da palavra que assegurem a possibili-dade de todos a poderem t o m a r - o locutor não está, à partida,

R E G I M E D E C R E D I B I L I Z A Ç Ã O I N S T Â N C I A D E C R E D I B I L I Z A Ç Ã O C R I T É R I O D E C R E D I B I L I Z A Ç Ã O

institucional locutor qualificado conformidade institucional comunitária o próprio grupo coerência

mútua o outro autenticidade

autocredibilização o próprio indivíduo certificação subjectiva

QUADRO 3: Modalidades de credibilização (D. Hervieu-Léger)16

determinado pelo lugar a partir do qual fala. Quando no contexto da interacção grupai está presente u m padre, pode acontecer que ele procure despojar-se de todas as evidências que fariam dele uma «autoridade». Esta renúncia à evidência social da autoridade torna--se explícita no próprio senso teórico que se exprime nos actos de interlocução acerca do objecto «fé» 17. A fé é, neste contexto, u m

saber que não pode ser medido, incomensurável no sentido em que não cabe nas medidas da instituição. A escusa dos registos de autori-dade pode mesmo fazer apelo à ignorância intersubjectiva, à incomen-surabilidade da fé, ou pode traduzir-se no uso parcimonioso dos saberes periciais no espaço da interlocução grupai.

O espaço de interlocução depende, em muitas situações obser-váveis, da construção de u m modelo grupai que evita quanto pode

16 Adaptado a partir de: Daniele HERVIEU-LÉGER, Le pèlerin et le converti. La religion en mouvement, Paris, Flammarion, 1999, 187.

17 Esse senso teórico resulta de um trabalho de construção das fronteiras da consciência - a justificação. Na tentativa de encontrar um modelo interpretativo dos actos de linguagem nestes grupos de reflexão revelaram-se de alguma eficácia as observações de Gino Gramaccia sobre a escusa dos registos de autoridade nos actos comunicativos dos grupos de inovação (cf. Les actes de langage dans les organisations, Paris, L'Harmattan, 2001, 150).

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os formalismos rituais ou os discursos ancorados n u m saber disci-plinar reconhecido - magisterial, teológico ou outro. Ao pólo nega-tivo da objectividade institucional opõe-se o pólo «fé» e «vida», porque é sobre esta polaridade que é possível valorizar as formas de autocredibilização e credibilização grupai da experiência crente. Tal não significa que a b u n d e m nestas situações - mesmo naqueles em que se cultiva a livre expressão de si - intervenções críticas explícitas. Valorizando a expressão plural da experiência dos crentes, eles poderiam apresentar-se como lugar frequente de crítica à insti-tuição religiosa. No entanto, deve dizer-se que são preponderantes as estratégias várias de transacção entre a anterioridade da insti-tuição e a actualidade da experiência.

Privilegiam-se como instância de credibilização o próprio sujeito, o interlocutor directo, e o próprio grupo, dando assim lugar a f o r m a s de certificação subjectiva sob o imperativo do ethos da autenticidade e da disciplina da coerência. Mas seria tanbém ingénuo pensar-se que aquele regime de credibilização institucional não tem qualquer papel. Tem-no não só no sentido estruturante do habitas católico (seguindo Bourdieu), mas t a m b é m no sentido em que o dispositivo é, em si mesmo, u m dispositivo autorizado. A legitimi-dade fornecida pelo habitat institucional é, assim, u m contexto implícito, mas não é u m recurso frequente na argumentação expli-citadora daquilo em que se crê ou nas formas de n a r r a ç ã o de si. Não nos apressemos a chegar à conclusão de que as formas de auto-credibilização e de confirmação m ú t u a não prescindem esse traba-lho de referência ao «outro» exterior ao próprio grupo, referência essencial no plano da política do simbólico. Ou seja, não se dispen-sam da inscrição n u m a memória autorizada1 8.

Os sujeitos/actores, ancorados num regime de aceitação prévia, partilhando u m conjunto de tópicos que organizam o campo temá-tico, b u s c a m a c o n f i r m a ç ã o d a sua experiência, mas essa confir-mação não dispensa o suporte de u m a memória cuja persistência é vista como garantia de idoneidade; ou seja, mesmo se há um forte incremento nas formas de desenvolvimento da empatia, o disposi-tivo situacional não dispensa a sua caução exterior 19. Essa

referên-18 Cf. A. T E I X E I R A . «Entre a exigência e a ternura», Cap. 1 e 2 .

19 Como observou Pierre Lathuilière, o «carísmatismo católico», enquanto sensibilidade religiosa e não apenas enquanto movimento religioso organizado, é caracterizado por essa necessidade de verificar a universalidade que a tradição reli-giosa reivindica; experimentação é o lugar de verificação: «une grâce transformée en expérimentation». Cf. Le fondamentalisme catholique, Paris, Cerf, 1995.

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cia simbólica ao «outro» torna-se particularmente patente no traba-lho argumentativo, mesmo se os argumentos não são sistematizados pelos actores. Quem é o «outro» nesse trabalho de reorientação sim-bólica? Nesse jogo comunicativo o ser divino é o «outro» por exce-lência, segundo diversas modalidades: a) pode ser aquele de quem se fala com os outros; b) pode ser aquele p a r a quem se remete a solução última do enigma que não se resolveu; pode ser o recurso fundamental para falar das zonas mais escondidas de si; c) pode ser aquele a quem se dirige a palavra, embora os destinatários situacio-nais sejam os outros crentes capazes também de actos de fala.

Mas outras podem ser as figuras da alteridade, neste trabalho argumentativo: a referência ao virtuosismo de alguém (determinado padre, por exemplo); os depoimentos exemplares ou citações (actua-lizações) de palavras e gestos dos evangelhos cristãos; a exemplari-dade das activiexemplari-dades religiosas em que alguém participa2 0. É

parti-cularmente frequente que a narrativa autentificadora se apresente como um encontro providencial com alguém ou com uma situação que reorienta a acção dos crentes - o reconhecimento da autori-dade de certo padre, em termos práticos, depende menos da sua qualidade institucional e mais dos caracteres que o identifiquem como descodificador de enigmas, p o r t a d o r de qualidades espiri-tuais e transmissor de u m a sageza prática testada na vida corrente. Memória e experiência

Nos espaços de interlocução grupais, os actores falam do seu modo de crer e das suas crenças a partir daquilo que se poderá c h a m a r a sua biografia crente. Torna-se patente a consciência de que aquilo a que c h a m a m fé não é u m código imutável é antes u m conjunto simbólico que sofreu transformações ao longo das idades da vida. Nas formas mais correntes essa reconstrução narrativa a uma biografia crente tem como primeira referência, u m a «cultura primordial» preenchida pela m e m ó r i a de u m a socialização reli-giosa infantil2 1. A narrativa recolhe desse trabalho de instituição

2 0 Estes aspectos podem ser c o m p a r a d o s com os resultados referidos por Albert Piette no seu estudo sobre a actividade religiosa corrente. Cf. La religion de près. L'activité religieuse en train de se faire, Paris, Mátailié, 1999, 119,180s.

21 Toma-se a expressão «cultura primordial» do estudo de Raymond Lemieux: «Cette socialisation de l'imaginaire, telle qu'effectuée à l'enfance, privilégie certaines conceptions de la vie par rapport à d'autres auxquelles on aura cependant accès plus tard. Elle présente ce qu'il faut croire, introduisant dans la conscience des sujets un

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primordial as imagens (ícones, metáforas, alegorias e outros), o credo, mas t a m b é m a memória dos meios de transmissão (familiar, paroquial ou outra). Na p r o c u r a de u m a adaptação dos modos de identificação do ser divino as crenças infantis são percebidas como u m horizonte primordial que, agora, n ã o sendo negado, é relativi-zado. Algumas representações podem ser colocadas sob suspeita ou ficar sob o alcance de juízos de gosto.

O exame dos actos de interlocução grupai permite perceber que, em tal contexto, o trabalho institucional e individual em torno do crer na idade adulta se centra não já nas formas de socialização, mas nas modalidades de remodelação sob o signo da a d a p t a ç ã o2 2.

A idade adulta é, por excelência, no que ao funcionamento do crer diz respeito, o t e m p o do compromisso. O discurso dos adultos acerca daquilo a que c h a m a m «fé» é marcado por essa competência fundamental: a capacidade de n a r r a r fragmentos autobiográficos e de ter u m olhar retrospectivo sobre as m u d a n ç a s no seu percurso de identificação religiosa. A fé concretiza-se, assim, no dispositivo de comunicação n u m a competência que permite interpretar a sua história de vida como biografia crente.

Essas m u d a n ç a s podem ser lidas no quadro típico das n a r r a tivas de conversão. As sequências mais frequentes não poderão apre-sentar-se estritamente como narrativas de conversão, enquanto género hagiográfico ou apologético. Mas pode falar-se de narrativa de (re)conversão, em sentido mais lato, quando os itinerários de identificação crente se referem a momentos de mudança, quando alguns n a r r a m a sua condição de «recomeçantes» 2 3 ou quando os

dernier corpus de réalités vraisemblables qui serviront de référence, qu'on les garde ou qu'on les rejette, p o u r juger des évolutions ultérieurs. Elles forment en ce sens une sorte de culture primordiale». Raymond L E M I E U X , «Histoires de vie et postmoder-nité religieuse», in Raymond L E M I E U X e Micheline M I L O T (dir.), Les croyances des

québécois. Esquisses pour une approche empirique, Les Cahiers de Recherche en Sciences de la Religion 11, Québec, Université Laval, 1992, 194s.

22 Os investigadores do Quebeque sublinharam também que esta função adapta-tiva é típica do funcionamento do crer na idade adulta (cf. R. L E M I E U X , «Histoires de vie et postmodernité religieuse», 198-201). O objecto de análise era diverso, uma vez que os informantes não estavam e n q u a d r a d o s nos dispositivos de organização do crer característicos do sistema paroquial. Importa sublinhar que essa mesma função adaptativa se descobre mesmo entre os crentes cujo imaginário está ainda bastante articulado com um conjunto de práticas reguladas institucionalmente.

2 3 Referem-se desta forma os adultos que experimentaram um percurso de aproximação às dinâmicas eclesiais, depois de um longo período de afastamento ou de prática qualificada de «simplesmente ritualista».

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adultos recém-baptizados falam da sua aproximação à comunidade crente. Nestes casos, o recurso ao género religioso da narrativa de conversão pode ser descrito como um olhar retrospectivo sobre as diferentes etapas da vida adulta do crente. O seu valor referencial é bem documentado pela sua frequente repetição ao longo das diver-sas interacções grupais, mesmo se, passado algum tempo, deixa de ser necessário contar todos os p o r m e n o r e s da narrativa u m a vez que ela passa a fazer parte da memória do grupo.

As narrativas dos «recomeçantes» podem ser integradas no conjunto categorial das narrativas de conversão - mas não no sen-tido de alguém que m u d a de religião, ou de alguém que a b a n d o n a uma confissão p a r a aderir a outra. Estes «convertidos» não pro-curaram, n u m a primeira linha, u m a tradição alternativa, buscaram uma linguagem e uma experiência. A narração a partir dos estereó-tipos da conversão não é tanto u m discurso acerca do credo (coerência), mas um discurso acerca dos efeitos desse encontro com uma comunidade crente no âmbito do vivido (coesão) - por isso, Pierre Lathuilière fala da conversão (ou, acrescente-se, reconver-são) como um dos modelos p r e p o n d e r a n t e s nos modos de identifi-cação católica na actualidade2 4.

O quadro interpretativo em que nos situamos tende a sublinhar o poder reconstituidor que se descobre nas narrativas de ( r e c o n -versão. A sua repetição faz dessa narrativa u m memorial da acção do ser divino na vida pessoal dos crentes. Esse «passado recons-truído» 25 é o lugar de u m a celebração da história espiritual dos

sujeitos - história que se descreve como aceitação e empenhamento n u m a diferença - , e tem u m efeito político assinalável no domínio da credibilização do património espiritual que a instituição crente organiza. A narrativa é tanto mais eficaz, sob o ponto de vista reli-gioso, se se puder estruturar a partir de u m «grau zero», lido como (re)começo (re)configurador da identidade2 6.

24 Cf. Le fondamentalisme catholique, 11.

25 Acerca desta categoria no âmbito da análise das narrativas de conversão: cf. André G O D I N , Psicologia das experiências religiosas. O desejo e a realidade, Círculo

de Leitores, 2001, 71-91.

2 6 Nestas representações da conversão, há u m a r e e s t r u t u r a ç ã o da temporali-dade: glorifica-se o kairos, o momento extraordinário, o tempo favorável, em detri-mento do aiôn, ou seja, o espaço de tempo tido por necessário à mudança de menta-lidades - favorece-se o instante em detrimento da duração. Cf. P. G I B E R T et al., L'expérience chrétienne du temps, Paris, Cerf, 1987.

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Mas este acento sobre a experiência, muito favorável às meto-dologias da interioridade não reúne, no entanto, os seus praticantes n u m a u n a n i m i d a d e ideológica. Há variações amplas quanto ao estatuto de exemplaridade das (re)conversões: desde aqueles que descobrem em tal figura os principais critérios de eclesialidade até aos que tendem a ler a história dos "convertidos" segundo os este-reótipos do excesso religioso. São pequenas narrativas que os cren-tes pretendem ver de alguma forma integradas na grande narrativa de que a instituição é fiduciária. Algumas experiências-tipo podem ser apresentadas como lugares propícios p a r a o trabalho de remo-delação da crença recebida: a doença, o fracasso, as rupturas ou impasses afectivos, os conflitos intergeracionais 27. Mas os contextos

de adaptação podem t a m b é m apresentar-se como concretizações de aspirações pessoais ou como oportunidades de desvelamento de enigmas, factores decisivos p a r a a confirmação das convicções. Podemos pois sustentar que, neste contexto, o compromisso se desenha n u m a relação de complementaridade entre a necessidade de a d a p t a ç ã o ao meio e o conforto da convicção confirmada - o mesmo é falar da necessidade de articular verosimilhança e credibi-lidade. Neste contexto, o compromisso não pode ser visto a partir do preconceito da degenerescência, da contaminação, da degradação da origem, n e m como simples resultado de u m a lógica da acção institucional (tal visão que repetiria o suposto religioso e romântico de que os m u n d o s religiosos teriam na origem a sua configuração mais pura, pressuposto inverificável antropologicamente). É que o «compromisso» que Weber e Troeltsch descobrem na história das religiões, nos testemunhos diversos da sua reconstrução histórica em m o m e n t o s culturais diversos e em espaços geográficos múlti-plos não é, explorando o filão simmeliano, u m a categoria estranha às trajectórias de recomposição crente dos sujeitos durante as

2 7 Esta necessidade de reconfigurar a sua condição de crente a partir da expe-riência parece ser talvez u m a das características que distingue o praticante da reli-gião do cliente da magia. No seu estudo, Lemieux fala de um trabalho de reabilitação do imaginário: «Chaque fois qu'il vit une rupture, l'adulte doit procéder à un travail de réhabilitation de son imaginaire. S'il évoque ces événements comme étant facteurs de transformation dans ces croyances, c'est parce qu'il est conscient d'avoir eu besoin, pour les surmonter, de revitaliser son rapport au croyable et que cela mettait en cause l'intimité même de son être. Il apporte alors de nouvelles donnés, de nouvelles expériences, à ce qui devenait un manque, voire pour inaugurer un nouveau type de r a p p o r t au monde, plus adapté à ses nouvelles conditions d'existence» («Histoires de vie et postmodernité religieuse», 199).

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idades da v i d a2 8. Aí o compromisso exprime-se recorrentemente

como possibilidade de ultrapassagem das distâncias entre os mode-los propostos, as aspirações pessoais e os meios disponíveis p a r a realizar essas aspirações 29.

Competência orante e gestão do comentário

Nos espaços de interlocução grupai no c a m p o católico, des-cobre-se recorrentemente u m a clara hostilidade p e r a n t e a demasiada formalização dos estereótipos definidores da atitude orante -essa formalização é apelidada de ritualismo3 0. Este ritualismo

exprime-se, em alguns, na insatisfação perante as fórmulas orantes tradicionais (portanto, pré-concebidas), noutros, nas observações oscilantes quanto à necessidade de u m lugar e de u m tempo espe-cíficos p a r a a oração. Ao ritualismo opõe-se u m a «oração com qualidade».

Esta expressão - ritualismo - , que por vezes é usada p a r a iden-tificar os comportamentos religiosos de pura exterioridade (ou que se reduzam a um fazer sem adesão a u m a religião da interioridade),

28 Cf. A. T E I X E I R A , «Entre a exigência e a ternura», 1 6 5 - 1 7 2

29 Raymond Lemieux definiu essa idade adulta do crente c o m o o t e m p o da

experiência da m u d a n ç a perante a necessidade de adaptação, trajectória que implica a prática da relativização. Antes de mais p o r q u e o c r e n t e adulto sabe que as suas convicções não tiveram no p a s s a d o a m e s m a configuração, mas t a m b é m p o r q u e já experimentou de forma mais ampla que o seu sistema de c r e n ç a s n ã o é consensual - n ã o é partilhado por todos - , e ainda p o r q u e a p a r t i r de u m o l h a r retrospectivo o crente pode descobrir que aquilo a que c h a m a fé teve f u n ç õ e s diversas ao longo da sua vida de acordo com as suas necessidades (cf. «Histoires de vie et p o s t m o d e r n i t é religieuse», 200s). Seguindo os resultados da nossa pesquisa sobre a interacção gru-pai em meio paroquial, essa prática da relativização pode ser lida c o m o exploração das zonas de incerteza do sistema. A exploração dos c a m p o s t e m á t i c o e estratégico do c o n t r a t o comunicativo que o r g a n i z a os espaços de interlocução o r g a n i z a d a permitiu identificar um c o n j u n t o de modalidades de investimento pessoal na organi-zação do crer tendo em conta quer o crível disponível (verosimilhança), quer o acre-ditado recebido (autoridade), quer ainda a sua verificação no âmbito do vivido. Pode falar-se assim de m o d a l i d a d e s diversas de compatibilização da m e m ó r i a e a expe-riência que se r e s u m i r a m n u m c o n j u n t o de categorias formais: reelaboração semân-tica em f u n ç ã o da experiência; a d a p t a ç ã o biográfica dos códigos recebidos; justapo-sição e/ou compatibilização de p r o g r a m a s de verdade distintos; c o m p l e m e n t a r i d a d e funcional; oscilação face às representações crentes; implicação e distanciação face à instituição; exploração dilemática da m u n d a n e i d a d e dos crentes. Cf. A. T E I X E I R A , «Entre a exigência e a ternura», 511 -528.

30 Tal c o m o no inquérito levado a cabo em F r a n ç a sobre as p r á t i c a s o r a n t e s :

cf. Michèle B E R T R A N D , «La prière et le corps». I D E M (dir.), Pratiques de la prière dans

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pode induzir em erro. Não se trata do ritual em si, pois a interacção ritual, n a sua dimensão lúdica, pode até beneficiar de um claro incremento - isso é evidente quando u m grupo organizado pro-g r a m a u m encontro de oração ou u m a missa; aí tornam-se visíveis os traços do trabalho de a p r o p r i a ç ã o da memória orante e a sua recomposição de acordo com interesses estéticos, performativos e ideológicos dos implicados3 1. Esses momentos podem ser vistos

como processos de re-simbolização onde cada u m dos orantes se inscreve como sujeito. As concretizações podem ser paradoxais: devoções revivalistas misturam-se com novos rituais, remontam-se novos e velhos rituais. O m e s m o se diga do tempo e do espaço. Embora se denuncie os constrangimentos próprios do rezar «a horas» e «num certo lugar», as práticas de oração não deixam de ter uma relação sintáctica com determinados tempos e certos espaços3 2.

Podemos pois dizer que estamos de novo no m u n d o interior da instituição paroquial, mundo que se revê na reivindicação de auten-ticidade e qualidade.

As modalidades de leitura e/ou comentário espontâneo da Bíblia podem ser u m lugar eficaz de observação das formas de com-promisso entre a necessidade de acolhimento de práticas de leitura claramente subjectivistas e o imperativo da sua re-socialização. Os comentários podem ter u m a natureza contemplativa, explicativa, mobilizadora, orante (intercessão, acção de graças, voto, etc.), mas, invariavelmente, apresentam-se como modos de traduzir as rela-ções que o crente estabelece entre o fragmento bíblico lido e a sua experiência pessoal. Se o fragmento é comentado num tom orante, ou se ele está situado apenas num momento preciso da reunião para p r e p a r a r outras acções, o comentário pode não dar oportunidade a u m diálogo explícito entre os sujeitos co-presentes. Se essa metodo-logia é central no dispositivo, esse diálogo vai seguir caminhos que estavam apontados previamente. São formas muito fluidas de orga-nização da tomada da palavra, caracterizadas por um claro alarga-mento dos limites de disponibilidade do texto. Mesmo no caso em que o texto é inserido n u m quadro de tópicos organizados de acordo com os objectivos da reunião, é frequente que os comentários ultra-passem esses limites. Mesmo quando há pouco espaço institucional

31 Neste sentido se explorou o conceito de «bricolage ritual»: cf. A. Teixeira, «Entre a exigência e a ternura», Cap. 12.

32 Vão no mesmo sentido as conclusões do estudo de Michèle Bertrand: cl. «La prière et le corps», 80.

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para manifestações próximas dos modos de comunicação pente-costal ou vizinhas do carismatismo católico3 3, este parece ser o

momento privilegiado p a r a o acolhimento no grupo do «extraordi-nário». O extraordinário é aí, não o milagre ou o excesso do senti-mento religioso, mas essa inscrição do inesperado na dinâmica da reunião - a figura da leitura e comentário espontâneo permite ima-ginar u m modo de interacção religiosa sob «a liberdade do espí-rito», liberdade que traduz num certo grau de indeterminação das apropriações pessoais 34. Esse grau de indeterminação advém do

facto da relação com o texto não ser m e d i a d a por u m leccionário normativo, não ser actualizada por qualquer comentário autorizado (como a homilia do padre), n e m ser explicado com recurso aos códigos da erudição teológica. E necessário ter em conta que a introdução de qualquer destes recursos disciplinadores ou orien-tadores facilmente condicionaria a constituição de u m espaço de interlocução em que nenhuma interpretação beneficia de u m a auto-ridade recebida, permitindo assim a a p r o p r i a ç ã o biográfica do texto. Não podendo a gestão institucional das Escrituras beneficiar da protecção de uma literocracia - como a «inerrância verbal» ou a «inspiração verbal», no caso de algumas ortodoxias protestantes - , apenas a introdução de u m a autoridade interpretativa ou a regu-lação ritual do acesso ao texto pode condicionar essa exploração actualizante dos significados bíblicos3 5.

A m e s m a metodologia e um m e s m o modo de socialidade reli-giosa não implicam, no entanto, a u n a n i m i d a d e ideológica. Os resultados deste comentário pode traduzir sentidos teóricos muito diversos. Mas o risco de clivagem diminuiu na medida em que os

33 A cura e a glossolália são os recursos extraordinários por excelência, mas podemos falar de um fenómeno mais corrente, a «doce euforia cristã», tipo de expressividade religiosa privilegiada nos grupos onde há u m a clara preponderância dos modos de identificação emocional e afectiva (a expressão «douce euphorie» é tomada de: D . H E R V I E U - L É G E R , Catholicisme, 1 3 3 ) .

3 4 Danièle Hervieu-Léger obteve resultados que a c o m p a n h a m esta hipótese interpretativa, na observação de grupos de o r a ç ã o católicos nos EUA e em França: cf. «La pratique de la lecture spontanée des textes scripturaires dans le renouveau charismatique catholique», in Évelyne PATLAGEAN e Alain L E B O U L L U E C (dir.), Les retours aux Ecritures. Fondamentalismes présents et passes, Louvain-Paris, Peeters,

1 9 9 3 , 4 7 - 5 2 .

35 Acerca da problemática da «inerrância bíblica»: cf. Alfredo T E I X E I R A , Lutero e a modernidade teológica: itinerários da questão hermenêutica, in Carlos S I L V A et ai.,

Martinho Lutero. Diálogo e Modernidade, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas,

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682

grupos dão corpo a modalidades de socialidade do tipo associação voluntária e electiva - são, neste caso, grupos onde é possível encontrar algumas afinidades estruturantes. Em dispositivos situa-cionais menos determinados por essa descoberta de afinidades, como as reuniões paroquiais mais alargadas que oferecem informa-ções e metodologias p a r a p r e p a r a r d e t e r m i n a d a festa litúrgica, ou aquelas em que se p r o c u r a debater ou esclarecer determinado assunto, a explicitação das clivagens ideológicas pode tornar-se mais frequente.

Não pode concluir-se, no entanto, que se está perante formas desreguladas de t o m a d a da palavra. Antes de mais, aquilo que a Escritura «diz» a cada u m é determinado pela própria história de socialização católica; depois, é necessário não perder de vista que a expressão subjectiva de u m a leitura se confronta com os constrangi-mentos da sua aceitabilidade, ou seja, a experiência pessoal con-fronta-se com a experiência dos outros. E no plano da intersubjecti-vidade que devem ser procurados os limites de uma leitura plausível. Nos momentos, em que esse ajuste não é possível, é frequente que u m dos interlocutores se remeta ao silêncio diminuindo assim os riscos da irredutibilidade das clivagens. Não é invulgar que, nesse contexto de semi-regulação, possa surgir u m a espécie de primum inter pares, u m elemento do grupo mais experiente ou mais velho, a quem o grupo já, por várias vezes, reconheceu a capacidade de desvendar enigmas e de atenuar as clivagens 36.

3 6 Esta problemática remete p a r a um tema central nos textos clássicos do pro-tocristianismo, nos finais do século I e no século II: a questão do "discernimento dos espíritos" (cf. ICor 12, 10). Alguns desses textos falam-nos de comunidades cristãs que fazem a experiência de integração de práticas e actividades religiosas que se aproximam com aquilo que, n u m a linha weberiana, se poderia designar de «ordem carismática das origens». Aí a figura do profeta ou a autoridade daqueles que «falam sob a inspiração do espírito» são tema recorrente de prevenções e exortações disci-plinares. A necessidade de encontrar critérios que permitam distinguir os verda-deiros e os falsos profetas é, por isso, um assunto central. No Cap. 1 1 da Didachê, texto que corresponderá a tradições com origem em Antioquia e na Síria ocidental, encontra-se u m bom exemplar (11, 8): «Todo o profeta que fala sob a inspiração do espírito só será profeta se viver da m e s m a f o r m a que o Senhor. Reconhecer-se-ão, assim, pelas suas formas de viver, o falso e o verdadeiro profeta» (A Diogneto, trad. de M. Luís Marques, Lisboa, Alcalá, 2001). A autoridade tem, pois, o dever de autenti-ficar o profeta através da observação da sua conduta. O profeta só é autentificado se a sua acção se configura com as representações de u m a imitação do Senhor - para u m a contextualização mais ampla recomenda-se o estudo clássico de: J. L. ASH, «The decline of ecstatic prophecy in the Early Church», in Theological Studies 37 (1976) 227-252.

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Concluindo

Nesta região interior do habitat institucional católico, os crentes buscam por meio da narrativa de si, e segundo diferentes formas de credibilização, tornar o recebido oportuno, acedendo a u m a deter-minada representação da presença de Deus, resolvendo as tensões entre o seu quotidiano e os indicativos religiosos de acção, entre enunciados tecnocientíficos e doxemas religiosos, n u m tempo que é o da adaptação dos códigos religiosos recebidos na infância e adolescência à vida adulta.

Estamos, pois, n u m a região interior do c a m p o institucional católico, no sentido imediato de lugar de reconhecimento de inte-rioridades, de intimidades onde o crente se «religa» narrativa e situa-cionalmente a Deus e aos outros crentes. Esse jogo entre o reconhe-cimento de u m conjunto recebido de representações acerca do ser divino e a necessidade de a p r o p r i a ç ã o pessoal e grupai dessas representações permite perceber que aquilo a que os crentes cha-m a cha-m «fé», nas suas dicha-mensões teóricas e prática pode ser descrito antropologicamente como u m conjunto de competências.

Referências

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