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[Recensões] ALMEIDA, Bernardo Corrêa d’ – A Vida numa Palavra: Uma nova leitura do Evangelho de S. João.

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Academic year: 2021

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ALMEIDA, Bernardo Corrêa d’ – A Vida numa Palavra: Uma nova leitura

do Evangelho de S. João. Porto: Universidade Católica Editora, 2012. 341 p.

Bernardo Monteiro Fernandes Corrêa d’Almeida, franciscano da Província de Portugal e docente na Faculdade de Teologia da UCP, inicia aqui a sua atividade de publicação com o fruto de uma longa investigação sobre o Quarto Evangelho, do qual faltava em português um comentário arguto e preciso como este. Já por isto felicitamos o autor por ter preenchido, e muito bem, esta lacuna dos estudos bíblicos e teológicos no nosso país.

O leitor tem a vida muito facilitada porque os termos das línguas originais estão todos transliterados e porque o autor limpou o texto de notas de pé de página, só pon-tualmente o faz, pouquíssimas vezes. Na prática, o leitor encontra aqui um longo e fundamentado comentário a todo o texto do evangelho dito de S. João (assim o diz a Tradição). Para este trabalho, o autor traduziu do original todo o texto do evangelho de um modo o mais literal possível. Essa tradução na íntegra está colocada no fim do comentário (pp. 281-329), mas vai sendo seccionada ao longo da exposição para que o leitor vá acompanhando a exegese de cada porção/perícope do texto evangélico. Nas pp. 331-335 o autor faculta uma bibliografia selecionada para não cansar o leitor com o conjunto infindável de estudos sobre a matéria que mostra conhecer e dominar. Termina com um índice muito preciso e muito útil onde se vislumbra a estrutura geral do evange-lho em cinco partes (introdução, caps. 2-12; 13-17; 18-19; 20-21). Aqui, o autor subdivide a segunda parte da estrutura clássica do evangelho (evangelho dos sinais na primeira parte: caps. 1-12, e evangelho da glória caps.13-21), pois nessa segunda parte distingue a Última Ceia (caps. 13-17) da Paixão (caps.18-19) e da conclusão em dois epílogos (caps. 20-21). Além disso, ao longo do texto vai distribuindo ao leitor vários quadros com inúmeras citações do Antigo Testamento ilustrativas da perícope que está a ser comentada e, sobretudo, muitos quadros comparativos ou esquemáticos que ajudam a visualizar a relação temática ou entre as personagens em questão (por exemplo, pp. 111, 200, 201, 212, 219). Queremos somente destacar os quadros comparativos sobre as festas no quarto evangelho (pp. 69-70) e sobre os sete sinais no quarto evangelho (p. 68).

Para compreender o título desta obra é fundamental passar pelo preâmbulo (pp. 17-24), pois aí o leitor encontra justificado também o subtítulo: uma nova leitura do evangelho de S. João. De facto, o autor justifica o contributo do discípulo amado, esse narrador-tipo que nos permite ler por dentro de modo diverso todo o testemunho de

}3.1.

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Jesus, o seu e o de todos aqueles que escutam a Palavra da vida de Deus para serem essa Palavra (expressão bastante frequente na pena de Bernardo d’Almeida). Neste comentário o autor não nos leva por muitas questões intricadas da exegese joanina (como a questão do autor, da relação com o judaísmo, da influência ou não de Qumran ou da gnose, dos destinatários do evangelho, da estrutura, da relação da comunidade joanina com a sinagoga, do suposto dualismo joanino, do papel dos judeus e do suposto antijudaísmo do quarto evangelho, da relação ou não com a tradição sinóptica). Dos três grandes modelos de leitura do evangelho (teológico, histórico e literário, p. 17), o autor prefere claramente o primeiro e o terceiro, ainda que afirme que reúne os três níveis (p. 18). Parte do testemunho do discípulo amado cujo conteúdo tanto é a Palavra como essa Palavra escutada e testemunha. O discípulo amado tem a função de viver, de ser amado por Jesus, de levar Pedro a Jesus (p. 19) juntamente com todos os outros discípulos e leitores. Trata-se, portanto, de um comentário bastante teológico e literário em que o autor vai explorar a trama de significados e de relações entre os temas e as personagens nos diversos estratos de leitura. Isto vai fazer o leitor percorrer um cami-nho de intratextualidade e de intertextualidade sobretudo dentro do evangelho joanino, e quando necessário o autor alarga estes âmbitos ao Antigo Testamento e à literatura peri-testamentária. Precisamente aqui gostaríamos de ter visto anotadas algumas cor-respondências com o Antigo Testamento que não veem assinaladas, pois se é verdade – como o autor bem nota – que o discípulo amado (essa figura tipo de narrador) quer levar Jesus a Pedro, também é verdade que não deixa de evidenciar – apesar do desejo positivo de o levar até à vida de Jesus com o Pai e que “o gesto de Jesus lavar os pés aos discípulos tem como principal objetivo introduzi-los no domínio do encontro, ou seja, na sua vida no Pai” (p. 193) – que a tradição joanina não está totalmente imune à tradição sinóptica nem à fonte Q, pois na Última Ceia Jesus não deixa de avisar Pedro em 13,8 que “se não te lavar não terás parte comigo”. Assim se compreende a proximidade à paixão sinóptica com as negações de Pedro em Jo 18,15-18.25-27. O discípulo amado fala deste “encontro”, fala por outras palavas do “desejo de os atrair à sua glória como Filho de Deus” (p. 193), também pelas palavras da tradição levítica da herança deixada aos filhos de Aarão (cf. Num 18,20; Dt 33,9-11), palavras essas que não são apresenta-das como contexto do lava-pés e que enriqueceriam o desejo do discípulo amado em ver esse encontro, essa partilha de vida realizada. Na verdade, no lava-pés Pedro é confrontado com uma decisão: ser sacerdote ou se é assim lavando os pés (servindo) ou não é. Ou se deixa ordenar, confirmar, ou não. Pedro não percebe que a confirma-ção/ordenação/serviço é algo muito sério. É com a linguagem levítica que o discípulo amado dá testemunho do serviço. Pedro esquece-se do Sl 98,6 em que “Moisés e Aarão estão entre os seus sacerdotes”. Que significa isso? Qual o lugar do sacerdócio e dos sacerdotes? Era junto do templo, junto de Javé; essa era a sua porção, a sua parte. Ora, de acordo com Dt 33,9-11, Levi não tinha outra herança a não ser a de Deus (não tinha outra “meros”, outra “parte”): “... eles observam a tua palavra e guardam a tua aliança, eles ensinam as tuas normas a Jacob e a tua lei a Israel …”. No quadro da p. 193 é verdade que a temática do serviço e do servo não são apresentados como modelos, e que o Jesus joanino é claro quando chama amigos aos discípulos em Jo 15,15. Mas no versículo anterior avisa que “vós só sois meus amigos se fizerdes o que eu vos ordeno”. Se Pedro não fizer isso não terá parte nem com Jesus nem com o discípulo amado. Jesus lança a Pedro o aviso de Javé à tradição aarónica de Num 18,20 na primeira pessoa de “Eu sou a tua parte”: “Javé disse a Aarão: não recebereis nenhuma herança, nem parte

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na terra. Para Ti, Eu sou a tua parte e a tua herança no meio dos filhos de Israel. Aos filhos de Levi deu como herança todo o dízimo.” Já a tradição deutero-paulina tinha recu-perado esta herança, esta porção, esta participação, esta parte em Ef 1,11 ao definir--nos feitos sua herança: “em Cristo recebemos a nossa parte da herança segundo o projeto daquele que tudo conduz de acordo com a sua vontade: fomos predestinados a ser o louvor da sua glória …” Diríamos que no lava-pés Pedro está preocupado com as rubricas a vermelho da Instrução Geral do Missal Romano. Jesus está preocupado com outra coisa, em tentar fazer Pedro participante da sua vida de amor ao Pai e ao mundo para amar o Pai e o mundo. Ora, Pedro não quer que Jesus o faça tomar parte consigo na vida do Pai, Pedro não quer tomar parte, não quer nenhuma herança, não quer que Jesus organize a vida de Pedro, Pedro não quer organizar a vida, não quer ordenar a sua vida para Jesus. Pedro não quer ser ordenado, não quer ser confirmado. Jesus confronta-o de um modo muito direto e incisivo: se não deixares que Eu te ordene, não terás parte comigo, não participarás na minha vida do Pai; se não deixares que Eu te faça fazer o que Eu te ordeno, não terás direito a qualquer herança; se não quiseres ficar junto de Mim, não terás participação na minha vida com o Pai. A visão crítica dos discípulos (que já lá vem desde os sinópticos), afinal, não está tão longínqua da redação joanina, pois o despiste dos discípulos já vem lá de trás do texto evangélico de Jo 4,8 onde os discípulos foram “comprar”. Só reaparecerão em 4,27 quando acabam de chegar de “comprar” do supermercado, usando um verbo que nunca surge na boca de Jesus. Mal O veem a falar com ela, interrompem a conversa para perguntar “de que falas com ela?”. Nada quise-ram saber da boca de Jesus, quisequise-ram apenas saber em que ponto estava o big brother até em Jo 4,31 querem ser eles a mandar em Jesus impondo-Lhe um “Rabi come”, pois o intuito era tapar a boca para não libertar a boca. Da boca de Jesus não queriam ouvir nada. Em Jo 4,32 os discípulos estão completamente despistados. Não querem saber nada de nada. Só querem é falar e comprar.

Acrescentaria apenas mais duas notas para enriquecer o comentário. Na atenção que o autor dedica à aproximação literária ao texto do evangelho, ao contrapor a sama-ritana a Nicodemus na p. 81, seria útil acrescentar as seis vezes que a samasama-ritana fala e as sete que Jesus responde, bem como a exploração que o discípulo amado faz de toda a simbólica da incompletude do número 6 (que aliás perdurará no Apocalipse de modo ainda mais significativo: cf. Ex 14; Jos 6,6-20; Jz 14,16-17; Ez 9).

Finalmente, além das leituras apresentadas sobre a simbologia dos 153 peixes pescados pelos discípulos do lado direito da barca (p. 276), falta indicar que o tempo e a simbólica numérica do discípulo amado remetem também para a unidade da pleni-tude (indicado no carácter exponencial do número cem) que acontece durante os dias da Páscoa, durante os cinquenta dias até à festa das Semanas (raiz da nossa festa do Pentecostes), e que tudo isso é proporcionado pelo nosso Deus triunitário (pelo Pai, pelo Filho e pelo Espírito Santo), proporcionando assim que se mantenha o ritmo a que o discípulo amado quer levar o leitor: ler a história da salvação como um projeto de unidade onde Deus semeia, outros operam, e são os discípulos agora neste tempo a receber em plenitude dessa sementeira de unidade.

É bom encontrarmos um comentário assim, que se centra no texto bíblico tal como ele está e tal como chegou até nós, no caso o evangelho de S. João que teve um período de incubação de cerca de sessenta anos. Por vezes, a exegese bíblica também se perde no contexto, nos intertextos e nos pretextos a tal ponto que se esquece do texto e passa a considerar o texto já não o texto mas precisamente esses pretextos, contextos

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ou intertextos. Há que dar a mão à palmatória e reconhecer que a fronteira entre a exe-gese e eiseexe-gese ou o jornalismo barato (entenda-se na pior aceção da expressão) nem sempre é mantida. Bernardo d’Almeida conseguiu evitar essa confusão tão fácil e tão frequente pela acribia com que aborda e conhece o texto joanino. Congratulamo-nos com esta obra, com este grande comentário pedagógica e cientificamente estruturado. Por isso, aguardamos novos contributos do autor que aqui tão bem nos ajuda a entrar na riqueza do texto joanino, e que com esta obra ajuda a prestigiar a jovem editora da Católica Porto.

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BRANDÃO, Emanuel – Poesia e Limite: Uma leitura teológica da obra de

Sophia de Mello Breyner. Pref. Arnaldo de Pinho. Leça da Palmeira: Letras

& Coisas, 2012. 244 p.

Primo. É difícil escrever sobre a poesia de Sophia de Mello Breyner. Invariavelmente

se vai parar a alguma redundância temática que sublinha a presença dos mitos da Antiguidade, dos símbolos marítimos e florais, a aparente ausência de historicidade, ou a lembrança recorrente de uma unidade perdida, relacionando-as com as questões mais formais da transparência ou opacidade da linguagem, da objetividade possível ou subjetividade inevitável da arte. Esta obra de Emanuel Brandão sabe-o bem. O seu ponto de partida (cf. Parte I) é um ponto da situação, “um percurso pelas intuições figu-rativas de Sophia”: a linguagem, “entre a metáfora e o símbolo” (Cap. I), “a tensão entre a recusa e a invocação”, centrada num primeiro retrato do sujeito poético (Cap. II), “a tensão entre a rutura e a instauração”, as ações de encontro e desencontro (Cap. III), “a tensão entre a espessura do mal e a ‘imaginária linha’”, no contexto espacial da cidade ou da sociedade/polis (Cap. IV), “a tensão entre o tempo e a eternidade”, no contexto histórico/ temporal da escrita (de que se ocupa no Cap. V).

Secundo. É difícil escrever sobre a dimensão teológica da obra de Sophia de Mello

Breyner. Logo se tem de reconhecer que Sophia de Mello Breyner teme invocar o santo nome de Deus em vão (escreve “sem jamais usar o santo nome de Deus em vão”, como sublinhava o Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes). Sophia raramente O nomeia e, quando aparecem as maiúsculas e as imagens que o indiciam é para nele se ver a aparente invisibilidade do seu mistério, confundindo-se Deus com a transcendência da Arte, da Poesia. Esta obra de Emanuel Brandão assume-o. A Parte II (“Uma poesia dos confins”) é aquela em que se analisa mais demoradamente uma perspetiva teológica. A Parte I terminara, aliás, com um capítulo (o VI) sobre o conceito de “limite” e “con-fim”, na perceção da morte e da ressurreição. A segunda parte do livro divide-se entre o levantamento das “Figurações gregas e cristãs da idealização” (Cap. I), o efeito do poder na formação da consciência (Cap. II), a formulação da Liberdade, Esperança e Ressurreição, que se tornam princípios de uma arte poética vivida (Cap. III), os nomes e silêncios de um “Deus do limite” (Cap. IV), e a questão final sobre a dicotomia entre uma “Sophia grega” e uma “Sophia cristã” (Cap. V). Mas o autor sabe que escolheu fazer uma leitura teológica sobre um escritor em que é evidente “uma espécie de desconstru-ção de toda e qualquer tentativa de nomear o sagrado” (2012: 222).

Tertio. É difícil que um leitor especializado aceite, em consciência, qualquer juízo

crítico fora da área da sua especialidade. Ora, nos interstícios do trabalho hermenêu-tico, entre a crítica literária e a interpretação religiosa, parecerão sempre exageradas as lacunas teológicas que um teólogo encontra num texto literário, ou as lacunas literárias que um teórico da literatura encontra numa leitura teológica. Emanuel Brandão, sacer-dote da diocese do Porto (Valadares), teve certamente consciência desse risco, ao escolher um tema tão pouco comum em Teologia Fundamental, e depois também ao definir o título, Poesia e Limite, inspirado no conceito filosófico de E. Trías (cf. Epígrafe da Parte I). Em vão o prefácio de Arnaldo de Pinho nos adverte para o facto de ser uma “obra de hermenêutica teológica e não de exegese literária” (2012: 7). No limite, o argumento certeiro bem pode servir para desvalorizar estas considerações, feitas por

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alguém que não tem qualquer autoridade teológica, sobre a edição de uma tese de doutoramento centrada na leitura teológica, apresentada e defendida na Faculdade de Teologia, da Universidade Católica do Porto.

No entanto, talvez seja devido a estas três dificuldades que se encontram três boas razões para falar deste trabalho académico de Emanuel Brandão. Sobretudo nos dias de hoje, quando voltam a ser consideradas as estreitas ligações entre Literatura/ Arte e Ética. Recorda-nos a obra de E. Brandão que a consciência (estética, histórica, filosófica, ou teológica) se desenvolve na medida em que se abre a três elementos de rutura: o deslumbramento, a injustiça e a morte. Ilustra-o com a evolução da poesia de Sophia de Mello Breyner e com as leituras sobrepostas dos seus críticos, sensíveis tam-bém a diferentes contextos. Em qualquer caso, a compreensão da poesia de Sophia de Mello Breyner não nos parece ser nunca possível se nos ativermos aos temas, símbolos e formatos profanos, ou se nela separarmos as estratégias laicas das funções iniciáticas da Arte. E também se não reconhecermos uma raiz comum da hermenêutica religiosa e da exegese literária. Não só porque a oposição mais comum que se estabelece entre Hermenêutica e Exegese não é a que aqui se pode traçar entre a Theoria e a Praxis: as oposições entre a prática livre e o dogmatismo da teoria, entre a genialidade e a disciplina, o impulso emotivo e a contensão da escrita, a amoralidade da Literatura ou a sua instrumentalização ideológica, política ou religiosa, são relativamente recentes nas poéticas da História da Literatura e foram em grande parte alimentadas por uma retórica romântica (implícita, dissimulada) que se definia por contraposição à explícita retórica clássica. A “Ars”/Arte é, no seu início, tradução da “Techné”/ Técnica, não se distinguindo, numa como noutra, o ato do resultado do ato. “Etimologicamente”, dizer é fazer, muito antes de J. L. Austin ter (d)escrito “how to do things with words” ou de Heidegger ter falado dos objetos linguísticos (aqueles que não se podem separar do instrumento de observação dos objetos, a linguagem)… Mas ainda porque o lexema que designa a instituição da Poesia (cf. “Poesis”, criação, ou “Litteratura”, o documento manuscrito ou impresso, em letra) tem uma história longa e complexa, onde se dis-tinguem mal (na raiz e nas extremidades dos seus ramos) as intenções ditas “estéti-cas”, centradas no sentimento da beleza (“aisthesis”), das intenções ditas “teológi“estéti-cas”, ou seja, sumariamente, as do conhecimento (“-logos”) do divino (“teo-”). Numa das discussões setecentistas sobre o mais remoto género literário, muitos académicos havia que identificavam a lírica, e especificamente o hino, como manifestação do des-lumbramento do mundo. Questão menor, sem dúvida. Mas há em todo o caso, para melhor compreender a poesia de Sophia de Mello Breyner, de ser sensível a uma “arte poética” que extravasa as palavras: como vai salientando Emanuel Brandão, a arte é, para Sophia, uma forma de ver e de estar, muito mais do que uma forma específica de escrever, ou descrever. E nem sequer para Sophia a arte da escrita se pode identificar com o manuscrito ou o texto impresso, já que ela própria reconhece (em entrevista ao

Expresso, a 15 de julho de 1990) ter sido “muito marcada pelo facto de ter começado

por ouvir poemas antes de os ler”. Por ambas as razões, o corpo do Poema é sobretudo som, uma ausência de matéria táctil, mas também, antes do mais, é produto de um corpo, o corpo sensorial do poeta.

Talvez se deva valorizar no plano da obra um possível paralelismo entre a pri-meira e a segunda partes deste ensaio. Depois de um capítulo inicial sobre figuras retóricas (ainda que só abrangendo a metáfora e o símbolo, na Parte I) e as “figurações”

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(o levantamento das alusões a figuras míticas e históricas, na Parte II), se segue um conjunto de capítulos que poderiam talvez ser lidos em paralelo sobre a focalização dos vários elementos da narrativa (o sujeito, a ação, o tempo, o espaço), primeiro a um nível literal (a imagem poética) e depois a um nível derivado, mais abstrato e de carác-ter assumidamente transcendental (o da leitura teológica). A pista para tal leitura é-nos aliás dada logo pelo prefácio de Arnaldo de Pinho, quando nos remete para uma cita-ção da obra de Eugénio Trías, La razon fronteiriza, inscrita numa filosofia de “expres-são limítrofe”, “por vocação ternária”, “o desmentido radical de todo o binarismo (ou de toda a filosofia dualista” (2012: 9). A citação do prefácio antecipa com grande utilidade as citações de E. Trías, colocadas pelo autor, Emanuel Brandão, ao longo da obra, mas valorizadas sobretudo no início da Parte II (2012: 119). A simplicidade da estrutura binária da obra engana, pois, no sentido em que a obra se quer ternária “por vocação”, desejando então provocar no leitor um “tertium genus”: o que supera as dicotomias entre o literário e o teológico, o literal e o abstrato, a prática e a teoria, a sensibilidade lírica e a sensibilidade social, ou a leitura dos clássicos e a leitura dos românticos, ou o carácter disjuntivo do paradigma pagão e do paradigma cristão, resolvidas sempre por tensões, cordas esticadas até a um limite de leitura possível. Através do discurso crítico, visa-se (e certamente se obtém) a representação (“mimesis”) do processo de representação da poesia de Sophia de Mello Breyner: um processo em espiral, em que o ponto de partida se antevê no ponto de chegada, sem todavia coincidir com ele. Não uma dissidência, não uma coincidência, mas uma “não coincidência” entre tempos e direções do discurso (cf. 2012: 16 e 15). Apesar de alguma circularidade que existe no plano, não se deve acabar este livro no mesmo ponto em que o iniciámos. Ele deve previsivelmente esticar o leitor, revolvê-lo.

Estranha-se por isso que este estudo não tenha, antes de qualquer outra con-sideração, pelo menos um parágrafo sobre a definição do conceito de “estética” (“aisthesis”), não como disciplina ou área do saber académico, a Estética, mas como expressão de uma sensibilidade artística, entre a sensação e o sentimento, o que vai da perceção à linguagem do corpo, da voz. Entre a página 8 e a página 20, a palavra “esté-tica” (ou “aisthesis”) aparece pelo menos com quatro traduções diferentes: “distensão”, “perceção”, “tensão figurativa”, sentimento do belo, dimensão artística, no seu sentido mais formal, por vezes em oposição/pertinência com uma dimensão filosófica ou ética. Parece-nos mais interessante a que poderia ligar a “aisthesis”/estética aos movimen-tos respiratórios da memória, entre o Tempo e o Discurso, “distentio” e” intentio”, já valorizada por Paul Ricoeur a partir da leitura das Confissões de Santo Agostinho, em

Temps et récit. O mesmo sucede com o conceito de “narrativa”, demasiado ambíguo,

que muito raramente designa aqui um “modo literário” ou um “relato ficcional”, e as mais das vezes (quando não se confunde com o “récit” ou “discurso verbal”) se aplica à construção de um “processo iniciático” presente na poesia lírica de Sophia: talvez se devesse clarificar o que não é óbvio. A dimensão utópica da poesia de Sophia de Mello Breyner sem dúvida podia ser mais desenvolvida à luz do Génesis e do Apocalipse, até porque a cidade (nem sempre disfórica, como reconhece o autor) não se opõe à Natureza livre, espaço eufórico. Mas sentimos sobretudo a falta de um capítulo, alguns parágrafos que fossem, sobre uma área do saber académico que é a Hermenêutica, ainda que servissem somente para situar os leitores mais desprevenidos dos aspetos intersticiais deste estudo, até porque seria fácil ao autor argumentar aí quer sobre a pertinência metodológica da sua tese, quer sobre a importância da sua temática. A

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Hermenêutica (a velha e a nova) emergiu essencialmente da tradução e interpretação bíblica e só depois, como disciplina fundante, se alargou aos curricula dos estudos filosóficos e deles aos literários, num processo em que o século XVIII foi nuclear. A Hermenêutica promove a convergência entre os géneros literários e os não literários: do salmo ao provérbio, do hino à parábola, do verso ao versículo, da letra ao espírito, ou vice-versa, está patente a heterogeneidade da unidade. Seria útil revisitar, a este propósito, os textos dos Modernistas, no início do século XX, que tantas vezes incidiram sobre a identidade da interpretação teológica e da interpretação literária. Mas também alguns textos hermenêuticos publicados no contexto do Vaticano II, que marcaram a época da escrita de Sophia. Ou (mas isto caso a argumentação se centrasse nas bibliografias literárias) os textos de Teoria da Literatura que se apoiam no paralelismo entre a linguagem literária e a linguagem religiosa (v.g., Iuri Lotman, Hjelmslev), ambos somente legíveis enquanto sistemas em que a forma (expressão) modeliza o conteúdo. Sugeriríamos também um interessante capítulo de Umberto Eco sobre o símbolo, em

Sobre Literatura, que vai aliás no sentido adotado pelo autor na distinção entre

metá-fora e símbolo, no capítulo I da primeira parte, somente apoiada em Ricoeur. Quanto à interpretação etimológica da Razão/“Ratio”, da Técnica/“Techné”, da Criação/“Poesis”, do Discurso/“Logos”, do Espanto, Assombro, Deslumbramento/“Pathos” como começo de quase tudo, da Filosofia à Poesia, se poderiam também aproveitar muitas pistas de Heidegger. Mereceria talvez, a este propósito, uma maior valorização a muito antiga sinonímia entre Beleza e Bondade, já de resto tratada por Jorge Cunha, num artigo citado na Bibliografia. A consideração da consciência histórica de Sophia se poderia também reler com Giambattista Vico, sobretudo na consideração das figurações míti-cas e/ou histórimíti-cas. Ou então, de modo muito diverso, com Gadamer, opondo-a, como este autor, a uma reduzida “consciência estética” da modernidade, quando a arte se estuda preferencialmente desvinculada da sua função moral, ou dos seus efeitos éticos. Ressalve-se, no entanto, que muitas das leituras necessárias para escrever tal capítulo ou parágrafos foram feitas por Emanuel Brandão. Efetivamente, a sua bibliografia com-preende um bom número de autores que refletem sobre o pensamento hermenêutico e a linguagem simbólica: Heidegger, Gadamer, eventualmente Ricoeur, Eco. Ou, ainda que por anacronismo, Platão, Aristóteles, Santo Agostinho.

Restam-nos algumas reflexões sobre esta publicação de um trabalho académico, numa época em que são já raras estas edições e as editoras que nela apostam, e em que já muitas instituições académicas impõem aos seus alunos de mestrado e douto-ramento a publicação online da versão que é submetida ao júri. A edição em suporte de papel tem (ainda?) um público-alvo muito específico, dentro e fora da academia, não coincidente em absoluto com o público-alvo das edições online. Saúda-se pois desde já a editora, o autor, o cuidado que certamente por ambos foi posto no aspeto gráfico, desde logo na capa, simples e impressiva: uma composição fotográfica de José Miguel S. Reis que junta a estátua de Sophia no Jardim Botânico do Porto, na casa de seus avós, e uma camélia, caída ficcionalmente das japoneiras por que pas-sam os leitores-visitantes. A capa fala desde logo daquilo que lá está dentro: a obra de Emanuel Brandão é a de um leitor que se dei xou entusiasmar pelo seu trabalho, sem se perder no labirinto possível de comentários. Nem sempre concordamos com algumas ausências de citações da bibliografia passiva: a bibliografia final é largamente superior à bibliografia citada, as notas de rodapé têm quase sempre só a indicação básica (autor, título, página). Excetuam-se as notas que remetem para os textos de João

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Paulo II e Joseph Ratzinger/ Bento XVI, a que se juntam pontualmente algumas citações de Queiruga e Kasper, sem dúvida para marcar a atualidade da leitura teológica que é proposta na tese. O mesmo laconismo não sucede com as citações da obra de Sophia. Dir-se-ia até que elas, frequentes e longas, são fruto desse amor que tomou ao objeto: nota-se que Emanuel Brandão hesita em cortar versos, que não quer poupar nunca o leitor à hipótese de ler Sophia, ainda que seja numa glosa crítica. Faz pois das citações longas, que podiam ser tomadas por defeito, uma insuspeitada qualidade. Talvez res-ponda aos anseios de Arnaldo de Pinho, que nos lembra um leitor possível, talvez ideal: “quem conheceu minimamente a poesia de Sophia e a souber ler com a frescura que a experiência do real dá e que não raro o excesso de comentário, que não volta ao texto, apaga” (2012: 7). Há todavia que ponderar, numa versão em papel, a mera reprodução da versão que decorre de um trabalho académico. A tese encontra-se invariavelmente armadilhada pelo seu autor para satisfazer um público a curto prazo: um júri especia-lizado, que age coletivamente, institucionalmente, e cujo número poucas vezes ultra-passa a dezena. Um livro, para além da sua distribuição entre professores e alunos, deve imaginar um público mais vasto, de espaços e tempos mais latos que o momento da defesa de uma tese. Neste caso, um público que nem sempre leu a obra de Sophia, mas que menos provavelmente ainda conhece a sua bibliografia passiva. Ora muito útil se torna, por todas as razões e para todos os públicos, v.g., a) rever algumas gralhas (de pontuação nomeadamente), pese embora o facto de serem aves que dificilmente se apanham, quando os olhos procuram outras coisas; b) referir em nota pelo menos algumas passagens da bibliografia passiva, diversificando-se as fontes da bibliografia passiva e evitando-se por regra os críticos que servem de fonte às fontes; b) ganhar alguma fluência no discurso, libertando-se o autor do medo de ser julgado, do medo de não dizer tudo, de não citar tudo, de não agradar a todos: sobretudo nos primeiros capítulos deste livro, se encontram frases demasiado longas que contêm mais de três orações intercaladas, nem sempre com elementos oportunos; c) libertar-se da neces-sidade de concluir amiúde, no final das partes, dos capítulos, ou dos parágrafos, pois concluir com frequência, sobretudo nestas matérias, pode tornar o saber redutor; d) e, sobretudo se o tempo mais lento da edição em papel o permitir, ir atualizando biblio-grafia ativa e passiva. Refira-se por exemplo a edição da Obra Poética num único tomo, entretanto publicada pela Editora Caminho: tem a vantagem de remeter o leitor para alguns poemas dispersos com interesse para o tema do trabalho e que nem sempre se podem reler na fonte: não só a “Casa de Deus” e o soneto sobre “D. António Ferreira Gomes” (aqui ainda referido numa edição rara da Multinova), mas também o poema da autora a São Francisco de Assis, “Poeta do Redentor”, o que começa “Cada manhã o alvoroço da luz”. E ainda aquele que escreveu sobre uma frase de Ponge referida por Sophia na já referida entrevista ao Expresso, de 1990 (2012: 12), “Como esquecida voz de um amor muito antigo”. O trabalho do crítico não acaba. Ainda que Emanuel Brandão tenha muita razão quando afirma no final deste livro: “Todos chegam sempre tarde demais…” (2012: 230). E talvez por ter razão tudo isto não faça muita falta para bem apreciar o valor deste trabalho.

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SILVA, José Nuno Ferreira da – A morte e o morrer entre o deslugar e o

lugar: Precedência da antropologia para uma ética da hospitalidade e

cuidados paliativos. Porto: Afrontamento, 2012, 480 p. Antropologia;17.

Já lá vão doze anos, decorria o ano 2000, que o Capelão do então Hospital de São João, o Padre José Nuno, percebeu que alguma coisa mais, de bem e de bom, poderia fazer-se no nosso Hospital. Reuniu, para isso, à volta da mesma mesa represen-tantes da Direção Clínica, Direção de Enfermagem, Serviço Religioso, Serviço Social, Departamento de Educação Permanente, Comissão de Humanização, Comissão de Ética e Comissão de Qualidade e, com todos, construiu um Grupo de Trabalho que, então, se reunia periodicamente em torno de uma temática: “Ao encontro da identidade espiritual do doente”!

Relevando a espiritualidade como uma dimensão que, com outras e na sua pró-pria especificidade, confere ao Homem uma real identidade, este Grupo de Trabalho, agora designado GTAEIED (Grupo de Trabalho Ao Encontro da Identidade Espiritual do Doente), tomou nos seus ombros, como Missão própria, a tarefa de contribuir para que na consciência dos profissionais de saúde despertasse esta visão integral do Homem, no qual desagua certamente o que, sofredor, habita o nosso hospital.

Realizou este GTAEIED, na Aula Magna da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, desde então, quatro processos de profunda reflexão: “Ao encon-tro da identidade espiritual do doente”, “Nós e o morrer no Hospital” (com a participa-ção de Marie de Hennezel), mais tarde, “Cuidados paliativos: a exigência de um encon-tro”, onde se abordou a medicina de acompanhamento e, finalmente, “Humanizar(-se): um compromisso (pessoal) de todos!”, propondo à reflexão dos profissionais a impor-tância da humanização neste sector da saúde.

Estava lançada uma dinâmica que, nos diversos matizes que viria a adotar, visava comprometer indelevelmente profissionais e a própria instituição numa renovação de processos, metodologias e práticas, que pudesse cunhar o agir desta grande Casa com a chancela da Humanização.

O Padre José Nuno foi indiscutivelmente pedra angular nesta construção. Construção que abriria portas ao Serviço de Humanização e, logo, ao Serviço de Cuidados Paliativos, Serviços que o Conselho de Administração (CA) do Hospital de S. João entendeu alocar à sua organização como peças indispensáveis a uma dinâmica assistencial humanamente mais vertebrada.

As questões do morrer humano, não da morte, esse acontecimento biológico universal e, por isso, vulgar, que todos, profissionais e até estudantes, tão bem conhe-cemos, mas do morrer, tempo biográfico singular na história de cada homem e que, profissionais e até estudantes, não conhecemos tão bem, as questões do morrer, dizia, mereceram grada atenção a estes Serviços, bem como à Comissão de Ética para a Saúde desta instituição. Elaborou-se um Boletim, “Nós e o morrer no Hospital”, onde pontifica a emergência de um agir profissional e institucional cuidadoso e específico para este tempo de morrer, que o Hospital, de sempre, conhecia, mas ao qual não tinha ainda dedicado o olhar específico que lhe era devido. E propôs-se a adoção ins-titucional, que foi sancionada pelo CA do Hospital, de uma prática específica, huma-nizada, na aproximação dos profissionais a quantos vivem no hospital o seu tempo

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de morrer. É bom recordarmos que, tratando seguramente muito bem os seus mori-bundos desde o início da sua existência, o Hospital o fazia suportado na consciência humanizadora de tantos dos seus profissionais, não como exigência assistencial por si mesmo assumida de forma institucional. Foram necessários cinquenta anos para que, em tempo de aleluia, os Cuidados Paliativos vissem no nosso hospital luz definitiva a ombrear com o bem alicerçado deslumbramento que a medicina de ponta tem, de há muito, garantido.

Surge neste contexto a Tese de Doutoramento do Padre José Nuno, que o mesmo justifica como “ato de obediência à Vida” – não como meta em si nem para si mesmo, mas como a própria Vida que, no vencimento deste patamar, compreende e afirma o seu próprio sentido.

O percurso desta tese, cujo “Oriente” foi subtilmente suportado pelos Professores Walter Osswald e Arnaldo de Pinho, inicia-se no reconhecimento da transferência de um morrer doméstico para um morrer institucionalizado. A dura constatação de uma realidade que assiste, em apenas três décadas, à deslocação do leito onde se morre de casa para o hospital, de um morrer com identidade social para um morrer anódino, desidentificado, porventura associal, perturbou a consciência deste Capelão. É por tal que, de seguida, aprofunda medularmente o inovador conceito de deslugarização da morte, numa proposta de vinculação à “re”lugarização do morrer, assim experienciado. Intuindo a deslugarização sociocultural como iminente significado desta deslugariza-ção da morte, o Padre José Nuno alvitra para este deslugar a ousadia de tornar-se de novo “lugar”, um ainda lugar, institucional embora, mas capaz de, humanizado, poder ser condignamente oferecido a cada um de quantos, aqui, conhecerão o seu morrer.

Nesta viagem académica, reclama a indispensabilidade de uma comunhão inte-gradora das ciências humanas – da antropologia à bioética – para a compreensão de uma dinâmica que olha o morrer dos homens como realidade incontornável que, espraiando-se em cada um de todos, reclama de todos um indeclinável compromisso para com cada um: pessoas e instituição. Num trajeto que traz à colação o pensamento de tantos filósofos versando sobre esta temática, o pensamento do Padre José Nuno atira-nos ainda, de forma “violenta”, para um desafio inadiável, pessoal e institucional: “não se serve bem o homem que se concebe mal”. Suportado numa densa e intensa, por tal fecunda e fecundante, vida pastoral de capelão hospitalar, disserta por fim sobre esse manto diáfano, humano – os cuidados paliativos –, hoje amarra segura de uma assistência integradora que permitirá desaguar num “cuidar total” como a única res-posta possível ao repto de uma “dor total”, e que cada um experimenta nesta etapa singular da vida.

Ninguém ficará indiferente a esta lapidar provocação que o Padre José Nuno nos faz e que não é excessivo retomar: “Não se serve bem o homem que se concebe mal.” Com o cuidado de não macular esta asserção, permito-me respigá-la para afirmar que “só se pensa bem o morrer se se concebe bem o viver”. Desafio maior para a formação dos estudantes e dos profissionais de saúde, cuja resposta reclama reflexão séria a que esta obra dará inegável e qualificado suporte. Se concebermos bem este viver que impregna os humanos, saberemos denegar a eutanásia como a distanásia, recusare-mos a obstinação terapêutica como prática assistencial, dispensarerecusare-mos as diretivas antecipadas da vontade como os testamentos vitais, porque aprenderemos, todos, pro-fissionais e outros atores da saúde, a acolher o morrer como tempo de intensidade, em cuja medula, no dizer de Daniel Faria, o grão de trigo pode rebentar e germinar.

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Neste dia festivo que se adentra no arco da vida e que nos balanceia por entre o

deslugar e o lugar do morrer a que o Padre José Nuno nos convida a refle tir, não me

posso permitir terminar sem um arremesso de esperança para os Cuidados Paliativos Pediátricos que nos é, também, devido dedicar às crianças no seu tempo de morrer. Oferecemos-lhes já, hoje, o melhor para o seu nascer. Aprontamo-nos para lhes ofe-recer o melhor para o seu viver, no seu percurso de doença. De que esperamos para lhes oferecer o melhor para o seu morrer? Igualando-nos no tempo de nascer, não nos desigualemos no tempo de morrer! Seremos apenas merecedores desta Tese se não nos dispensarmos de responder condignamente a este acutilante repto.

Somos da espécie humana desde o ovo que nos fundou. Antropologicamente, somos um ser para a morte, assim no-lo diz Heidegger. Mas, para além desta pre-cedência antropológica e numa oportuna concomitância teológica e filosófica, onde a ética mergulha na sua identidade reflexiva, somos muito mais que um ser para a morte. Como lapidarmente no-lo recorda Daniel Serrão, somos inequivocamente um ser até à morte.

Por este Ser que assim se nos apresenta, inteiramente digno até ao fim e de quem, subscrevendo Marie de Hennezel, não nos despedimos, um grande obrigado ao Padre José Nuno por esta magnífica obra que nos legou.

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GOTIA, Oania – L’Amore e il suo fascínio: Belezza e castità nella

prospet-tiva di San Tommaso D’Aquino. Siena: Cantagalli, 2011, 490 p. Studi sulla

persona e la famiglia – Tesi; 6.

Esta é uma excelente obra explorando uma temática não muito frequente nos estu-diosos do pensamento de S. Tomás, o amor e o seu (divino) fascínio, na ótica de duas noções/valor também raramente colocadas e estudadas a par no âmbito dos trabalhos sobre o aquinata: a Beleza e a Castidade.

A qualidade da obra mereceu-lhe o primeiro prémio no concurso anual Veritas

et Amor 2011, organizado pelo Círculo San Tommaso d’Aquino, uma chancela que é

garantia de incontestável valor.

O texto está organizado em três partes e sete capítulos:

• Parte I – A Beleza da Temperança? Percurso nas fontes e no contexto teoló-gico de S. Tomás. Cap. 1. A beleza da temperança nas fontes da Suma Teológica; Cap. 2. O contexto medieval sobre o tema da beleza da temperança.

• Parte II – Para uma integração da beleza na compreensão do agir tempe-rante. Cap. 3. O progressivo aprofundamento das fontes da beleza da temperança nos comentários de S. Tomás; Cap. 4. A beleza da temperança na Suma Teológica.

• Parte III – A Castidade, virtude do amor belo. Cap. V. O evento do amor, a beleza de um momento. Cap. VI. Quando o amor se torna maduro: a beleza do amor no tempo; Cap. VII. A beleza do amor radicado no eterno.

Antes de mais será de relevar a bibliografia exaustiva e o criterioso detalhado crítico, mas um dos aspetos que mais sobressai é o facto de toda a especulação se fazer numa atenção detalhada às fontes de S. Tomás no que concerne ao tema espe-cífico da obra, permitindo uma revisitação do pensamento de autores como Platão, Aristóteles, neoplatónicos, Cícero, Sto. Agostinho, a Escola de Chartres e os Vitorinos, entre outros.

Será impensável em poucas páginas sintetizar tão ampla temática, no entanto, seguindo de muito perto o pensamento do autor, creio que muito do essencial consis-tiria no seguinte.

Tendo como principal referência o Comentário de S. Tomás ao De Divinis

Nominibus de Dionísio Pseudo-Areopagita, se a pessoa é amada apenas pelo prazer

e pela satisfação que oferece ao outro, então não é amada por si mesma, afirmando S. Tomás: “cum homo propter delectationem vel utilitatem amatur, non ipse secundum

se amatur, sed per accidens” (Com. De Divinis Nominibus, c. IV, lectio IX).

S. Tomás segue a ideia dionisiana de que o amor varia também em função dos sujeitos e em função e a partir do modo como se relacionam com os bens. Assim, existe uma divisão quadripartida do amor: o amor do que é inferior em relação ao que é superior (o inferior convertendo-se no superior), o amor entre iguais (já que pertencem à mesma ordem ou nível), o amor do que é superior em relação ao que é inferior (o superior providenciando pelo inferior) e, finalmente, o amor do sujeito por si mesmo (enquanto se contém a si mesmo). Esta subdivisão do amor radica na relação entre dois sujeitos: o amante e o amado, e o tipo de relação determina o modo de amar a

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partir da dignidade ontológica dos dois termos. Este tipo de divisão inspira-se clara-mente nos modelos neoplatónicos, onde a relação vertical determina o tipo de amor, mais tarde retomada por Sto. Agostinho.

Assim perspetivado, o amor implica uma grande riqueza que imprime um movi-mento afetivo: partindo do movimovi-mento do amante para o amado com a união afetiva que implica, inicia-se o movimento do amante para o amado e para o seu bem. É pois uma abertura e uma dinâmica que transcende as necessidades e que impele o sujeito a sair para fora de si. Trata-se pois de um amor extático: “Sic igitur talis amor

extasim facit, quia ponit amantem extra seipsum” (Com. De Divinis Nominibus, c. IV,

lectio IX).

O amor extático (outro modo de dizer amor oblativo) implica assim uma direção, uma ordem que se articula com o outro e o seu bem. Todavia este amor não fecha o movimento extático em si mesmo, mas conduz o amante a amar um fim ainda maior, que, em última análise, é o próprio Deus: “... ponit amantem extra se, idest ordinat

ipsum in Deum (...) quia nihil sui sibi relinquunt quin in Deum ordinet” (Com. D. N.,

c. IV, lec. IX). Assim, a ordem do amor humano só é plenamente finalizada em Deus, conservando deste modo também em plenitude a sua especificidade e a sua unicidade (p. 188 ss).

Se entre Deus e o homem se trata de um amor entre superior e inferior – no qual Deus ama criando e providenciando a sua criatura e no qual o homem encontra a sua finalidade em Deus –, o amor entre pessoas humanas é entre iguais, no sentido em que condividem a mesma natureza. Enquanto é um amor extático, oblativo, centrado no

outro, buscando o seu bem e não o interesse próprio, o amor de duas pessoas une sem

confundir nem suprimir a unicidade do outro.

Ora um tal amor que afirma e custodia a identidade do outro juntamente com o seu bem preexiste no Bem e na Beleza de Deus: “Et iterum haec virtus atribuitur rebus

creatis a Deo, qui est pulcher et bonus, propter et bonum, quod est proprium obiec-tum amoris. Nihil enim amatur, nisi secundum quod habet rationem pulchri et boni”

(Com. D. N, c. IV, lec. IX).

Pela sua origem ontológica centrada em Deus, o amor finalizado no outro é bom e belo. Mas é-o também pelo modo como concretiza essa finalidade, despojando o sujeito de si mesmo enquanto eleva e dignifica o outro.

Porque é que o amor finalizado no outro é belo?

A excelência do amor manifesta-se em todas as dimensões da pessoa, incluindo a corporal. A pessoa virtuosa saberá dirigir o interesse pelos bens sensuais do amado para a pessoa em si mesma – perspetivada na sua bondade pessoal e global – e não fará desses bens sensuais um fim enquanto tal, tanto mais que a virtude confere luz e ordem ao amor interpessoal. Este ordenamento dos prazeres e da atração sexual é o objeto e objetivo da virtude da castidade, enquanto expressão perfetiva da temperança. A castidade constitui a virtude que assume a corporeidade e sua forma de se exprimir, introduzindo-a na dinâmica do amor interpessoal, tornando-a transparente e expressiva da própria pessoa e do seu amor.

Só através desta integração dos afetos a pessoa conseguirá amar o outro na sua totalidade, sem se limitar a um dos valores corporais e emotivos como um fim em si mesmo. A castidade elimina a fragmentação afetiva que ameaça o amor entre homem e mulher desde o início do seu amor, já que em si contribui para uma dinâmica harmó-nica do amor (p. 358 ss).

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A beleza do amor que reside em colocar a pessoa do outro como um fim em si mesmo articula-se assim com a beleza da castidade radicada na continuidade da vida do amor; a beleza da castidade manifesta-se assim na beleza de um sujeito capaz de se confrontar com uma vida e não apenas um simples instante. Enquanto virtude, a castidade torna belo o movimento da vida, assinalado pela contingência do agir, ou mesmo pelo construir a ação contingente. A castidade torna assim possível qualquer coisa de singular: reagir sempre bem, ser atraído para o verdadeiro bem e não apenas para um singular momento. Aqui reside o centro da sua também singular e antropoló-gica beleza.

Esta obra, profunda mas transparente, vale não só pelo modo elevado como trata um tema tão complexo, mas também porque, no tempo conturbado e confuso que vive-mos, se afirma como um excelente guia orientador das relações interpessoais à luz da mensagem evangélica.

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SORGE, Valeria; GIUSTINIANI, Pasquale – Tommaso D’Aquino e la

Polemica com gli averroisti. Napoli: Verbum Ferens, 2011, 76 p. Quaderni

di Filosofi a: Nuova Serie; 10.

Este livro é uma publicação da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional (Secção S. Tomás de Aquino – Nápoles). Os dois autores, Valeria Sorge e Pasquale Giustiniani, são docentes; a primeira, da cadeira de História da Filosofia Medieval da Universidade Frederico II de Nápoles, e o segundo, da cadeira de Filosofia Teorética na Pontifícia Faculdade da Itália Meridional. Na primeira parte, Valeria Sorge apre-senta-nos um estudo resultante da lectio Thomae pronunciada em 7 de maio de 2009, na Aula Magna da Secção S. Tomás de Aquino, subordinada ao tema: «A crítica de Tomás de Aquino à antropologia averroística». A autora expõe com mestria e clareza o percurso incontestável da polémica antiaverroísta levada a cabo por Tomás de Aquino, ao longo de toda a sua obra, que ela qualifica como um “exercício simultaneamente pontual e sistemático”. Este debate intelectual, filosófico e teológico, é uma tarefa que deverá ser compreendida em contiguidade com o ‘itinerário’ de Sigério de Brabante, que é um dos maiores representantes do averroísmo latino (p. 7). Para isso, a autora propõe-se em primeiro lugar, dar a definição do quadro teórico no qual se justifica a génese histórica do averroísmo latino, e a partir daqui, perceber a história pessoal e mesmo dramática de Sigério; em segundo lugar definir de fome sintética os núcleos teóricos que Tomás de Aquino contrapõe ao averroísmo (p. 7).

Através de uma descrição sugestiva e apontando para os pontos cimeiros da polé-mica, a autora introduz ao longo do seu estudo, os trabalhos mais significativos que se têm registado ao longo dos últimos decénios do século XX e inícios do século XXI, sobre este tema, apontando para as sucessivas linhas de interpretação. Mas a polémica tem um alcance bem maior, quando Dante Alighieri imortaliza, nas suas mais belas páginas da Divina Comédia a figura de Sigério, colocando-o por entre os sábios beatos. Porém, este facto parece contrariar a relação intrínseca entre o Brabantino e Tomás de Aquino, tendo em conta os estudos de Bruno Nardi e de Étienne Gilson, por um lado, e os dados mais recentes da historiografia dantesca, por outro, quando se quer perceber as moti-vações do Poeta, na sua intenção de reabilitar Sigério de Brabante (pp. 8-9).

Esta questão é tanto mais interessante quanto ela põe em destaque o conflito aca-démico na Faculdade das Artes de Paris, por entre os magistri artium, nos quais alguns se empenhavam numa refundação do quadro teórico, tendo em conta a leitura dos libri

naturales de Aristóteles, resultando daqui uma maior autonomia da realidade natural

e mundana (p. 11). Associada a esta questão, está diretamente ligada a cisão entre a Escritura e a natureza, como “uma recusa do horizonte totalizante da filosofia perennis”. Na verdade, em finais de Duzentos, e num quadro de atividade académica e institucio-nal, tinha-se vindo progressivamente a afirmar a valorização da própria «autoconsciên-cia profissional» do intelectual filósofo (pp. 10-11). Sigério de Brabante (ca. 1240-1282/4) e Boécio de Dácia (ca. 1240-1277) são dois dos artistae mais representativos do “pro-jeto ideal do filósofo com a sua profissão quotidiana” (p. 11).

Todavia, o entusiasmo dos mestres das Artes diante da “enciclopédia aristoté-lica” conhecerá os seus avatares e os seus opositores. Valeria Sorge escolhe o caso do Mestre franciscano e Ministro geral da Ordem, S. Boaventura, num dos seus célebres

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textos: as Collationes de septem donis Spiritus Sancti, onde são apontados os três erros essenciais do saber aristotélico face à filosofia cristã: 1) a ideia de que o mundo é eterno; 2) a ideia de que há um determinismo fatalístico; 3) a conceção de uma uni-cidade do intelecto, isto é, de que há um só intelecto para todo o género humano. Como refere a nossa autora, a breve passagem escolhida da obra do mestre francis-cano revela ser uma das mais significativas na história do averroísmo latino. Todavia, a obra filosófica que se impõe sobre a cena filosófica, na polémica antiaverroísta é, sem dúvida, a obra de Tomás de Aquino De unitate intellectus (p. 14). Ela representa o testemunho indiscutível do ensino de Sigério de Brabante, nos finais de 60 do século XIII. Em várias das obras de Sigério de Brabante se regista a filiação à interpretação averroísta, desde as suas reportationes, passando pelos diversos opúsculos monote-máticos, como De anima intelectiva, Quaestio de aeterniate mundi, e ainda De

neces-sitate et contingentia causarum como ainda a mais importante obra, escrita entre 1269

e 1270, as Quaestiones in tertium de anima.

A crítica tomasiana a este averroísmo é conduzida em torno de posições doutri-nais, metafísicas, psicológicas, gnosiológicas e éticas. O intento de Tomás de Aquino visa duas coisas: 1) advogar, contrariamente ao averroísmo, o lugar da consciência e da liberdade do homem (p. 17); 2) salvaguardar a posição aristotélica, reorientando-se para uma correta interpretação de Aristóteles, no De anima, 413 b 14-30, como forma de oposição à exegese averroísta. É neste sentido que Tomás critica a interpretação de Sigério de Brabante. No centro deste debate está o alcance do intellegere no composto humano e a conceção de subjetum, ponto de dupla determinação, quer no seu modelo aristotélico-averroísta , quer no seu modelo agostiniano, ainda que ambos se deixem, simultaneamente, contaminar, perante a complexidade do seu desenvolvimento (p. 15). Daí que a posição de Tomás de Aquino exprima uma tomada de consciência das dificuldades internas da tese averroísta, apontando para uma superação desta posi-ção, ao constituir uma argumentação metafísica que articula intrinsecamente a pro-blemática gnosiológica, tendo em vista a ordenação do agir livre humano, para o bem. Este «bem» não pode ser adscrito, unicamente, a uma conceção abstrata, mas a uma capacidade efetiva de realização na perfeição, enquanto razão do último fim (p. 26). Por isso, segundo a autora, o estímulo intelectual, proveniente da Sagrada Escritura, contri-bui, com a sua visão antropológica, para o desenvolvimento da subjetividade e para o reenvio decisivo dos fundamentos da vera religio e da vera philosophia, no sentido de anularem a perspetiva teorética averroísta.

A segunda parte deste livro contém a versão italiana do De unitate intellectus

contra averroistas de Tomás de Aquino, a partir da edição crítica Leonina. Esta

ver-são de Pasquale Giustiniani apresenta-se como uma tradução, sem o aparato crítico e sem notas explicativas sobre o texto. A versão pretende dar ao leitor um conheci-mento factual da polémica averroísta e pretende tornar o mais fluida possível a leitura do texto tomasiano, mesmo para leitores menos habituados a estas questões. Esta obra revela-se, portanto, com interesse, muito em particular, para os estudos de filosofia e de teologia medieval. Teria havido alguma vantagem em apresentar uma pequena intro-dução que justificasse a edição conjunta dos dois trabalhos. No entanto, quer o estudo reflexivo de Valeria Sorge, quer a tradução italiana, completam-se harmoniosamente.

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REAL, Miguel – O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010): O

labirinto da razão e a fome de Deus. Lisboa: INCM-Imprensa Nacional-

-Casa da Moeda, 2011. 1032 p. Manuais Universitários.

Miguel Real é um escritor e professor de filosofia, licenciado em Filosofia pela Universidade de Lisboa e mestre em Estudos Portugueses pela Universidade Aberta, com uma tese sobre Eduardo Lourenço. Em 2009, recebeu o Prémio Jacinto do Prado Coelho da Associação Portuguesa de Críticos Literários pelo seu livro Eduardo

Lourenço e a Cultura Portuguesa. Nos últimos anos, tem-se destacado com a

publica-ção de vários livros. Recentemente publicou a Nova Teoria do Mal, no âmbito da filoso-fia, Romance Português Contemporâneo (1950-2010), no âmbito dos estudos literários, e Introdução à Cultura Portuguesa, no âmbito dos estudos culturais. Para além, dos estudos científicos, Real dedica-se à produção literária desde a juventude. Iniciou a sua carreira literária em 1979, com a publicação de O Outro e o Mesmo, romance com o qual ganhou o Prémio Revelação de Ficção da APE/IPLB. Em 2006, recebeu o Prémio Literário Fernando Namora com o romance A Voz da Terra. Ao longo do seu percurso recebeu vários prémios e publicou várias obras, sendo o seu romance mais recente

O Feitiço da Índia (2012). Para além disso, é colaborador no jornal literário Jornal de Letras desde 2000 e tem vindo a dedicar-se à elaboração de manuais escolares e à

adaptação de obras literárias ao teatro.

Em 2011, o Instituto Nacional Casa da Moeda, em Lisboa, publicou o livro de Miguel Real sobre o pensamento português contemporâneo, com o apelativo subtítulo

O labirinto da razão e a fome de Deus, que de forma sintética traça os dois

gran-des eixos que constituíram o percurso das ideias filosóficas em Portugal, gran-desde 1890 à atualidade. Este trabalho, resultante de aulas apresentadas na Faculdade de Letras de Lisboa, em seminários sobre cultura portu guesa contemporânea, é constituído por mais de mil páginas. Embora seja uma obra de síntese, revela um grande sentido crítico e conhecimento profundo do assunto abordado, constituindo uma análise minuciosa e criteriosa, o que permite fazer uma leitura organizada, do ponto de vista cronológico e temático, ao campo cultural português dos últimos cem anos. Neste sentido, este traba-lho revela-se um bom instrumento de trabatraba-lho, para todos os que se debruçam sobre o pensamento português, área de estudo complexa e profunda. Apesar de os estudos serem numerosos e de existirem obras de referência, como por exemplo a História do

Pensamento Filosófico Português, dirigida por Pedro Calafate, o trabalho de Miguel

Real revela-se essencial, apresentando uma interpretação inovadora.

O Pensamento Português Contemporâneo (1890-2010) é constituído pela

aná-lise de dezenas de autores, identifica os principais grupos de intelectuais e apresenta as principais correntes de pensamento, que segundo o autor são: o espiritualismo, o racionalismo, o providencialismo e o modernismo. O período cronológico selecionado é constituído por três grandes fases históricas: de 1890 a 1930, «O triunfo do racio-nalismo»; de 1930 a 1974, «O triunfo do providencialismo»; e, por último, de 1974 a 2010, «A Europa connosco». Cada uma dessas fases está devidamente enquadrada no contexto nacional e europeu, notando-se o cuidado de interpretar o pensamento por-tuguês à luz de cada época, dentro das possibilidades e limitações que cada período encerrou. A análise do autor faz mergulhar Portugal contemporâneo nas suas raízes

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políticas e culturais do século XVII e nas relações que o país estabeleceu consigo e com os outros ao longo dos séculos, remetendo o leitor para as questões da identidade nacional e das relações com a Europa e com o mundo, que acabariam por influenciar as várias linhas de pensamento. Podemos aproximar este trabalho de Miguel Real a uma espécie de história das ideias ou história intelectual, na medida em que o autor não se detém na reflexão filosófica sobre as ideias e correntes de pensamento, mas analisa o contexto histórico (político, social e até relacional) onde são produzidas e divulgadas.

O grande contributo deste trabalho, de carácter crítico, reside na leitura histó-rica do pensamento português, desenhando a sua evolução, constituída por ruturas e continuidades, lutas e consensos, apresentando acima de tudo um percurso tortuoso que resultou das relações entre os intelectuais e destes com a política e o poder. De acordo com o autor, o nível de desenvolvimento atual do pensamento português, em particular, e da cultura portuguesa, em geral, resulta da repressão exercida pelas gran-des instituições (Estado, Universidade e Igreja), assim como da incapacidade de gerar conhecimento e de inovar. Segundo Real, durante várias décadas não existiram condi-ções favoráveis à receção, divulgação e circulação de ideias. As instituicondi-ções detentoras de poder político, cultural e científico não foram capazes de dinamizar e desenvolver a produção intelectual. Aliás, este contexto gerou perseguição política e levou muitos intelectuais ao exílio durante boa parte do século XX.

O Labirinto da Razão e a Fome de Deus foi publicado em 2011, num contexto em

que Portugal enfrenta vários desafios, alguns de natureza estrutural, outros decorrentes da crise internacional, que afetam a Europa, levando os intelectuais a repensar o lugar do país no mundo e outras questões inerentes a essa problemática. Nesse sentido, esta obra revela-se pertinente e atual. Na medida em que coloca o pensamento portu-guês no(s) contextos(s) histórico(s) nacional e europeu, situa o país entre «duas visões do mundo supremamente conflituosas» (p. 13), que acompanharam o país desde os Descobrimentos até à contemporaneidade. Por tudo isto, o trabalho de Miguel Real é uma contribuição de qualidade, sendo uma síntese essencial para estudantes que estão a iniciar os estudos sobre o pensamento português. Além disso, também é uma ótima ferramenta de trabalho para investigadores que necessitem de uma sistematiza-ção e de um enquadramento histórico-filosófico, assim como para docentes, na medida em que permite fazer uma leitura problematizante, de longa duração, do campo filosó-fico, organizada em grandes períodos, nos quais se destacam os principais autores e ideias. Para além do público académico, este livro também pode ser do interesse para o público em geral, sendo que se apresenta bem estruturado, bem fundamentado e escrito com grande clareza. Esta obra tem o mérito de ser inovadora e de se revelar essencial para o mapeamento do pensamento filosófico português.

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DIMAS, Samuel – A Metafísica da Experiência em Leonardo Coimbra.

Lisboa: Universidade Católica Editora, 2012, 557 p. Investigação.

Esta obra, ao abordar um dos temas mais complexos no conjunto da obra de Leonardo Coimbra, é um contributo para a divulgação do pensamento do filósofo por-tuense.

A obra divide-se em três partes com vários capítulos. Na primeira parte, “O pro-gresso do pensamento: a evolutiva superação da antinomia entre a razão e a experiên-cia”, o autor desenvolve temas tão distintos como o “O carácter social do progresso do pensamento”, “Da razão mística à razão mistérica”, até ao tema “Da razão formal abstrata à razão experimental”, para deste modo prosseguir no sentido de superação das tradicionais antinomias entre razão e experiência, unidade e diversidade, ideal e real, transcendente e imanente.

O próprio processo evolutivo, dialético e integrador da razão leva a que a supera-ção dessas entidades cognitivas do pensamento não possam ser tomadas na sua única individualidade, mas, outrossim, na sua globalidade e integralidade holística, que a razão, em particular, e o pensamento em geral, exigem e pressupõem.

Aliás, a noção de progresso histórico e intelectual mostra, de forma evidente, que, mais importante e fecunda que a razão egoísta, individualista e subjetivista, a razão social manifesta, de forma mais adequada e indelével, que é a partir desse desenvolvimento histórico que emergem novas categorias da razão experimental e novas formas de pensamento criacionista. Formas essas que nos dão uma aproxima-ção e uma compreensão da realidade mais dinâmica, mais evolutiva e mais compro-metida com aquilo que mais define o ser humano e o modo como ele se relaciona e perceciona o mundo.

Na parte II, “A atividade dialéctica do pensamento criacionista e o sentido meta-físico da experiência”, Samuel Dimas prolonga e aprofunda a dimensão metafísica da razão e da realidade, no sentido de afirmar que o conhecimento não resulta nem se reduz a uma relação unívoca entre o sujeito e o objeto, mas a uma relação construtiva que ultrapassa o sujeito e o objeto. Por isso mesmo, o conhecimento não é concebível como uma cópia da realidade, mas como uma construção dinâmica, que resulta de uma interpretação de um sujeito historicamente situado, que faz parte do próprio pro-cesso de construção.

Assim, o que deve ser valorizado é a atividade desse sujeito situado e em relação com o todo, porque só assim se pode atingir um conhecimento para além do sensível, que é a realidade inteligível que encerra: a realidade metafísica e transcendente.

Neste pressuposto, a realidade criacionista é o resultado de uma construção da razão social e experimental. É uma realidade que resulta de uma experiência-síntese de cariz metafísico e religioso, que integra todas as experiências parcelares e pro-move a unidade cósmica da realidade. Sendo o Ser uma atividade em permanente criação, o que daí resulta é um dinamismo do pensamento em excesso. Assim, é neste horizonte que o pensamento criacionista se abre também a uma razão mistérica, trans-cendente e vertical. No fundo, a noção de experiência que Samuel Dimas quer indagar é esta: uma experiência que parte da ontologia, passa pela metafísica e chega à expe-riência de Deus.

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Na III parte, “A Unidade heterogénea da consciência e as suas experiências secundárias progressivas”, Dimas procura justificar a noção de experiência e da razão mistérica através de instrumentos heurísticos e conceptuais, tais como os da relação, da fraternidade/solidariedade do ser e da consciência integral, etc. Assim, surgem temas como a construção científica, o problema do determinismo/indeterminismo e a questão da liberdade. Neste seguimento, são abordadas pelo autor as questões relacionadas com a moral, a antropologia e a estética. O capítulo termina com uma proposta de refle-xão que vai no sentido de uma experiência-síntese metafísica que concebe a realidade como excesso, abrindo para novos pontos de contacto entre as experiências particula-res da ciência, da arte, da moral e da religião.

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PECKLERS, Keith F. – Atlante Storico della liturgia. Milano: Jaca Book;

Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2012, 262 p.

São conhecidas as Enciclopédias e os Atlas histórico-geográficos da bíblia, mas um Atlas da liturgia que trate a sua evolução histórica é absolutamente novo.

Ao abrir o livro, o leitor depara-se, na contracapa, com um texto que antecipa o seu conteúdo: «Juntamente com o símbolo e o mito, o rito é uma das constantes do sagrado (Julien Ries). No âmbito do cristianismo, o rito é o que conduz ao coração da antropolo-gia religiosa. [...] [Este volume] permite olhar para o desenvolvimento do cristianismo nos diversos contextos, sublinhando a força criativa da comunidade cristã no seu contí-nuo esforço de procurar novas modalidades expressivas da fé.» Um “Atlas histórico da liturgia” é, por conseguinte, uma verdadeira geografia do cristianismo, percorrendo e analisando os seus diferentes períodos.

As diferenças entre os ritos romano, ambrosiano, céltico, moçárabe ou galicano traçam o cenário cultural do cristianismo europeu até ao século VIII, a época áurea da liturgia. O presente volume apresenta, ainda, uma história antropológica da Igreja com os seus reflexos na arquitetura, arte, literatura, história da cultura, além das análises das políticas eclesiásticas, em conexão com o poder civil e a organização da socie-dade. Quinhentas e trinta estampas ou imagens (mosaicos e frescos, objetos sagrados e livros litúrgicos, reformas da arquitetura das igrejas) ilustram muito bem a evolução do culto desde as origens do cristianismo até à atualidade e favorecem a compreensão de uma Igreja que se formou e se consolidou na liturgia, «fonte e cume» da sua ação pastoral (SC 10).

Keith Pecklers, o autor da obra em apreço, recorda que, «se o cristianismo está em crescimento no hemisfério sul do planeta, há, por outro lado, uma crescente seculariza-ção no Ocidente, onde é notório o seu declínio». Sublinha a importância do diálogo ecu-ménico e inter-religioso para testemunhar o mandamento de Jesus, «que todos sejam um». E conclui: «É nosso objetivo que a linguagem da Eucaristia se torne a linguagem e o caminho das nossas vidas, para que participemos da missão de Deus no mundo como Cristo quer que façamos». O volume é, por conseguinte, uma ponte entre arte e música, linguística e política, história civil e vida da Igreja. Útil para conhecer, aprofun-dar e consultar, ao lado de outras obras de referência sobre o mesmo tema.

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