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Deixa-te ficar na minha casa

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE BELAS-ARTES

Deixa-te ficar na minha casa

Instalação imersiva sonora

Inês Sofia Falcão de Gouveia Achando

Trabalho de Projeto

Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais

Trabalho de Projetoorientado pelo Prof. Doutor António de Sousa Dias

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu Inês Sofia Falcão de Gouveia Achando declaro que o trabalho que aqui apresento no âmbito do Mestrado em Arte Multimédia, do qual faz parte o projeto da instalação intitulada “Deixa-te ficar na minha casa”, é resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou outras listagens de fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao longo do trabalho segundo as normas académicas.

A candidata

Inês Sofia Falcão de Gouveia Achando

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RESUMO

Deixa-te ficar na minha casa procura transportar para uma instalação imersiva as

sonoridades de um espaço íntimo. A minha casa, é o objeto de estudo e de trabalho sobre o qual desenvolvi uma pesquisa e a recolha de características sonoras que modelam este espaço. Resulta este processo numa instalação que se propõe descrever uma narrativa (memórias do lugar) e a sua espacialidade arquitetónica (características do lugar) através de um desenho sonoro.

Durante a criação deste projeto, desenvolvi uma pesquisa teórica que aqui apresento. Os autores e obras invocados estabelecem uma linha de raciocínio e descoberta de temas que alicerçam este projeto e que foram ao encontro das questões que vão surgindo à medida que o projeto se desenha e exigindo mais detalhe pela pluralidade de temas que levanta.

A partir do som em cinema e a forma como o som define espacialidade, passando pelos efeitos sonoros urbanos e espaciais e como estes influenciam a nossa relação com o meio envolvente (meio sonoro), de que forma a leitura desses estímulos têm um efeito sensorial em nós e na nossa perceção do espaço, desenvolvi a primeira parte da pesquisa que constitui o Capítulo 1. Numa segunda parte, onde me aproximo do contexto deste trabalho de projeto, relaciono a perceção sensorial do corpo no espaço com o processo de escuta e a consciência espacial através dessa experiência do corpo no espaço. Por fim, apresento uma reflexão sobre a relação entre espetador e obra de arte, onde apresento uma perspetiva sobre o posicionamento do espetador perante a obra de arte, e como este se torna ator e cocriador da obra em si.

A instalação “Deixa-te ficar na minha casa” é uma experiência sonora, onde o espetador, sob a perspetiva do olhar cego, entra num espaço cuja arquitetura é modelada através de vibração sonora.

Palavras-Chave:

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ABSTRACT

Deixa-te ficar na minha casa, aims to transport the sounds of an intimate space to an

immersive installation. The house, my house, is the object of study and which I worked on to develop this research and the collection of sound that defines the shape this space. This process results in an installation that proposes to describe a narrative (the memories of this place) and its architectural spatiality (characteristics of this place) through sound design.

During the creation of this project, I developed a theoretical research that I present in Chapter 1. The authors and their artworks establish a line of reasoning and discovery of themes that underpin this project, that addressed the issues that arise as the project is designed and requiring more detail due to the plurality of themes it raises.

The first part of this research starts from the sound in cinema and from the way sound defines spatiality, through the urban and spatial sound effects and how it influences our relationship with the surrounding environment (sound ambience), how does the reading of these stimuli have a sensory effect in us and in our perception of space. The second part gets closer to the context of this work project and relates the body's sensory perception in space with the consciousness and listening process through this experience of the body in space. Finally, I present a reflection on the relationship between spectator and the work of art where I present a perspective on the position of the viewer towards the artwork, and how people become an actor/actress and co-creator of the artwork itself.

The installation Deixa-te ficar na minha casa is a sound experience, where the spectator, from the perspective of a blind eye, enters into a space whose architecture is modelled through sound vibration.

Key Words:

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ÍNDICE GERAL

INTRODUÇÃO ... 1

CAPÍTULO 1 – BASES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS ... 5

1.1 Espacialidade sonora e som como narrativa cinematográfica. ... 8

1.2 Som como elemento de caracterização espacial... 15

1.3 Experiência do corpo no espaço (etnografia sensorial, espaço e perceção) ... 26

1.4 O espetador e a obra ... 31

INTERLÚDIO: UMA NOTA PESSOAL... 39

CAPÍTULO 2 - PROCESSO DE CONSTRUÇÃO ... 43

2.1 Embrião ... 44

2.2 Nota de intenções ... 45

2.3 O processo de mapeamento sonoro ... 49

2.4.1 Noções importantes ... 54

2.4.1.1 Som ... 54

2.4.1.2 Perceção... 54

2.4.1.3 Espaço ... 55

2.4.1.4 Corpo, a casa dos sentidos ... 56

2.4.1.5 Experiência ... 56

2.5 Tempo de habitar e efeitos sonoros ... 58

2.6 Dossier de projeto ... 63 2.6.1 Sinopse ... 63 2.6.2 Memória descritiva ... 63 2.6.3 Desenhos técnicos ... 65 2.6.4 Ficha Técnica ... 66 CONCLUSÃO ... 68 BIBLIOGRAFIA ... 70 WEBGRAFIA ... 72 FILMOGRAFIA ... 75 ANEXOS ... 76

Anexo 1: Texto Embrião ... 76

Anexo 2: Trabalho de montagem do texto embrião ... 78

Anexo 3: Vídeo Embrião ... 79

Anexo 4: Diário (excertos) ... 80

Anexo 5: Desenho-maquete, Onde o chão está mais gasto ... 87

Anexo 6: vídeo-ensaio ... 88

Anexo 7: Desenho-maquete Diário de habitar – processo de registo... 89

Anexo 7: Desenhos de estudo ... 90

Anexo 8: Ficheiros audio ... 91

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ÍNDICE DE FIGURAS

Fig. 1 - Fotogramas de Janela Indiscreta (Hitchcook, 1954). Cf. trailer disponível em https://www.youtube.com/watch?v=6kCcZCMYw38 (acedido a 19.03.2021). ... 5 Fig. 2 - Fotografia de Paul Kozlowski da Villa Savoye, 1928, projetada pelo arquiteto Le Corbusier,

onde se destacam as janelas horizontais, planos abertos para a paisagem envolvente. (Cf: http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysName=redirect64&sysLang uage=en-en&IrisObjectId=7380&sysParentId=64, acedido a 19.03.2021). ... 6 Fig. 3 - Fotogramas do filme O Carteirista onde, através de planos fechados, o realizador cria uma

tensão sobre a ação da personagem (muitas vezes apenas sugerida) e a iminência de ser apanhado. (Cf. cena do filme [min 00:55 – 02:40] disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j-5J5NiWFks, acedido a 19.03.2021). ... 7 Fig. 4 – Fotogramas da primeira cena do filme Uma Mulher Meiga (Une Femme Douce, 1969),

exemplo da relação entre uma narrativa sonora do acidente e a imagem visual como ambiente. (Cf. Primeira cena do filme [00-40 seg.] disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= tRP1Ud_wVTk & t=3s, acedido a 19.03.2021). ... 9 Fig. 5 - Fotogramas do filme Branca de Neve, 2000. (Cf. filme disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=Glrsi-UlXgE, acedido a 19.03.2021). ... 10 Fig. 6– Fotogramas do filme Azul (Blue, 1993); excerto do filme disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=3jEer2d3nMg, acedido a 19.03.2021). ... 11 Fig. 7 - Gráfico de Michel Chion sobre a relação entre o visível e o acusmático no plano

cinematográfico. (Chion, 2008, p. 63) ... 13 Fig. 8 - Gráfico de Michel Chion sobre a relação entre sons ambiente, sons internos e sons no the

air e o plano (dentro de plano, fora de plano e off) (Chion, 2008, p.65). ... 13

Fig. 9 - Fotogramas de vídeo onde John Cage faz uma breve descrição da sua visita à câmara anecoica na Universidade de Harvard, Paquistão, em 1951. Vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jS9ZOlFB-kI (acedido a 19.03.2021). ... 18 Fig. 10 - Pierre Mariètan 3 Versions D'un Poème De H.H., composição musical com sons do

quotidiano, do album coletivo de música experimental Erratum #1, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=VyBnpqe-N8A&t=36s (acedido a 19.03.2021) ... 20 Fig. 11 – Imagens de portefólio da instalação de Ana Vieira (http://anavieira.com/obra/2001-2010,

(acedido a 19.03.2021) Vídeo de Igor Sterpin, registo audiovisual da instalação de Ana Vieira

Casa Desabitada, Lisboa, (8:20min), 2004. Dísponivel em: https://vimeo.com/119942801

(acedido a 19.03.2021) ... 34 Fig. 12 - Desenho-maquete Onde o chão está mais gasto (complementar com anexo 5) ... 50 Fig. 13 - Desenho-maquete Diário de habitar (complementar com anexo 7) ... 51 Fig. 14 - Planta da instalação Legenda: (1) Quarto grande, (2) Quarto interior (3) Despensa, (4)

Casa de banho, (5) Sala, (6) Cozinha, (7) Wc, (8) Quarto vazio, (9) Quarto Cheio, (10) Hall patamar. Colunas de som organizadas de A a T. Colunas verticais: A, C, E, F, H, I, K, L, M, N, O, R, T. Colunas horizontais: B, D, G, J, P, Q, S. ... 65 Fig. 15 - Desenho em perspetiva da instalação; Legenda: (1) Quarto grande, (2) Quarto interior (3)

Despensa, (4) Casa de banho, (5) Sala, (6) Cozinha, (7) Wc, (8) Quarto vazio, (9) Quarto Cheio, (10) Hall patamar. Colunas de som organizadas de A a T. Colunas verticais: A, C, E, F, H, I, K, L, M, N, O, R, T. Colunas horizontais: B, D, G, J, P, Q, S... 66

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INTRODUÇÃO

A privação do sentido da visão durante alguns dias, consequência de um acidente, em maio de 2015, foi o acontecimento que despoletou o desenvolvimento deste projeto. Com efeito, durante esses dias, a supressão do estímulo visual circunscreveu a perceção do espaço e meio envolvente, a aromas, cheiros, texturas e sons. Desses estímulos, já existentes, a perceção sonora foi a mais marcante. De tal forma, que a partir desse episódio, os sons ganharam um destaque exponencial.

Esta experiência no espaço, do corpo no espaço, foi o veículo para o conhecer por dentro, para conhecer a sua identidade através dos sons que o caracterizam. Consequentemente, consciencializar a presença constante de vibração (som), na arte, nos espaços urbanos, nos objetos, no meio em geral, a dimensão que o som ocupa no quotidiano, envolto em máscaras e a forma como, no geral, que a atenção se dirige para coisas mais imediatas, como a imagem. Por oposição, o som mantém-se imerso num quadrante onde, para entrar, é necessária disponibilidade e, sobretudo, tempo. Como uma revelação, o silêncio e o ruído “passaram a existir” em simultâneo. E, é na sequência da surpresa desta descoberta, que se inicia o esboço deste projeto: uma instalação sonora que redesenha o espaço da casa numa perspetiva cega ao privilegiar o som como elemento de caracterização espacial.

O objeto de trabalho, a casa, é retratada através de uma sonoplastia que reproduz as suas qualidades espaciais e memórias que também caracterizam aquele espaço. Deste retrato fazem parte vivências, textos e desenhos, gravações, na memória do corpo e dos sentidos, e que se espelham neste projeto.

Este trabalho de projeto está organizado em duas partes: no Capítulo 1, expõe-se a pesquisa teórica desenvolvida na procura de referências teóricas e artísticas; no Capítulo 2, é apresentado o projeto de instalação e o seu processo de criação; entre estas duas partes, existe um curto Interlúdio que funciona como transição do primeiro para o segundo Capítulo.

Assim, no Capítulo 1, e sendo este trabalho resultado de uma pesquisa no âmbito do Mestrado em Arte Multimédia, especialidade em Audiovisuais, as primeiras referências apresentadas vão, sobretudo, de encontro ao cinema. São exemplo algumas obras onde o som

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assume um papel preponderante na narrativa cinematográfica e onde o som é um importante elemento caracterizador de espaço.

A partir desta primeira abordagem, a pesquisa encaminha-se para estudos e referências sobre o Som como ferramenta de caracterização espacial, do som como identidade de um espaço ou de um lugar. A partir de obras como Sons e silêncios da paisagem sonora portuguesa de Carlos Alberto Augusto e também de sonoplastas e compositores como Pièrre Mariétan e R. Murray Schafer, compreende-se a dimensão sonora de espaços comuns e espaços sociais, e cujos conceitos e definições são transportados para o objeto de estudo.

Através da leitura da obra destes autores chegamos a conceitos como identidade sonora do espaço e como esta é trabalhada, que elementos desenham e modelam os espaços sonoros, e quais os conceitos sonoros relacionados com a perceção espacial. Entre outros, a paisagem sonora, ou o que distingue objeto sonoro de fonte sonora, que situações sonoras condicionam a nossa perceção e os nossos sentidos, e como todos estes conceitos funcionam entre si.

Consequentemente, questões em torno da perceção sensorial, levam a pesquisa para outra forma de espaço, o corpo, a casa dos sentidos, uma vez que é através do nosso corpo que nos relacionamos com o meio que nos envolve.

Esta relação de escala, do corpo e do espaço e, sobretudo, do corpo enquanto canal da experiência no espaço, canalizou a pesquisa para um outro tema: memória espacial e sensorial da experiência, onde o corpo é o meio de registo dessa experiência de espacialidade. No tópico

Experiência do corpo no espaço, numa referência aos estudos de Etnografia Sensorial de Sarah

Pink (2010, 2011, 2017), encontra-se um exemplo de como o processo de consciência do corpo no espaço valida a experiência individual e coletiva através do exercício de habitar. Também Marc Augé (1992) é uma importante referência ao relacionar parte de todos os tópicos anteriores e estabelecer a ligação entre experiência individual e o espaço; o corpo enquanto porção de espaço, o mesmo cuja perceção sensorial, aliada a uma individualidade resultante da experiência pessoal, pré-conceitos e outros fatores, cria e condiciona a sua própria experiência.

O desenho dos corpos no espaço a definirem o próprio espaço funcionou como um gatilho e, em conjunto com Quad I+II (play for TV) de Samuel Beckett, tiveram um impacto direto na forma como foram abordados os registos neste processo de criação.

A obra de arte como ponto de partida para a experiência do espetador e o espetador enquanto criador da experiência (e cocriador da obra), representa um aspeto que se revelou essencial para o processo. Sendo este um trabalho de instalação onde o espetador (visitante) se

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propõe à experiência, foi importante compreender de que forma explorar a condição do espetador, como colocá-lo perante a obra e definir a sua experiência.

Em O espectador e a obra, último tópico do primeiro Capítulo, e através de obras como

Espectador Emancipado de Jacques Rancière e Espectadores e Públicos Activos de Isabel

Babo, é abordado o posicionamento do espetador na sua relação com a obra de arte. É exemplo

Casa Desabitada de Ana Vieira, uma referência para refletir sobre a forma como autor(a)/artista

posiciona o espetador na experiência da obra de arte e com isso influencia os estímulos criados no contexto da própria experiência, tanto na relação com obra como na relação do espetador com a sua experiência .

Em formato Interlúdio, expõe-se de que forma as referências anteriores contribuíram para sedimentar e modelar a ideia de projeto, e catapultar a pesquisa para o que é apresentado no Capítulo 2. Note-se aqui uma mudança de tom. A discussão e referências anteriores são daqui transportadas para o projeto, nomeadamente, através da apropriação de termos e conceitos. Esta “tradução” resulta de uma síntese da pesquisa na forma que se considerou mais adequada à prossecução do projeto

Do Capítulo 2, fazem parte a proposta de projeto, assim como o processo de criação desde o Embrião, passando pela nota de intenções, processo de mapeamento sonoros e as diversas fases de trabalho e experimentação no processo criativo, notas desenhos e diários como registo do processo. E, por fim, o dossier do projeto.

Neste ponto, salienta-se que a instalação encontra-se projetada, mas não realizada. No entanto, foi criado um ensaio numa versão em formato digital - um protótipo em Unity3D. Este protótipo não representa uma simulação da instalação, mas sim, uma outra forma de experienciar o espaço sonoro e o ficar na minha casa.

Finalmente, nos anexos encontram-se os links para aceder aos suportes multimédia disponíveis on-line e que complementam algumas figuras incluídas no corpo do texto e outros elementos multimédia que fazem parte do processo de criação do projeto.

Presentemente já não habito a casa que descrevo neste trabalho. Em comum, existe a minha casa dos sentidos, muitas memórias e diversos registos sonoros com os quais continuo a trabalhar (som ambiente que captei, conversas, mapeamentos por pontos de escuta, textos, retratos), uma vez que continuo a dedicar-me à sonoplastia do projeto no sentido de explorar e aprofundar ideias e experiência. Fica então aqui, nas linhas que se seguem, o convite ao leitor para que se deixe ficar na casa que aqui partilho.

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CAPÍTULO 1 – BASES E REFERÊNCIAS TEÓRICAS

Janela, canal para os sentidos, um vazio por onde entra um espaço exterior dentro de outro espaço, o interior, este, onde está o meu corpo; ou a ausência de matéria por onde escapam os olhos, por onde entram sons de imagens que não se veem através das paredes.

Quando Alfred Hitchcook em Janela Indiscreta (Rear Window, 1954) filma a narrativa em torno dos acontecimentos de um bairro, limitado ao espaço interior da casa do protagonista, à sala, de onde o protagonista consegue observar tudo o que se passa na vizinhança através da janela, confere à arquitetura do espaço especial relevo. A janela é o canal que estabelece a ligação do protagonista com o espaço exterior, com a intriga e com as restantes personagens. A janela, para além de um elemento de arquitetura, é um elemento cinematográfico: a sua função vai para além da sua forma, do seu corpo. A Janela evoca o exercício do olhar e da escuta.

Fig. 1 - Fotogramas de Janela Indiscreta (Hitchcook, 1954). Cf. trailer disponível em

https://www.youtube.com/watch?v=6kCcZCMYw38 (acedido a 19.03.2021).

As janelas da Villa Savoye (Fig. 2) do arquiteto Le Corbusier, por onde entra o plano exterior, são construídas por um olhar contínuo que percorre o espaço. Um espaço-tempo que resulta de espaço arquitetónico e movimento cinematográfico: o tempo que o olhar demora a

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percorrer esse plano para o espaço exterior, a procurar com o olhar todas as árvores e todas as espécies que se observam do lado de fora.

Fig. 2 - Fotografia de Paul Kozlowski da Villa Savoye, 1928, projetada pelo arquiteto Le Corbusier, onde se destacam as janelas horizontais, planos abertos para a paisagem envolvente. (Cf:

http://www.fondationlecorbusier.fr/corbuweb/morpheus.aspx?sysName=redirect64&sysLanguage=en-en&IrisObjectId=7380&sysParentId=64, acedido a 19.03.2021).

Em arquitetura, os vãos (portas, janelas) são canais por onde o som passa na forma de uma imagem sonora, por vezes, talvez, impercetível pelo olhar.

Outra tipologia de janela é o quadro de cinema. A forma como o realizador Robert Bresson em O Carteirista (Pickpocket, 1959) explora o que está para além do quadro cinematográfico, provoca uma urgência de espreitar para dentro dessa janela. (Fig. 3). O realizador assume os limites do ecrã como uma janela com a qual estabelece um jogo entre o que mostra na imagem e a sugestão do que está fora de quadro, provocando no espetador o desejo de espreitar e de confirmar o que pensa esconder-se por trás dessa janela.

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Fig. 3 - Fotogramas do filme O Carteirista onde, através de planos fechados, o realizador cria uma tensão sobre a ação da personagem (muitas vezes apenas sugerida) e a iminência de ser apanhado. (Cf. cena do

filme [min 00:55 – 02:40] disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j-5J5NiWFks, acedido a 19.03.2021).

Enquanto em Janela Indiscreta o olhar se dirige de dentro para fora, para o espaço exterior (a janela como montra), em O Carteirista o olhar dirige-se para dentro, para o que se “esconde” por trás do enquadramento, para o que está “dentro” da janela. Esta relação espacial entre o visível e o invisível posiciona o espetador no espaço. Desta forma, o cinema transporta para o audiovisual essa relação com o espaço através dos efeitos sensoriais que evoca no espetador.

Em ambos os casos, a janela, seja arquitetónica, seja cinematográfica, é uma das formas que podem assumir os canais de comunicação e de diálogo com o outro lado. No cinema, entre sons e imagens, a janela ou quadro é a geometrização do tempo na medida em que enfatiza ou dissipa uma imagem (visual ou sonora). Se para percorrer um espaço é necessário determinado tempo, então a relação espaço-tempo não se esgota numa ligação linear: entre sons e imagens, são múltiplas as combinações que resultam na criação destes espaços imaginários.

O foco do trabalho de Bresson é uma referência neste ponto, quando o seu cinema evolui de uma relação visual com o espetador para uma relação espacial que evoca os outros sentidos,

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nomeadamente, o sentido auditivo. Ao longo do tempo o realizador foi privilegiando a presença sonora nos seus filmes até antepor o som às imagens de forma a potenciar as suas qualidades expressivas. Bresson procurou estabelecer um compromisso entre ambos, som e imagem, ao mostrar que um som pode substituir imagens. Desta forma, quer a imagem quer o som conseguiriam atuar independentes na construção de imagens: “Se um som, a voz da personagem, me diz mais que o seu rosto, é inútil mostrar o rosto”. (Bresson, 1998, apud Mazzolini, 2002, p.187)1

1.1 Espacialidade sonora e som como narrativa cinematográfica.

O cinema rompe com a relação puramente visual com o espaço ao criar um ambiente que ativa a perceção sensorial no espetador transportando-o para um espaço e ambiente tridimensionais.

Em Uma Mulher Meiga (Une Femme Douce, 1969), de Bresson, a primeira cena do filme narra o acontecimento (o suicídio da protagonista) que alavanca do filme. Bresson descreve o acidente através do som enquanto os planos mostram imagens de um ambiente calmo, como uma realidade paralela ao acontecimento narrado. Aqui, o som funciona como principal elemento narrativo e também como elemento que estabelece uma relação com o espaço da ação. (Fig. 4).

1 Cf. Mazzoleni 2002, p.197, Nota: (2) Aldo Tassone “Robert Bresson, une leone dimenticato”, entrevista em Il caso e la necessità. Il cinema di Robert Bresson, vol. eds. Giovanni Spagnoletti e Sergio Tufferri, Lindau, Turim, 1998, p.126.

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Fig. 4 – Fotogramas da primeira cena do filme Uma Mulher Meiga (Une Femme Douce, 1969), exemplo da relação entre uma narrativa sonora do acidente e a imagem visual como ambiente. (Cf. Primeira cena

do filme [00-40 seg.] disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= tRP1Ud_wVTk & t=3s, acedido a 19.03.2021).

Para Bresson, se um dos elementos, o som ou a imagem, é inteiramente capaz de transmitir algo independentemente da presença do outro, então a atenção do espetador deve ser dirigida na totalidade para esse primeiro elemento: “Se o olho é inteiramente conquistado, não dar nada ou quase nada ao ouvido. Não se pode ser ao mesmo tempo todo olhar e todo ouvidos.” (Bresson, 1975, p.55)

Ao levantar esta questão, o realizador procurou resolver a presença da imagem sonora e da imagem visual em simultâneo ou alternada ao explorar a capacidade individual de transmitir uma imagem: “Quando um som pode substituir uma imagem, suprimir ou neutralizar a imagem. O ouvido dirige-se sobretudo para o interior, e o olhar para o exterior.” (Bresson, 1975 p.55).

Uma imagem que comporta um significado não se transforma em outras imagens e é desta relação entre imagens visuais e sonoras que resulta uma emoção que o cinema procura proporcionar aos espetadores, assim como proporcionar liberdade imagética que a imagem visual destrói ou resolve. Por outro lado, o som sugere uma imagem que, não sendo visível, torna-se muito mais ampla, pois vai operar sobre a memória e a experiência individual do

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espetador: “O olho (em geral) superficial, o ouvido profundo e inventivo. O apitar de uma locomotiva dá-nos a visão de toda a gare.” (Bresson, 1975, p.72).

O filme Branca de Neve, 2000, de João César Monteiro, adaptado da peça homónima do escritor suíço Robert Walser, foi um marco no cinema português pela (quase total) ausência de imagens. O filme é pontuado por curtos planos de céu com uma neblina leve. Este foi o ambiente que o realizador quis dar ao filme. Toda a narrativa é sonora num ambiente sonoro cuja presença, ténue, faz sobressair os diálogos numa cadência de storytelling. (Fig. 5).

Fig. 5 - Fotogramas do filme Branca de Neve, 2000. (Cf. filme disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Glrsi-UlXgE, acedido a 19.03.2021).

O som é o fio condutor da narrativa na forma verbal. Sem nenhuma intenção de apelar à sensibilidade auditiva, o filme é feito na perspetiva daquilo que João César Monteiro denomina de olho cego. A esse respeito, Monteiro explica em entrevista2 a razão que o leva a

tomar a visão cega como premissa para o seu filme a partir da leitura do texto satírico de Francisco Quevedo, Graças e desgraças do olho do cú: “achei interessante fazer o filme que

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tomasse o ponto de vista do olho cego, do olho que não vê (...)” (Cf. entrevista a João César Monteiro, Lisboa, parte 1, 08:40 min.). A visão cega é o que conduz à narrativa sonora.

Outro exemplo de visão cega no cinema é o filme Azul (Blue, 1993) de Derek Jarman (Fig. 6). A tela azul é o pano de fundo para um trabalho sonoro onde o realizador cria uma sonoplastia que acompanha um relato sobre sensações e memórias do próprio. O realizador que, nos últimos anos de vida, padecia de uma cegueira parcial, chamou-lhe um campo de azul, evocando a memória do tempo em que via. Ainda que o filme seja, essencialmente, sonoro, existe uma referência visual que, neste caso, é a premissa e a resolução para todo o ambiente cénico e conceptual que o realizador apresenta aos espetadores: a perspetiva do olho cego, cuja resolução formal é uma imagem visual condicionada e limitada. A narrativa sonora é, neste caso, consequência de uma condição, a cegueira, e não a premissa em si. Ou seja, o ecrã azul que resume a informação visual, é um efeito consequente da condição do autor.

Fig. 6– Fotogramas do filme Azul (Blue, 1993); excerto do filme disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3jEer2d3nMg, acedido a 19.03.2021).

No processo de construção espacial sonora, Bresson estabelece uma relação entre a imagem e o som ao transportar o espetador para o espaço através do som numa lógica idêntica ao ponto de vista, no caso do enquadramento da imagem. Assim, também o som tem o seu ponto de escuta: “Um grito, um ruído. A sua ressonância faz-nos adivinhar uma casa, uma floresta, uma planície, uma montanha. O seu eco indica-nos as distâncias.” (Bresson, 1975, p.

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88). Através do ponto de escuta, o ouvido consegue perceber o que se passa em redor, se a fonte sonora está mais perto ou mais longe, que matéria caracteriza esse lugar, qual a sua densidade. No caso de Branca de Neve e Blue, os realizadores não procuraram o som com o propósito de recriar o espaço fílmico de que fala Bresson, mas serviram-se dele para compensar o olho cego, apesar de também criarem uma sonoplastia. Um ambiente que evoca um espaço mais interior do que exterior. Jarman constrói várias camadas sonoras no filme e cria uma sonoplastia que envolve o espetador numa imersão quase suspensa e desconectada de um sítio físico, como se de um eco interior se tratasse. Na definição do compositor francês Michel Chion (2008) trata-se de um som over, interior, introspetivo, que coloca o espetador numa posição de consciência de si mesmo, não só pela mensagem transmitida no filme, mas pela forma como o realizador constrói a experiência.

O ponto de escuta, assim como a fonte emissora do som, são elementos que nos localizam no espaço enquanto espetadores (no cinema, na sala de espetáculos) ao percecionarmos as distâncias e as relações entre fonte, ouvinte e a materialidade do espaço:

“O ponto de escuta pode coincidir ou não com o ponto de vista, dando lugar a uma dupla articulação audiovisual. (...) também podemos falar de uma profundidade de campo sonora para os sons, na perspetiva sonora. (...)...a instância narradora, pode decidir que um ruído deve ficar em grande plano sonoro para enfatizar o seu significado.” (Mazzolini, 2002, p.194).

Por outro lado, existe uma variável que diz respeito ao código individual de cada espetador: “(...) também um som pode exprimir uma perceção de tipo subjetivo: teremos assim uma subjetiva sonora, que exprime uma perceção individual do som.” (Mazzolini, 2002, pp.194-195).

Para situar o som no espaço, Chion define e distingue três tipos de sons e a sua relação entre a zona visível e acusmática (Fig. 7): o som interno (dentro de campo), quando a origem do som é visível no plano; acusmático (ou som fora de campo), quando a origem do som não é visível no plano, mas amplifica o ambiente do espaço da ação e pode também ser evocada de outro plano temporal e espacial; e o som over (off), quando o som não faz parte do ambiente descrito na imagem mas aciona uma sugestão, como uma mensagem subjetiva que pode estar presente em forma de narrativa, vozes de comentário, música. (Chion, 2008, pp.62-63).

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Fig. 7 - Gráfico de Michel Chion sobre a relação entre o visível e o acusmático no plano cinematográfico. (Chion, 2008, p. 63)

Chion define, igualmente, sons ambiente, sons internos e sons no ar, on the air (Fig. 8), que funcionam de forma mais independente da imagem, pois não necessitam de um enquadramento na imagem.

Fig. 8 - Gráfico de Michel Chion sobre a relação entre sons ambiente, sons internos e sons no the air e o plano (dentro de plano, fora de plano e off) (Chion, 2008, p.65).

Os sons ambiente (ou sons de território) são sons que caracterizam a ambiência geral do espaço que envolve a cena, sem demasiado enfoque numa localização concreta nem

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preocupação com definição de fontes sonoras; chamam-se sons de território por serem marcantes daquele lugar em particular e estarem presentes no ambiente de forma contínua, como por exemplo o som de pássaros ou dos sinos de uma igreja. Os sons internos (ou sons interno-objetivos) são sons presentes na ação, que correspondem a uma situação interior ou mental da personagem como a respiração, batimento cardíaco, vozes interiores ou recordações. Os sons no ar que chegam à cena transmitidos por meio elétrico, como rádio ou telefone, são sons aos quais não se aplicam as leis mecânicas da propagação de som no espaço, tornando-se em sons mais autónomos. Estes sons vão acrescentar à cena uma informação, mas não lhe atribuem espacialidade; por exemplo, uma música gravada previamente em estúdio que é, posteriormente, acrescentada à cena, não tem localização espacial dentro da cena, é uma sobreposição. (cf. Chion, 2008, p.64). Veremos adiante como estes conceitos são também estudados por compositores como Mariètan e Schafer e aplicados a um contexto espacial urbano e social criando um canal de ligação entre os códigos da experiência espacial sonora real e o contexto cinematográfico.

Partindo das oposições colocadas por Chion, acusmático/visualizado, objetivo/subjetivo e passado/presente/futuro, chegamos à delimitação do conceito de fonte sonora referido no início do capítulo.

O som e a sua fonte são, do ponto de vista espacial, duas coisas distintas. Ainda que qualquer um deles se possa sobrepor ao outro, no caso do cinema esse posicionamento está diretamente relacionado com a informação visível na imagem. O facto dessa fonte sonora estar dentro ou fora de campo, estabelece por si um enquadramento em relação ao que é mostrado ao espetador. Mas, nem sempre é possível identificar uma dada fonte sonora pois os nossos ouvidos captam o som de forma circular onde concorrem outros fenómenos como reflexões, além de outros sons que podem ser distrativos, anular ou mascarar a fonte.

Quanto mais a fonte sonora é identificada, mesmo que não o seja sempre, mais o som emitido é um fenómeno que tem tendência a expandir-se no espaço. O que é importante é a definição espacial que esse som transmite. (cf. Chion, 2008, p.66).

Além disso, é possível identificar duas perspetivas do ponto de escuta: a primeira, relacionada com o sentido espacial, de onde se ouve o som e de que ponto (localização no espaço) o som está a ser emitido; a segunda, uma relação subjetiva, ou seja, que personagem num momento da ação está a ouvir o que o espetador está a ouvir? Destas, veremos adiante, como a primeira perspetiva é aquela que tem pertinência no âmbito deste trabalho.

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1.2 Som como elemento de caracterização espacial

Através da escuta conseguimos percecionar o que há para além dos limites do que nos é visível. Através da relação entre a fonte sonora e os nossos ouvidos e também através de todo o nosso corpo enquanto recetor, conseguimos perceber a origem de um som assim como obter informações relacionadas com a caracterização do espaço, uma vez que as características físicas de um lugar influenciam o comportamento da onda sonora.

Espaço arquitetónico e som estabelecem desta forma um diálogo fundamental para a consciência individual sobre a materialidade, composição e volume espacial e respetiva relação com o corpo no espaço.

Cada espaço ou lugar tem, com a composição desses sons que o caracterizam, aquilo a que se chama identidade sonora. A identidade sonora de um espaço, de um lugar, de uma cultura, de uma cidade é de tal forma marcante que temos, enquanto seres sensíveis, potencial capacidade de a descodificar de forma mais ou menos consciente, interpretá-la e atribuir valor às suas características sejam elas físicas e de ambiente, sejam elas interpretativas, semânticas e emocionais.

Carlos Alberto Augusto, sonoplasta e criador sonoro português, analisa no seu livro

Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa (2014) tanto a capacidade de reconhecimento

do indivíduo como a identidade sonora do espaço.

A identidade sonora dos espaços que nos envolvem assume a sua presença através da tomada de consciência da existência de diversos elementos sonoros e do que eles significam em diferentes ambientes. Da identidade sonora fazem parte os sons que caracterizam determinado espaço ou ambiente, que o definem e o particularizam e que assim o distinguem dos demais. O compositor canadiano, autor, professor e ambientalista R. Murray Schafer define esses sons e que podem genericamente ser classificados como: sons de tonalidade (keynote

sounds), geralmente associados a sons de fundo, são sons que descrevem o caráter de uma

paisagem sonora; sinais sonoros (sound signals), sons de primeiro plano, ou seja, que são ouvidos conscientemente; e marcas sonoras (sound mark), sons característicos de uma dada paisagem sonora e que, por isso, contribuem para a identidade sonora do lugar. (cf. Schafer, 1994 p.9-10)

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A construção de um espaço faz-se através de alguns contrastes como cheio e o vazio. Da mesma forma, num ambiente sonoro também é possível distinguir som (ruído) de silêncio. Genericamente funcionam como opostos mas não quer dizer que sejam totalmente díspares.

Ruído e silêncio compõem as paisagens sonoras numa relação não linear. Quando falamos de som, associamos o ruído a uma presença e o silêncio à sua ausência. Mas essa definição poderá ser redutora como iremos ver mais à frente através da definição de silêncio na experiência da câmara anecoica3.

Atualmente, o ruído é um elemento com especial presença nas paisagens sonoras contemporâneas. O ruído está inscrito na categoria de som intimidatório por ser capaz de invadir o nosso território pessoal (cf. Augusto, 2014, p.27). No entanto, este fenómeno não é desconhecido: tem sobretudo origem num desenvolvimento industrial mecânico, pois a máquina trouxe o ruído numa presença contínua que, por isso mesmo, se instala numa espécie de presença silenciosa. O ruído, nas suas diferentes manifestações, revela-se nos dias de hoje como uma “arma de um exército civil, apostado em invadir as zonas mais recônditas da nossa privacidade (...)”. (Augusto, 2014, p.27). Ou seja, o ruído está presente mesmo em situações consideradas silenciosas, por exemplo, em casa quando apenas se faz ouvir o ruído das máquinas a trabalhar. Esse som é ruído mas talvez seja o mais próximo, num contexto urbano, da experiência de silêncio.

O ruído funciona por processo cumulativo, mais ou menos direto, deliberadamente ou por negligência, e atua como forma de domínio. Por oposição, o silêncio (não o silêncio, mas o serenar do ruído) torna-se uma experiência de luxo numa sociedade tão invadida e dominada por ruídos: “O problema do ruído tem uma dimensão própria, no quadro que hoje podemos desenhar das disfunções ambientais. É essa dimensão própria, que tem certamente uma carga física, mas também uma forte componente psicológica e social (...)” (Augusto, 2014, p.30). Estas são as características do som que explicam o porquê do som, o ruído, passar a ser na contemporaneidade um produto da evolução industrial e não uma mera consequência da existência humana.

As grandes e pequenas questões de ruídos num contexto social e cotidiano continuam sem resolução e o ser humano cria habituação a estes fenómenos. As consequências são

3Câmara anecoica é um espaço com o mais alto nível de isolamento sonoro, criado para desenvolvimento de pesquisas e

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diversas, desde falta de saúde auditiva, a uma habituação que nos priva de usufruir efetivamente desta capacidade que nos é inerente que é capacidade de ouvir.

“Na Idade Média, reconheciam-se áreas diferentes nas vilas e nas cidades, baseadas em critérios de actividade sonora. As zonas onde moravam os clérigos e os demais membros das congregações contrastavam com as restantes zonas habitacionais. No centro da diferença estavam os comportamentos recatados de uns e mais exuberantes de outros.” (Augusto, 2014, p.35).

Já nesta época havia consciência desta característica e dessa diferença de ambiente, mas o grau de ruído tem vindo a aumentar, o nível de habituação também e, consequentemente, acionadas defesas inerentes ao ser humano que assim se desabitua do processo de escuta. “Não é possível isolar seres humanos em santuários artificiais de silêncio, como não é possível mantê-los no meio do ruído provocado atualmente pelas suas actividades.” (Augusto, 2014, p. 39).

Todas as paisagens sonoras, urbanas ou rurais, organizam múltiplas repetições sonoras que tecem a malha sonora do lugar: carros a passar, gritos, ruídos mecânicos, insetos, o cantar dos pássaros, entre outros.

Se, por um lado, o excesso de informação é pouco produtivo no exercício da escuta e compromete a relação do corpo com o meio, é também o ruído que estabelece essa relação; o valor que o som desmaterializado tem para a comunicação com o ambiente que nos rodeia deturpa-se em si mesmo.

Augusto chama à atenção para a consciência individual no sentido de percebermos como atuamos e reagimos perante certo ambiente e que responsabilidade temos perante as nossas ações: “todos somos designers, num sentido amplo do termo, e todos temos algum grau de responsabilidade nesta matéria no que respeita ao condicionamento do ambiente à nossa volta. Também somos todos, pois, designers sonoros.” (Augusto, 2014, p. 42). Devemos estar conscientes que, por cada intervenção sonora que temos em certo espaço ou situação, estamos a alterar o ambiente sonoro, ou seja, estamos a redesenhá-lo por mais simples ou complexa que seja a intervenção. (cf. Augusto, 2014, p. 42).

Se procurarmos uma oposição ao ruído vamos ao encontro do conceito de silêncio, conceito esse que, depois da criação da câmara anecoica, se alterou consideravelmente. John Cage, compositor americano, fez uma descrição da sua experiência após a visita à câmara anecoica (Fig. 9) e da sua tomada de consciência sobre o que é o silêncio, o que é ruído e, principalmente, a nossa tendência a identificar um ou outro tendo por base uma comparação:

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“Fechados nesse espaço durante algum tempo, o nosso limiar mínimo de audição baixa. O efeito é semelhante ao que se verifica com a visão quando permanecemos na escuridão o tempo suficiente. A dada altura, Cage explica que teria começado a ouvir um som grave e um som agudo.O técnico da câmara explicou-lhe que se tratava dos sons do fluxo sanguíneo e da corrente elétrica que percorrem o corpo. Fechados, nestas condições, numa câmara anecoica, esses sons e também os sons da respiração, dos movimentos digestivos, das pestanas a baterem umas nas outras, etc., começam a destacar-se. São sons que a maioria de nós nunca ouve, que só em condições muito especiais podemos perceber, mas são sons de que não podemos livrar-nos.” (Augusto, 2014, p.47).

Fig. 9 - Fotogramas de vídeo onde John Cage faz uma breve descrição da sua visita à câmara anecoica na Universidade de Harvard, Paquistão, em 1951. Vídeo disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=jS9ZOlFB-kI (acedido a 19.03.2021).

Assim, podemos considerar que silêncio é um conceito relativo; talvez seja uma ausência utópica uma vez que o som está sempre presente mesmo que seja de uma forma quase inaudível. É complexo assumir que existe um nível real de silêncio, sendo o som vibração, uma vez que essa vibração está sempre presente e faz parte de toda a matéria orgânica ou construída. Para definir o silêncio teremos então de nos referir à aproximação a um nível mínimo de som. Mas conseguiremos aproximarmo-nos do silêncio, “ou quanto mais nos aproximamos mais ele se afasta? Por ser impossível atingir o silêncio absoluto, o silêncio relativo tem ou não um significado e um papel a desempenhar na nossa vida? Há silêncio sonoro?” (Augusto, 2014, p.47). Esta questão lançada por Augusto é o que se impõe com a experiência relatada por Cage, ou seja, o silêncio é um ruído mínimo, porque há sempre som.

Para Pierre Mariètan a perceção do som é a compreensão dos elementos sonoros uns em relação aos outros. Para compreender a experiência da escuta e a descodificação da informação sonora é necessário desenvolver ferramentas de expressão sonora (como por exemplo a capacidade verbal) na sua espacialidade e temporalidade. É através desta consciência e capacidade de descodificação que descrevemos o som, mas podemos ainda aprofundar e

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desenvolver a nossa perceção e análise, no caso de um som ao vivo como um som permanente e integrante no quotidiano. (Mariètan, 2005, p.18)

Esta ideia aplica-se a diversas formas artísticas que desenvolvem trabalho sonoro e espacial-sonoro (em projetos audiovisuais, nomeadamente em cinema).

Se definirmos sonoplastia como uma forma de comunicação através do som que abrange as suas diversas formas desde a música, ruídos quotidianos, passando pela fala, com recurso à manipulação desses registos sonoros, então o nosso quotidiano é também ele objeto de sonoplastia.

A sonoplastia estabelece uma linguagem sonora através de signos e significados, que se multiplicam entre sons naturais e não naturais e efeitos sonoros que advém das condições em que são produzidos e/ou emitidos.

Como aliás já referimos anteriormente nas palavras de Augusto, somos responsáveis por composições sonoras sem que, muitas vezes, tenhamos consciência disso. Para Mariètan, estamos sempre limitados pelo facto de nos tentarmos proteger de um excesso de ruído que nos rodeia. Passamos a padecer de falta de imaginação, obstruídos por causa dessa defesa e tornamos o ouvido um órgão primário sem forma e vazio. (Mariètan, 2005, p.27).

Para situarmos o espaço, procuramos identificar sons que sejam marcantes de uma determinada situação ou lugar. Se nenhuma informação nos chegar, a audição fica débil e perdemos uma importante parte da nossa perceção. No entanto, existem diversas formas de mascarar esses sons que nos ludibriam e nos fazem perder ligação com o exercício da escuta. A consciência é um sensor que dá sentido ao som percecionado (escutado). O exercício da escuta e a capacidade de ouvir são sinónimos do desenvolvimento do ouvido em todas as suas dimensões, sensorial4 e sensível5.

“Porque é que alguém se priva desse maravilhoso instrumento e sofre danos e como explorar a riqueza imensurável que representa?6” (Mariètan, 2005, p.28). O exercício da escuta

4 Se.so-ri-al adj. 2 g.; (1) (anatomia) relativo ao cérebro ou à parte do cérebro chamada de sensório; (2) relativo

aos sentidos, à sensação. In Priberam, acedido a 8 de Março de 2021

5Sen-sí-vel adj. 2 g.; (1) dotado de capacidade, (2) recebe facilmente impressões ou sensações externas, (3) que

é do domínio dos sentidos; (10) (filosofia) que ou o que só pode ser compreendido pelos sentidos e não pela inteligência, pela razão. In Priberam, acedido a 8 de Março de 2002

6Traduçao livre de “Pourquoi se laisser priver de ce merveilleux instrument et subir un immense dommage et

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requer concentração sobre o que o ouvido perceciona. É também um exercício de descodificação. Mariètan dá como exemplo a música: para ouvir é preciso compreender os sons por si mesmo, as suas relações com outros sons e a sua relação com os silêncios (Fig. 10).

Fig. 10 - Pierre Mariètan 3 Versions D'un Poème De H.H., composição musical com sons do quotidiano, do album coletivo de música experimental Erratum #1, disponível em:

https://www.youtube.com/watch?v=VyBnpqe-N8A&t=36s (acedido a 19.03.2021)

Segundo Mariètan, a fonte sonora é uma forma incompleta de fenómeno acústico, uma vez que o espaço entre a fonte sonora e o ponto de escuta modela tanto o espaço quanto é responsável pela sua determinação. Quando um som é projetado, é qualificado pelas características formais e materiais do espaço, assim como o próprio espaço é parcialmente definido pelos fenómenos acústicos que aí decorrem (cf. Marriètan, 2005, p.29).

Assim, o som (vibração) é definidor de espaço pela sua característica de propagação e não apenas pela sua fonte sonora emissora, tal como um som pode ter um efeito máscara sobre outro som.

No quotidiano, a informação sonora resulta de uma organização que é, muitas vezes, estranha ao propósito da sua função. A memória de um som, um diálogo, por exemplo, é reestabelecedora de um ambiente silencioso, como se isolássemos aquele som de todos os outros e o captássemos ao depositar toda a nossa atenção nessa “gravação”. Esta nossa capacidade de focar a atenção no discurso de alguém específico, sem considerar outras informações irrelevantes vindas do meio envolvente, denomina-se efeito cocktail (cf. Augoyard/Torgue 2005, p.28)

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O máximo de perceção sonora – numa escala de “graduação da transparência na escuta”7

– é a fórmula para essa perceção ser clara e consciente. Isso significa que a continuidade sonora presente por ressonância mecânica ou elétrica mascára a qualidade sonora do ambiente e é redutora de silêncio. (cf. Mariètan, 2005, p.54). Estamos de tal forma habituados a um ruído de fundo que assumimos por silêncio um ambiente onde essas vibrações ressoam permanentemente. É por isso que a substituição de alguns sons por outros nos leva a ter mais consciência do ambiente e em particular do ambiente sonoro.

Hoje em dia, poucos são os lugares que ainda não sofreram alterações do ponto de vista sonoro e que conseguem manter a sua “sonoplastia” original sem ressonâncias, pois a presença humana e industrial disseminou-se por todo o mundo, mesmo nos lugares mais recônditos e protegidos.

No geral, a perceção visual do meio ambiente acaba por se sobrepor à escuta na medida em que o olhar parece estar mais exercitado e, consequentemente, mais desenvolvido na sua capacidade percetiva em comparação com a escuta. As problemáticas estéticas relacionadas com a perceção visual têm vindo a ser solucionadas à medida que foram sendo identificadas no meio ambiente, enquanto que o ruído é um elemento que se tornou alvo de atenção muito recentemente. Mariètan, como outros autores que desenvolvem investigação na área do ambiente sonoro, nomeadamente Schafer, defendem que é necessária uma abordagem semelhante no campo sonoro sem esquecer que, no caso da perceção sonora do espaço, esta depende de uma relação temporal.

A convergência entre as características gerais de um ambiente sonoro e as suas especificidades, a manifestação da configuração do lugar, a assimilação das suas fontes sonoras e a sua relação sensível com o natural e o construído, são fatores que caracterizam um espaço (fisicamente). A definição sonora de um espaço, vai muito para além do ruído que, no fundo, nada diz isoladamente, embora ganhe significado quando se relaciona com o planeamento e a morfologia do mesmo. (cf. Mariètan, 2005, p.54).

Para completar as noções que definem um som e o seu contexto, Mariètan introduz as noções de rumor e de situação sonora. O rumor refere-se a condicionantes naturais como o vento. Visualmente, o vento limpa a paisagem, sonoramente, funciona como um difusor. Ou seja, aquilo que o ouvido capta nesse momento é uma massa sonora difusa e menos definida,

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porque a informação dispersa. Com esta noção, Mariètan procura mais pormenor na delimitação das características específicas de um lugar, informação que vai para além dos sons isolados que, no geral, são reconhecidos como citadinos: “Os sons que desaparecem rapidamente são

também rapidamente esquecidos.” 8

Uma “situação sonora” refere-se ao efeito resultante de um evento sonoro como, por exemplo, a passagem de um avião que deixa um “arrastamento sonoro” ou o som do cair da chuva que se instala e o tempo que esse som demora a acontecer e a desvanecer no espaço dando lugar a outra situação sonora. Esse tempo pode também ser percebido como o tempo necessário que demoramos a identificar essa informação sonora como estando presente. Assim, com o efeito temporal inerente às situações sonoras, esses acontecimentos tornam-se construções acústicas de espaço. (Mariètan, 1997, p.58).

Para melhor compreender estes fenómenos, Mariètan descreve um exercício levado a cabo pela Escola de Arquitetura de Paris no curso de Composição Arquitetural Sonora (Composition Sonore Architectural) no qual alunos foram convidados a estudar um sítio na cidade de Paris, no caso, a Porta de Orleães, através de um processo de escuta metodológica. O exercício consistiu em gravar som a partir de certos pontos de escuta determinados pela morfologia do espaço e pelos diferentes graus de intensidade sonora. Em cada um desses pontos de escuta, previamente definidos, dois alunos entabulam uma conversa num tom de voz normal, enquanto um terceiro, que os escuta, se vai afastando gradualmente. Durante a experiência, o terceiro aluno foi tirando notas sobre a experiência, como por exemplo: o que foi dito na conversa entre os dois primeiros colegas; que, ao afastar-se dos dois primeiros colegas, perdia a definição da conversa embora o som fosse percetível, ou seja, o limite das suas vozes era audível ainda que não fosse possível descodificar a mensagem; e ainda o ponto a partir do qual não era possível ouvir mais nada da conversa. (cf. Marriètan, 2005, p. 55).

Através deste exercício, os alunos fizeram um mapeamento sonoro do bairro onde indicaram, em volume, o grau de perceção sonora de cada zona do bairro. Compreenderam, também, que, para além da morfologia do espaço e da distância entre o ponto de escuta (o terceiro aluno) e a fonte (os alunos que conversam), o som era muitas vezes mascarado por diversas “situações sonoras”.

8 Mariétan, 2005, p.54 (tradução livre do original): “Sons qui souvent disparaissent vite et se font tout aussi

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Os sons mais silenciosos são normalmente reveladores (tal como as múltiplas fontes sonoras) para o significado desses sons mais discretos. Ou seja, um som silencioso não mascara outro som; acontece num espaço temporal contínuo que permite que outros sons se destaquem. Mariètan define o que é entendido como silêncio como um som que precisa de outros sons para o ser. Já a articulação e combinação entre situações sonoras determina a definição das mesmas em relação às restantes; a fonte sonora, a forma como o som se propaga no espaço e a forma como o som é percecionado são acontecimentos inseparáveis na acústica espacial. (cf. Mariètan, 2005, p.59).

Schafer, outra referência neste processo de pesquisa, foi responsável por uma pesquisa pioneira sobre ambiente sonoro intitulada The World Soundscape Project. Neste estudo multidisciplinar sobre o som ambiental e as suas características, Schafer investigou não só as mudanças sonoras que foram ocorrendo ao longo do tempo, como o seu significado para as comunidades afetadas. A sua maior preocupação era destacar positivamente a problemática da poluição sonora e do ruído, questões reguladas apenas por restrições legais. Propôs que o mundo fosse tratado como uma macro composição onde seriam discutidas pelas comunidades questões como que sons queremos eliminar, conservar ou produzir. Schafer explora os sons da natureza nas suas composições musicais, como por exemplo os sons da água ou do fogo, sons inusitados e do quotidiano cuja perceção foi tendencialmente substituída por sons progressistas das novas tecnologias e cuja presença no dia a dia fica adormecida no processo da escuta.

No livro O Ouvido Pensante (The Thinking Ear, 1986), Schafer explora a consciência e o lado efetivo da comunicação e da perceção sonora. Como sonorizar uma história de forma a torná-la reconhecível apenas pelo som? Como construir uma escultura sonora? Estas são questões que Schafer coloca e cuja resposta procura através da exploração sonora, nas suas várias dimensões, com montagens, sobreposição, criação de peças e com a desconstrução das mesmas.

É assim que Murray Schafer desconstrói a perceção sonora analisando o facto sonoro (situação sonora, para Mariètan) em contexto de paisagem sonora segundo as suas qualidades atmosféricas, acústicas, psicoacústicas, semânticas e estéticas.

A própria nomenclatura, fato sonoro, evoca algo que chega e que está no lugar, algo que acontece ou é realizado, e que existe num certo contexto. Schafer, estuda as características de um som ao qualificá-los segundo as cinco qualidades mencionadas e que vão desconstruir ou construir o seu real impacto e significado.

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Tomemos como exemplo um buzinão de carros: esse som cria um alerta, mas tanto se pode tratar de um protesto como de uma manifestação de alegria.

Nesse contexto, o som dá ao recetor (ouvinte) uma noção da distância e da intensidade, podendo ser mais ou menos nítido. Em termos de ambiente, o som pode ser hi-fi (distinção clara entre sons devido à ausência de ruídos de fundo) ou low-fi (quantidade de fenómenos sonoros que se sobrepõe e a perspetiva sonora que se perde perante uma variedade de ruídos), natural, humano ou tecnológico. Podemos também particularizar se se trata de um fenómeno isolado, repetitivo ou se faz parte de um conjunto de outros sons (mensagem mais complexa). No que diz respeito às condições exteriores, a perceção de um som inclui informações sobre reverberação do meio (se existe ou não, se é curta ou longa), eco, variação, deslocamento. Esteticamente, Esse facto sonoro tem também uma leitura acústica (que som é), psicoacústica (como é ouvido), semântica (o que quer dizer) e estética (se é um som agradável ou desagradável).

O exemplo da buzina do carro, acusticamente, classifica-se como um som estacionário, ou seja, é um som sem progressão, na psicoacústica é um som brusco que provoca desconforto auditivo; já a sua interpretação semântica é variável, “Quero passar!” que, a nível estético passa a mensagem de alguém que está contrariado, ou “Ganhámos o jogo!” que, esteticamente, é uma manifestação de alegria.9

Naturalmente que esta leitura pressupõe consciência e disponibilidade de análise da informação sonora. Mas a leitura, segundo estes parâmetros, é, muitas vezes, disforme principalmente quando se trata de um interpretação semântica ou com uma ligação afetiva, pois está mais intimamente relacionada com a experiência individual.

Numa análise sociológica do quotidiano, a perceção é caracterizada por um fenómeno de comunicação, tema que iremos abordar em 1.3 Experiência do corpo no espaço (etnografia sensorial, espaço e perceção), e o som, como um elemento de informação através da perceção sonora e auditiva. Augoyard e Torgue, em Sonic experience – A guide to everyday sounds (2005), explicam este fenómeno da perceção através de um processo de repetição que intensifica a leitura e interpretação dessa informação sonora.

9 Notas retiradas da apresentação da aula do Professor António Sousa Dias sobre Murray Schafer e o “Facto

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Num espaço que nos é familiar conseguimos localizar muitos dos sons que caracterizam esse espaço. Há sons que, mesmo inconscientemente, esperamos que aconteçam ou que estejam presentes. São sons que fazem parte do contexto mas que, uma vez fora desse contexto, muitas vezes, não conseguimos identificá-los como se essa memória sonora fosse apagada. Paralelamente, cada som é reconhecido como se medíssemos, numa fração de segundo, a sua capacidade de emergir do enquadramento comum; a repetição aparece, geralmente, na forma de um eco mecânico.

“(...) o efeito de repetição é uma das ferramentas para localizar periodicidades do mundo. Do relógio à sirene da fábrica, o sino de igreja, um comboio que apita à hora certa, ou o cantar dos pássaros que se ouvem todas as manhãs e noites - uma variedade de sons que define o tempo constantemente”. (Augoyard/Torgue, 2005, p.93)10.

Jean-François Augoyard e Henry Torgue defendem que a perceção do meio constrói-se através do efeito da repetição, ou seja, a consciência dos sons existentes no meio ou de sons que fazem parte do nosso corpo, como o ritmo cardíaco ou a respiração, torna-nos conscientes desses ciclos. São também uma ligação à nossa existência. Os sons do corpo são manifestações sonoras que pontuam a nossa existência, que expressam uma condição biológica e se tornam uma informação de referência. No domínio percetivo, a função da repetição parece residir na oferta de referências de organização de uma mensagem complexa, um conjunto sonoro que identificamos como sendo um objeto ou uma situação, composto de diversos sons que fazem parte dessa composição. (cf. Augoyard/Torgue, 2005, p.93).

Augoyard e Torgue dão o exemplo de uma impressora que, superficialmente, aparenta produzir um ruído indistinto, que identificamos como sendo “uma impressora a trabalhar”. Mas, ao ouvir o mecanismo em funcionamento por algum tempo, conseguimos compreender os “os detalhes do material sonoro e dos seus componentes”. No seu conjunto, a perceção sonora desse organismo mecânico revela diferentes ritmos, ciclos e durações. Se andarmos à volta do objeto, compreenderemos que certos sons se destacam em locais específicos e que esses sons funcionam como uma máscara dos sons que ouvimos antes; ou pelo contrário, podem destacá-los. A escuta indica-nos um bom funcionamento da máquina, pois qualquer quebra no ritmo sonoro é um indicador de que algo dentro do ciclo mecânico não está a funcionar bem. A descodificação dos efeitos de repetição, neste exemplo, é percetível.

10 Augoyard/Torgue, 2005, p. 93 (tradução livre do original): (...) the repetition effect is one of the tools for locating

periodicities of the world. From the ticking clock to a factory siren, an angelus bell, a train whistling, the bird songs heard every morning and evening – an indefinite variety of sounds constantly define time.”

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Também os espaços e lugares são definidos por certas repetições. Por isso, a perceção de um som que ouvimos pela primeira vez, difere da vigésima vez que ouvimos essa repetição. Ou seja, há uma memória, uma experiência anterior e, consequentemente, uma mudança qualitativa pois passamos de uma ocorrência isolada para uma série significativa. (cf. Augoyard/Torgue, 2005, p.94).

Assim a experiência da escuta torna-se um meio de conhecimento e de reconhecimento à medida que dela vamos usufruindo.

1.3 Experiência do corpo no espaço (etnografia sensorial, espaço e perceção)

A experiência é a base da nossa vida social, por isso, a primeira vez que experienciamos algo, como é exemplo a escuta de um som, estabelecemos uma base de referência, uma base de comparação. Sobre essa primeira escuta outras sucedem: “nunca mais haverá uma inocência percetiva sobre a qual o objeto sonoro, inédito até esse momento, está inscrito.” (Augoyard/Torgue, 2005, p.94).

Essa escuta inicial é frágil, uma vez que não se vai enquadrar dentro de uma perceção geral; não vai ser ouvida com uma base de referência e comparativa anterior. A escuta contínua e sucessiva confere ao estímulo sensorial uma sedimentação progressiva, um conhecimento que nos permite compreender os diversos elementos que dela fazem parte. A repetição, o hábito, a criação de uma experiência progressiva com um estímulo, situação ou experiência é uma forma cumulativa de progressão e conhecimento em relação a esse mesmo estímulo.

No tópico anterior 1.2 - Som como elemento de caracterização espacial abordaram-se diversas formas de definir o espaço através do som e através da perceção e da consciência das qualidades sonoras de um espaço. Refletiremos agora sobre a experiência de permanecer e habitar um espaço; e sobre o corpo, também ele espaço, enquanto sistema orgânico, único, dotado de sensibilidade e de capacidade percetiva através dos sentidos.

Esta relação do corpo com o espaço e a consciência da sua presença no espaço, em concreto num espaço da casa, converge com o objeto de investigação de Sarah Pink11. Pink

11 Sarah Pink, professora de Ciências Sociais na Universidade de Loughborough, Inglaterra, cujo trabalho

interdisciplinar parte de uma base antropológica e procura estabelecer ligações entre a pesquisa académica e o trabalho de campo, com recurso a métodos audiovisuais e tecnologia media.

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desenvolve uma pesquisa de base etnográfica sobre a relação sensorial do indivíduo no espaço que denomina de etnografia sensorial. Trata-se de um estudo dentro das ciências sociais que parte da experiência do ser humano como forma de conhecimento, através da observação dos hábitos e normas de comportamento. Refira-se ainda que grande parte da sua pesquisa tem o seu principal foco na casa como objeto de estudo e o suporte audiovisual como técnica de observação e registo.

Pink conduz o indivíduo da experiência a um nível de consciência do espaço e do meio que o rodeia e com o qual comunica, sem necessidade de recorrer à linguagem verbal ou a recursos como registo escrito ou entrevista, mas sim através da presença e da experiência do indivíduo no espaço.

Nesta metodologia de investigação é essencial estabelecer relação entre os elementos espaciais através do espectro sensorial de forma a chegar ao conhecimento de coisas das quais não temos consciência quando as sentimos, tanto emocional como sensorialmente. Tratam-se de coisas ou situações que conhecemos através do nosso corpo (dos nossos sentidos) mas que não conseguimos enunciar, sobre as quais não pensamos de forma consciente mas às quais respondemos com automatismo o que (muitas vezes) nos priva de exercer uma escolha, uma ação consciente.

É possível que já nos tenha acontecido a todos: entrar num espaço e sentirmo-nos desconfortáveis, ou o oposto, sentirmo-nos muito bem e confortáveis. É através dessas sensações que Pink desenvolve a pesquisa no seu trabalho, indicando a experiência no espaço como forma de chegar ao prisma do sensível e sensitivo, pois são conhecimentos que adquirimos mas os quais são difíceis de explicar, na medida em que, tanto a capacidade percetiva e sensível, são algo que varia de pessoa para pessoa conforme contexto social, cultural, crenças e valores, entre outros parâmetros.

Pink refere-se ao conhecimento adquirido através da experiência, de estar num espaço, e a leitura de um espaço, como um processo de pesquisa capaz de ultrapassar o limite dos sentidos e das sensações que não se explicam.

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Pink procura compreender de que forma os sentidos operam neste processo de consciência espacial. Durante uma conferência12 delimita o tema da pesquisa: Etnografia

sensorial não é sobre a etnografia dos sentidos mas sim uma metodologia de investigação etnográfica guiada pela compreensão e consciência através dos sentidos. (cf. NCRMUK, 2015, min. 00:30). O processo de trabalho de consciencialização do espaço e dos comportamentos no espaço que Pink aplica na sua investigação consiste num mapeamento de objetos, processos e percursos que caracterizam o espaço e onde os cinco sentidos não podem ser considerados separadamente, citando o professor de neurologia Richard E. Cytowic: “os cinco sentidos não viajam em canais separados, eles interagem a um nível que, há dez anos, só alguns cientistas teriam acreditado (...)”13 (cf. NCRMUK, 2015, 01:40 min); é importante saber não apenas o

que pensam as pessoas (os sujeitos da experiência) mas também como é a sua experiência dentro de determinado espaço.

Na componente de investigação direcionada para o espaço da casa, Pink trabalha com

designers para que, em conjunto, compreendam a experiência da casa através do

comportamento dos sujeitos no espaço e através do desenho do próprio espaço. Neste caso, o projeto está relacionado com consumos de energia. Foram assinalados hábitos dos sujeitos dentro das suas casas como, por exemplo, o que lhes trazia conforto ou desconforto, através de um processo de consciencialização da sua própria presença no espaço.

Os aspectos relacionados com perceção, movimentos e ações como abrir ou fechar uma janela, percursos dentro de casa, áreas onde se permanece mais ou menos tempo e os motivos para que isso aconteça, são registados (registos audiovisuais que captam a experiência). Tornam-se, desta forma, comportamentos conscientes.

É exemplo o seguinte exercício que Pink descreve na sua intervenção no Colóquio Halmstad, Data Ethnographies and Digital Futures: contingency and improvisation realizado na RMIT University na Austrália:

“(…) peço às pessoas que desenhem o que fazem em suas casas. Isto é importante na etnografia, o fazer. Que acaba por ser o mesmo que fizeram os antropólogos clássicos quando foram viver para o campo com um grupo de pessoas. Aprenderam como é viver

12 Conferência de Sarah Pink “What is the sensory Ethnography”, 4th Research Methods Festival, Sta Catherines´s

College Oxford, Oxford, 2010

13Pink apud Cytowic, 2010, tradução livre de: “the five senses do not travel along separate channels, but interact

Referências

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