• Nenhum resultado encontrado

A PERSPECTIVA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA CO- CULPABILIDADE E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "A PERSPECTIVA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA CO- CULPABILIDADE E A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL"

Copied!
14
0
0

Texto

(1)

A PERSPECTIVA JURÍDICA DO PRINCÍPIO DA

CO-CULPABILIDADE E A SELETIVIDADE DO DIREITO

PENAL

Alicia Etlis1*

RESUMO

O presente artigo tem como principal objetivo demonstrar que o direito penal é seletivo e que a utilização do princípio da co-culpabilidade é uma das formas de amenizar a seletividade. Tal análise será feita mediante o breve estudo acerca dos ideais defendidos pela criminologia crítica, que se origina a partir do pensamento da teoria do etiquetamento. Essa teoria, também chamada de reação social ou

labeling approach, preocupou-se em estudar o processo de rotulação

que a sociedade faz a partir de um comportamento que entende como desviado. Ainda, serão analisadas as ideias defendidas pela criminologia crítica ou radical em suas duas fases, qual seja, a nova teoria marxista e a criminologia crítica que defende que o direito penal é seletivo. Além disso, uma breve relação entre a sociedade de consumo e a seletividade do direito penal serão traçadas para, por fim, desenvolver a ideia de que o princípio da co-culpabilidade poderá ser utilizado como uma forma de amenizar tal seletividade.

Palavras-chave: Seletividade do direito penal. Princípio da

co-culpabilidade. Criminologia crítica.

1 INTRODUÇÃO

No presente artigo serão analisados os ideais defendidos pela criminologia crítica que prevê a abolição das desigualdades sociais, de riqueza e de poder. Para os adeptos da criminologia crítica a solução do crime depende da substituição do capitalismo pelo socialismo, pois só assim se elimina a exploração econômica e a opressão política das classes. Além disso, prevê que para o estudo do crime não basta analisar somente o tipo penal, mas é necessário conhecer todo o contexto social em que o indivíduo está inserido.

* Advogada, Pós-Graduanda Em Direito Penal e Processo Penal – Uniritter Laureate International

(2)

Breves comentários serão tecidos acerca das duas fases da criminologia crítica, que são a nova teoria marxista e a criminologia crítica. Ainda, serão analisadas brevemente as políticas criminais propostas pelas classes subalternas que foram objeto de análise da criminologia crítica. Tais políticas pretendem ser revolucionárias, pois valorizam a análise não só do tipo penal, mas de todo o contexto social envolvido em busca da igualdade entre as classes sociais.

Ainda, tendo como fundamento a seletividade do direito penal, ideia desenvolvida pela criminologia crítica, tentar-se-á demonstrar a relação existente entre tal perspectiva e a sociedade de consumo. E é nesse contexto que o princípio da co-culpabilidade poderá ser entendido como umas das formas de minimizar os efeitos da sociedade atual na prática delitiva. A co-culpabilidade, por sua vez, é a forma encontrada de responsabilizar o Estado que sonegou oportunidades ao agente delitivo, além de responsabilizar a sociedade que ajudou a produzir o delinquente.

2 ORIGENS DAS IDEIAS CENTRAIS DA CRIMINOLOGIA

CRÍTICA

Os ideais defendidos pela criminologia crítica, em seguida analisados, são de suma importância para o desenvolvimento do presente artigo. Em se tratando de uma sociedade que estimula o consumo, mas, ao mesmo tempo, marginaliza parte da população, os ideais da teoria marxista surgem de modo a explicar o motivo pelo qual a lei penal defende os interesses das classes dominantes (LARRAURI, 1992. p. 118).

Entretanto, antes de adentrar especificamente nas ideias da teoria marxista que originaram a criminologia crítica, é necessário realizar um breve comentário acerca da teoria do etiquetamento, já que se preocupou em demonstrar a reação da sociedade frente ao comportamento desviado.2

2 O pensamento marxista foi desenvolvido por Karl Marx que defendia que a lei penal nada mais

é do que uma estrutura dependente do sistema de produção. O homem não tem o livre arbítrio que lhe era atribuído (pela escola clássica), já que se submete a um vetor econômico que lhe é insuperável e que acaba por produzir não só o crime em particular, mas também a criminalidade como um fenômeno global, com feições patrimoniais e econômicas que todos conhecem. (SHECAIRA, 2011, p. 345-346).

(3)

O labeling approach, também conhecido como teoria do etiquetamento ou reação social, surgido na década de 60, nos Estados Unidos, influenciado pelo trabalho desenvolvido por Sutherland (BATISTA, 2011. p. 77), preocupou-se em estudar o processo de definição (rotulação) pela qual a sociedade interpreta um comportamento como desviado e como a sociedade reage a esse comportamento. Além disso, analisou como a pessoa que foi rotulada como criminosa reage a essa definição (MOLINÉ; LARRAURI, 2001. p. 200-201).

Elena Larrauri (2001, p. 202) esclarece que a definição de um comportamento como desviado é uma consequência de uma luta de interesses. Assim, quando os grupos mais poderosos criam e aplicam as normas para àqueles que as infringem, estão criando também o comportamento desviado. Desta forma, determinados grupos sociais mobilizam o Estado e o direito penal para elaborar as leis de acordo com as suas concepções sociais e morais do mundo.

Larrauri destaca ainda que, quando uma pessoa age de tal modo que seu comportamento seja visto como desviado, ela pode assumir essa posição e aceitar a rotulação que foi imposta pelos outros membros da sociedade que consideraram o seu comportamento como um desvio. Nesses casos, ao assumir a identidade de delinquente pelo comportamento desviado, ocorre à assunção ao rótulo e o indivíduo identifica-se com a nova identidade que lhe foi dada (MOLINÉ; LARRAURI, 2001. p. 200-207).

Entretanto, em que pese a contribuição desenvolvida pelo etiquetamento, essa teoria mostrou-se insuficiente quanto ao grau de abstração em relação à estrutura econômica. Assim, a criminologia crítica desenvolveu-se a fim de aclarar as relações de poder e da propriedade em que se estruturam conflitivamente a sociedade capitalista e, então, explicar aquilo que não foi estudado pelo labelling (ANDRADE, 2003. p. 214-216).

Além da influência que a teoria do etiquetamento exerceu sobre a criminologia crítica, a teoria marxista é entendida como fundamento para as ideias da criminologia crítica. Os defensores da teoria marxista, influenciados sobre as ideias de Bonger3, traçam uma interessante linha de raciocínio: a

(4)

delinquência não se origina na personalidade do agente, mas na estrutura capitalista da sociedade. O que não significa que todos os crimes sejam por motivos econômicos, mas são oriundos de sentimentos e valores oriundos da própria estrutura econômica (MOLINÉ; LARRAURI, p. 234-235).

A criminologia crítica então tem influência da teoria do etiquetamento e fundamento na teoria marxista. Por sua vez, a criminologia crítica divide-se em duas etapas que serão objeto de análise nos próximos tópicos. A primeira delas é conhecida como nova teoria marxista e a segunda é chamada de criminologia crítica.

3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA OU RADICAL

Juarez Cirino dos Santos (2006. p. 36) defende que a criminologia radical pretende abolir as desigualdades sociais de riqueza e poder. Os radicais entendem que a solução para o crime depende da eliminação da exploração econômica e da opressão política de classe substituindo o capitalismo pelo socialismo.

Os radicais, como socialistas, lutam contra o imperialismo dos países centrais, a exploração de classes, o racismo. Como teóricos, argumentam que a instituição de uma sociedade sem classes, mediante a socialização dos meios de produção, é a melhor estratégia política (SANTOS, 2006, p. 43-47).

Para o estudo do crime e do controle social não se pode somente analisar os tipos penais, mas o tipo social do autor, ou seja, a posição de classe que ocupa, o tipo de sociedade, seu estágio de desenvolvimento, o papel de formação econômico-social no mercado mundial, a função na divisão internacional do trabalho, entre outros, ou seja, para os críticos, não basta a análise do tipo penal, mas é imprescindível verificar todo o contexto social em que o crime está inserido (SANTOS, 2006, p. 40).

se origina da necessidade econômica das camadas mais pobres da sociedade e do sentimento de ambição presente nas sociedades capitalistas, que necessitam desses sentimentos para continuar em funcionamento. Assim, Bonger considera que os delitos são comportamentos normais, porém oriundos da ambição ou da competitividade na sociedade. (MOLINÉ; LARRAURI, 2001, p. 234).

(5)

Assim, a criminologia radical tem como objeto o conjunto de relações sociais entre estrutura econômica e superestrutura jurídica e política de controle social. Pretende transformar a estrutura social com a construção do socialismo, pois não há possibilidade de resolver o problema do crime em um sistema capitalista. Para isso, prioriza as classes trabalhadoras e o conjunto das categorias sociais subalternas marginalizadas pela sociedade capitalista, explicando a criminalidade como um problema estrutural (SANTOS, 2006, p. 43-44).

3.1 A PRIMEIRA ETAPA: A NOVA TEORIA MARXISTA

Os ingleses Ian Taylor, Paul Walton e Jock Young foram os principais autores dessa primeira etapa da criminologia crítica. Criticam o direito penal e o funcionamento do sistema penal, pois, para eles, o direito penal preocupa-se com as necessidades e os interespreocupa-ses do capitalismo, prejudicando os interesses das classes sociais mais baixas (MOLINÉ; LARRAURI, 2001. p. 237). Nesse sentido, Elena Larrauri (2001, p. 237) destaca que foi motivada a discussão acerca dos critérios utilizados para criminalizar as condutas previstas nos códigos penais, pois, para os críticos, os comportamentos criminalizados assim o são por interesse da classe social dominante, ou seja, a classe que detém o poder econômico.

Assim, para os críticos, o comportamento que fere um direito humano é considerado um delito. Deste modo, não é somente um indivíduo que pode praticar um delito, ou seja, ferir um direito humano. E é por isso que se considera que o sistema social pratica um delito ao permitir situações de miséria, racismo, discriminação, ou quaisquer outras condições sociais que, de alguma forma, firam um direito humano.

Alessandro Baratta (2002, p. 200-201) destaca que a sociedade capitalista preocupa-se em defender seus próprios interesses, criminalizando as condutas que lesionam a propriedade. Entretanto, descriminaliza os comportamentos realizados pelas classes dominantes da sociedade capitalista. Assim, destaca que as classes mais baixas devem superar as condições do sistema econômico capitalista, redefinindo a política criminal4 que deverá passar a analisar áreas

(6)

não criminalizadas anteriormente, pois praticadas pelas classes dominantes (criminalidade econômica, criminalidade política dos detentores do poder).

Deste modo, Larrauri (2001. p. 239) conclui que os teóricos defensores da nova teoria marxista apontavam que o comportamento delitivo origina-se na desigual e injusta distribuição de riqueza do sistema capitalista. Os delinquentes são os marginalizados, aqueles que o sistema capitalista considerou inservível ao funcionamento da economia. Os delitos passam a ser vistos como forma de resistência ao capitalismo. Portanto, consideram que a única forma para acabar com a delinquência é uma reforma social que modifique o sistema.

3.2 A SEGUNDA ETAPA: CRIMINOLOGIA CRÍTICA

A segunda etapa da criminologia crítica, também denominada criminologia crítica, tem início com as autocríticas dos próprios criminólogos às suas posições anteriores. Primeiramente, consideraram que nem toda a delinquência é produto da economia capitalista, já que os ricos também praticam crimes (crimes do colarinho branco). Em segundo lugar, não mais se considera o delinquente como um rebelde político e, portanto, a criminologia crítica passa a estudar o delito em um contexto histórico, social e econômico e não somente em um contexto político. O foco passa a ser o processo de criminalização (MOLINÉ; LARRAURI, 2001. p. 241).

A criminologia crítica não acredita que uma sociedade socialista acabe com o crime. Há total desconfiança do Estado e por isso se pretende minimizar o seu caráter punitivo. Os críticos acreditam que uma reforma social em todo o sistema é o único modo de diminuir ou acabar com a delinquência (MOLINÉ; LARRAURI, 2001, p. 241-244). Para isso, não basta uma análise do ato desviado em si, mas deve-se averiguar as bases estruturais econômicas e sociais que caracterizam a sociedade na qual vive o autor do delito.

Assim, essa nova visão da criminologia crítica reestrutura toda a política criminalizadora do Estado. Pretendem, então, assumir uma criminalização e penalização das classes sociais dominantes e, por isso, diz-se que a institucional. Diferentemente da política penal, que é a resposta da questão criminal posta no âmbito do exercício da função punitiva do Estado (BARATTA, 2002, p. 201).

(7)

criminologia crítica dá azo a uma política criminal das classes subalternas/ classes mais baixas (SHECAIRA, 2011. p. 378-379).

3.3 A CRIMINOLOGIA CRÍTICA E A POLÍTICA CRIMINAL DAS CLASSES SUBALTERNAS

A criminologia crítica ressalta que o direito penal e a política criminal favorecem as classes dominantes. Dessa forma, pretende direcionar o direito penal para os menos favorecidos, estimulando a política criminal das classes subalternas (BARATTA, 2002, p. 201).

Segundo Alessandro Baratta (2002. p. 201-205), essa nova política criminal pretende analisar as relações sociais e promover a igualdade entre todos, fomentando o uso alternativo do direito penal. Nessa linha, porém de forma um tanto mais radical, surge a ideia da despenalização, pretendendo diminuir a incidência do direito penal nas classes subalternas partindo de uma sanção penal que não seja estigmatizante, a fim de proporcionar uma maior aceitação social do desvio. Essa política criminal alternativa pretende ocasionar uma reforma de todo o sistema penal, considerado desigual, desde a organização judiciária até a polícia, democratizando tais setores do Estado.

A ideia de política criminal das classes subalternas pretende ser revolucionária, pois analisa todo o contexto social a fim de obter grandes reformas, desenvolvendo a igualdade, a democracia, a forma de vida comunitária e civil, o “contrapoder” do proletariado, baseado na superação das relações sociais de produção capitalista. Deste modo, essa nova política criminal radical analisa a sociedade como um todo, buscando a igualdade entre as classes sociais (BARATTA, 2002. p. 201).

A nova política criminal pretende derrubar os muros do cárcere, mediante a ampliação das formas de suspensão condicional da pena, da liberdade condicional, introduzindo formas de semiliberdade, estendendo os regimes de permissões e reavaliando o trabalho carcerário exercido pelo preso. Por outro lado, essa nova política criminal pretende, ao mesmo tempo, derrubar os muros do cárcere, e fazer com que a sociedade tenha acesso às prisões. Desta forma, seria possível diminuir as consequências da prisão na vida do indivíduo, tratando de promover a reinserção do preso na sociedade.

(8)

4 A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL E A SOCIEDADE DE

CONSUMO

Alessandro Baratta (2002. p. 198) refere que estatísticas nos países capitalistas indicam que a grande maioria da população carcerária vem do proletariado, especificamente, de setores do subproletariado, ou seja, de zonas sociais já socialmente marginalizadas como exército de reserva pelo sistema de produção capitalista.

Além disso, segundo essas mesmas estatísticas, 80% dos crimes dos países capitalistas referem-se à propriedade, o que constitui uma reação individual e não política às contradições do sistema de distribuição de riquezas. Segundo os defensores da criminologia crítica, as classes subalternas estão mais expostas a esse tipo de desvio5.

Ademais, entendem os críticos que os atos entendidos como criminosos o são porque à classe dominante interessa que assim o sejam e é exatamente por isso que defendem a seletividade do direito penal. Diferentemente do que afirma a criminologia tradicional6, para os críticos, as pessoas das classes

mais baixas são rotuladas como criminosas para servir ao interesse da classe dominante, já que é a burguesia quem tem o controle do Estado e da aplicação da lei.

Desta forma, segundo Shecaira (2011, p. 348-349), entendem os críticos que cada sociedade teria números diferentes de cometimento de crimes. Nesse sentido, uma sociedade socialista teria menos criminalidade que uma sociedade capitalista, pois na primeira o conflito de classes seria muito menor, enquanto que na segunda o embate entre as classes é mais intenso.

O desenvolvimento de uma sociedade capitalista acarreta a divisão entre as classes sociais e o crescimento de leis penais para tentar manter

5 O que não significa que a criminalidade exista somente nas classes subalternas, ao contrário,

ela existe em todas as classes sociais. Entretanto, as classes dominantes possuem determinada imunidade sobre o processo de criminalização, o que não ocorre com as classes subalternas. (BARATTA, 2002, p.198).

6 Shecaira defende que para a criminologia mais tradicional (positivista), as pessoas são rotuladas

criminosas porque seu comportamento foi além dos limites de tolerância da consciência da comunidade. (SHECAIRA, 2011, p. 348).

(9)

uma estabilidade temporária, a fim de esconder confrontações violentas entre as classes sociais. Os críticos acreditam que definindo determinadas pessoas como criminosas há um controle maior sobre o proletariado e que o crime determina que o oprimido não se aproxime do opressor, permanecendo junto com sua própria classe social.

A sociedade capitalista tão criticada pela criminologia crítica também abarca a sociedade de consumo, haja vista que o consumo faz parte do capitalismo. Como já mencionado, o desenvolvimento do consumo está estritamente relacionado com o desenvolvimento do capitalismo. É possível dizer que um depende do outro para sobreviver. São fenômenos que se complementam. Nesse sentido, quando a crítica direciona-se à sociedade capitalista, ela também se dirige à sociedade de consumo, onde o querer consumir move as pessoas (BAUMAN, 2001, p. 186-187).

Para as pessoas que possuem recursos financeiros e podem adquirir todos os bens de consumo à disposição no mercado, o querer consumir torna-se uma rotina de fácil satisfação. Entretanto, há inúmeros indivíduos que não possuem condições financeiras de adquirir os tão almejados bens de consumo. Contudo, encontram outros meios para adquiri-los (BAUMAN, 2001, p.104-105). Nesse ponto, especificamente, é que se relaciona a sociedade de consumo com a delinquência. Os críticos apontam que a criminalização não só está relacionada ao contexto político, ou seja, à sociedade capitalista, mas também aos fatores sociais, históricos e econômicos (MOLINÉ; LARRAURI, 2001. p. 241).

Por isso, não se pode deixar de analisar a vulnerabilidade do indivíduo ao cometer um delito patrimonial, pois essa prática delitiva pode ser considerada o outro meio encontrado para consumir, já que o agente delitivo não tem condições financeiras para comprar o bem.

Nesse sentido é que Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho destacam que, ao analisar as circunstâncias que levaram o indivíduo a praticar determinado delito, deve ser avaliado também se o Estado satisfez minimamente os direitos fundamentais do cidadão. Assim, visto que cada indivíduo tem oportunidades diferentes, não se pode exigir a mesma avaliação para todos (CARVALHO; CARVALHO, 2002, p. 71-72).

(10)

Tendo em vista o direcionamento do direito penal para as classes mais baixas (seletividade), não se pode permitir uma avaliação igualitária para todos os delinquentes. É necessário perceber o grau de vulnerabilidade de cada um e reduzir as desigualdades entre as classes sociais, no intento de acabar com a seletividade do direito penal, limitando as consequências da marginalização social (SANTOS, 2006, p. 131).

5 O PRINCÍPIO DA CO-CULPABILIDADE COMO FORMA DE

AMENIZAR A SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL

Dentre os diversos princípios que orientam o direito penal7, o princípio

da culpabilidade é de suma importância. De acordo com esse princípio, em direito penal, é inadmissível a responsabilidade objetiva. Só se pune o agente quando sua responsabilidade for subjetiva, ou seja, mediante a análise do dolo ou da culpa do sujeito. Desta forma, não se admite a responsabilidade pelo resultado. Por isso, para a aferição da culpabilidade, é indispensável à análise da intenção ou culpa do agente. A culpabilidade também é responsável pela limitação da pena imposta (BATISTA, 2011, p. 99-102).

Segundo o princípio da culpabilidade, em matéria penal só se pune mediante a existência da responsabilidade subjetiva, ou seja, análise do dolo ou da culpa. Além disso, esse princípio determina que a pena não possa ultrapassar a pessoa do condenado (intranscendência), ou seja, a responsabilidade é pessoal. Ainda define a individualização da pena. Deste modo, a análise da culpabilidade do agente deve se restringir à análise do fato e de suas circunstâncias (BATISTA, 2011. p.99-102).

A análise da individualização da pena, no momento da aferição da culpabilidade do agente, trouxe para o direito penal a discussão acerca do princípio da co-culpabilidade. Esse princípio, segundo Nilo Batista (2011, p.99-102), destina-se à análise das oportunidades, das experiências sociais e da assistência conferida aos réus, impondo que o Estado, responsável pela aplicação da pena, também se responsabilize pela conduta delitiva praticada. Como bem definido por Ernst Bloch, a co-culpabilidade faz sentar no banco

7 Tais como legalidade, irretroatividade da lei penal, proporcionalidade, humanidade das penas,

(11)

dos réus, ao lado dos mesmos réus, a sociedade que os produziu (BLOCH apud BATISTA, 2011, p. 102).

A origem histórica do princípio da co-culpabilidade é controvertida. Há aqueles que acreditam que tal princípio surgiu no século XVIII, juntamente com os ideais iluministas. Para outros, no entanto, a co-culpabilidade surgiu com os direitos socialistas e, por fim, há quem defenda que surgiu no século XX (MOURA, 2006, p. 41).

Entretanto, não há como negar que o surgimento da co-culpabilidade mescla-se ao surgimento do Estado Liberal baseado nos ideais iluministas e em seu contratualismo. É a partir desse momento que o crime é visto como rompimento do contrato social. Por sua vez, nesse mesmo sentido, o Estado rompe com o contrato social quando não oportuniza aos seus cidadãos condições básicas de sobrevivência (saúde, educação, segurança). Deste modo, aceitar a existência da co-culpabilidade do Estado é aceitar que o Estado rompeu com o contrato social e, portanto, que também deve ser “punido” (MOURA, 2006, p. 41-44).

No Código Penal brasileiro não há previsão expressa da aplicação do princípio da co-culpabilidade. Entretanto, Zaffaroni reconheceu que o legislador invocou tal princípio quando em 1984 estabeleceu o critério para aplicação da pena de multa (artigo 60, caput e § 1º)8, pois possibilitou ao juiz que ao avaliar

a situação econômica do réu pode(ria) triplicar a pena de multa (CARVALHO; CARVALHO, 2002, p. 73-74).

Salo de Carvalho e Amilton Bueno de Carvalho (2002, p. 74-79) reconhecem a possibilidade de utilização do princípio da co-culpabilidade como atenuante inominada9 da pena, com base no artigo 66 do Código Penal10.

Defendem que a atenuação da pena pela co-culpabilidade da sociedade

8 Art. 60 - Na fixação da pena de multa o juiz deve atender, principalmente, à situação econômica

do réu. § 1º - A multa pode ser aumentada até o triplo, se o juiz considerar que, em virtude da

situação econômica do réu, é ineficaz, embora aplicada no máximo.

9 Cezar Roberto Bittencourt defende que as atenuantes genéricas ou inominadas são chamadas

de circunstâncias legais porque vem expressamente relacionadas no texto legal, entretanto, o código não estabelece a quantidade de diminuição das atenuantes, deixando a prudente arbítrio do juiz na valoração da pena provisória. (BITTENCOURT, 2012, p. 760-762).

10 Art. 66 - A pena poderá ser ainda atenuada em razão de circunstância relevante, anterior ou

(12)

não pode se restringir à avaliação econômica do réu. Devem ser analisadas também as condições da formação intelectual, pois, juntamente com a situação econômica do réu, formam a autodeterminação11 do sujeito.

Zaffaroni (2001, p. 268) defende a ideia de culpabilidade pela vulnerabilidade. Para ele, a situação de vulnerabilidade ocorre quando o sistema penal seleciona determinado sujeito e o utiliza como instrumento para justificar o seu exercício de poder. O grau da vulnerabilidade da pessoa ao sistema penal é que determina a ocorrência do ilícito, já que há diversos outros crimes em que o sistema penal não atua. Nesse sentido, não há como deixar de notar que há relação entre a vulnerabilidade da pessoa e a seletividade do direito penal.

Zaffaroni faz ainda uma distinção entre posição ou estado de vulnerabilidade e esforço pessoal para a vulnerabilidade. O primeiro diz respeito a uma vulnerabilidade predominantemente social que ocorre somente pelo fato da pessoa pertencer a uma classe, grupo, estrato social ou minoria. Já o segundo refere-se ao grau de perigo ou risco que a pessoa se coloca em virtude de um determinado comportamento por ela praticado (ZAFFARONI, 2001, p. 270).

Assim, não basta uma análise da situação econômica do réu para aferir ao Estado a co-culpabilidade. É necessário analisar todo o entorno social em que o sujeito está inserido e se esse contexto tem capacidade de influenciar na prática delitiva. Nesse caso, seria possível utilizar o princípio da co-culpabilidade como atenuante inominada da pena e, de algum modo, punir o Estado por deixar romper com o contrato social (MOURA, 2006.p. 41-44).

Assim, nos termos utilizados por Zaffaroni e Pirangelli:

Há sujeitos que têm um menor âmbito de autodeterminação, condicionados desta maneira por causas sociais. Não será possível atribuir estas causas sociais ao sujeito e sobrecarregá-lo com elas no momento da reprovação da culpabilidade. Costuma-se dizer que há, aqui, uma ‘co-culpabilidade’, com a qual a própria sociedade deve arcar. Tem-se afirmado que este conceito de co-culpabilidade é uma ideia introduzida pelo direito penal socialista. Cremos que a co-culpabilidade é herdeira do pensamento de

(13)

MARAT, e, hoje, faz parte da ordem jurídica de todo Estado social de direito, que reconhece direitos econômicos e sociais, e, portanto, tem cabimento no CP mediante a disposição genérica do art. 66 (ZAFFARONI; PIRANGELLI, 1997. p. 613).

Dessa maneira, utilizando o princípio da co-culpabilidade como atenuante inominada da pena por-se-ia ao lado do homem culpado por seu fato a sociedade que o produziu. Tendo em vista que a sociedade não oferece a todos as mesmas oportunidades e, portanto, deve assumir a parcela de responsabilidade que tem ao negar ao infrator as possibilidades concedidas a outros. É uma forma de minimizar a cruel inefetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, de modo a impor ao Estado uma sanção pela inobservância de sua própria legalidade (ZAFFARONI apud CARVALHO; CARAVALHO, 2002, p. 167-168).

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nos breves argumentos tecidos acerca dos ideais defendidos pela criminologia crítica que, dentre eles, abriga a seletividade do direito penal e a fim de tentar amenizar tal seletividade, o princípio da co-culpabilidade assume um papel importante. Isso porque tal princípio prevê a responsabilização do Estado e da sociedade que não garantiu ao agente delitivo seus direitos sociais, econômicos e culturais.

Assim, com base na análise do contexto social em que o indivíduo está inserido, seria possível a aplicação da co-culpabilidade como forma de diminuir a pena que lhe foi imposta. Tal aplicação, em que pese a ausência de expressa previsão legal, poderá ser feita mediante a atenuante inominada ou genérica prevista no artigo 66 do Código Penal.

Deste modo, a utilização do princípio da co-culpabilidade poderá ser entendida como uma das formas de amenizar a seletividade do direito penal, que se preocupa em direcionar suas leis sempre às classes subalternas.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira. A ilusão de segurança jurídica: do controle da

(14)

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. 3. ed. Rio de

Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 12. ed. Rio de Janeiro:

Revan, 2011.

BATISTA, Vera Malaguti. Introdução crítica à criminologia brasileira. 2. ed. Rio de

Janeiro: Revan, 2011.

BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 17. ed. São

Paulo: Saraiva, 2012.

CARVALHO, Salo; CARVALHO, Amílton Bueno. Aplicação da pena e garantismo. 2.

ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.

LARRAURI, Elena. La Herencia de lacrimonologia crítica. 2. ed. México: Sigloveintiuno

de españa editores, 1992.

MOLINÉ, José Cid; LARRAURI, Elena Pijoan. Teorias criminológicas. Barcelona:

Bosch, 2001.

MOURA, Gregore. Do princípio da co-culpabilidade no direito penal. Niterói:

Impetus, 2006.

SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Curitiba: Lumen Juris, 2006.

SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,

2011.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade

do sistema penal. 5. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001.

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIRANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal

Referências

Documentos relacionados

177 Em relação às funções sintáticas desempenhadas pelas estruturas inalienáveis, da mesma forma como acontece para os tipos de estruturas inalienáveis, é curioso o fato de que,

The challenge, therefore, is not methodological - not that this is not relevant - but the challenge is to understand school institutions and knowledge (school

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo teve como propósito apresentar o interesse de graduados do curso de Arquivologia, em relação à publicação de seus TCC’s após o término do

Desenvolver gelado comestível a partir da polpa de jaca liofilizada; avaliar a qualidade microbiológica dos produtos desenvolvidos; Caracterizar do ponto de

If teachers are provided with professional development opportunities that helps them develop a learning environment that is relevant to and reflective of students'

Analisar os Relatórios de Frequência Escolar de crianças beneficiárias do Bolsa Família permitiu a identificação dos motivos registrados que levaram muitas crianças e

Super identificou e definiu construtos e a respectiva interacção no desenvolvimento da carreira e no processo de tomada de decisão, usando uma série de hipóteses: o trabalho não

Estudos sobre privação de sono sugerem que neurônios da área pré-óptica lateral e do núcleo pré-óptico lateral se- jam também responsáveis pelos mecanismos que regulam o