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MARAMBAIA: IMAGINÁRIO E HISTÓRIA

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RESUMO: NÓBREGA, L. A. Marambaia: imaginário e história. Revista Universidade Rural: Série

Ciên-cias Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v.26, n.1-2, p. 115-123, jan.- dez., 2004.Este trabalho, é produto

da realização de uma pesquisa, nascida do interesse de professores e alunos da UFRuralRJ, sobre passado e história de vida da população da Ilha da Marambaia, e que busca também conhecer as origens das lendas e “causos” da Ilha, contados por seus moradores, remanescente dos escravos das fazendas de café do Comendador Breves e do entreposto de triagem e “engorda” de escravos, no século XIX. O contato com a população despertou a curiosidade de se saber mais sobre todos os fantasmas e encantamentos que fazem parte do cotidiano dos ilhéus, até onde suas memórias alcançam.

Palavras-chave: Ilha da Marambaia, remanescentes de escravos, história oral.

ABSTRACT: NÓBREGA, L. A. Marambaia: Imaginary and History. Revista Universidade Rural: Série

Ciências Humanas, Seropédica, RJ: EDUR, v.26, n.1-2, p. 115-123 , jan.-dez., 2004. This research is part

of a more extensive work and it was inspired by the interest of professors and students from the Univesidade Federal Rural do Rio de Janeiro. It deals with the history of Marambaia Isle’s population, the slaves descen-dants of the coffee crops from Comendador Breves’ farm, and the market for selecting and “feedind” slaves, during the 19th Century, even after the abolishment of slavery. This work intends to discovery the origins of the legends and tales narrated by that population. The contact with the people from the isle woke the curiosity to learn more about all the ghosts and fantasies, which take part in the daily life of those people as far as they can remember.

Key words: Marambaia island, remainder of slaves, nerbal history

MARAMBAIA: IMAGINÁRIO E HISTÓRIA

Luciana de Amorim Nóbrega

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1. Professora do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFRuralRJ.

INTRODUÇÃO

A palavra Marambaia é de origem tupi-guarani, e signifi ca “cerco do mar”: “Mba-ra-mbai”, nome dado pelos primeiros ha-bitantes da região à baía, hoje conhecida como Sepetiba, devido ao contraste de seu mar calmo com o mar revolto do res-tante da costa. A Ilha da Marambaia faz parte do conjunto que, incluindo a Restin-ga, se estende por 42,5km e situa-se no litoral Sul Fluminense, dentro da área de infl uência e estudo da UFRuralRJ. Nela, professores vêm desenvolvendo pesqui-sas, especialmente nas áreas de Biologia e Botânica, dada a riqueza de sua fauna e fl ora e à preservação do meio ambiente, graças à total assimilação da população ao meio ambiente e ao estado de

isola-mento provocado pelo acesso restrito de visitantes - permitindo somente aos mo-radores da Ilha e convidados das Forças Armadas -, controlado pela Marinha, que ali mantém um Centro de Adestramento. Favorecida pela posição geográfi ca e pelo acesso limitado, a Ilha conserva ainda representativa parcela das fl orestas que compõem a Mata Atlântica, podendo ser observados vários tipos de ecossistemas: a Serra do Mar, a Restinga e Ilha da Ma-rambaia, a Ilha Grande, manguezais e diversas outras ilhas, além do delta do rio Guandu, que formam uma grande baixa-da situabaixa-da entre os municípios de Itaguaí e do Rio de Janeiro. Desde 2000, monta-mos uma equipe formada por alunos de vários cursos da Rural e passamos a desenvolver trabalhos de pesquisa e

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ati-vidades de extensão visando obter dados sobre passado, instituições e problemas atuais desta Ilha, cuja história ainda está para ser contada. A pesquisa, da qual se origina este trabalho, visa a integração dos diferentes conhecimentos desenvol-vidos na UFRuralRJ para o crescimento, não só do que se pode apreender da re-alidade nessa visão múltipla, mas princi-palmente, da experiência advinda da convivência e troca de informações entre professores e alunos das áreas envolvi-das, com metodologias e análises diferen-ciadas. Nosso maior interesse é conhecer as tradições, costumes, crenças e meios de sobrevivência da. população, assim como o processo e evolução das carac-terísticas de sustentação da região, tendo em vista que tudo o que é relatado sobre ela advém de escritos dos descendentes do Comendador Joaquim Breves, seu dono em meados do século XIX ou pela própria Marinha. Assim, nossa proposta é um esforço de diálogo e construção de novos enfoques analíticos, a respeito do passado e da história de vida da popula-ção da Ilha da Marambaia, em grande parte formada por remanescente de es-cravos das fazendas de café do Comen-dador Breves e do entreposto de recebi-mento, triagem e “engorda” de escravos, até o fi m da década de 1880. Alguns his-toriadores ressaltam a fi gura do Comen-dador como grande empreendedor da época, pela instalação na Ilha do primeiro “centro reprodutor” de escravos de que se tem notícia na região do Rio de Janeiro. Esta informação parece ter base de vera-cidade, pois alguns moradores mais ido-sos lembram de ouvir de seus avós histó-rias da participação deles como “reprodu-tores”, segundo suas palavras. A memória dos habitantes, que se não for registrada agora, corre o risco de desaparecer, pelo contato cada vez mais freqüente e depen-dente com o modo de vida do continente e pelo envelhecimento da população, ainda se preserva, graças ao isolamento que conservou hábitos e costumes que já

se perderam entre os demais habitantes do litoral do Rio de Janeiro. A história de ocupação desta região é bastante contur-bada e verifi ca-se que o interesse pela sua posse remonta ao século XVII, quan-do da tentativa de ocupação comandada pelo almirante holandês Joris Von Spil-bergen, à procura de frutas e água potá-vel. Esta primeira invasão foi frustrada pela intervenção de Martim de Sá, que possuía fazenda na região de Mangarati-ba e agiu a tempo de comMangarati-batê-la. No início do século XVIII, nova invasão, des-ta vez bem sucedida. Os franceses, con-tornando a Restinga e a Ilha, desembar-caram em Guaratiba e atingiram seu ob-jetivo, alcançando, por terra, o Rio de Janeiro. A história da Ilha, anterior à che-gada dos Breves, é ainda pouco conheci-da. Ao que tudo indica, foi habitada, antes da chegada do homem branco, por indí-genas pertencentes a grupos de etnia Tupi, comprovadamente habitantes da região de Mangaratiba, onde mais tarde surgiria a Confederação dos Tamoios, antes dos sabidos confl itos e costumes deste povo, ai incluídos Cunhambebe e seus feitos, bem como seu apoio aos franceses. A família Breves foi uma das maiores proprietárias de fazendas de café e escravos do estado do Rio de Janeiro. Entre os Breves sobressai a fi gura do Comendador José Joaquim de Souza Breves, que estabeleceu um intenso in-tercambio de escravos e mercadorias entre várias regiões do estado e chegou a possuir 40 fazendas, a maior parte na região de Pirai e Vassouras, além das situadas na Região de Mangaratiba, e das duas na Marambaia. Os relatos existentes sobre escravos na Ilha remontam à época em que esta foi comprada ou registrada ofi cialmente pelo Comendador no Livro de Registros da Paróquia de Itacuruçá em 1856, após, portanto, a abolição do tráfi co negreiro. Com a chegada dos navios car-regados de escravos, vindos da África e, muito provavelmente, de outras regiões do Brasil, a Ilha transformou-se em posto

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de acolhida de escravos para as fazendas de café do Comendador e para venda. Com a morte deste, em 1889, as fazendas entraram em decadência e, conseqüen-temente, as que se localizavam na Ilha também, tendo sido vendidas, ou cedidas em pagamento de dívidas, pelos herdei-ros. Os ex-escravos e seus descendentes, porém, continuaram a ocupar a Ilha. A morte de Breves selou o destino desta população, fazendo com que os remanes-centes destes antigos escravos tivessem um papel relevante no processo de ocu-pação da Ilha da Marambaia, já que ali permanecendo forçosamente e na luta pela sobrevivência, voltou-se para ativi-dades de subsistência como o plantio de roça familiar e a pesca. Em 1890, as terras da Marambaia foram vendidas pela famí-lia Breves à Companhia Promotora de Indústrias e Melhoramentos que, em 1896, transferiu, a propriedade ao Banco da República do Brasil. No início do sé-culo XX, a Ilha foi comprada pela União e nela instalada, pela Marinha, em 1908, a Escola de Aprendizes Marinheiros. Sob a jurisdição da Marinha, em 1924, a Direto-ria de Portos e Costas estabeleceu ali uma colônia de pescadores e escolas de curso primário e profi ssional de pesca, tendo a Marinha iniciado, no mesmo ano, a insta-lação de uma estação de piscicultura, e em 1931, a Confederação Geral dos Pes-cadores do Brasil fundou a sede da Colô-nia de Pescadores Z-23. Nenhum destas iniciativas, no entanto, prosperou e em 1933, a Ilha passou a ser área militar restrita, com a instalação do Polígono de Tiro do Comando de Artilharia de Costa do Exército. O desenvolvimento econômi-co da Ilha só eneconômi-controu novo alento du-rante o Estado Novo, quando um empre-endimento de grande porte, vinculado ao universo da pesca, estabeleceu-se na Marambaia, através de uma ação de par-ceria entre o Estado e uma entidade de cunho fi lantrópico, o Abrigo Cristo Reden-tor. Depois da derrubada de parte da fl oresta e do saneamento do local,

criou-se um complexo industrial profi ssionali-zante, incluindo uma Escola de Pesca (Escola Técnica Darcy Vargas) direciona-da à formação e treinamento de profi ssio-nais técnicos no setor. Para dar susten-tação e apoio à Escola, construiu-se uma série de fábricas: de produção de farinha de peixe, de gelo, redes de pesca e um estaleiro de pequeno porte para constru-ção de barcos. Construiu-se, ainda, uma Cooperativa, uma escola primária e resi-dências, com esgoto, água encanada e energia elétrica. Em 1939, o projeto foi ampliado com a construção de uma Igre-ja, com clausura para as religiosas, hos-pital, farmácia, lavanderia, além de pada-ria e projetos de horticultura e pecuápada-ria para abastecimento dos operários, técni-cos e alunos. Em 1940, inaugurada a escola primária Levy Miranda e colocada a pedra fundamental da Igreja, passou a funcionar também uma fábrica de conser-vas e prensamento de sardinha e fi lé de cação – Fábrica de Sardinhas Redentor. Em 1943, Getúlio Vargas criou a Funda-ção Abrigo Cristo Redentor e em 1944, realizou-se a formatura da primeira turma de alunos da Escola de Pesca. Nesta época, a produção de pesca da baía de Sepetiba originava-se quase toda da fro-ta e dos pescadores da Ilha, situação que perdurou até 1952 quando, contrariando as expectativas e de forma lenta, a estru-tura montada na Ilha entrou em decadên-cia, num longo processo de desmonte da Escola e de desmobilização de todo o pessoal que dela dependia, não só fun-cionários dos vários empreendimentos, mas também pescadores, que faziam viagens de longo alcance, pescando em locais distantes da América do Sul. A partir da criação da Escola, e com o avan-ço do processo de falência e de desativa-ção de suas instalações, um redesenho do perfi l étnico da comunidade foi confi -gurado. Assim, hoje, a população residen-te na Ilha combina remanescenresiden-tes desses dois momentos do seu desenvolvimento econômico. Em 1971, o Presidente

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Médi-ci autorizou a reincorporação à União de todos os bens da Fundação Abrigo Cristo Redentor, tendo em vista que esta reco-nheceu não ter condições de manter a Escola de Pesca em funcionamento. A administração da Ilha voltou, então, ao Ministério da Marinha, que ali ativou a Prefeitura Militar do Campo da Ilha da Marambaia, sucedida pelo Centro de Recrutamento do Corpo de Fuzileiros Navais e, em 1981, pelo atual Centro de Adestramento da Ilha da Marambaia.- CADIM. As diversas dependências da Fundação ocupadas pela Marinha con-servam exatamente o tamanho e as ca-racterísticas que possuíam quando do momento áureo das atividades da Escola. As relações da Marinha com os habitantes sempre se mostraram confl ituosas, pois se baseiam no princípio de que a popula-ção deve ser retirada da Ilha por ser esta área de segurança nacional. A Marinha desmontou o processo produtivo da Ilha, destruindo as poucas atividades ainda existentes, como as casas de farinha mantidas por alguns dos moradores, as roças familiares e a criação de animais. Na tentativa de expulsar a população, a Marinha vinha, até bem pouco tempo, derrubando as casas cujos moradores morriam e impedindo que seus familiares as ocupassem, mesmo que estivessem em boas condições de habitabilidade. Por outro lado, continua impedindo que se construam novas casas, o que faz com que duas ou três famílias dividam a mes-ma casa ou que casais vivam separados, cada um em casa de seus pais, pela im-possibilidade de construir residência própria. As causas formais alegadas pela Marinha para a expulsão da comunidade variam da degradação do meio ambiente com a suposta extinção do palmito nativo pelos moradores e o acúmulo de lixo, criando lixões, - o que parece pouco pro-vável, tendo em vista que estes contêm itens de exclusivo uso da Marinha não condizendo com o poder aquisitivo bai-xíssimo da comunidade – até a suposição

de que os moradores poderiam vender suas terras para a criação de um “resort” para turismo ecológico. Estas alegações não se mantêm de pé quando se conhece a população e se lida com a maneira como respeitam a fl oresta e as praias e o orgu-lho que sentem da sua terra. O esboço da história da Ilha da Marambaia mostra os percalços e caminhos tormentosos que percorreu a população durante as várias fases do processo de ocupação e de como sequer foi considerada ou consultada não só em termos de sua sobrevivência, mas, e principalmente, de como tem sido igno-rada como parte integrante e principal de todo o atual confl ito em torno da posse destas terras.

MATERIAL E MÉTODOS

O fator importante e decisivo para nos-sa pesquinos-sa é o resgate da memória da comunidade sobre o seu passado, seja ele “místico” ou historicamente confi rmado. Neste sentido, o instrumental dos estudos de história de vida e de memória histórica tem conduzido e orientado a pesquisa que vem sendo realizada. Durante as entre-vistas com moradores descendentes de escravos – que se autonomeiam “nativos” em contrastes com a parte da população que permaneceu após a Escola de Pesca, “moradores” - os mais idosos, em especial as mulheres, demonstram resistência em responder a perguntas sobre o período anterior à Escola de Pesca, o que pode indicar lembranças de um cotidiano pe-noso no qual as condições materiais de sobrevivência eram consideradas mais difíceis que as de hoje. Até recentemen-te, antes da exacerbação do processo de expulsão de parte da população de ilhéus iniciada desde a instalação da Marinha na Ilha, mas que recrudesceu a partir da década de 1990, a comunidade local dividia a Ilha em duas partes: uma “escura” ao norte (onde se localizava

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as fazendas do Comendador Breves) e outra, “clara”, ao sul (onde se instalou a Escola de Pesca). Esta diferenciação de áreas de moradia nos dias de hoje é bem menos perceptível, pois são encontrados descendentes de ex-escravos na parte sul da Ilha, bem como ex-empregados ou ex-alunos e seus descendentes na parte norte, embora ainda permaneçam resquícios de animosidade. Além disso, as famílias tradicionais da Ilha (cerca de oito sobrenomes se repetem, combinados de várias maneiras pelo total da Ilha) não possuem território delimitado. Este deslocamento populacional acompanhou a movimentação do centro econômico da Ilha, e se deu por etapas: ocupando sul/centro/norte, na época da Fundação (com concentração no centro); mais tar-de, quando da instalação da Marinha, a população deslocou-se do centro para o norte, sendo os moradores das praias do sul deslocados também para o norte, e os do extremo norte - que os nativos chamam de “costa” (mar aberto)-, ex-pulsos de suas casas e realocados nas praias do norte, pois é na “costa” que a Marinha faz suas manobras de exercício de desembarque e tiro. A população gira em torno de 400 moradores, cerca de 100 famílias, dispersa por várias praias com maior concentração na Pescaria Velha, parte norte da Ilha. A pesquisa abrangente enfatiza a questão sócio-econômica e os problemas associados a sentimentos de etnicidade focalizando, nas trajetórias de mobilidade social e geográfi ca da popu-lação, o registro de lembranças sobre suas vidas e a memória coletiva sobre o passado da Ilha, transmitida ao longo das gerações. Até o momento, foi concluído o levantamento da documentação primária e secundária sobre a região da baia de Sepetiba, tendo sido realizado um ma-peamento da literatura produzida sobre a área e o arrolamento dos arquivos que contêm documentos sobre o processo de ocupação da Ilha. O IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional)

tem catalogado como Sítio Arqueológico a parte frontal de uma antiga construção na chamada Praia do CADIM (Praia do Saco), que a Marinha afi rmava ter sido uma senzala, assim como os nativos, mas que, depois afi rmou ter sido uma olaria para confecção de tijolos. Agora a tese da senzala tem também o aval da Marinha e da equipe de arqueólogos contratados por ela para refutar as afi rmações dos na-tivos. Um estudo mais aprofundado deve ser realizado nas ruínas tanto das casas-grande quanto das senzalas da Praia da Armação e no entorno das mesmas, mas como nossa equipe e a nossa universida-de não contam com arqueólogos, com o desenvolvimento da pesquisa esperamos poder contar com a participação de espe-cialistas de outra universidade ou órgãos governamentais.

DISCUSSÃO E RESULTADOS

Um dos aspectos mais instigantes deste trabalho é a pesquisa das formas de sobrevivência desta população que foi abandonada na Ilha como ex-escra-vos de eito, sem intimidade com o mar e sua saída necessária e obrigatória de sobrevivência pela pesca. Encontramos na Ilha uma população que se divide entre os muito jovens e os bastante idosos, o que indica uma forte tendência à migra-ção dos jovens, forçados pela ausência de oportunidades de trabalho e sobrevi-vência na Ilha. Fator esse agravado pela intensifi cação do processo de expulsão e apossamento crescente da terra pela Marinha. A economia dos ilhéus depende totalmente da pesca, sendo que, atual-mente, mesmo esta se mostra precária devido à atividade predatória dos barcos de grande porte na baia de Sepetiba. É notória a integração da população com o mar, pois dele vem a vida, a subsistência, a ligação com o mundo externo, e mesmo após a morte, no cemitério, os túmulos

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são voltados para o mar. Pelo que se pesquisou até o momento sobre a história e os diferentes componentes étnicos e culturais da população, pode-se verifi car a riqueza do material que ainda resta a ser pesquisado e a grandeza do conteúdo social que pode trazer à nossa área de estudos, além do conhecimento da sabe-doria popular - cada vez mais valorizada nos dias de hoje - e as tradições de uma população tão próxima da Universidade Rural e tão pouco estudada em seus aspectos sócio-econômicos e culturais. A população atual da Ilha, que mora em ca-sas de construção precária ao longo das praias, se constitui, como já afi rmamos, de descendentes de escravos das antigas fazendas e do entreposto dos Breves, da população caiçara vinda de outras ilhas e do litoral da baia de Sepetiba e de antigos alunos e funcionários da Escola de Pesca e seus descendentes, vindos de vários pontos do Brasil, que foram – assim como as instalações – deixados para trás pela Fundação Abrigo Cristo Redentor. Esta população com sua diversidade cultural e sua origem heterogênea, apesar de ser, em sua maioria, remanescentes de es-cravos, forma uma comunidade de traços peculiares e tal riqueza cultural, que forma preciosa fonte de subsídios geradores de novas perspectivas, já que, sendo a área isolada, as características culturais e de instrumentos de subsistência tem a chance de estarem em melhores con-dições de estudo e pesquisa que outros locais que vêm sendo estudados no litoral do estado do Rio de Janeiro, mas que sofreram pressões de mudança em seus padrões de vida, principalmente afetadas pela exploração de recursos naturais e especulação imobiliária.

CONCLUSÃO

No momento atual, a Associação de moradores, apoiada pela Fundação Cultural Palmares, através da ONG

KOI-NONIA, e o Ministério Público Federal, ganharam na Justiça o direito à proprie-dade comunitária de uma faixa das terras litorâneas, do lado da Baia de Sepetiba. O fi nal do processo na Justiça aguarda a delimitação das terras pelo INCRA, o que não tem sido facilitado nem pela Marinha nem pela burocracia federal. Marambaia, do ponto de vista da religiosidade da sua população, é evangélica (Igreja Batista). A perda de fi éis pela igreja católica local tem sido signifi cativa, alterando o perfi l religioso da população, apesar da comu-nidade católica ser extremamente unida e, no momento, liderar a luta pela posse da terra através da criação da atual as-sociação de moradores da Ilha. (terceira tentativa e a mais duradoura). Com uma população de maioria negra e pobre, a Marambaia confirma o sucesso das igrejas evangélicas e pentecostais para esse seguimento da sociedade. Porém, o que queremos mostrar neste trabalho é outra faceta da Ilha, a mística, a de seu imaginário rico e fértil, que perpassa os relatos dos moradores quando se fala do passado e até mesmo de acontecimentos atuais de difícil explicação, ou que susci-tam explicações que se encontram acima do entendimento comum ou que leve a choques com o esclarecimento ofi cial da Marinha. Há determinados assuntos que se tornaram tabus e sobre os quais pou-co se fala. Mesmo quando provocados, os moradores se recusam a comentar e sequer podem cogitar de uma visita aos locais. Um destes é o chamado Salão do Rato ou Toca do Rato Molhado, que ser-viria de esconderijo para os escravos fu-gidos. Qualquer que seja seu nome, esta gruta ou caverna, parece que de grandes proporções, é tida pela população como um lugar sobrenatural, em cujo interior estaria guardado, pelos espíritos dos antigos escravos, o que eles chamam de “Tesouro dos Breves”, que seriam o ouro e as peças valiosas levadas das fazendas dos Breves e escondidas pelos escravos para comprar sua liberdade. Esta história

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possui credibilidade sufi ciente para fazer com que a cobiça às vezes faça o medo ceder e nos leva a ter esperanças de em breve sermos levados até este esconde-rijo cuja localização, ao que parece, só é conhecida por parte da população, em-bora todos creiam que ele exista. Alguns moradores já nos prometem conduzir até lá desde que não retiremos nada do interior da caverna, pois isso irritaria os ancestrais. Outros relatos, principalmente dos mais idosos, nos falam de um baú, que está lá desde a época dos Breves, e ali foi deixado por um frade. O local em que se encontra o baú, é no alto do pico existente no centro da Ilha e, portanto, de difícil acesso. Dentro dele estaria um caderno para assinaturas. Como o re-lato é fantástico, dentro do baú existiria também uma caneta para ser utilizada. De qualquer maneira, uma coisa é certa, não é sempre que se consegue chegar ao baú, pois mesmo os que conhecem bem o caminho, às vezes se perdem quando acompanhados de alguém que por algu-ma razão não deveria ir até lá (condição que se repete em relação ao Salão do Rato). Outra certeza que os nativos têm é que não há assinaturas de mulheres, o que signifi ca, portanto, que elas não são bem-vindas. Além destes, existem outros relatos, que ainda não foram sufi ciente-mente estudados, mas que mencionam, por exemplo, a existência, até algum tempo atrás, do fantasma de um homem vestido de branco que impedia que se passasse por uma pinguela (hoje substitu-ída por uma ponte), e que agia da seguinte forma: quando a pessoa que ia atravessar se encontrava sobre a pinguela, o homem a cercava ao mesmo tempo pelos dois lados, impedindo que seguisse em frente ou voltasse. Estes contos fantásticos falam ainda de uma árvore que acendia no escuro, e mesmo na chuva parecia conter uma chama que nem sempre era visível, mas que criava uma tal atmosfera de medo, que impedia que as pessoas passassem por perto á noite. Esta árvore

caiu, mas sua presença permanece bem viva na memória daqueles que eram me-ninos e sentiram muito medo. A presença de um casal de escravos, caracterizado pelas vestimentas da época da escravi-dão é uma das aparições mais citadas por todos, nativos, fuzileiros e visitantes. É fi gura constante nos relatos sobre a “população de fantasmas” que “habita” os arredores da antiga senzala/olaria, que abriga hoje o hotel da Marinha, no qual existe um quarto, o de número treze que, diz a crença, em geral fi ca desocupado para evitar problemas com os hóspedes, pois segundo se conta, fatos estranhos acontecem por lá. Este lugar, um bosque cortado por um rio concentra a maior parte dos relatos de aparições. Ali também se encontram o posto de saúde da Marinha e o alojamento da Rural (parte do convênio entre ela e a Marinha), ambos carregados de “causos” de portas se abrindo, passos e vultos que não fazem ruído ao mover-se e que chegam a aparecer nos vãos das portas. Segundo o que diz a população, o alojamento foi construído em cima de um cemitério de escravos, que morriam na olaria/senzala, ou não se recuperavam das péssimas condições da viagem nos porões dos navios. Neste mesmo local se encontrava uma fi gueira com raízes aéreas, nas quais eram acorrentados escravos como forma de castigo. Os mais idosos lembram ainda da velha fi gueira com os buracos das correntes nas raí-zes. Sobre sua existência não existem, portanto dúvidas, e é esta certeza que faz com que os relatos de espíritos de escravos maltratados ou mortos ali, sejam tomados como prováveis e explicados pela idéia de que os que muito sofreram ainda vaguem pelo bosque. Toda esta riqueza de lendas, casos e relatos, além de servir como elemento aglutinador da cultura dos moradores e funcionar como sentimento de pertencimento àquela terra, hoje foi incorporada por eles como algo a ser lembrado para culto de seus ante-passados, dos quais muito se orgulham

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e dos quais querem conservar a terra e os costumes, os medos e o respeito pela Ilha. Esta pesquisa, aliada às outras que vêm sendo realizadas pelos estudantes bolsistas e estagiários, tem se mostrado de grande importância no reavivamento da memória dos moradores e servido como pólo aglutinador na intensifi cação da identidade como marambaiense no sentido que, para nos relatar todas as recordações, experiências, “causos”, medos, lendas, costumes e tradições, eles vão recriando a idéia de comunidade, de “irmandade” (já que a população é cons-tituída de poucas famílias).

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Aviso interno da Marinha nº 2546 de 09/06/1910

Aviso interno da Marinha nº 802 de 08/02/1924

Aviso interno da Marinha nº 179 de 19/02/1933

Decreto nº 68224 de 12/02/1971- Presi-dente Emílio G. Medici, Diário Ofi cial de

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Periódicos

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Jornal O GLOBO: “Uma comunidade ameaçada na Marambaia”; pág. 30; 17/03/2002.

Jornal O GLOBO: “Liminar garante

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Referências

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