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Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de História Programa de Pós-Graduação em História Comparada

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Universidade Federal do Rio de Janeiro

Instituto de História

Programa de Pós-Graduação em História Comparada

Autora: Juliana Prata da Costa

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva

O PERFIL EPISCOPAL NOS TEXTOS HAGIOGRÁFICOS DOS

REINOS FRANCO E VISIGODO: UM ESTUDO COMPARADO DOS

CASOS DE ALBINO DE ANGERS, NICETIO DE LYON E DOS

BISPOS EMERITENSES

Rio de Janeiro 2017

(2)

2 Juliana Prata da Costa

O PERFIL EPISCOPAL NOS TEXTOS HAGIOGRÁFICOS DOS REINOS FRANCO E VISIGODO: UM ESTUDO COMPARADO DOS CASOS DE ALBINO DE

ANGERS, NICETIO DE LYON E DOS BISPOS EMERITENSES

Material destinado à Defesa de Mestrado apresentada como parte dos requisitos para obtenção do título de Mestra em História no Programa de Pós-Graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Área de concentração: História Comparada

Aprovado em:

BANCA EXAMINADORA

___________________________________________ Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva – Orientadora

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________ Prof. Dr. Paulo Duarte Silva

Universidade Federal do Rio de Janeiro

___________________________________________ Prof.ª Dr.ª Jaqueline de Calazans

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3 FICHA CATALOGRÁFICA

O PERFIL EPISCOPAL NOS TEXTOS HAGIOGRÁFICOS DOS REINOS FRANCO E VISIGODO: UM ESTUDO COMPARADO DOS CASOS DE ALBINO DE ANGERS, NICETIO DE LYON E DOS BISPOS EMERITENSES

UFRJ/ PPGHC: dissertação de mestrado 2017. Autor: Juliana Prata da Costa –

Orientação: Profª. Drª. Leila Rodrigues da Silva Rio de Janeiro, RJ; 2017.

Palavras-chave: Hagiografia, Bispo, História Comparada, Venâncio Fortunato, Gregório de Tours, Mérida, perfil episcopal.

1. Considerações Introdutórias; 2. Um debate acerca do episcopado e das hagiografias; 3. Documentação: textos e contextos; 4. O papel do bispo nas hagiografias; 5. O papel do bispo em perspectiva comparada

(4)

4 Aos meus pais Rita e Acélio (in memorian) por todo apoio e incentivo, sobretudo em relação ao conhecimento, dedicados a mim ao longo da vida.

(5)

5 AGRADECIMENTOS

A Deus pela vida e por todas as oportunidades.

No final de um trabalho de escrita tão denso e demorado como o de uma dissertação, muitas são as pessoas a quem devemos e queremos agradecer. Como tal, minha lista que segue também tentará contemplar, sem a mínima pretensão de fielmente conseguir, todos aqueles que partilharam estes dois anos comigo.

Agradeço aos meus pais, a quem também dedico a conclusão do mestrado como um todo, pelo apoio, amor, carinho e incentivos ofertados a mim por toda a vida. Sem vocês, sem a educação que me deram e na ausência do apreço pelo conhecimento ensinado pelos dois, eu não teria chegado até aqui. Ao me pai especialmente, que embora não possa estar presente, pelas palavras ditas em um momento específico, quando me despertou que depois do curso de graduação em História também deveria haver dedicação para o mestrado e até para o doutorado, caso escolhesse mesmo esta área. À minha mãe por toda a força que me ensinou a ter, como mulher, como mãe divorciada e como exemplo.

Às minhas irmãs Tatiana e Daiana, e às minhas sobrinhas, filhas respectivas de cada uma: Maria Luísa e Maria Eduarda, experimentei a maternidade primeiro com vocês e logo me apaixonei. Obrigada por encherem o meu coração de amor todas as vezes que olhei e cuidei de vocês.

À minha filha Isabel, por preencher a minha existência de maneira tão sublime que faz todo o mundo parecer pequeno e vazio longe de você. Obrigada pela luz e pelas alegrias compartilhadas em tantos momentos de cumplicidade, meu anjo. A mãe ama você demais.

À minha família pela presença constante, às minhas tia e primos sempre tão vibrantes com as minhas, por mais pequenas que fossem, conquistas.

À Leila por ser além de uma orientadora, uma pessoa que aceitou minhas limitações, meus defeitos, minhas ausências quando necessárias, e que sempre demonstrou carinho e afeição, para além de uma dedicação admirável ao trabalho que faz. Não somente neste trabalho em específico, mas em outros projetos que também temos dividido, nossa parceria tem dado certo e sou muito, muito grata a você por isso.

À Andréia pela disposição em ajudar durante todas as etapas da pesquisa e pelo conhecimento transmitido nas disciplinas e nas conversas nesses anos.

(6)

6 disposto e sensível. Obrigada pelo socorro prestado em muitos momentos, com materiais e com ajuda constante.

À Jaque, por ser a pessoa que ela é, exímia em sensibilidade, pela doçura na hora de ensinar que cativariam e empurrariam qualquer pessoa para o medievo.

Ao Pem, coordenado pela Andréia, Leila e Paulo, pelo espaço de acesso à pesquisa em História Medieval, pelos materiais ali presentes, pela acessibilidade, pelos projetos de extensão, pela eficiência no ensino e por todos aqueles, que como eu, tiveram ali, naquele espaço, sua primeira experiência na academia. Em especial, agradeço aos colegas conquistados, por toda a troca e companheirismo. Aos bolsistas Pibex, socorro presente em todas as horas, em todas as gerações já alistadas.

À Juliana, sempre tão disposta em ajudar e com uma paciência infindável. Muito obrigada, Ju!

À Bárbara e à Izabela. Agradeço a essas duas amigas primeiramente porque não vejo uma melhor experiência nesses anos dedicados ao mestrado que não fosse junto dessas duas. Pessoas sensíveis e companheiras de verdade, que em muitos momentos demonstraram solidariedade a mim, mesmo que não relacionados àqueles momentos estritos de escrita e/ou pesquisa. Mas na trajetória da vida, nos problemas, nas perdas e nas dificuldades encontradas. Obrigada pelas risadas, pelos abraços, pelos congressos e pelas viagens, faria tudo de novo, do nosso jeito. É, as meninas super poderosas estão terminando o mestrado, mas, ainda bem não estamos nos despedindo! Que as nossas jornadas estejam ainda, por muito tempo, interligadas.

À Flora, que se apresentou como uma amiga nova, mas não menos importante que se tornou parceira nesta trajetória de pesquisa. Uma menina sensível, incrível, com um coração de princesa, que com toda a paciência do mundo acolheu a Bel muitas vezes. Ao Wendell, que também se fez presente como um amigo que o curso de mestrado me deu, mas que muito me ajudou e divertiu meus dias.

À Aninha, Carol Gil e Carol Sousa. Pela amizade, pela presença, pela força e pela alegria transmitida e compartilhada há muito anos nessa jornada pela História. Amo vocês e não teria conseguido chegar até aqui sem a companhia sempre presente de amigas tão especiais.

Ao Jonathas, que se tornou um companheiro nesta jornada, em muitas jornadas para além disso, inclusive fora do âmbito acadêmico. Obrigada pela parceria, pelo carinho e pelo amor que temos compartilhado. Obrigada por tudo aquilo que temos dividido e pela vida que temos traçado juntos.

(7)

7 APRESENTAÇÃO

Este trabalho tem como objetivo um estudo sobre o perfil episcopal delimitado em três textos hagiográficos produzidos nos reinos franco e visigodo, entre o final do século VI e início do VII. Procuramos identificar em que medida o perfil episcopal apresentado em cada um dos textos se relaciona aos demais. Nesse processo, valorizamos as conjunturas em que as hagiografias estavam inseridas, em consonância com a diretiva de que as semelhanças estão atreladas aos aspectos relativos ao habitus coletivo ao bispado, enquanto as diferenças associam-se ao contexto específico de cada documento. Para isso, utilizando-nos do método comparativo, cotejamos as referências na Vita Albini, na Vita Patrum, mais especificamente no trecho dedicado a Nicetio de Lyon e nas trajetórias de Paulo e Fidel, presentes na Vida de los santos Padres de Merida.

No primeiro capítulo apresentaremos os aspectos introdutórios da dissertação, como o tema, a problemática, o objeto, os objetivos, as hipóteses, o aporte teórico-metodológico e os eixos de comparação escolhidos para nortear a investigação. Nossa análise privilegia a conjuntura dos reinos franco e visigodo, nos séculos VI e VII, ao compararmos duas hagiografias escritas no período merovíngio e um relato também hagiográfico, proveniente de Mérida, ou seja visigótico.

No segundo capítulo, para facilitar a leitura e a compreensão, elaboramos uma divisão em subitens e propomos uma revisão bibliográfica. Assim, objetivamos apresentar os principais autores e correntes que escreveram a respeito da documentação hagiográfica e do papel do bispo nas conjunturas privilegiadas. Em relação ao primeiro bloco, discutimos mais especificamente sobre as Vidas de Santos, um tipo particular de hagiografia, bastante difundido no Ocidente alto-medieval, sobre o público-alvo de destino e a promoção dessa documentação. Sobre o segundo conjunto, levantamos considerações sobre a contextualização do papel episcopal nos reinos romano-germânicos, sua autoridade e atribuições. Por fim, propomos um balanço do conjunto que privilegie as interseções entre essas duas categorias, ou seja, trazemos questões que tenham como enfoque as relações entre os membros do bispado e a produção de hagiografias.

No terceiro capítulo, buscamos identificar nas três narrativas os elementos defendidos como integrantes do perfil do bispo, ou seja, analisamos a documentação,

(8)

8 propriamente dita. Assim, procuramos examinar alguns pontos que tratem da produção de hagiografias nos reinos franco e visigodo, da autoria das vidas de Albino de Angers, de Nicetio de Lyon e da Vida dos Santos Padres Emeritenses, as duas primeiras atribuídas respectivamente a Venâncio Fortunato e Gregório de Tours, e a última tendo sua autoria considerada anônima. No final deste trecho, articulamos os principais trabalhos historiográficos que, de alguma maneira, priorizaram as fontes hagiográficas analisadas em nossa dissertação.

No quarto capítulo privilegiaremos os dois eixos de comparação escolhidos para sustentar a investigação histórica: a santidade episcopal e as relações sociais envolvendo os bispos. Como temos dois conjuntos amplos que permitem uma grande variedade de elementos a serem explorados, optamos por nomear três blocos menores e mais recortados como integrantes da pesquisa. Em relação à santidade identificamos particularmente os indícios que se relacionam com as virtudes, os milagres e o corpo. Enquanto a respeito das relações sociais em que o episcopado está inserido destacamos a distinção daquelas preferencialmente associadas ao âmbito religioso e àquelas que envolvem os demais agentes sociais.

No capítulo cinco, pretendemos discorrer sobre os benefícios concedidos pelo método comparativo na análise da documentação e na relação com o que foi levantado pela historiografia. A partir dos dois eixos, santidade e relações sociais, buscaremos notar em que medida é possível delimitar um perfil episcopal nas fontes hagiográficas, e além disso, ao contrapor os indícios encontrados, acreditamos que será possível estabelecer em que medida um perfil se aproxima e/ ou se distancia do outro.

Levando em conta esses eixos, a análise do contexto de produção das fontes, a discussão historiográfica já realizada sobre a temática e o aporte teórico-metodológico, procuraremos responder às questões propostas, além de confirmar a precisão das hipóteses levantadas neste material, quais sejam: os três relatos hagiográficos fornecem elementos que nos permitem traçar um perfil episcopal nas conjunturas dos séculos VI e VII nos reinos merovíngio e visigodo, esses indícios apresentam aspectos em comum, em muitos casos, os topoi, associados ao habitus compartilhado; e particularidades vinculadas às conjunturas em que cada produção está inserida.

(9)

9 RESUMO

COSTA, Juliana P. da. O perfil episcopal nos textos hagiográficos dos reinos franco e visigodo: um estudo comparado dos casos de Albino de Angers, Nicetio de Lyon e dos bispos Emeritenses.

Nossa pesquisa se interessa pela produção documental dos reinos visigodo e franco, entre o final do século VI e início do VII, com ênfase na propagação de um perfil episcopal nos textos hagiográficos. Assim, acreditamos que as vidas dedicadas a Albino, Nicetio, Paulo e Fidel veiculam referências não somente quanto à própria concepção de santidade atrelada a esses indivíduos como bispos, mas principalmente quanto às relações com os demais agentes sociais. O papel desempenhado pela hierarquia eclesiástica ao impulsionar o culto aos santos e a escrita das vidas demonstra certa apropriação da narrativa hagiográfica com o objetivo de fortalecer a instituição. Nossa intenção ao tratar da documentação é identificar como esse material contribuiu para a construção do discurso a respeito do episcopado, entre os séculos VI e VII.

Buscamos portanto, analisar o discurso sobre o perfil episcopal em três conjuntos: o primeiro privilegiando a vita dedicada a Albino de Angers, o segundo a de Nicetio de Lyon, e o último priorizando os indícios referentes aos escritos sobre Paulo e Fidel, na Vida dos Santos Padres Emeritenses, sobre a morte e os milagres dos bispos de Mérida. Nosso objetivo é, então, identificar em que medida o perfil episcopal delimitado nestas hagiografias do reino franco se distancia e se aproxima do sugerido nos textos do reino visigodo. Portanto, interessa-nos também verificar em que medida as hagiografias apresentam confluências e divergências nesse processo, levando em conta o pressuposto de que as semelhanças estão atreladas aos aspectos relativos ao habitus coletivo ao bispado, enquanto as diferenças associam-se ao contexto específico de cada documento.

(10)

10 ABSTRACT

COSTA, Juliana P. da. The episcopal profile in the hagiographic texts of the Frankish and Visigoth kingdoms: a comparative sutdy of the cases of Albino de Angers, Nicetio de Lyon and the Emeritans bishopsdos bispos.

Our research is interested in documentary production of the Visigoth and Frankish kingdoms, between the end of the sixth century and beginning of the seventh, with emphasis on the propagation of an episcopal profile in the hagiographic texts. Thus we believe that the lives dedicated to Albino, Nicetio, Paulo and Fidel convey references not only to the very conception of holiness attached to these individuals as bishops, but mostly to relationships with other social agents. The role played by the ecclesiastical hierarchy in order to foster the worship of the saints and the writing of lives demonstrates a certain appropriation of the hagiographic narrative for the purpose of fortifying the institution. Our intention in dealing with the documentation is to identify how this material contributed to the construction of the episcopate discourse between the sixth and seventh centuries.

Therefore, we look for analyzing the discourse on the episcopal profile in three sets: the first privileging the vita dedicated to Albino of Angers, the second to Nicetio de Lyon, and the last prioritizing evidences referring to the writings on Paul and Fidel, in the Life of the Holy Fathers Emeritans, on the death and miracles of the bishops of Merida. Our objective is to identify to what extent the episcopal profile delimited in these hagiographies of the Frankish kingdom distances and approaches the one suggested in the texts of the Visigoth kingdom. Thus it is also important to verify to what extent the hagiographies present confluences and divergences in this process, considering the assumption that the similarities are tied to the aspects related to the collective habitus to the bishopric, while the differences are associated to the specific context to each document.

(11)

11 SUMÁRIO

CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS 13

1.1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA 13

1.2 DOCUMENTAÇÃO IMPRESSA 16

1.3 APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO 22

1.3.1 Referenciais teóricos 22

1.3.2 Referenciais metodológicos 27

CAPÍTULO 2. DEBATE ACERCA DO EPISCOPADO E DAS HAGIOGRAFIAS 2.1 O TEXTO HAGIOGRÁFICO 30

2.1.1 Vidas de Santos 31

2.1.2 Público-alvo e promoção das hagiografias 38

2.2 O EPISCOPADO 40

2.2.1 O episcopado nos reinos romano-germânicos 41

2.2.2 A função episcopal: autoridade e atribuições 46

2.3 O EPISCOPADO E O TEXTO HAGIOGRÁFICO 49

CAPÍTULO 3. DOCUMENTAÇÃO: TEXTOS E CONTEXTOS 51

3.1 A PRODUÇÃO DE HAGIOGRAFIAS NOS REINOS FRANCO E VISIGODO 3.2 AUTORIA 63

3.2.1 Venâncio Fortunato 63

3.2.2 Gregório de Tours 66

3.2.3 Autoria anônima da Vida dos santos Padres de Mérida 69

3.3 Documentação e a historiografia 70

CAPÍTULO 4. O PAPEL DO BISPO NAS HAGIOGRAFIAS 78

4.1 A SANTIDADE EPISCOPAL 78

4.1.1 Virtudes 82

4.1.2 Milagres 86

4.1.3 Corpo 96

4.2 AS RELAÇÕES SOCIAIS DO BISPO 100

(12)

12

4.2.2 Outros grupos sociais 107

CAPÍTULO 5. O PAPEL DO BISPO EM PERSPECTIVA COMPARADA 110 5.1 SANTIDADE 111

Virtudes, milagre e tratamento dado ao corpo 5.2 RELAÇÕES SOCIAIS 115

Relações sociais: religiosos e outros grupos CONSIDERAÇÕES FINAIS 119

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 125

ANEXOS 132

(13)

13 CAPÍTULO 1 – CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS

1.1 DELIMITAÇÃO DA PROBLEMÁTICA

Este trabalho é resultado de parte das atividades acadêmicas realizadas no curso de mestrado do Programa de Pós-graduação em História Comparada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ao qual estamos vinculados, sob a orientação da Prof.ª Dr.ª Leila Rodrigues da Silva. Desde a graduação1 manifestamos interesse pelos questionamentos a respeito da produção eclesiástica nos reinos romano-germânicos e sobre as relações de poder que permearam esses contextos específicos envolvendo a Igreja.2 Assim, quando produzimos a monografia procuramos compreender alguns aspectos que nortearam a autoridade episcopal no reino visigodo ao longo da Alta Idade Média3.

Com a preparação do projeto para inscrição no processo de seleção na pós-graduação decidimos ampliar a temática e a documentação de pesquisa ao analisar a experiência monástica em duas hagiografias4 do reino dos francos, do final do século VI, atribuídas a Venâncio Fortunato. Contudo, a partir das disciplinas realizadas, da preparação de comunicações para os eventos e das reuniões de orientação no primeiro ano do Mestrado, surgiram novos questionamentos que nos fizeram aprimorar o tema central da pesquisa para a reflexão sobre o perfil episcopal no discurso5 hagiográfico

1

Estamos vinculados ao Programa de Estudos Medievais desde 2008 sob a orientação da Profª. Drª. Leila Rodrigues da Silva. A partir de então temos desenvolvido pesquisas a respeito da instituição eclesiástica, sobre o episcopado e a produção documental no Ocidente no início do período medieval, nossos principais temas de interesse acadêmico.

2

Destacamos aqui que ao nos referirmos à Igreja estamos fazendo menção a uma instituição não homogênea que ainda se encontrava em processo de consolidação e expansão.

3

Apesar de identificarmos a relevância do conceito consolidado como Antiguidade Tardia e do debate acerca desta categoria, preferimos a utilização do termo Primeira Idade Média ou Alta Idade Média. Isso porque a corrente com a qual estamos associados privilegia as rupturas compreendidas nesse período temporal em detrimento das continuidades, no Ocidente. Assim, essas duas últimas expressões seriam mais adequadas à nossa proposta de trabalho. Cf: SILVA, Paulo D. O debate historiográfico sobre a passagem da Antiguidade à Idade Média: considerações sobre as noções de Antiguidade Tardia e Primeira Idade Média. Signum, Belo Horizonte, v. 14, n. 1, p. 73-91.

4

A escolha do termo hagiografia ao invés de biografia se deu por conta da contribuição de Izabel Velázquez. A autora afirma que a principal diferença entre ambas se dá pelo conteúdo, já que na primeira o tratamento dos personagens, a apresentação e as noções de comportamento são os principais mecanismos da exemplaridade, somando-se a isso a intenção moralizante e edificante. Dessa forma, ao analisarmos as narrativas aqui privilegiadas observamos a presença de elementos hagiográficos tanto na escrita quanto no conteúdo. O principal objetivo é a edificação dos leitores, além de servir de exemplo para outros bispos e legitimar a posição do episcopado. Cf: VELÁZQUEZ, Isabel. Hagiografía y culto a

los santos en la Hispania visigoda: aproximación a suas manifestaciones literarias. Mérida: Museo

Nacional Romano, Associación de Amigos del Museo. Fundación de Estudios Romanos, 2005. (Cuadernos Emeritenses, 32). p. 41.

5

Nossa análise está baseada na concepção de que todo documento é fruto de um discurso, entendendo como discurso qualquer construção humana coerente, organizada e dinâmica, que constituem práticas,

(14)

14 dos reinos franco e visigodo entre o final do século VI e o início do seguinte. Optamos pela inclusão de um conjunto documental do reino visigodo com o objetivo de fortalecer a comparação com as hagiografias merovíngias e garantir a confrontação de referências entre as fontes de duas regiões diferentes, mas que no entanto, são próximas tanto em relação ao referencial temporal quanto ao espacial.6

Cabe lembrar que esta escolha em particular foi direcionada também pela observação de um lacuna significativa de trabalhos que privilegiassem esses três recortes documentais ao explorar a questão do perfil episcopal. Ou seja, apesar de conhecermos pesquisas que tenham como enfoque o bispo e seu papel nos reinos franco e visigodo, ainda não haviam sido exploradas as referências acerca do episcopado nestas três vidas particularmente, sobretudo usando o método comparativo. Acreditamos que a comparação deste corpus documental contribui para a originalidade em nossa iniciativa, uma questão importante ao desenvolvermos uma dissertação de mestrado.

Desde então, definidas as fontes a serem utilizadas, ou seja, dois textos hagiográficos francos, e um visigótico, além do fio condutor do trabalho que seriam as reflexões acerca do perfil do bispo, tivemos como enfoque a análise da documentação a partir de três conjuntos de documentos.7 O primeiro privilegiando a vita dedicada a Albino de Angers, o segundo a de Nicetio de Lyon, enquanto o último priorizou os indícios referentes aos escritos sobre Paulo e Fidel de Mérida.8 Isso porque, acreditamos que as hagiografias,9 para além de um discurso moralizante a respeito da conduta exemplar de um santo, transmitem pormenores da conjuntura específica de produção10 e assim indicam-nos dados sobre as relações religiosas, políticas, sociais, econômicas, entre outras possibilidades.

Desse modo, ao observarmos as narrativas hagiográficas, pensando nas

relações sociais, instituições ou representações da sociedade. Cf: SILVA, Andréia C. L. F. da. Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. In: Cronos: Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002. p. 196.

6

A correspondência espacial de proximidade entre os reinos pode ser visualizada no mapa incluído no Anexo I.

7

Lembrando que estas etapas não estão isoladas uma da outra, pelo contrário, elas dialogam ao longo da investigação, particularmente por conta da aplicação do método comparado que adota o cotejamento de dados para um resultado mais fundamentado.

8

Cabe lembrar que destacamos as diferentes fases de análise da documentação apenas com o objetivo de facilitar o trabalho de pesquisa, de tornar a leitura mais agradável e realizar a divisão dos capítulos, e não com a intenção de separá-las em etapas independentes. Pelo contrário, acreditamos que o confronto de dados entre as hagiografias seja essencial para melhor compreensão das questões.

9

Falaremos mais especificamente sobre as características do texto hagiográfico no item 2.1 dessa dissertação.

10

Cf: SILVA, Leila Rodrigues. O diabo nos milagres da Vita Sancti Aemiliani. Oracula, São Paulo, ano 7, n. 12, p.133-147, 2011. p. 136.

(15)

15 questões já citadas e utilizando-nos da comparação,11 perguntamos-nos se seria possível traçar um perfil episcopal presente na literatura hagiográfica. Acreditamos que sim, visto que os bispos compartilhavam de um mesmo habitus,12 como um elemento comum aos membros da alta hierarquia eclesiástica. Por isso nosso pressuposto essencial é considerar viável uma descrição compartilhada sobre o episcopado nas Vidas de Santos investigadas, apesar de identificarmos, ao mesmo tempo, distinções específicas. Portanto, interessa-nos também verificar em que medida as hagiografias apresentam confluências e divergências nesse processo, levando em conta outro pressuposto de que as semelhanças estão atreladas aos aspectos relativos ao habitus coletivo ao bispado, enquanto as diferenças associam-se ao contexto específico de cada documento.

Ou seja, tentaremos por meio da análise documental dos indícios a respeito do episcopado nas hagiografias e de um intenso diálogo com a historiografia reafirmar a perspectiva de que os bispos pertencem a um grupo específico, compartilhando valores comuns relativos ao papel que exercem na instituição eclesiástica. Mas, que por outro lado, algumas das referências ao episcopado estão atreladas aos pormenores da conjuntura temporal e espacial a que pertencem e, nas quais, os documentos foram produzidos.

Para responder às perguntas elaboradas será necessário uma melhor compreensão do processo de fortalecimento da Igreja, de expansão da cristianização e do papel do bispo nos primeiros séculos do Cristianismo. Outro pressuposto é, portanto, admitirmos a relevante função que estas figuras representaram como agentes no momento de organização e consolidação da instituição eclesiástica em princípios do período medieval.

Além disso, é de fundamental importância atentar para as especificidades locais que cercam cada uma das vitae, ou seja, associar a hagiografia ao seu período / espaço de produção para cotejar as informações encontradas com a conjuntura dos reinos. Por fim, lembramos do estreito diálogo mantido ao longo de todo o trabalho com a historiografia, com o objetivo de discutir essas diretrizes não somente nos capítulos específicos à documentação, mas também, observar a trajetória percorrida por cada um dos personagens, a manifestação da santidade, os vínculos estabelecidos e o modo como

11

Trataremos detalhadamente do método de pesquisa comparativo no item 1.3 deste capítulo.

12

O conceito de habitus desenvolvido por Pierre Bourdieu, que norteia o pressuposto de nossa investigação será discutido com a devida atenção também no item 1.3, sobre Teoria e Metodologia.

(16)

16 os aspectos voltados para os bispos se encontram elencados nas fontes, questionando sempre que possível as possibilidades de motivação que apontam para o uso de tais elementos.

Por fim, lembramos que nossa proposta está permeada por um interesse coletivo, desenvolvido no laboratório ao qual estamos associados desde 2009, que tem se dedicado ao estudo da produção intelectual eclesiástica entre os séculos V e VIII. Deste modo, realizamos reuniões regulares em que discutimos não somente a contribuição historiográfica acerca desta documentação, como os próprios documentos e as pesquisas em desenvolvimento que privilegiam estas temáticas.

1.2 DOCUMENTAÇÃO IMPRESSA

O corpus documental empregado na pesquisa é constituído por três relatos hagiográficos: a Vita Albini,13 de Venâncio Fortunato; a vida de Nicetio de Lyon, inclusa na Vita Patrum,14 de Gregório de Tours e o relato sobre a morte e os milagres de Paulo e Fidel, bispos emeritenses, presente nas Vidas de los santos Padres de Mérida.15 Assim, passaremos agora a uma apresentação inicial sobre os documentos.

A escolha específica dessas hagiografias se deu, em especial, pela correspondência temporal, já que dois documentos datam do final do século VI e o outro do início do VII; proximidade quanto ao recorte espacial, o que corrobora e fortalece o método investigativo utilizado, o comparativo.16 Ou seja, apesar de privilegiarmos duas hagiografias do reino dos francos e uma do reino visigodo, proveniente de Mérida, as da conjuntura merovíngia estão associadas ao perfil de santo propagado em duas regiões distintas do território franco: Nêustria e Burgúndia.17 Além disso, as três Vidas de Santos possuem estruturas e quantidade de capítulos semelhantes

13

A edição crítica da Vida de Albino utilizada em nosso trabalho foi traduzida e organizada por Serafin Bodelón dentro de uma proposta maior que contemplou a análise de diversas obras de Fortunato e traz também uma versão da hagiografia de Albino, ao final. Cf.: FORTUNATO, Venancio. Vida de San

Albino, obispo Andegaviense. In: BODELÓN, Serafín. Venancio Fortunato y las letras en el Medievo y el

Humanismo. Tiempo y sociedad, 13, p. 133-160, 2013-2014.

14

A versão da Vita Patrum, na qual está inclusa a vida de Nicetio, utilizada em nossa pesquisa é: GREGORY OF TOURS. Life of the Fathers. In: JAMES, Edward. (Org.), Translated Texts for Historians, v. 1, Liverpool: Liverpool University Press, 1985.

15

O relato sobre Paulo e Fidel em questão corresponde à edição presente no material crítico traduzido e organizado por Velázquez. Cf: Vidas de los santos Padres de Mérida. In: VELÁZQUEZ, Isabel. ___. Madrid: Trotta, 2008. p. 70-86.

16

Para melhor compreensão da proximidade dos reinos franco e visigodo incluímos um mapa que destaca os reinos como territórios vizinhos, conforme consta no Anexo I.

17

Essa especificidade do contexto merovíngio é fundamental ao atentarmos para a instabilidade política que caracterizou o reino naquele momento, contribuindo para uma dificuldade de integração entre as distintas regiões: Nêustria, Aquitânia, Austrásia e Burgúndia. Incluímos um mapa que destaca as regiões em que foi dividido o reino naquele período, conforme o anexo II.

(17)

17 e fazem referência a elementos que permitem a caracterização de um perfil episcopal, baseado nos eixos de comparação escolhidos. Cabe destacar que, no laboratório ao qual estamos vinculados no Programa de Estudos Medievais da UFRJ, temos nos preocupado, já há algum tempo, como um esforço coletivo com o levantamento e a análise de documentos dos reinos romano-germânicos, produzidos principalmente entre os séculos V-VIII. Deste modo, já levados por esta inspiração iniciamos a busca pela documentação hagiográfica que se enquadrasse nesses critérios.

1.2.1 A vida de Albino de Angers

A Vita Albini18 foi escrita nas últimas décadas do século VI, após a conversão de Clóvis19 e a adoção da vertente cristã nicena como oficial. O documento é composto por dezesseis capítulos e é atribuído a Venâncio Fortunato, nascido por volta de 530, em Treviso, localizada atualmente no norte da Itália. O autor adquiriu uma formação intelectual fundamentada na educação clássica, estudou em Ravena, onde teria perdido a visão e a recuperado após um milagre concedido por Martinho de Tours.20

Após esse episódio, teria visitado o túmulo do santo e viajado até a Gália, aproximadamente em 565. Após o seu estabelecimento no reino franco, Fortunato foi protegido pela dinastia merovíngia, especialmente pelo rei Sigeberto (561-575).21 Além de poeta e influente pensador preocupado com a propagação do cristianismo, tornou-se bispo de Poitiers, por volta de 590, já no final de sua vida.22 Entre seus escritos, podemos destacar a grande variedade de obras poéticas, além de cartas e outras hagiografias.23

18

Doravante, para facilitar a leitura e a escrita, chamada de VA.

19A conversão do monarca Clóvis ao cristianismo niceno é tida como “direta”, uma vez que, não permeou

anteriormente a associação à manifestações consideradas heréticas como acontecera em outros reinos romano-germânicos. Este processo ocorrido entre 498 e 499 é marcado, em grande medida, pela tentativa de alcance de uma unidade interna no reino. Cf: WOOD, Ian. The Merovingian Kingdoms, 450-751. Londres/Nova Iorque: Longman, 1994. p. 41-49.

20

Venâncio Fortunato teria viajado de Ravena para a Gália com objetivo de visitar o túmulo de Martinho como forma de agradecimento ao milagre em tese alcançado, intermediado pelo santo, ao recuperar a visão. Cf.: BODELÓN, Serafín. Venancio Fortunato y las letras en el Medievo y el Humanismo. Tiempo

y sociedad, 13, p. 98-160, 2013-2014. p. 125.

21

Detalhes sobre a dinastia merovíngia, no momento de produção dos documentos, podem ser visualizados no esquema proposto no Anexo III.

22

ANDRADE FILHO, Ruy de O.; CHARRONE, João Paulo. A santidade nas hagiografias de Venâncius Fortunatus. Mirabilia, São Paulo, v.1, n. 16, p. 8-34, março 2013. p. 10.

23

B. Krusch editou os textos hagiográficos na Monumenta Germaniae Historica reconhecendo a autenticidade de Venâncio Fortunato nas seguintes Vitae, dedicadas a: Hilário de Poitiers (incluindo uma espécie de complemento chamado de Liber de virtutibus sancti Hilarii), Germano e Marcelo de Paris, Paterno de Avranches, à rainha Radegunda e a Albino de Angers. Cf.: VENANTIUS FORTUNATUS.

(18)

18 O hagiógrafo destaca a origem nobre de Albino e logo depois desconstrói esta característica afirmando o abandono dos privilégios terrenos que a condição social de sua família poderia lhe oferecer em favor de sua vocação cristã. Por volta dos vinte anos, ingressou no mosteiro Cincilacense e iniciou a carreira monástica, segundo a vita: “decorrente de uma família honrosa, de antepassados nobres, (...) no mosteiro Cincilacense foi dedicado a agradar ao Senhor com grande humildade de espírito, que não reivindicou para si nenhum privilégio da nobreza”.24

A partir daí, Fortunato destaca a superação diária das limitações humanas pelo santo, principalmente por conta de um elemento essencial: o controle do corpo: “avançava no fim deste processo de exercício cotidiano, de tal modo que se superando a si mesmo sempre por seus próprios méritos, não vencia aos demais, mais além, triunfava sobre si mesmo, depois de dominar seu próprio corpo”.25

São citados vários milagres ao longo do texto, atribuídos a ele, como recompensa concedida pelo poder divino por conta da dedicação e fidelidade. Entre estes citamos: o controle de fenômenos naturais, aqueles ligados à cura, sobretudo da cegueira, ressurreição de mortos e libertação de prisioneiros.26 Por fim, após quinze anos como monge, o autor ressalta sua escolha como abade e, pouco tempo depois, a posterior indicação para o bispado de Angers.

Na documentação analisada podemos destacar a proeminência de uma trajetória religiosa “ideal” em que Albino se torna inicialmente cenobita, posteriormente abade do mosteiro e, por fim, bispo. Na caracterização do perfil do santo percebemos aspectos que procuram ratificar a convivência pacífica, a humildade, a benevolência e a submissão à autoridade como as características que corroboravam a santidade. Além disso, cabe lembrar que apesar da filiação monástica por um período considerável, a atividade episcopal será a que receberá maior ênfase no documento, elemento essencial que contribui para a análise do perfil episcopal.

com 7-11 Liber de virtutibus s. Hilarii); 11-27 (Vita s. Germani); 27-33 (Vita s. Albini); 33-37 (Vita s.

Paterni); 38-49 (Vita s. Radegundis); 49-54 (Vita s. Marcelli).

24

Conforme documentação em latim: “non exiguis parentibus oriundu, imno digni germinis dignissma proles emergens, (...) Mox in Tincillacense monasterio tanta animi humilitate domino placiturus se subdidit, ut salva morum honestate nihil sibi de ingenuitatis privilegio vindicaret, ubi quem origo liberum genuit famulum voluntas addixit”. Cf: VA, 1.

25

“proficiebat denique in eo exercitationis cotidianae processus, ita ut ultra se semper ascendens meritis non reliquos vinceret, sed edomito corpore de se ipso potius triumpharet”. Cf: Idem.

26

Incluímos uma tabela com os dados principais presentes na documentação hagiográfica aqui privilegiada e outras que privilegiam os eixos de comparação, para melhor visualização e compreensão das afirmações feitas em relação aos milagres, às virtudes, entre outros. Ambas encontram-se nos anexos.

(19)

19 É importante salientar que os demais membros da hierarquia eclesiástica estavam submetidos à autoridade episcopal, incluindo aqueles oriundos das casas monásticas. Por conta disso, ressaltar a santidade de Albino pautada na obediência favorecia a manutenção dessa rede de relações e de poderes já estabelecida naquela conjuntura.27

1.2.2 Vita Patrum

A Vida dos Padres28 é uma obra de cunho hagiográfico composta por vinte pequenas narrativas sobre figuras veneradas, escrita por Gregório de Tours, no final do século VI, incluindo a de Nicetio de Lyon, seu tio-avô. As vidas compiladas na documentação podem ser divididas de acordo com o cargo ocupado pelos personagens principais. Assim, das vinte hagiografias, dez fazem referência à trajetória de abades, quatro a eremitas, uma é dedicada a uma monja e, por fim, seis delas tratam de bispos.29

Gregório viveu aproximadamente entre 539 e 594, pertencia a uma família de origem galo-romana que já possuía uma significativa tradição na ocupação de cargos eclesiásticos. Seu pai e avô haviam sido senadores de Clermont, seu local de nascimento, alguns de seus tios e primos pertenceram ao episcopado e seu bisavô materno foi Tetricus de Langres, considerado santo.30 O bispo de Tours é apontado como o principal autor do período merovíngio. Seus escritos são tidos como recursos significativos no que tange a uma melhor compreensão da história do reino franco.31 Entre eles citamos ainda o Septem libri milaculorum, voltado para a sistematização de milagres de santos, e sua obra mais famosa, o Decem libri Historiarum, conhecido como Dez livros de História e, posteriormente, denominada de Historia Francorum.

Por volta de 564 o hagiógrafo iniciou sua carreira eclesiástica quando foi

27

Essa questão torna-se mais evidente se considerarmos que a hagiografia em questão teve como público-alvo, essencialmente, os religiosos, com destaque para os monges. Assim, a escolha em delimitar um perfil de santo que estivesse adequado ao contexto de manutenção de autoridade já estabelecido pode indicar que o hagiógrafo reconhecesse a necessidade de ratificar tais preceitos no entorno de determinadas comunidades monásticas.

28

A partir de então denominada de VP.

29

Lembramos aqui que algumas narrativas são dedicadas a dois santos concomitantemente como, por exemplo, as de Romanus e Lupicinus; Ursus e Leobatius. Além de Nicetio, personagem privilegiado em nossa pesquisa, Gallus e Gregório de Langres também eram membros da família de Gregório de Tours e tiveram suas trajetórias compiladas na Vita Patrum. Ao que tudo indica, Gallus foi o tio de Gregório responsável por sua educação desde a morte de seu pai, Florentius. Cf: VAN DAM, Raymond. Saints and

their miracles in Late Antique Gaul. Princeton: Princeton University Press, 1993. p. 55.

30

Cf: HEINZELMANN, Martin. Gregory of Tours. History and Society in the Sixth Century. Cambridge University Press, 2001. p. 9-11.

31

Entre as temáticas privilegiadas por Gregório em seus trabalhos chamamos atenção para o significado das relações políticas e dos agentes envolvidos nestas, como a dinastia merovíngia e a nobreza ao longo dos séculos V e VI.

(20)

20 ordenado diácono e, onze anos depois, assumiu a diocese de Tours,32 posição ocupada praticamente por duas décadas, até sua morte. Durante esse período a responsabilidade de seu bispado se estendia para as sés de Le Mans, Rennes, Nantes, entre outras regiões.

A vida de Nicetio é composta por um prefácio, no qual é explorado o tema da predestinação, e doze capítulos que tratam sobre a educação, a vocação religiosa e as experiências familiares, sendo que a relação entre ele e a mãe recebe bastante destaque, com ênfase na submissão como uma das principais qualidades do santo: “morava com a mãe na casa paterna trabalhando com as mãos ao lado dos servos; entendia que as tentações corporais só poderiam ser suprimidas pelo trabalho e dificuldades”.33 Além disso, o início da carreira eclesiástica e a ordenação ao bispado de Lyon são outros acontecimentos citados no documento.

Em relação aos milagres que teriam sido realizados pelo santo podemos ressaltar a considerável relevância dada para aqueles exercidos após a sua morte. Entre as ações maravilhosas que teriam sido empreendidas por Nicetio cabe lembrar das referências à expulsão de demônios de um diácono, a cura de um cego durante o próprio velório do bispo, a libertação de prisioneiros e atos que de alguma maneira prejudicaram aqueles que duvidaram de sua santidade ou descumpriram acordos com o hagiografado. Vale destacar que as referências sobre o bispo de Lyon impulsionam nossa proposta que privilegia a problematização acerca da caracterização do episcopado propagado nos reinos romano-germânicos.

1.2.3 Vida de los santos Padres de Mérida

A Vida dos santos Padres de Mérida34 é um relato anônimo do reino visigodo que descreve a cidade emeritense no século VI, escrito certamente, nas primeiras décadas do século seguinte, tendo como enfoque central as ações dos principais bispos locais: Paulo, Fidel e Masona, e suas relações com as autoridades políticas. Além desse núcleo principal acrescentam-se ao documento a trajetória do abade Nancto, do servente Augusto, menções a respeito de um monge de Cauliana e as referências aos sucessores

32

Quando Gregório de Tours foi consagrado bispo o monarca reinante na Austrásia era Sigeberto. Os reis contemporâneos ao bispo de Tours foram os quatro descendentes de Clotário I, filho de Clóvis: Cariberto, Gontrão, Chilperico e Sigeberto.

33

“hic cum genetrice iam clericus in domo paterna resedens, cum reliquis famulis manu propria laborabat, intellegens, commotiones corporeas non aliter nisi laboribus et aerumnis obpremi posse.” Cf: VP, 2

34

(21)

21 da sede episcopal, Inocêncio e Renovato.

Assim, a documentação está organizada em cinco pequenas narrativas35 que se apresentam de maneira independente. Como uma das características principais da obra ressaltamos o panorama urbano, os conflitos religiosos e políticos, para além dos elementos recorrentemente encontrados em hagiografias, como a intervenção da santa patrona Eulália e os feitos miraculosos. Além disso, o relato oferece um panorama bastante sugestivo das construções, mosteiros e igrejas de Mérida. A respeito da datação, acredita-se que a escrita tenha ocorrido por volta de 633, ou até no máximo 638, durante o episcopado de Esteban,36 ou seja, ainda na primeira metade do século.

Um elemento a ser sublinhado sobre a redação da VSPE é a discussão da possibilidade bastante evidente de duas elaborações distintas. A original, de um autor desconhecido,37 que foi transmitida nos códices visigóticos, em San Millán de la Cogolla, em Santo Domingo de Sillos, além de um fragmento de somente dois fólios e um já em papel, do século XVI.38 A segunda redação, ocorrida até a década de setenta do sétimo século, não estaria associada a uma revisão do mesmo autor. Isto porque são feitas intervenções que indicam o trabalho de um compilador, com retoques ao longo da obra, a proposição de um novo título, a elaboração de um índice e algumas interpolações.

Nossa análise está voltada para as referências aos bispos Paulo e Fidel de Mérida.39 Eles são retratados como autênticos líderes das comunidades, exercendo a administração, dirigindo as sedes, cuidando dos pobres e controlando as manifestações de santidade no entorno de suas dioceses. No caso da VSPE, especialmente a devoção à santa Eulália. Em um número considerável de obras coletivas, como essa, o tratamento

35

Essa divisão se apresenta, na edição aqui utilizada, organizada em capítulos. Assim, cada capítulo corresponde a uma “história” independente. O quarto, sobre Paulo e Fidel, e o quinto, a respeito de Masona, como núcleo principal, e como partes que tratam das vidas dos bispos de Mérida.

36

O ano de 633 é o mais apontado como provável para escrita da VSPE por conta da convocação do IV Concílio de Toledo, presidido por Isidoro de Sevilha, que já contou com Estebán, como titular da sede de Mérida. Cf: Vidas de los santos Padres de Mérida. In: VELÁZQUEZ, Isabel. ______. Introdução. Madrid: Trotta, 2008. p. 9-15.

37

Segundo Velázquez, o mais evidente seria a atribuição de autoria a um diácono da igreja de Santa Eulália. Cf: Idem.

38

Para mais detalhes a respeito da transmissão dos manuscritos, datação e autoria, consultar a introdução da edição utilizada. Cf: Ibidem. p. 9-44.

39

Destacamos aqui a escolha em observar particularmente as trajetórias de Paulo e Fidel e não incluir a de Masona. Isto porque, este teria sido o último dos três a ocupar a sede episcopal de Mérida, compreendendo ao longo de seu bispado, também, o início do século VII, enquanto os outros dois bispos atuaram ainda na segunda metade e final do século VI. Como Albino e Nicetio também teriam sido bispos em suas dioceses neste momento anterior utilizamos como critério, para escolha das referências a serem observadas, o recorte temporal. Deste modo, incluir a vida de Masona implicaria em acrescentar mais um contexto, o que implicaria na inviabilização da análise de todo este material em uma dissertação.

(22)

22 dos protagonistas não aparece individualizado, quanto às suas características particulares, e sim evidenciam traços comuns que conduzem a modelos. Como por exemplo: “ele (Paulo) dirigia a todos os seus cidadãos em paz e bondade com a graça de Deus e mostrava doce afeto de seu santo coração, tendo a afeição de todos (...)”.40

Entre os aspectos que podemos mencionar na hagiografia dos bispos emeritenses estão a origem abastada dos hagiografados, a eloquência, a ocupação de uma posição de poder, a generosidade, uma capacidade formidável de recursos tanto materiais quanto espirituais e o poder miraculoso. Além disso, um atributo recorrente é a função de garantir castigos aos que se opõem ao cumprimento da vontade de Deus, muitas vezes, encarnada nas ações dos santos.

1.3 APORTE TEÓRICO-METODOLÓGICO

1.3.1 Referenciais teóricos

A partir da identificação do objeto de pesquisa, da delimitação da problemática que conduziu os questionamentos acima mencionados, da apresentação da documentação privilegiada em nosso trabalho e da caracterização do texto hagiográfico como um tipo de fonte particular, faz-se necessário agora partirmos para os apontamentos a respeito dos fundamentos teóricos e metodológicos que embasaram nossas reflexões.

A perspectiva escolhida para o tratamento das indagações históricas é a sociológica privilegiando, sobretudo, a formulação de conceitos atrelados à noção de campo, proposta por Bourdieu.41 É a partir de tais enunciações que buscamos compreender de forma mais respaldada a complexa rede de significados simbólicos das ações dos agentes envolvidos nos contextos analisados, tanto no âmbito religioso, como no político e social.

O campo, segundo o autor, é um espaço estruturado da realidade social cuja dinâmica depende, na grande maioria das vezes, da posição de seus ocupantes neste

40

“qui dum pacifice ac benigne, favente Deo, cunctis civibus suis pracesset, et cunctorum effectibus dulcifluum sacri pectoris sui exhiberet affectum (...)”. Cf: VSPE, 1.

41

O campo religioso é relativamente autônomo e funciona a partir da necessidade de sistematização das crenças e práticas religiosas. Apesar de reconhecermos esta autonomia não acreditamos que o campo religioso deva ser compreendido como algo isolado dos demais âmbitos. Pelo contrário, defendemos aqui a existência de relações que interligam estes campos entre si: político e religioso, político e social, entre outros. Sobre a teoria dos campos: BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades do campo. In: ______.

(23)

23 espaço. Para ele, é dentro do campo que ocorrem as lutas constantes entre o novo agente, que tenta impor o direito de entrada neste local, e o dominante que se empenha em defender o monopólio adquirido, excluindo a concorrência.42

Com base nessas concepções entendemos o campo religioso na Alta Idade Média como um ambiente estruturado em relações objetivas que se expressa por meio da disputa interna entre a ortodoxia da Igreja, os dominantes, e os demais grupos, os dominados, pelo controle da autoridade legítima. Cabe destacar que os agentes de menor prestígio são contemplados a partir da interpretação das autoridades eclesiásticas, isso porque as fontes analisadas foram produzidas por religiosos. Ou seja, por aqueles que desfrutam de uma posição hegemônica no campo e desejam manter o posicionamento privilegiado. O autor defende ainda que existem propriedades comuns a todos eles, como por exemplo, a busca por objetivos em conjunto pelos membros que ocupam um campo e, apesar das lutas constantes, nenhum deles deseja a destruição do espaço.43

É importante notar que a relação de forças que constitui o campo religioso está ligada à busca pelo monopólio do capital.44 Assim, os que detêm uma posição superior se utilizam de estratégias de conservação enquanto os que possuem menos capital tendem a fazer uso de recursos que alteram as regras já estabelecidas naquele interior. Assim, ao nos questionarmos a respeito do perfil episcopal na conjuntura de escrita das fontes privilegiadas percebemos de forma evidente o exercício de autoridade considerada autêntica, como um dominante dentro do campo religioso, impulsionado pelo habitus45 que lhe é conferido pela instituição à qual estão vinculados: a Igreja. Esta formulação seria um princípio gerador dos pensamentos, percepções e ações segundo as normas de representação religiosa do mundo, seja natural e/ou sobrenatural, explicitamente ajustado aos princípios de uma visão política do meio social.46

Acrescentamos ainda, que à origem abastada majoritária dos bispos, deve se

42

Cf: BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: DIFEL/Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil, 1989. p. 59.

43

BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades do... Op. Cit., p. 89-94.

44

O capital simbólico seria a distinção que um agente detém ao acumular prestígio, reputação ou fama dentro de um determinado campo de produção de bens simbólicos. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico... Op. Cit., p.15-144.

45

O habitus, segundo o sociólogo, é um reconhecimento adquirido e também um haver, como um capital que indica a disposição incorporada de um agente em ação em um determinado campo. Assim, o habitus não representa uma noção isolada do campo. Pelo contrário, de forma dialética é ao mesmo tempo modificado pelo campo ao passo que também auxilia na própria conformação do espaço. Vale destacar que, para Bourdieu, o habitus que se constitui no curso de uma trajetória particular impõe sua lógica própria à incorporação dos agentes. Cf: Idem.

46

(24)

24 incluir a transmissão de um capital de origem que só é passível de ser herdado pelo privilégio do nascimento em determinadas famílias. Afinal, a procedência favorecida somada a uma educação pautada nos moldes clássicos e no considerável conhecimento das Escrituras47 proporcionava aos membros do bispado, em especial aos hagiografados analisados neste trabalho, grande capital simbólico.

Além disso, Bourdieu chama atenção para a noção de sistemas simbólicos,48 onde estaria incluída a religião, âmbito que nos interessa particularmente, como estrutura estruturante. Ou seja, como sistemas que só podem exercer um poder estruturante porque concomitantemente são estruturados. Ao nos depararmos com esses conceitos optamos por atentar para as funções políticas dos sistemas como uma das construções da realidade, em detrimento de uma estrutura lógica e rígida. Eles funcionariam por meio dessa lógica como instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento para cumprimento da legitimação de dominação, contribuindo também para assegurar o predomínio de um grupo sobre outro, por meio da violência simbólica.49

Assim, a ideologia50 seria o produto coletivo que serve aos interesses particulares comumente apresentados como universais, sendo duplamente determinada:51 seus aspectos mais específicos estão relacionados não só aos objetivos dos estratos exprimidos por elas, mas também daqueles que as produzem, fortalecendo a lógica particular do campo de produção. É na correspondência de estrutura que se realiza a função propriamente ideológica do discurso dominante que se inclina a apreender a ordem estabelecida como natural.52 O trabalho religioso realizado pelos

47

Ibidem. p. 15 e 144.

48

O poder simbólico, uma força que atua nos sistemas simbólicos, é definido segundo Bourdieu como um poder invisível, que só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não procuram saber o que lhes estão sujeitos ou que o exercem. O poder simbólico permitiria a obtenção do equivalente ao que é conseguido por meio da força, sobretudo por conta do efeito de mobilização exercido pelo reconhecimento. Cf: Ibidem. p. 7.

49

A violência simbólica pode ser definida como aquela violência e/ou dominação que embora objetiva ocorre no âmbito da intenção, ou seja, como certas formas de coerção que se baseiam muito mais em acordos “mentais” e não com ênfase em agressões físicas, por exemplo. Cf: BOURDIEU, Pierre. O poder

simbólico... Op. Cit., p. 211.

50

Defendemos que não é possível estabelecer uma noção exata do significado de ideologia, afinal este se caracteriza como um conceito permeado por diversos significados, todos possíveis, convenientes e nem sempre completares entre si. Ou seja, a ousadia de delimitar uma significação ao termo está certamente, atrelada ao que desejamos expressar naquele momento específico. Por isso, diante desta trama múltipla recortamos neste trecho de nosso trabalho o conceito ideologia como um corpo de idéias característico de um determinado grupo social, com o objetivo de legitimar os dominantes. Cf: EAGLETON, Terry.

Ideologia. Uma introdução. São Paulo: UNESP, Boitempo, 1997. p. 15.

51

Segundo Bourdieu destaca em: ______. O poder simbólico... Op. Cit., p.15-144.

52

Em nosso caso acreditamos que a tendência à apreensão da ordem estabelecida como natural por meio da imposição de sistemas esteja associada à ortodoxia da Igreja.

(25)

25 produtores e porta-vozes especializados, sejam eles investidos de poder institucional ou não, caracterizar-se-ia pela resposta a partir de um determinado tipo de prática ou discurso a uma categoria própria de necessidades singulares a certos grupos sociais.53

Ao que tudo indica a racionalização da religião possui uma normatividade respectiva ligada ao desenvolvimento de um corpo especificamente sacerdotal. Sendo assim, há a constituição de instâncias especialmente voltadas para a produção, reprodução e difusão dos bens religiosos.54 Deste modo, segundo a teoria proposta por Bourdieu, o campo ampliaria sua autonomia à medida que o peso concedido a essas funções internas aumentasse. Em nosso contexto de pesquisa identificamos os bispos como principais representantes da gestão do monopólio dos bens de salvação.

O episcopado está associado ao corpo de especialistas religiosos, socialmente reconhecidos como os detentores da competência específica necessária à administração de um corpus deliberadamente organizado. A constituição do campo religioso acompanha a destituição objetiva dos grupos que não têm acesso ao capital religioso, ou seja, daqueles que são excluídos do pertencimento ao campo.55 Dessa forma, a alta hierarquia eclesiástica regula, em grande medida, a fluidez dessas relações, seja por meio da elaboração do corpus documental que foi preservado, do papel de autoridade que ultrapassava o âmbito religioso e por conta da aproximação que mantinham com as lideranças políticas nos reinos romano-germânicos.56

Por fim, destacamos mais uma vez que, a partir da noção de habitus, buscaremos compreender o significado e a importância da formação intelectual e das disposições incorporadas para o direcionamento das ações do episcopado. Ou mais especificamente na delimitação do perfil do bispo veiculado nas fontes hagiográficas. Desta forma, será possível notar os aspectos partilhados entre as esferas política e religiosa observando os interesses comuns à Igreja e aos monarcas, por meio da expressiva aproximação entre os

53

BOURDIEU, Pierre. Algumas propriedades do... Op. Cit., p.27-78.

54

Ibidem. p. 37.

55

Ibidem. p. 39.

56

As lideranças episcopais realizavam uma série de atividades ligadas diretamente ao âmbito religioso, como a gestão dos bens eclesiásticos, a ministração de sacramentos e demais rituais litúrgicos, além das definições de penitências e de mediação como juízes dentro da comunidade cristã. No entanto, desempenhavam também funções políticas e atuavam como responsáveis por importantes negociações com os monarcas germânicos, além de fornecerem assistência aos prisioneiros e a manutenção de orfanatos e cemitérios. Segundo Peter Brown, os bispos e as distintas maneiras de atuação de tais figuras nos reinos romano-germânicos configuravam características peculiares às distintas localidades: “cada um incarnava a lei e a ordem na sua região”. Cf: In:______. A Ascensão do Cristianismo no Ocidente. Lisboa: Presença, 1999. p. 121.

(26)

26 líderes eclesiásticos e as autoridades políticas no contexto de organização dos reinos romano-germânicos após a desagregação do Império Romano.

Cabe ressaltar, que apesar de admitirmos a expressiva significância dos bispos como agentes de fundamentação da estrutura social e religiosa estabelecida ao longo da Alta Idade Média, não compartilhamos da perspectiva que defende um contexto de dominação absoluta dos clérigos.57 E sim, daquela que privilegia a identificação das relações de poder existentes, inclusive no âmbito da Igreja e considera o bispado como um dos expoentes essenciais dessa manifestação.58 Ao nos propormos a analisar a documentação hagiográfica produzida na conjuntura merovíngia e visigótica algumas questões pertinentes ao episcopado se tornam proeminentes. Entre elas identificamos a imensa maioria de hagiógrafos pertencer também à alta hierarquia eclesiástica59 e o modelo de santidade exaltado nas Vidas indicar como favorável, em muitos casos, o episcopal.

Acreditamos que esses elementos compõem o perfil de santidade na documentação hagiográfica com objetivo de reafirmar a posição de autoridade que os bispos ocupavam, isso porque a produção intelectual é um elemento privilegiado no que tange à comunicação para caracterizar o funcionamento da Igreja e delimitar as normativas a serem seguidas pelos cristãos. A hagiografia é, portanto, uma das expressões que nos permite observar, levando em conta o corpus documental que analisamos, a legitimação da instituição eclesiástica por meio da figura do bispo como aquele que ratifica o cumprimento das normas e persevera na disciplina para atingir a salvação, o santo.

O estabelecimento da Igreja seguindo uma organização baseada em uma hierarquia complexa, fazendo uso de uma linguagem peculiar, como detentora da exclusividade do acesso aos instrumentos do culto torna o sacerdote devidamente nomeado o meio indispensável da salvação, conferindo a essa categoria o poder da santificação.60 O bispo seria a espécie de um porta-voz autorizado nas regiões da Gália e na Península Ibérica nos séculos VI e VII. Para Bourdieu, essa figura consegue

57

Como José Orlandis parece priorizar em sua pesquisa, perspectiva explorada, por exemplo, nesta obra do autor: ______. La conversión de Europa al Cristianismo. Madrid: Rialp, 1988.

58

Assim como Leila Rodrigues da Silva defende neste trabalho, por exemplo: ______. O diabo nos... Op.Cit., p. 136.

59

Sobre os modelos de santidade explorados em hagiografia: SOBRAL, Cristina. O modelo discursivo hagiográfico. Colóquio da Secção Portuguesa da Associação Hispânica da Literatura Medieval. Actas... Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2005. p. 97-107. p. 101.

60

(27)

27 direcionar suas ações por meio do trabalho que realiza, na medida em que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pela instituição que lhe confere prestígio.

1.3.2 Referenciais metodológicos

Nossa pesquisa, em termos metodológicos, valoriza duas perspectivas distintas. A primeira relacionada diretamente à análise do discurso,61 visto que não contamos com a neutralidade do pesquisador diante da ciência, pois defendemos que toda pesquisa é uma interferência do analista em uma realidade específica, e a segunda aos referenciais propostos pela História Comparada. A abordagem metodológica da Análise do discurso de Orlandi nos auxiliou quando buscamos entender como o material simbólico62 produz sentido. Assim, acreditamos que os processos são constituídos por transferências e pistas sobre as quais não temos controle, o que está diretamente relacionado ao conceito de habitus, como elementos em comum compartilhados pelos bispos.63 A autora propõe a introdução de um dispositivo teórico que possa intervir na relação de análise entre os

pesquisadores e o objeto investigado.64

Acreditamos, tal como Kocka,65 que a escolha pelo método comparativo pressupõem que as unidades de comparação possam ser separadas umas das outras. Assim, esse trabalho será norteado pelos questionamentos em separado dos contextos como casos independentes que serão reunidos analiticamente para, então, refletirmos acerca das similaridades e diferenças entre eles.

Como forma de demarcar o processo investigativo e estabelecer diretrizes a serem alcançadas com as reflexões, tendo como base a documentação, distinguimos eixos de comparação que possam nos auxiliar no alcance de nossos objetivos e na comprovação das hipóteses lançadas, até por conta da impossibilidade em uma dissertação de se propor questões que contraponham totalidades. Assim, torna-se mais produtivo cotejar aspectos.

61

Ao fazermos referência à análise do discurso estamos embasados nos elementos que permeiam a problematização da pesquisa. A linguagem não seria, portanto, o mecanismo responsável por fazer emergir uma realidade exterior à linguagem. Pelo contrário, seria justamente a articulação entre o interior, representado pela linguagem, e o exterior, o social.

62

Cf: ORLANDI, Eni. Análise de Discurso. Campinas: Pontes, 2006. p. 60.

63

Conforme já mencionamos no item sobre os referenciais teóricos.

64

A autora traça um roteiro bastante elucidativo quanto à proposta de análise do discurso desenvolvida e seguida por ela em seu trabalho. Ibidem. p. 61-62.

65

O autor chama atenção para duas principais vantagens da comparação: identificação de questões que poderiam passar despercebidas e esclarecer perfis de casos singulares. Além disso, ele destaca quatro propósitos e /ou objetivos a serem alcançados na pesquisa histórica fazendo uso da comparação: heurístico, descritivo, analítico e paradigmático. Cf: KOCKA, Jürgen. Comparison and beyond. History

(28)

28 Optamos por unidades amplas, que contemplam distintas interpretações: santidade e relações sociais. A primeira, voltada para as referências às virtudes, aos milagres e ao trato do corpo nos relatos sobre o perfil episcopal. E a segunda, privilegiando os indícios das ligações entre os bispos e os demais agentes, entre eles e outros religiosos e com os demais personagens presentes na trajetória dos bispos, como por exemplo autoridades políticas. Embora reconheçamos que exista uma multiplicidade de outras categorias nos documentos em questão, a escolha deve-se à percepção de que estas são imprescindíveis para a compreensão da temática principal dessa dissertação.

Partindo das duas unidades de comparação propostas procuramos “iluminar” um objeto ou situação a partir de outro, arriscando procurar analogias e traçando semelhanças e diferenças entre ambas as realidades, ao ressaltar variações de um mesmo modelo. Em nosso caso, caracterizado pela delimitação do perfil do bispo nas hagiografias.66

Por fim, trazemos as contribuições de Bloch sobre o método comparativo.67 Segundo ele, dois aspectos irredutíveis seriam imprescindíveis: por um lado certa similaridade entre os fatos, de outro, algumas dessemelhanças no ambiente em que estas aproximações ocorram. A semelhança e a diferença, elementos que procuramos delimitar na problemática e na apresentação documental nos relatos de Albino, Nicetio, Paulo e Fidel, estabelecem um cenário dinâmico e vivo para a formulação de uma proposta voltada para a História Comparada.

Por isso, a escolha dos três documentos já discutidos nos itens anteriores se mostra eficiente, já que apresentam confluências, como em relação à tipologia documental, à estrutura das narrativas, temáticas privilegiadas e perfis de santidade. No entanto, também notamos distanciamentos: as trajetórias percorridas, as regiões de produção, a autoria, além de outros elementos que pretendemos levantar ao longo da pesquisa.

Ao finalizar este capítulo, destacamos, portanto, os seguintes aspectos: nosso objeto de pesquisa está associado à investigação sobre o perfil episcopal em narrativas hagiográficas a partir do pressuposto de que os bispos compartilhavam de um mesmo habitus, identificando, ao mesmo tempo, distinções específicas. Tendo como norte principal o pressuposto que sustenta nossa investigação, com base na análise do corpus

66

Cf: BARROS, José D´Assunção. História Comparada: Um Novo Modo de Ver e Fazer História.

Revista de História Comparada, v. 1, n. 1, p. 1-30, jun./2007, p, 5.

67

(29)

29 documental, dos trabalhos historiográficos e por meio do aporte teórico-metodológico, que as semelhanças estão atreladas aos aspectos relativos ao habitus coletivo ao bispado, enquanto as diferenças associam-se ao contexto específico de cada documento.

Referências

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