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POPULAR CANÔNICO, PAGODE ROMÂNTICO E SEUS ENQUADRAMENTOS 1. Thiago Ansel 2 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro RJ

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POPULAR CANÔNICO, PAGODE ROMÂNTICO E SEUS ENQUADRAMENTOS1

Thiago Ansel2

Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – RJ

Resumo: Parte da produção acadêmica brasileira contemporânea no campo da comunicação tradicionalmente têm se dedicado à reflexão sobre as interfaces e tensões entre as culturas popular e midiática. Estas abordagens, inspiradas em perspectivas como a dos estudos culturais, costumam problematizar a hierarquização de diferentes expressões culturais e artísticas, valorizando ou destacando manifestações e práticas identificadas com grupos subalternos. Paradoxalmente, tais estudos têm passado ao largo de manifestações com profundo apelo popular como pagode romântico, surgido nos anos 1990. Este artigo levanta uma hipótese sobre os critérios de não recepção do gênero e seu repertório estético nesta área do conhecimento que, mesmo tento entre as suas principais problemáticas os dilemas do popular-midiático (HALL, 2003), tem ignorado quase que completamente - ou tratado como fundamentalmente reacionário e não artístico - este gênero, desde seu aparecimento.

Palavras-chave: Pagode romântico; Estudos em comunicação; Regimes de visibilidade; Enquadramentos

Há um episódio na autobiografia de Bertrand Russell que claramente ilustra a importância atribuída e essas formalidades na sociedade vitoriana. Ele lembrava como, na idade de 13 anos, havia encontrado pela única vez em sua vida o grande Sr. Gladstone.

“Como eu era o único homem da casa, eu e ele fomos deixados sozinhos à mesa de jantar depois que as damas se retiraram. Ele fez apenas uma observação: ‘Esse porto que me deram é muito bom, mas por que ele me foi oferecido em uma taça de claret?’ Eu não sabia a resposta, e desejava que a terra me engolisse. Até então, nunca tinha sentido a verdadeira agonia do terror”.

(E.H. Gombrich, “O Sentido de Ordem”)

1 Trabalho apresentado no GT2 Metodologias de Análise em Mídia e Música do VI MUSICOM – Encontro de

Pesquisadores em Comunicação e Música, realizado de 05 a 07 de agosto de 2015, na Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES.

2 Thiago Ansel é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ. Atualmente

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1 Introdução: intolerável?

Em que consiste uma inadequação? Ela se estabelece quando uma atitude ou cena se choca diretamente contra os sentidos, causando mal-estar? Ou dependerá dos graus de formalidade exigidos pelas diferentes ocasiões? Se formalidade tem relação com a intensificação da observância das formas, o que ou quem nos alerta do que é adequado ou não? Peter Stallybras (2008) conta sobre como Marx, o pai do termo “fetiche da mercadoria”, ironicamente, teve de interromper inúmeras vezes as pesquisas de “O Capital”, simplesmente porque se viu obrigado a penhorar seu casaco, peça sem a qual não podia acessar a sala de leitura do Museu Britânico, que tinha lá suas formalidades. Já a anedota da epígrafe envolvendo Russell ilustra o que é descobrir-se praticando uma gafe e ter de lidar, ainda sob o impacto da surpresa, com a vergonha que dela decorre e sua sensação de desprazer cuja fuga parece ser uma necessidade universal.

As duas cenas servem para lembrar de que os sentidos não são patrimônio exclusivo do corpo, mesmo que a percepção de inadequação tenha conseqüências físicas. Rodrigues (1995) escreve que no mundo medieval as sepulturas - com exceção daquelas de pessoas com certa notabilidade - eram coletivas e permaneciam mais ou menos abertas até serem preenchidas. As valas eram, em geral, adjacentes às igrejas, centros da vida social e onde todo o tipo de celebração ocorria.

Em torno das sepulturas semi ou inteiramente abertas ficavam os fornos comunais para fazer pão, namoravam os casais, brincavam as crianças, divertiam-se os adultos. E não há registros medievais de pessoas reclamando de mau cheiro e da convivência inoportuna com cadáveres. Nessa praça cemitério aconteciam outras coisas interessantes. Uma delas eram as chamadas danças macabras em que vivos e cadáveres se divertiam juntos(...). (RODRIGUES, 1995, p.30 – 31)

O olfato - ativado quando moléculas que se desprendem dos objetos tocam as células olfativas de nosso corpo -, embora responsável por sensações corpóreas (imaginadas por isso como mais literais), não esteve absolutamente livre de condicionamentos históricos. Com a visão não tem sido diferente.

Jacques Rancierè (2012b) se coloca diante de perguntas sobre a existência de imagens radicalmente inadequadas à percepção - ou seja, intoleráveis - durante trechos consideráveis de pelo menos três de seus textos, recentemente publicados

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no Brasil (2012a; 2012b; 2009). Em todos discutirá o irrepresentável, utilizando como figuras a cena dos olhos perfurados de Édipo na tragédia de Sófocles e produções audiovisuais sobre o extermínio de judeus em campos de concentração nazistas. Ambos os exemplos reproduzem experiências limite, marcadas pelo horror, consistindo, cada qual à sua maneira, em desafios à capacidade de continuar olhando3. O filósofo francês é apenas um dos muitos pensadores a conectar o tema do irrepresentável à abjeção. Não por acaso, já que o abjeto lida justamente com aquilo que se encontra “fora da faixa do simbólico, alheio a qualquer medida ou limite” (DIAS; GLENADEL, 2008, p.7), forçando inclusive o próprio simbólico a um ato regressivo (SELIGMANN-SILVA, 2008, p.29).

Abjeto, mais precisamente, seria aquilo que é “desprezível, baixo, ignóbil”, derivado do latim abjectus “atirado por terra, derribado, desprezível, vil (...) sendo que o particípio passado do verbo abjecere significa ‘lançar, atirar, derribar, deitar abaixo, desprezar, rejeitar”. (Idem, 2008, p.28) De outro lado, segundo Sodré e Paiva (2002, p.17), a figura do rebaixamento - que se refere muito frequentemente a “deslocamentos escandalosos de sentido, situações absurdas, animalidade, partes baixas do corpo, fezes e dejetos” - suscita em diferentes culturas e épocas um mesmo padrão de reação: horror, espanto, repulsa, mas também riso.

“Seria cômico se não fosse trágico”. A abjeção parece vacilar entre essas duas matrizes, desafiando a tolerância ao horror, de um lado, e ao patético, de outro. Basta que lembremos da sensação de já termos estado diante da TV, acompanhados ou não, assistindo a algum programa, e vermo-nos forçados a sair da frente do aparelho, mudar de canal ou desligá-lo, por não suportar alguma cena que tenha nos parecido ridícula demais para seguir testemunhando. Antes disso, talvez até tenhamos rido. Mas aquilo que era risível rapidamente tornou-se angustiante, tendo o riso fracassado em ajudar a fugir da angústia ridicularizando-a, rindo daquilo que a provocou.

Sodré e Paiva (2002, p.13) afirmam que, entre 1969 e 1972, a televisão brasileira cativava seu público com programas que ridicularizavam e “exploravam as

3 Em “O Espectador Emancipado”, Rancière rebate o corrente argumento de que as imagens, tranquilizam,

apaziguam, uma vez que seríamos capazes de encarar em fotografias cenas que não suportaríamos na realidade. “A única falha nesse argumento de autoridade é que aqueles que viram aquela realidade, sobretudo os que fizeram as imagens, devem tê-la suportado” (2012, p. 90), escreve.

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misérias e as aberrações da condição humana”. Ainda de acordo com os autores, “Silvio Santos, hoje um dos empresários mais ricos do país, promovia o desfile de mulheres miseráveis, que contavam suas penas. A mais infeliz, escolhida pelo auditório, ‘era proclamada rainha por um dia’”. (Idem, p.13) Na segunda década dos anos 2010, não são poucos os programas televisivos que repetem a fórmula quase cinquentenária, sofrendo, por sua vez, a mesma crítica implícita na correlação entre obtenção de riqueza e miséria alheia. Contudo, cabe ainda questionar em que medida o julgamento que deplora e autoconstrange diante de determinadas cenas é compartilhado, uma vez que ridículo pode se referir a diferentes objetos e situações dependendo de quem usa o vocábulo.

Seja qual for o grau de incômodo, existe uma expressão bastante difundida para se referir a este tipo de situação: “vergonha alheia”. Segundo La Taille (2002), o sentimento de vergonha envolve dois componentes básicos que são exposição e inferiorização. Se sentir envergonhado é “ser objeto para outrem”, de forma que a inferioridade se manifesta nesta configuração onde “quem olha é sujeito, e quem é olhado é objeto. Trata-se de uma assimetria, de uma relação de poder. Quem é olhado está entregue a quem o observa, tragado pelos seus olhos; está em situação de vulnerabilidade”. (Idem, p. 84) Tal exposição pode ser real ou virtual e, portanto, estar implicada em uma economia de projeções. La Taille chega a se referir à ideia de contágio no sentimento de vergonha, dando exemplo do o filho que, com seus atos, envergonha o pai. (Idem, p.78)

O mais importante, entretanto, não é desvendar os mecanismos de projeção que redundam na sensação de “vergonha alheia”, mas mostrar que o intolerável não tem um conteúdo específico, transitando entre o trágico e o ridículo, por exemplo. O autoconstrangimento que impede de continuar olhando é um de seus sintomas e, sem dúvida, forte o bastante para fazer com que, por exemplo, nos sintamos forçados a sair da frente da TV ou a desligá-la, isto é, move o corpo. Considerando que a imagem intolerável não tem um em si, sugiro pensar nas situações ou - para voltar a Rancierè - nos regimes que fazem com que uma ou outra imagem se tornem de mais difícil digestão, deslocando o foco da figura para sua moldura.

Pode-se retomar a questão do filósofo francês sobre a existência ou não da imagem intolerável, a qual ele responde que “[n]ão há o irrepresentável como

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propriedade do acontecimento”, isto é, não há no fato em si característica que venha “vetar a representação”. (RANCIERÈ, 2012, p.139) Se o irrepresentável, o abjeto (trágico, pérfido ou ridículo) existem, eles existem no interior de regimes que regulam relações entre o dizível e o visível. “Na verdade, é o regime que define compatibilidades e incompatibilidades de princípio, condições de percepção e critérios de não recepção”. (Idem, p.127)

É a partir dessa perspectiva que o artigo vai se concentrar não só nas razões de uma ausência, mas em como estes regimes de representabilidade se manifestam na produção acadêmica brasileira, mais especificamente, na do campo da comunicação, na última década, com respeito a um problema específico, que deriva da seguinte questão: por que determinadas práticas culturais e modos de produção e fruição estética de grupos populares urbanos figuraram como foco de grande atenção por parte de pesquisadores da área, enquanto outras dinâmicas culturais destes mesmos grupos têm sido quase que inteiramente ignoradas ou, no mínimo, desprestigiadas pela reflexão acadêmica?

Gostaria de tomar como exemplo de estética subalterna mantida sob denegação parte do repertório imagístico vinculado ao estilo musical conhecido como pagode romântico, principalmente, por meio das capas de álbuns de grupos do gênero, lançados entre os anos 1990 e 2000. Chama a atenção o fato de que embora teóricos afirmem que o Brasil tenha presenciado o surgimento do que Ângela Pryston (2004, p.5-6) chamou de instituição de “um cânone da periferia nas artes do país”, certas manifestações tenham adquirido evidente proeminência como objetos de estudo em detrimento de outras. De outra maneira, por que o Hip-hop e o Funk Carioca, parte da cena independente do norte e nordeste e a filmografia da linhagem favela movie - isso sem falar no samba (chamado também de “samba de raiz”) - foram manifestações das culturas subalternas tão prestigiadas pela reflexão acadêmica no campo da cultura enquanto outras modalidades de produção e fruição estética como o próprio pagode romântico - nascido nos anos 1990 e até hoje importantes para a vida cultural de várias periferias urbanas - têm sido amplamente ignoradas?

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Se o regime acadêmico de representabilidade “barra” determinadas figurações das culturas subalternas, como explicar a existência de um trabalho como este, justamente sobre o pagode romântico? A questão - cabe reiterar - não é de

quais objetos são tolerados no regime da produção acadêmica, mas como eles

podem aparecer, quais são suas condições de aparição. Parte expressiva dos atuais enquadramentos do regime em questão tendem a comportar, sobretudo, aquelas práticas culturais identificadas com a subalternidade, cujas propostas, na forma e conteúdo, remetem à emancipação, autonomia estética e autenticidade, e surgem de experiências claramente conectadas ao mesmo corolário, imaginadas como insurgentes, subversivas e de resistência.

Shohat e Stam (2006, p.438), observam que o declínio das utopias revolucionárias, desde a década de 1980, fez com que a linguagem da “revolução” desse lugar a da “resistência”, num momento que convergiu também com uma revisão nos projetos emancipatórios.

A ideia de uma dominação vanguardista do Estado e da economia, em geral associada à política de Lenin, há muito tempo deu lugar à resistência contra a hegemonia associada a Gramsci. Substantivos como “revolução” e “libertação” se transformaram em adjetivos de oposição: “contra-hegemônico”, “subversivo”, “oposicionista”. (Idem)

Também é característica deste contexto, ainda de acordo com Shohat e Stam, a presença de um debate até hoje recorrente nos estudos de comunicação sobre os significados da cultura popular. Resumindo grosseiramente há três posições mais comuns nesta discussão. São elas: 1) aqueles que defendem que cultura popular é aquela produzida pela indústria do entretenimento e consumida por grupos subalternos; 2) aqueles que a entendem como cultura produzida pelo e para o povo; e 3) e aqueles que acreditam na existência de uma imbricação dos dois significados anteriores, onde ambos se encontram em permanente tensão - sendo esta última a visão que mais predomina no campo de estudos da comunicação.

Especificamente no contexto brasileiro, Lopes (2010, p.17) dá conta de que a comunicação consolida-se como disciplina acadêmica nos anos 1970, frente à importância que os fenômenos de mídia de massa assumem na sociedade e ante “aos processos de transformação cultural acarretados pela atuação da indústria cultural em presença de uma vasta população pertencente às chamadas classes baixas”. (Idem, p.15) Os estudos de comunicação social herdam dos estudos de

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cultura brasileira um modelo de análise que, segundo Lopes, permanece em dominância e parte “da concepção de que a cultura de massas constituiu-se historicamente a partir dos processos de vulgarização e degradação da ‘alta cultura’, originária da Europa Ocidental”. Este modelo analítico também segue opondo a cultura de massas à cultura de classe. Portanto, os estudos em comunicação no Brasil, trazem em sua gênese uma preocupação, por vezes colateral, por vezes central, com a cultura popular e seus significados.

Contudo, Trotta foi o único pesquisador encontrado no levantamento bibliográfico deste artigo a escrever sobre o pagode romântico (estilo que aparece aqui como espécie de figura-síntese do debate sobre o sentido do popular), que mistura a “prática tradicional do samba com elementos da estética pop”. O trabalho do autor se dedica longamente à discussão sobre os preconceitos e ataques da intelligentsia ao gênero e a exaltação intelectual do que, por oposição ao pagode romântico, passou a ser chamado de “samba de raiz”. Para Trotta, a consagração das práticas “de raiz” busca ressaltar valores como ancestralidade, autenticidade e vínculos comunitários, que seriam próprios da origem do tradicional ritmo. “Defendendo essa ‘raiz’, um time expressivo de jornalistas, pesquisadores e sambistas, com razoável destaque em jornais e revistas, manifesta de forma recorrente um amplo leque de julgamentos negativos com relação aos grupos de pagode romântico” (2007, p.123). Tal modelo interpretativo, em geral, caracteriza a cultura popular como algo sob constante ameaça de perda de integridade, espreitada por forças corruptoras, desejos de apropriação e ameaças de profanação. A mercantilização é apenas um dos tropos de impureza e contágio empregados para se referir a esta relação entre cultura popular e aquilo que seria nitidamente seu exterior.

No entanto, formas alternativas de abordagem das manifestações identificadas com o popular coexistem. Uma delas consiste justamente em reconhecer que a tecnocultura transnacional globalizada também constitui as manifestações populares. Como já se afirmou acima, perspectiva para a qual não faltam adeptos nos estudos em comunicação no Brasil: campo que embora beba em fontes como a dos estudos culturais, a fim de problematizar a hierarquização das

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expressões culturais, tem ao mesmo tempo, passado ao largo de manifestações populares consideradas de baixo potencial subversivo como o pagode romântico.

Stuart Hall conta que os estudos culturais de Birmingham são inaugurados justamente a partir de questões sobre as categorias de alto e baixo, num debate bem similar ao apresentado acima, acerca das tensões entre o que seriam as culturas popular e de massa.

Em parte esses termos foram herdados da preocupação de Leavis com o desaparecimento de uma cultura popular “viva” e orgânica no século dezoito e sua substituição por uma “civilização de massa” degradada, que representava uma séria ameaça à “cultura minoritária ou da minoria”; em parte provém também do debate sobre “cultura de massa” entre os críticos culturais conservadores e demóticos, de onde surgiram os chamados “estudos de mídia”. (HALL, 2003, p.213)

Hall explica que os estudos culturais se afastaram tanto do elitismo, quanto dos rígidos binarismos característicos dos debates sobre a cultura de massa, incluindo aí “dominação/subversão”. Um texto central para este deslocamento crítico foi “Marxismo e Filosofia da Linguagem”, de autoria atribuída a Bakthin. Sua leitura marcou uma ruptura na correspondência entre “classes e a ideia de linguagens de classe”, “universos ideológicos” ou “visões de mundo separadas autônomas e autossuficientes”. (Idem, p.216)

O valor analítico dessa transformação no âmbito dos estudos culturais está no fato de que a “dialética do antagonismo de classe” dá lugar à “dialógica da plurivalência”, mas não à moda de uma superação definitiva de um significado por outro:

Onde, na visão clássica, os termos da dialética fundamentam a complexa substituição das distintas forças sociais, fornecendo-lhes sua lógica governante, sua metanarrativa, o dialógico enfatiza os termos variáveis do antagonismo, a intersecção de diferentes “valências” no mesmo terreno discursivo, em vez de bifurcações da “dialética”. (Idem, p.220)

O “popular” - categoria central para o autor - então seria entendido não “em termos de qualidades ou conteúdos fixos” - como se o baixo fosse invariavelmente reflexo invertido do alto ou a dominação o avesso radical da subversão -, mas relacionalmente, como práticas não valorizadas pelo cânone. No sentido atribuído pelos estudos culturais britânicos, a transgressão é menos uma inversão definitiva, menos o triunfo de estéticas e valores radicalmente outros, e mais algo marcado

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pela reversibilidade. O baixo “seria lugar de desejos conflituosos e de representações mutuamente incompatíveis”. (idem, p.212)

Então por que, mesmo tendo profunda influência dos estudos culturais, os estudos em comunicação no Brasil seguem ignorando o gênero musical em questão e algumas das problemáticas a ele vinculadas?

3. Molduras

Se existe um cânone periférico no discurso acadêmico, ele tem acomodado muito mais facilmente reflexões sobre práticas culturais populares para as quais é atribuído, em geral, um sentido de resistência equivalente à “manutenção da integridade”. Neste sentido, “plurivalência”, “ressignificação” seriam processos interpretados como relativos à capacidade que um signo tem de receber valores radicalmente opostos aos precedentes, isto é, quando o silêncio é rompido por uma linguagem até então conservada integralmente à margem por uma força repressora outra.

Rancierè ajuda a deslocar este modelo quando fala sobre regimes do dizível e do visível. Embora seja desenvolvida para outro feixe de problemas, esta abordagem é bastante útil por conceber o representável não como um jogo de inclusão/exclusão, silêncio/voz ou permitido/proibido, mas como produto de acomodações possíveis em enquadramentos existentes. Talvez seja impossível, por exemplo, flagrar um discurso que estabeleça critérios nítidos a partir dos quais determinados aspectos do próprio pagode romântico sejam considerados indignos como objetos de estudo. A questão não é o banimento puro e simples de um gênero musical e sua estética por escancarado preconceito, afinal são muitos os estudos sobre como produtos culturais bem similares (de massa) àqueles identificados com o pagode romântico reforçam dominações e estereótipos de raça, classe ou gênero etc.

Na última década e no início desta, grande parte da produção acadêmica e discussão intelectual a respeito dos paradoxos que envolvem o popular se concentrou em abordagens que destacam problemas relacionados às representações torcidas pelos media (ou pela indústria cultural) e, em outro diapasão, às estratégias contra-hegemônicas dos subalternos frente ao discurso da

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comunicação massiva. É nitidamente identificável aí um esforço de proclamar o reconhecimento das chamadas minorias e questionar ou pôr em perspectiva as hierarquias culturais vigentes, através de propostas de ruptura de silêncios. Mas como observam Shohat e Stam (2006, p. 261), se de um lado são “questionamentos legítimos sobre a plausibilidade social e acuidade mimética” de certas figurações, de outro,

Uma obsessão com o “realismo” emoldura a discussão, que parece se resumir a uma simples questão de identificar “erros” e “distorções”, como se a verdade de uma comunidade fosse simples, transparente e facilmente acessível e “mentiras” fossem facilmente desmascaradas. (Idem).

Fato é que hoje uma ampla gama de imagens positivas sobre o popular povoa o repertório acadêmico, sobretudo, nos estudos de comunicação. Contudo, por mais que se tente reverter a estereotipia com representações positivas, este movimento não desloca a estrutura binária de significação a que estão submetidos os grupos estigmatizados. Tal atitude frequentemente, como sinalizam Shohat e Stam (2006, p.292) acerca do discurso racista, cai facilmente num moralismo onde a discussão passa a ser sobre vícios e virtudes, de forma que questões políticas complexas são reduzidas a questões de ética individual. Bhabha propõe escapar às posições moralistas diante dos significados da opressão e da discriminação, evitando “julgar a imagem estereotipada com base em uma normatividade política prévia4”, preferindo lidar com a eficácia destas representações. (BHABHA, 1998, p.106) As perguntas então podem mudar para: o que permite que tal imagem exista e se sustente? Que moldura acomoda sua representabilidade? Por que ela é adequada?

De acordo com Trotta (2007, p.116), o surgimento de grupos como Raça Negra, Negritude Jr e Só Pra Contrariar, nos anos 1990, produziu novos enquadramentos e fez com que fossem criadas duas categorias para se referir ao samba: “de raiz’”, representando uma série de simbologias historicamente associadas ao gênero; e o ‘pagode romântico’, que produzia um fato novo para o mercado, tanto em aspectos estéticos quanto em suas estratégias comerciais”. Muitos críticos relutaram em usar o termo “samba” para se referir ao pagode romântico, por considerarem que na origem do subgênero não seria possível

4 A normatividade política prévia de que fala Bhabha parece ser análoga ao que Shohat e Stam (2006, p.444)

chamam de “politicamente correto”: uma atitude de censura também sobre as representações, que opera em nome de diversos valores e não é -- advertem os autores --um monólito.

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reconhecer a “vivência comunitária, ‘os segredos e o fundamento do imaginário’ do samba [tradicional]”. O pesquisador mostra como, para muitos críticos musicais, os protagonistas do processo criativo “não são os músicos e compositores, mas a ‘indústria do entretenimento’, o que revela um critério de valor erudito, manifesto na noção de autonomia estética absoluta do ‘artista’”. Já os pesquisadores de comunicação e cultura parecem ter se mantido em silêncio sobre o estilo musical.

As figuras 1 a 6 são capas de discos dos grupos Fundo de Quintal - amplamente identificado com o “samba” ou “samba de raiz” - e Raça Negra - o pioneiro do pagode romântico -, em diferentes períodos (entre os anos 1990 e 2000). Cumpre ressaltar que, embora representem fragmentos precários do conjunto da obra destes artistas, as capas permitem observar a imprecisão das rupturas estéticas entre os estilos, ao menos no campo da imagem.

FIGS. 1, 2 – Capas dos discos “Vol. 1” (1991), do Raça Negra e “Seja sambista também” (1997), do Fundo de Quintal.

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FIGS.5 e 6 – “Chega pra Sambar” (1999), do Fundo de Quintal; Raça Negra, “Vol. 11” (2001).

Segundo Olalquiaga (2009, p.401) a moderna revolução da vanguarda transferiu o valor da arte de suas propriedades sagradas para sua capacidade de inovação. De acordo com tal concepção, ao introduzir num gênero tradicional fragmentos da estética pop, a suposta artificialidade do pagode romântico -- pelos elementos que repete de outras culturas -- tende a ser julgada como reacionária e fundamentalmente não artística. Atualmente, o estilo pode ser alinhado àquilo que, da perspectiva erudita, é descrito como Kitsch. Ainda de acordo com Olalquiaga (2009, p.394): o domínio do “mau gosto”, significando uma espécie de esforço artístico frustrado, assim como tudo que é considerado óbvio demais, dramático, repetitivo, artificial ou exagerado (Ver FIG.7).

FIG. 7 – Capa do disco “Pra Ser Amor” (2010), de Belo, um dos principais cantores de pagode romântico de todos os tempos.

De outro lado, a falta de sofisticação também pode ser lida como “honestidade”, o que remete mais uma vez à ideia de autenticidade. Esta relação costuma surgir de um contato mais distanciado do que aquele, em geral, mantido por quem leva “a sério” tais fatos estéticos. Aqui é “precisamente a não intencionalidade [daqueles que levam a sério] que atrai, desde que fale de uma

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experiência inocente e não mediada [naive immediacy], de um sentimento perdido”. (OLALQUIAGA, 2009, p. 396) É a sede de uma experiência direta, embora vicária -- vivida por meio de outra pessoa -- que costuma mover este fascínio (FIGS. 8 e 9).

FIGS. 8 e 9 - Capa e contracapa do disco “Jeito Felindie”, 12 bandas da cena alternativa (Indie) regravam grandes sucessos do Raça Negra, transformando seus arranjos.

Os dois sentidos de kitsch destacados – fracasso artístico e honestidade/inocência –, e a similaridade das imagens referentes às manifestações culturais consideradas, grosso modo, autênticas e inautênticas - mostram que as estéticas e seus julgamentos de valor podem se deslocar, de acordo com os enquadramentos, independentemente do conteúdo. Segundo Eagleton, estética seria “toda região da percepção e sensação humanas, em contraste com o domínio mais rarefeito do pensamento conceitual”, o território da totalidade da vida sensível, “o movimento de nossos afetos e aversões, de como o mundo atinge o corpo em suas superfícies sensoriais” (EAGLETON, 1993, p.17). Contudo, como me esforcei em mostrar até aqui, existem zonas de interseção entre as sensações e o pensamento conceitual - um terreno intermediário entre a percepção e os juízos de valor, determinado mais pelas molduras do que pela imagem.

A este respeito, Miller (2013, p.77) observa que a moldura correta se torna invisível, transmitindo o modo exato pelo qual devemos ver aquilo que ela enquadra. De outro lado, quando a moldura é inadequada, imediatamente o espectador se torna consciente de sua existência. Um enquadramento funciona, portanto, à medida que sua moldura permanece em silêncio, não por brusca interdição daquilo que não pode comportar, mas por determinar o adequado e o inadequado, tornando o conteúdo por vezes intolerável.

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Referências

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Referências

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