BIOLOGIA HUMANA
CARACTERÍSTICAS DOS PRIMATAS
Os primatas não possuem uma característica única que os distinga dentro dos mamíferos – são agrupados segundo um agrupamento de características próprias não presente em outros mamíferos.
Distribuição geográfica
Actualmente os primatas encontram-‐se quase sempre nas regiões tropicais e intertropicais, só em alguns casos a altas altitudes ou latitudes (excepto a nossa espécie, que é cosmopolita). Esta distribuição está relacionada sobretudo com os hábitos arborícolas e modo de alimentação (alimentos frescos, pouco abrasivos, como frutos)
Organização neurossensorial
Encefalização
A grande encefalização que geralmente é associada aos primatas foi adquirida numa fase mais tardia da sua evolução, através do aumento do tamanho/massa do encéfalo comparativamente ao corpo (crescimento alométrico) – isto foi feito através do aumento do número de circunvalações e regiões cerebrais (lobos) delimitadas por sulcos (ex: lobo temporal) – o cérebro é um órgão com várias áreas coordenadas entre si, mas bem delimitadas (isto é especialmente evidente nos humanos). Comparando o cérebro de um primata com o de um mamífero típico de tamanho equivalente, o do primeiro é muito maior.
Reorganização na apreensão dos sentidos
Muitas alterações na percepção dos sentidos nos primatas surgem com a adaptação ao meio arborícola. Dá-‐ se a substituição da importância do olfacto pela visão – menos genes relacionados com receptores olfactivos (possibilidade de acumulação de mutações que inutilizaram os genes). Anatomicamente, isto manifesta-‐se pelo progressivo achatamento do focinho e pela ausência de rinário (superfície húmida no nariz da maioria dos mamíferos) na maioria dos primatas (excepto lémures, que permanecem com algumas características primitivas); o rinencéfalo (região do cérebro que processa os estímulos olfactivos) também é menos desenvolvido.
O aumento da capacidade visual, essencial para a deslocação no meio arborícola, levou à frontalização ocular – esta permite que haja sobreposição dos dois campos visuais, permitindo uma visão binocular. Os estímulos visuais dos dois olhos (ligeiramente diferentes entre si) viajam através de nervos ópticos, que se cruzam parcialmente formando um quiasma óptico. Os estímulos vão depois para lados opostos do cérebro, no qual serão processados e usados para criar uma imagem tridimensional – visão estereoscópica.
Todos os primatas, excepto os nocturnos, possuem cones e bastonetes na retina, permitindo uma visão a cores (bi ou tricromática). A visão a cores, pouco comum nos mamíferos, permitiu o aparecimento de colorações exuberantes em alguns primatas, importantes para os rituais sexuais.
Estrutura dos membros
Seguindo o plano primitivo dos tetrápodes, os primatas possuem membros anteriores (= superiores) constituídos por úmero, rádio e cúbito, e membros posteriores (= inferiores) com fémur, tíbia e perónio.
O membro superior é pentadáctilo e preênsil, articulando com o corpo através de uma clavícula – isto dá a este membro uma grande mobilidade e flexibilidade, essencial para um estilo de vida arborícola. As mãos são capazes de movimentos de supinação e pronação. A presença de 5 dedos é uma característica comum a todos os tetrápodes, e por isso é primitiva nos primatas. Esta estrutura é também pouco variável.
Ao contrário da maioria dos outros primatas, o pé humano é um órgão marchador, não-‐preênsil. Uma característica comum à maioria dos primatas é a substituição de garras por unhas.
Locomoção
Podemos considerar alguns tipos principais de modos de locomoção em primatas:
• Quadrúpede arborícola (ex: lémures) • Quadrúpede terrestre (ex: babuínos) • Knuckle-‐walker – caminhar com os nós dos dedos das mãos; braços mais compridos que as pernas (ex: gorilas e chimpamzés)
• Saltação vertical – saltos ramo-‐a-‐ ramo nas árvores (ex: tarsos e micos)
• Braqueação – trapam nas árvores com rescurso aos membros anteriores, com pequena ajuda das pernas; braços mais compridos que as pernas (ex: orangutangos e gibões)
• Bipedismo (hominídeos)
A aquisição de marcha bípede nos hominídeos (a sua característica principal) fez-‐se por alterações na coluna (adquire mais duas curvaturas), crânio (buraco occipital passa a localizar-‐ se na base do crânio, e não na parte posterior), bacia (ossos alargam) e ossos da perna e pés (fémur faz um ângulo com o centro, os pés deixam de ser preênseis e passam a ser um órgão marchador).
Nos hominídeos o fémur faz um ângulo com o centro do corpo, projectando o peso para o centro. Se um chimpanzé tentar uma marcha bípede, a falta deste ângulo faz com que o peso vá para os lados, e ele cambaleia.
A inserção muscular dos músculos do pescoço também é diferente nos humanos e nos chimpanzés – estes últimos têm os músculos da parte basal do crânio muito irrigados, pois precisam de fazer um esforço muito grande para elevarem a cabeça.
A coluna humana adquire mais duas curvaturas não existentes noutros mamíferos, as curvaturas cervical e lombar. Estas são essenciais na postura bípede, para suportar o peso das vísceras.
Alimentação
Quanto à alimentação, podemos incluir os primatas em 3 grupos principais:
• Faunívoros (essencialmente insectívoros) – intestino delgado muito comprido (região absorptiva bem desenvolvida), intestino grosso mais curto;
• Folíveros (rebentos e folhas frescas) – estômago muito desenvolvido (saculado) e cólon muito desenvolvido; outros têm um estômago simples e intestino grande com elevado número de apêndices, que contém bactérias degradadoras da celulose; • Frugíveros (frutos) – aparelho digestivo intermédio.
A maioria dos primatas pode ser classificada como folifrugívora. A nossa espécie tem um grande intestino delgado e estômago não muito desenvolvido, o que indica que uma parte substancial da nossa dieta é carne. Os vegetais que comemos hoje em dia são “domesticados” – no seu estado selvagem seriam muito difíceis de digerir.
Crescimento e desenvolvimento
A curva de crescimento humana mostra uma desaceleração no crescimento após os primeiros anos de vida, apenas interrompido na puberdade com um crescimento abrupto associado à maturação sexual. Este grande interregno no crescimento entre a infância e a maturidade sexual é bastante característico dos primatas (e isto é ainda mais pronunciado em nós que nos outros primatas).
O surto de crescimento é diferente nos homens e nas mulheres (nestas é mais precoce mas menos acentuado). Os humanos possuem ainda uma fase exclusiva, a “childhood” (≈ 4 anos, coincide com o aparecimento do 1º molar), que é um período após o desmame total da criança, mas em que esta é ainda completamente dependente dos progenitores para realizar tarefas básicas. Podemos estabelecer algumas etapas mais-‐ou-‐menos bem definidas na vida humana:
• 1ª infância – até ao nascimento do 1º molar (inclui por isso a “childhhod”)
• 2ª infância – coincide normalmente com o aparecimento do 2º molar (7-‐10 anos). • Adolescência – até ao nascimento do 3º molar (dente do siso)
• Idade adulta
Crescimento alométrico
O crescimento alométrico (ritmo de crescimento diferencial de várias partes do corpo) permite uma morfologia que se vai diferenciando ao longo da vida
Vermelho: cérebro
Verde: ossos
Cinzento: sistema linfático Azul: órgãos genitais
Os ossos diminuem o ritmo de crescimento ao longo da vida do indivíduo; os órgãos genitais mantêm-‐se muito tempo sub-‐desenvolvidos, desenvolvendo-‐se muito rapidamente durante a puberdade.
Pouco depois do nascimento o cérebro já tem um tamanho próximo do máximo (25% do tamanho final), mas menor comparado com o que acontece com outros primatas (chimpanzés nascem com 41% do tamanho final, macacos Rhesus com 65%). Isto significa que, do ponto de vista do desenvolvimento cerebral, o parto é prematuro na nossa espécie – só um ano após o nascimento (21 meses de desenvolvimento → 1 anos + 9 meses) é que o cérebro dos bebés humanos atinge os 41% do tamanho final que os chimpanzés têm. O nascimento é prematuro porque ter a criança mais tempo no útero iria trazer ainda mais complicações devido à anatomia da progenitora (postura bípede dificulta o parto) e do tamanho do cérebro da criança.
Este e outros atrasos no desenvolvimento da nossa espécie estão relacionados com o alargamento do período de aprendizagem.
Heterocronia – heterogeneidade nos momentos de desenvolvimento, diferentes ritmos de crescimento ao longo da vida.
Na espécie humana a diferença morfológica entre um juvenil e um adulto é menor do que ocorre noutros primatas. O chimpanzé, por exemplo, desenvolve-‐ se muito mais durante a sua vida (e o chimpanzé juvenil tem uma certa semelhança com a nossa espécie)
Este fenómeno designa-‐se de pedomorfose – mudança evolutiva no desenvolvimento que leva à retenção de características juvenis no estado adulto.
Entre várias características pedomórficas que possuímos incluem-‐se: • Bolbosidade da cabeça;
• Reduzida projecção dos ossos faciais; • Redução do pêlo.
Ciclo de vida
Embora haja uma grande diversidade no ciclo de vida entre os vários grupos de primatas, estes possuem geralmente um pequeno número de crias (associado à redução do número de glândulas mamárias). O tempo de aprendizagem é maior, e requer uma maior associação entre mãe e filho.
Os ritmos reprodutivos são muito diversificados – a melhor maneira de prever o ritmo do ciclo de vida é através do tamanho do corpo:
Gorila (> 100 Kg) Lémur-‐rato (100 g)
Início da idade reprodutiva 10 anos 1 ano
Número partos / ano 0,25 (1 parto de 4 em 4 anos) 2
Número crias / parto 1 3
Podemos considerar dois tipos principais de desenvolvimento nos mamíferos:
Altricial (ex: Carnívoros e Insectívoros) • Baixo tempo de gestação
• Recém-‐nascidos em ninhadas e pouco desenvolvidos • Desenvolvimento rápido
• Ritmo reprodutivo acelerado
Precocial (ex: Cetáceos e Artiodáctilos) • Tempo de gestação mais elevado
• Recém-‐nascidos desenvolvidos com nascimentos únicos • Baixo ritmo reprodutivo
A maioria dos primatas são precociais, mas os humanos são uma excepção – somos secundariamente altriciais, na medida em que descendemos de espécies precociais que adquiriram características típicas do desenvolvimento altricial (como a grande dependência do recém-‐nascido).
Outra diferença entre nós e os outros primatas está na receptividade feminina ao acasalamento. As fêmeas de babuíno, por exemplo, assinalam a receptividade no momento da ovulação de forma exuberante (os órgãos genitais ficam inchados).
A nossa espécie, por outro lado, tem receptividade contínua, associada à não manifestação da ovulação – ovulação críptica. Isto tem implicações no grande número de cópulas ineficazes, quando comparado com os outros primatas.
Longevidade
A espécie humana possui grande longevidade – mesmo chimpanzés sem excessivo stress de condicionamento de liberdade e bem tratados com assistência médica não duram mais de 50 anos. Na nossa espécie há um acrescento de anos de vida no período posterior ao reprodutor, em muitos casos associado a boas condições sanitárias e higiénicas.
Sistema reprodutor feminino
O sistema reprodutor feminino humano mostra marcas do bipedismo – esta transformou o nascimento num acontecimento perigoso e médico. Ao contrário dos chimpanzés e outros primatas não-‐bípedes, cujo canal de nascimento é recto, o nosso é curvo, o que dificulta a saída do bebé durante o nascimento. Antes do aparecimento de contraceptivos, a menopausa salvou a vida a muita gente.
A nossa espécie é excepcional em termos de fisiologia, devido às alterações profundas do ciclo de vida, totalmente ligadas às alterações anatómicas dos hominídeos – posição erecta e encefalização.
Organização social
A organização social nas diferentes espécies de primatas depende de um conjunto de variáveis:
• Tamanho do grupo • Composição
• Sistema de acasalamento • Tipos de dominância
• Estabilidade da organização social
Padrões de organização social
Nuclear – grupo feito com base na relação mãe-‐filho. Consiste num harém poligâmico geograficamente muito disperso no qual um macho tem muitas fêmeas no seu território (poliginia). Os machos e as fêmeas têm vidas solitárias. Ex: Orangutango
Monogâmico – casais monogâmicos territoriais, o núcleo do grupo é constituído pelo casal e pelos seus descendentes. É um padrão relativamente raro, ocorre quando há pouca pressão por predadores. Ex: Gibões
Poliandria – grupo no qual cada fêmea acasala com vários machos, é muito raro.
Ex: Alguns primatas na América do Sul, como os marmosets.
Grupo multi-‐macho – grupo com vários machos, com diferentes níveis de dominância. Embora não seja impossível todos os machos acasalarem, isto está dependente da posição do macho na hierarquia. A manutenção da hierarquia é muitas vezes feita de forma violenta.
Ex: Babuínos
Harém – um só macho acasala com todas as fêmeas (poliginia), impedindo que os outros o façam.
Ex: Gorila
Grupo com fissão-‐fusão – grupos instáveis com vários machos e fêmeas, caracterizados pela promiscuidade. Ex: Chimpanzés
Segregação em famílias
Grupo solitário – típico dos lémures de Madagáscar – à noite os indivíduos dispersam-‐se em busca de alimento (factor centrífugo), juntando-‐se de dia para dormir, por uma questão de protecção (factor centrípeto), mantendo no entanto territórios separados.
A espécie humana tende a pertencer a uma organização monogâmica. Embora se pense muitas vezes que a monogamia é uma construção social, em praticamente todas as sociedades humanas para além da industrial (como sociedades tibetanas, esquimós, tribos da amazónia, etc.) a monogamia é a norma. A poligamia emergiu relativamente recentemente em sociedades agrícolas nas quais o poder e os bens estavam desigualmente distribuídos (só os homens com muitos meios podiam ter muitas mulheres).
No entanto, temos que dizer que há apenas uma tendência para a monogamia. Embora a monogamia seja mais-‐ou-‐menos universal, é evidente que há bastantes filhos fora do casamento (e ainda mais cópulas, dado o grande número de cópulas ineficazes na nossa espécie). Os gibões por exemplo, são mais fielmente monogâmicos que nós.
Isto poderá estar relacionado com a quantidade de oportunidades para praticar a poligamia. Os gibões possuem territórios geograficamente vastos, e por isso têm menores hipóteses para serem polígamos. Existem no entanto várias evidências que permitem concluir que temos sociedades essencialmente monogâmicas.
Uma delas é a receptividade permanente e a ovulação críptica – para o macho ter a certeza que os filhos são dele, precisa de estar sempre com a fêmea, formando um casal que exclui outros indivíduos. Para além disso, apesar de ser frequente o aparecimento de filhos fora da relação monogâmica, ela não é tão frequente dado as muitas oportunidades que dispomos. Outra evidência está relacionada com a relação entre tamanho dos testículos e tamanho corporal.
Relação tamanho dos testículos/tamanho corporal
Nem todas as espécies de primatas respeitam a mesma razão entre o tamanho dos testículos e tamanho do corpo. Esta razão está relacionada com o dimorfismo sexual e com a existência ou não de casais monogâmicos.
Os chimpanzés, com um tamanho testicular grande, praticamente não têm dimorfismo sexual devido à ausência de lutas para aceder às fêmeas. Curiosamente, isto (o baixo dimorfismo sexual) também acontece com os gibões, mas devido ao laço permanente do casal, e não à promiscuidade, como no chimpanzé.
Também existe uma relação relativamente clara entre a razão tamanho dos testículos/tamanho corporal e o tipo de organização social.
Os primatas com testículos grandes, como o chimpanzé, formam grupos nos quais uma fêmea receptiva pode copular com vários machos, sendo quase certo que terá um filho. Se deste grupo de machos um deles tiver um tamanho testicular maior que o dos outros, produzirá em princípio maior quantidade de ejaculado, e terá maior probabilidade de ser pai que os outros. Como esta característica é hereditária, a maioria dos filhos serão também portadores de grandes testículos, actuando a selecção natural para manter esta característica. Para os primatas com testículos pequenos, como os gorilas, as fêmeas vivem num harém no qual um macho copula com elas todas. Por esta razão, a selecção natural actua de forma a aumentar a corpulência do macho (para conquistar pelo território e o defender de outros machos), não sendo necessário actuar no tamanho testicular. Como a maioria da descendência provém de um macho com grande corpulência, essa característica tenderá a manter-‐se nas gerações futuras.
Nos humanos a promiscuidade não é grande, mas maior que nos gorilas. Temos ainda algum dimorfismo sexual, maior que nos gibões, mas o dimorfismo não é muito acentuado, aproximando-‐nos mais do exemplo dos gibões.
Outra característica importante a considerar é o tamanho dos caninos – estes estão relacionados nos primatas com a necessidade dos machos lutarem entre si, razão pela qual as espécies monogâmicas os têm de tamanho reduzido.