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DIREITO PENAL DE GARANTIA E PROTEÇÃO NA SOCIEDADE DE RISCO

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Thaisa Dyala da Costa1 Zenildo Bodnar2

SUMÁRIO

Introdução; 1. Sociedade de risco; 2. Implicações dos novos riscos no Direito Penal; 3. Discursos jurídicos acerca da intervenção do Direito Penal na contenção dos novos riscos; Considerações finais; Referências.

RESUMO: Trata o presente estudo de uma abordagem acerca de problemas enfrentados pelo Direito Penal na proteção das demandas originadas no modelo de organização social contemporâneo. Utilizando-se a base lógica indutiva3, num

primeiro momento, demonstram-se as características da sociedade atual, aqui concebida como sociedade de risco, a fim de propiciar a compreensão das mudanças sofridas pelo sistema penal nos últimos tempos. Noutra parte, apresentam-se alguns dos muitos conflitos estruturais internos do Direito Penal diante das novas exigências sociais. Por último, expõem-se, sinteticamente, algumas correntes existentes acerca da utilização do Direito Penal no gerenciamento dos novos riscos, concluindo-se pela possibilidade da intervenção penal na proteção dos riscos e para trazer maior segurança social, desde que respeitados os princípios limitadores do poder punitivo estatal e as garantias do Estado Democrático de Direito, a fim de evitar excessos e, tampouco, outorgar proteção deficiente aos bens objeto de tutela.

PALAVRAS CHAVE: Direito Penal. Garantia. Proteção. Sociedade de risco.

1 Acadêmica do 9º período do Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí - UNIVALI.

2 Professor orientador Doutor Zenildo Bodnar, que possui graduação em Direito pela Universidade

Estadual de Ponta Grossa (1998), Mestrado pela Universidade do Vale do Itajaí (2003), Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2005), Pós Doutorado em Direito Ambiental na Universidade Federal de Santa Catarina e Pós Doutorado em Direito Ambiental na Universidade de Alicante (Espanha). Atualmente é Juiz Federal titular da 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais de Santa Catarina e Professor no Doutorado e Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí.

3 Base lógica indutiva significa “pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de

modo a ter percepção ou conclusão geral”. PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: ideias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 6 ed. Florianópolis: OAB, 2002. p. 85.

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Introdução

Ter um Direito Penal que proteja adequadamente os bens jurídicos na sociedade de risco sem comprometer os princípios limitadores do poder punitivo estatal e sem descaracterizar o autêntico Estado de Direito não possui consenso reconhecido. Isto resulta na complexidade de harmonizar as tendências de política criminal e legislativa características da evolução do sistema penal.

Atualmente, observam-se uma série de situações de expansão do Direito Penal, tais como a dilatação do campo de abrangência das normas, a flexibilização dos princípios, a antecipação da tutela estatal, que fazem perceber que o sistema penal clássico possui limitações frente à atual realidade social.

Os fenômenos apontados não acontecem por acaso, derivam diretamente do meio social no qual o Direito Penal é produzido e aplicado. A análise das modificações da política criminal, pois, deve ser feita por um aspecto que englobe o modo de organização social contemporâneo, suas principais características e as construções normativas que dela derivam.

Desse modo, utilizando-se a base lógica indutiva (“pesquisar e identificar as partes de um fenômeno e colecioná-las de modo a ter percepção ou conclusão geral”4), o presente estudo busca demonstrar problemáticas enfrentadas pela ciência criminal nas demandas originadas na sociedade de risco e expor alguns dos inúmeros discursos jurídicos acerca da utilização do Direito Penal na proteção de bens indispensáveis para a vida em comum. Trata-se, pois, de um trabalho que não tem a pretensão de esgotar o assunto, tampouco solucioná-lo, mas apenas de buscar apresentar, pautando-se em uma abordagem puramente expositiva, um assunto atual e de suma importância para o ordenamento jurídico.

1. Sociedade de risco

A sociedade atual é caracterizada pela “sedimentação do modelo de produção econômica sobre a dinâmica do novo, do inédito, do desenvolvimento

4 PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: ideias e ferramentas úteis para o pesquisador do

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científico exacerbado”5, pela exploração e manejo de energia nuclear, produtos químicos, recursos alimentícios e avanços genéticos, uma sociedade considerada “exasperadamente tecnológica”6. Todos esses fatores, ao mesmo tempo em que representam mérito do desenvolvimento humano, geram riscos para vida em comum, capazes de trazer consequências negativas que ameaçam um número indeterminado e potencialmente grande de pessoas, e, até mesmo, de comprometer a vida humana no planeta.

O agravamento do efeito estufa, as explosões de usinas nucleares de Chernobyl (Ucrânia, 1986) e recentemente em Fukushima (Japão, 2011), o vazamento de gás radioativo na única usina nuclear em Kozloduy (Bulgária, 2011), a extinção de espécimes animais, o esgotamento de recursos naturais não renováveis, a significativa supressão de vegetação essencial para a qualidade de vida, a pobreza em grande escala e o crescimento demográfico são exemplos de implicações danosas, fruto de um progresso global não planejado.

O aparecimento desses novos riscos e o aumento da sua efetiva concretização caracterizam a sociedade atual, que vem sendo chamada de sociedade de risco7 ou sociedade pós-industrial.

Nesse contexto, Beck defende que houve uma ruptura da modernidade que a distanciou da sociedade industrial clássica, fazendo surgir um modelo com novas características: a sociedade (industrial) do risco. O rompimento ocorreu no momento em que as implicações negativas provenientes do progresso tecnológico e do sistema de produção e consumo verificados na sociedade industrial clássica

5 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

p. 31.

6 Termo utilizado por Jorge de Figueiredo Dias para descrever uma sociedade que, segundo o mesmo

autor, é “massificada e global, onde a ação humana, as mais das vezes anônima, se revela susceptível de produzir riscos também eles globais ou tendendo para tal, susceptíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da ação que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como consequência, pura e simplesmente, a extinção da vida”. DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. Revista

Brasileira de Ciências Criminais, v. 33. São Paulo: RT, 2001. p. 44.

7 Modelo social fundamentalmente desenvolvido pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, que é baseado na

ascensão do risco como elemento da organização social. In: BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona/ Buenos Aires/México: Paidós Ibéria, 2006.

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passaram a ameaçar os cidadãos, propiciando o aparecimento de novos riscos8 e fazendo com que estes começassem a “dominar os debates e conflitos públicos, tanto políticos quanto privados”9.

Para Giddens, a sociedade de risco caracteriza-se pelo momento em que “as consequências da modernidade” tornaram-se “mais radicalizadas e universalizadas do que antes” 10, podendo ser compreendidos, dessa maneira, como o conjunto de relações econômico-sociais que dão forma a era pós-industrial, em que o novo modelo de produção delimita um novo papel ao risco.

Os riscos sempre estiveram presentes nas atividades humanas em todas as eras. Porém, houve significativa mudança nas características dos riscos atuais em relação aos de outras épocas.

Diferentemente de antes, quando somente a natureza, com seus desastres, colocava em crise bens fundamentais, os riscos produzidos hoje em dia são artificiais11, uma vez que são gerados pelo comportamento humano. Se o homem passou a ser sujeito ativo na geração dos riscos, significa que condutas que representem afronta acima da permitida para determinadas atividades podem ser controladas por medidas de coerção. Neste ponto nasce a possibilidade de incidência do Direito Penal como meio de reprimir comportamentos humanos que possam prejudicar bens e interesses fundamentais para a vida em comum.

É característica dos novos riscos, também, o não conhecimento da extensão de seus danos. Depois da já mencionada ocorrência da explosão da usina nuclear em Chernobyl (1986), começou-se a voltar maior atenção para a gravidade dos estragos causados pelas inovações tecnológicas, e passou-se a exigir uma atuação penal não só repressiva, mas de forma preventiva na contenção dos novos riscos.

8 MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001. p.

25.

9 BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética

na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: USP, 1997. p. 15.

10 GUIDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991. p. 13.

11 Termo utilizado por Blanca Mendoza Buergo em sua obra El derecho penal en la sociedad del

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A sociedade de risco também é composta por uma série de interações globais que propiciam a manifestação popularmente conhecida como efeito borboleta, a qual estabelece que pequenas decisões ou condutas simples – ou até mesmo a falta delas – podem ser aumentadas por uma vasta cadeia de conexões, capazes de gerar consequências trágicas no destino. Exemplificando, Mendoza Buergo cita o buraco da camada de ozônio e a poluição atmosférica, que nada mais são do que consequências de pequenas decisões humanas, tomadas por diversas pessoas ao mesmo tempo e de forma involuntária12.

Outra marca dos riscos atuais são suas consequências sociais. Os resultados dos comportamentos arriscados produzem o “efeito bumerangue”13, ou seja, refletem diretamente em todos os setores da sociedade, inclusive naqueles que se beneficiam da produção dos riscos. Esse retorno muitas vezes é tão intenso que faz com que mesmo os indivíduos que exploram o progresso tecnológico passem a exigir restrições quanto à realização de atividades nocivas. É nesse momento que a sociedade pós-industrial tornou-se reflexiva14, pois passou “a questionar a viabilidade dos seus meios de produção e transformação de riquezas”15.

O nascimento desses novos riscos e a necessidade de administrá-los tem interferência direta nos campos econômico, científico e político.

No que se refere às relações econômicas, os interesses que envolveram e continuam envolvendo o risco são muitos. Até a metade do século passado, o estudo prévio acerca dos riscos que poderiam ser gerados por determinadas atividades não era requisito para a realização destas, pois a busca pelo aumento da

12 MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. p. 28.

13 Terminologia utilizada na seguinte obra: BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva

modernidad. p. 53.

14 “Este conceito não implica (como pode sugerir o adjetivo “reflexivo”) reflexão, mas (antes)

autoconfrontação” (p. 16). BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. p. 11-23.

15 FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito penal do risco, meio ambiente e conceito material

de crime (alguns apontamentos sobre a expansão do Direito Penal em confronto com seus padrões

materiais de legitimidade). Disponível em: < http://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/ viewFile/68/41>. Acesso em 25 abr. 2011.

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produção, pelo valor agregado ao produto e pelo avanço desenfreado justificavam os fins e sempre absorviam os riscos a elas inerentes16.

Na sociedade de risco, de modo contrário, quando o homem começou a perceber que estava sendo afetado pelas novas dimensões e pelas graves consequências ocasionadas pelos riscos, surgiu nele um interesse na análise da construção dos meios de produção, sendo que, muitas vezes, concluiu-se que eram contraproducentes17, pois acarretavam mais malefícios do que benefícios para a humanidade.

Ainda no âmbito econômico, releva citar que existem setores sociais que são diretamente prejudicados com a produção de atividades perigosas, ao passo em que há aqueles que se beneficiam diretamente da ocorrência de riscos, não somente como valor agregado aos novos meios de produção, mas como atividade econômica principal, como é o caso da “indústria produtora de filtros de contenção de poluição e de outros insumos necessários ao controle de riscos”18.

Esses diferentes interesses geram conflitos econômicos, pois cada setor defende a forma de gerenciamento que lhe seja mais favorável, o que acaba estimulando discursos políticos e sociais sobre o tema e, consequentemente, por trazer uma sensação de insegurança subjetiva para a sociedade19.

O campo científico também é abalado. As consequências dos novos riscos podem ser desconhecidas, por isso, a ciência tem encontrado dificuldade em estabelecer nexos de causalidade entre uma conduta e um resultado, bem como em alcançar consenso entre as constatações técnicas, o que se reverte em descrédito por parte da sociedade, bem como acaba sendo utilizado como instrumento benéfico a interesses políticos e econômicos20.

16 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 43. 17 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 43. 18 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 44.

19 MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. p. 30.

20 Como bem ponderou GIDDENS, “No coração do mundo da ciência sólida, a modernidade vagueia

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A compreensão de toda essa situação pela qual está passando a sociedade é fundamental para o estudo do Direito Penal atual. O risco é fenômeno determinante na nova política criminal, cujo papel é tutelar os bens e interesses fundamentais para a vida em comum.

2. Implicações dos novos riscos no Direito Penal

O surgimento do risco, com suas peculiaridades, modificou o clima social de paz para um estado de temor e incerteza, o que potencializou um clamor por segurança normativa, especialmente direcionada ao Direito Penal.

Essa exigência social é que dá causa à atual expansão do campo de atuação do Direito Penal. A norma incriminadora é chamada para cumprir o papel de instrumento de controle social por meio de uma política criminal específica, que não requer a paralisação do modelo produtivo e do avanço tecnológico, mas a manutenção desse sistema, com gerência de riscos. Fala-se em um encargo “promocional de valores que orientam as relações humanas em sociedade, uma função garantidora das gerações futuras e uma função regulamentadora de temas até então estranhos”21.

Porém, essa nova ótica de atuação, à qual é incumbida a responsabilidade de normatizar os variados e complexos fenômenos sociais relacionados à concepção dos novos riscos, trouxe uma série de consequências à sistemática do Direito Penal. Assim que começou a atuar no gerenciamento dos novos riscos, constatou-se que o Direito Penal era limitado, incapaz de executar as tarefas que lhe foram confiadas. Desta forma, instituiu-se a relativização dos princípios e pressupostos tradicionais, nascendo, a partir daí, o que vem sendo chamado de Direito Penal do Risco.

21 MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. Direito Penal na “sociedade mundial de riscos”- Uma

aproximação da crise da ciência penal frente às exigências do contemporâneo. Âmbito Jurídico, Rio

Grande, 66, 01/07/2009. Disponível em:

<http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=6170>. Acesso em 8 maio 2011.

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Essa nova concepção, num primeiro momento satisfatória para abrandar as expectativas sociais por prevenção e segurança, fez com que se manifestasse um conflito estrutural interno no Direito Penal.

A legislação começou a expandir seus âmbitos de proteção a bens jurídicos difusos e coletivos e, para atender às expectativas da sociedade de risco, passou a tutelá-los a partir da utilização da técnica de crimes de perigo abstrato, de mera conduta e alguns crimes omissivos, dentre outras. Enquanto, no contexto clássico, esta forma de incriminação era exceção, sob a nova perspectiva passou a ser regra, o que faz emergir dúvidas com relação à legitimidade da intervenção penal, diante de critérios de imputação tradicionais.

Diz-se isso porque, nesse método de incriminação, transfere-se o injusto do resultado para a conduta, de forma que o comportamento delitivo carece daquela lesividade clássica, qual seja, a que afeta, de fato, o bem jurídico protegido, podendo ser visualizados como meros desvios de normas de padrões de segurança e, quando se aborda a questão sob o aspecto dos princípios da intervenção mínima, subsidiariedade, fragmentariedade e ultima ratio, verifica-se que tais modalidades de contenção de riscos podem não se mostrar legítimas.

Na tipificação de condutas de risco, o princípio da proporcionalidade também é afetado, uma vez que a falta de relação com o resultado concreto não propicia bases para delimitação do objeto de tutela, dificultando a formação de juízo acerca da gravidade do comportamento ilícito. Ademais, o afastamento da proporcionalidade é mais latente na questão lesão e pena. Os tipos de risco não dizem respeito a um dano efetivo ou perigo real, de forma que impossibilitam o estabelecimento de um critério entre o resultado da conduta e a pena aplicada.

A propensão preventiva do Direito Penal na sociedade de riscos é oposta à premissa tradicional de último recurso de contenção de conflitos sociais. Antecipar demasiadamente a tutela penal para situações prévias à lesão ao bem jurídico pode significar o completo afastamento dos pressupostos que justificam o Direito Penal.

Ressalta-se que essa ideia de adiantamento da intervenção penal, projetada a partir da segurança preventiva pela qual se orienta a sociedade de risco, parece guiar-se pelo princípio da precaução. Bottini observa que o desejo social de proteção

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leva o Direito Penal a reprimir comportamentos cuja periculosidade é apenas sinalizada, na qual os riscos não são patentes, apenas suspeitos. Para o autor, não é apenas o resultado lesivo que é antecipado, mas, em alguns dispositivos legais, adianta-se até a constatação do risco22.

A dificuldade em estabelecer os efeitos dos riscos e a velocidade com que nascem novas situações demandou do legislador que recorresse também às normas penais em branco. O aumento de tipos penais que tem seus conteúdos preenchidos por normas regulamentadoras mais flexíveis aproximou o Direito Penal do Direito Administrativo. Essa técnica é facilmente verificada na legislação penal ambiental brasileira, na qual muitos comportamentos são incriminados por estarem em desacordo com regulamentação administrativa.

Ocorre que esse modelo normativo, além de contrariar os princípios garantistas defendidos por Ferrajoli23, pode ferir os princípios da legalidade, reserva legal e taxatividade, já que o comportamento ilícito é previsto em regulamentação complementadora e não definido por elementos presentes na lei penal, impedindo ou dificultando o imediato conhecimento de qual comportamento é vedado pelo tipo penal.

A elaboração dogmática24 do Direito Penal também sofreu intervenção da nova estrutura social. As mudanças na legislação penal exigem um esforço no sentido de adaptar seus fundamentos de acordo com a nova realidade25, o que é feito por meio da reconstrução de conceitos estruturantes do sistema penal, como, por exemplo, no instituto da causalidade. A dificuldade encontrada, principalmente pela ciência, de relacionar uma conduta a um resultado fez com que o simples comportamento que gere um risco não permitido materializasse o tipo penal, retomando os estudos da teoria da imputação objetiva. Nas palavras de Bottini “a

22 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 111.

23 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2006.

24 A dogmática, para Muñoz Conde, trata de averiguar o conteúdo das normas penais, seus

pressupostos, suas consequências, de delimitar os fatos puníveis e os não puníveis, de conhecer, em definitivo, o conteúdo da vontade geral expressa na lei. Citado por BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes

de perigo abstrato. p. 97.

25 DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. p.

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ação penalmente relevante não é mais aquela que causa, no sentido naturalístico, um resultado danoso, mas aquela que cria um risco relevante e intolerável para o bem jurídico protegido”26. O risco surge como fenômeno de elaboração dogmática e indica uma íntima relação das modernas teorias penais com as mudanças estruturais constatadas no contemporâneo modelo de organização social27.

Os conceitos de autor e vítima também podem ser objeto de reformulação, pois, no âmbito do Direito Penal na sociedade de risco, qualquer indivíduo que realize uma conduta que coloque em risco algum bem jurídico supraindividual ou coletivo poderá, ao mesmo tempo, ser vítima de seus próprios atos28.

Pode-se constatar, portanto, que o novo meio social do qual decorrem atualmente as relações humanas demandam do Direito Penal adaptações legislativas e dogmáticas que, muitas vezes, afastam princípios que acompanharam sua elaboração e consolidação em um Estado Democrático de Direito. Todos esses fatores geraram discursos teóricos acerca do sistema penal.

3. Discursos jurídicos acerca da intervenção do Direito Penal na contenção dos novos riscos

O aparecimento dos novos riscos e a necessidade de gerenciá-los ensejou uma série de discursos jurídicos, tanto rejeitadores quanto apoiadores da utilização do Direito Penal. Tratam-se de estudos vastos e complexos, impossíveis de ser detalhados no presente trabalho, de maneira que se fará uma exposição apenas da ideia basilar de alguns deles.

As propostas da Escola de Frankfurt29 são resistentes à utilização do Direito Penal no gerenciamento dos novos riscos. Partem da premissa de que o Direito Penal deve preservar seu âmbito clássico de tutela, limitando-se a incidir apenas sobre comportamentos que violarem, agressivamente, bens indispensáveis para a

26 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 98. 27 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 98.

28 SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier

Latan, 2007. p. 112.

29 Fazem parte desta linha, dentre outros, Hassemer, Albrecht, Muñoz Conde e, no Brasil, Alflen da

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vida em comum30. A intenção da tese em análise é assegurar a menor intervenção estatal possível, a fim de garantir o máximo de liberdade. Dessa maneira, somente seriam objeto de atenção penal os riscos provenientes do progresso tecnológico que causassem efetiva lesão aos bens jurídicos referidos31, sendo que todo o resto deve ficar ao encargo dos outros ramos do direito, bem como das outras formas sociais de administração de riscos.

Silva Sánchez trata o Direito Penal sob uma ótica diferenciada. Ao contrário da Escola de Frankfurt, não se posiciona pela redução do Direito Penal a um patamar mínimo, mas propõe um sistema que atue no gerenciamento dos novos riscos e que, ao mesmo tempo, observe os princípios de um Estado Democrático de Direito32.

Nesse contexto, manter-se-iam no campo de abrangência do Direito Penal tanto as condutas ofensivas a bens jurídicos clássicos (vida, propriedade, saúde) quanto as que afetam bens e interesses coletivos ou que representem risco para o bem jurídico tutelado pela norma penal. Para o primeiro caso, vigorariam as regras e instrumentos do Direito Penal tradicional, com seus princípios e sanções privativas de liberdade. Na segunda situação, aplicar-se-ia um Direito Penal flexibilizado, com punições não privativas de liberdade, capazes, somente, de amparar e conter os novos riscos33.

Outro setor permite a utilização do Direito Penal na gerência dos novos riscos, propondo, para tanto, mudanças significativas na dogmática, princípios e institutos.

Stratenwerth sugere o afastamento do Direito Penal tradicional, preso à tutela de bens jurídicos individuais, em prol de um Direito Penal protetor das

30 Para Hassemer, quando o Direito Penal atua buscando minimizar a insegurança oriunda da

sociedade de risco e administrar processos e relações complexas, afasta-se de sua missão original de apenas garantir uma escala de valores necessários à vida em comum. In: HASSEMER, Winfried.

Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona, fasc. 1, p.

23-36, 1991.

31 BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 100.

32 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas

sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 105.

33 SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas

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relações coletivas como um todo. Propõe uma nova dogmática, que proporcione uma atuação penal de “enfrentamento antecipado e preventivo das situações de possível perigo para a estabilidade social e garanta as expectativas e a segurança do normal funcionamento dos contextos de interação”34.

Garcia Martín segue semelhante raciocínio, acrescentando que o sistema penal e seus institutos estão obsoletos e se destinam a âmbitos sociais muito limitados, de modo que se torna incapaz de gerir as novas demandas sociais35.

A diversidade de posicionamentos pautada nas exigências contemporâneas demonstra a dificuldade encontrada pelo operador do Direito para estabelecer um consenso da gradação penal no gerenciamento dos novos riscos. Diante disso, verifica-se que a problemática requer estudos pormenorizados dos princípios e institutos afetados em decorrência das inovações sociais ocorridas, fixando-se diretrizes que possibilitem uma resposta penal eficaz às necessidades sociais.

Considerações finais

Somente o conhecimento do modelo social atual permite compreender as alterações sofridas pelo Direito Penal nos últimos tempos. As características e as graves consequências da sociedade de risco justificam uma atuação penal efetiva no gerenciamento das novas demandas sociais.

Entretanto, no momento em que o mecanismo de controle mais rígido é colocado em prática como gestor dos novos riscos, constata-se facilmente um conflito estrutural interno nas ciências penal e jurídica. A flexibilização demasiada dos princípios limitadores do poder punitivo estatal levaria à desestruturação do modelo de organização político-penal vigente, porquanto um Direito Penal do risco vasto e ilimitado, que não atenda aos princípios e restrições desenvolvidos para evitar a utilização excessiva da sanção penal, é incompatível com o Estado Democrático de Direito.

34 Em BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 106. 35 Em BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. p. 107.

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Tais problemáticas, todavia, não impedem uma atuação penal nem fazem concluir por um Direito Penal minimalista, apenas requerem adaptações dogmáticas, principiológicas e institucionais no sistema penal, capazes de tornar eficaz a sua intervenção frente aos novos desafios.

Dessa forma, para uma adequada tutela dos bens jurídicos indispensáveis para a vida em comum, a utilização de instrumentos penais na sociedade contemporânea mostra-se relevante, na medida em que é capaz de proteger dos riscos e garantir maior segurança social, o que deve ocorrer, contudo, com respeito aos princípios limitadores do poder punitivo estatal e as garantias do Estado Democrático de Direito, a fim de evitar excessos e, tampouco, outorgar proteção deficiente aos bens objeto de resguardo.

Referências

BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia una nueva modernidad. Barcelona/ Buenos Aires/México: Paidós Ibéria, 2006.

BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony; LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: USP, 1997.

BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Crimes de perigo abstrato. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.

DIAS, Jorge de Figueiredo. O direito penal entre a “sociedade industrial” e a “sociedade do risco”. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 33. São Paulo: RT, 2001.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.

FIGUEIREDO, Guilherme Gouvêa de. Direito penal do risco, meio ambiente e conceito material de crime (alguns apontamentos sobre a expansão do Direito Penal em confronto com seus padrões materiais de legitimidade). Disponível em: < http://www.revista.direitofranca.br/index.php/refdf/article/ viewFile/68/41>. Acesso em 25 abr. 2011.

GUIDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.

HASSEMER, Winfried. Derecho penal simbólico y protección de bienes jurídicos. Pena y Estado, Barcelona, fasc. 1, p. 23-36, 1991.

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MEDEIROS, Carlos Henrique Pereira de. Direito Penal na “sociedade mundial de riscos”- Uma aproximação da crise da ciência penal frente às exigências do contemporâneo. Âmbito Jurídico, Rio Grande, 66, 01/07/2009. Disponível em: <http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&arti go_id=6170>. Acesso em 8 maio 2011.

MENDOZA BUERGO, Blanca. El derecho penal en la sociedad del riesgo. Madrid: Civitas, 2001.

PASOLD, Cesar Luiz. Prática da pesquisa jurídica: ideias e ferramentas úteis para o pesquisador do Direito. 6 ed. Florianópolis: OAB, 2002.

SILVA SÁNCHEZ, Jésus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. SOUZA, Luciano Anderson de. Expansão do direito penal e globalização. São Paulo: Quartier Latan, 2007.

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