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A Ringstrasse, seus críticos e o nascimento do modernismo urbano. Viena fin-de-siècle: política e cultura.

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SHORSKE, Cari E., Viena fm-de-siècle:

política e cultura. São Paulo: Companhia

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o poder político, na parte ocidental do Império Habsburgo, e transfor­ maram as instituições do Estado segundo os princípios do constitu­ cionalismo e os valores culturais da classe média. Simultaneamente, as­ sumiram o poder na cidade de Viena. Ela virou seu bastião político, sua capital econômica e o centro de irradiação de sua vida intelectual. Desde que ascenderam ao poder, os liberais começaram a remodelar a cidade à sua própria imagem e, quando foram expulsos do poder no final do século, em larga medida tinham conseguido: a face de Viena estava transformada.' O centro dessa reconstrução urbana foi a Ringstrasse. Vasto complexo de edifícios públicos e residências particulares, ela ocupava uma ampla faixa de terra, que separava a antiga cidade interna e os subúrbios. Graças à sua escala e homogeneidade estilística, a “ Viena da Ringstrasse” converteu-se num conceito para os austríacos, uma for­ ma de invocação mental das características de uma época, equivalente à noção do “ vitoriano” para os ingleses, “ G ründeneit" para os alemães ou “ Segundo Império” para os franceses.

Por volta do final do século xix, quando os intelectuais da Áustria começaram a alimentar dúvidas acerca da cultura do liberalismo em que tinham surgido, a Ringstrasse se tornou um centro simbólico da sua crí­ tica. Como o “ vitorianismo” na Inglaterra, o "Ringstrassenstil" virou um termo pejorativo totalmente genérico que toda uma geração de

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lhos descrentes, críticos e esteticamente sensíveis usava para rejeitar seus pais adventícios e autoconfiantes. Mais especificamente, porém, foi na forja da Ringstrasse que dois pioneiros do pensamento moderno sobre a cidade e sua arquitetura, Camillo Sitte e Otto Wagner, moldaram as idéias sobre a vida e forma urbana, cuja influência ainda vigora entre nós. A crítica de Sitte valeu-lhe um lugar no panteão dos teóricos da cidade comunitária, onde é reverenciado por reformadores criativos re­ centes como Lewis Mumford e Jane Jacobs. As concepções de Wagner, radicalmente utilitárias em suas premissas básicas, granjearam-lhe os louvores de funcionalistas modernos e aliados críticos, os Pevsner e os Giedion. Em suas concepções antagônicas, Sitte e Wagner trouxe­ ram ao pensamento sobre a cidade as objeções arcaístas e modernistas à civilização novecentista que se levantavam em outros setores da vida austríaca. Em sua teoria urbana e desenho espacial, puseram em relevo dois traços destacados da emergente alta cultura austríaca do século XX: a sensibilidade aos estados psíquicos e a preocupação com as consequên­ cias negativas e potencialidades da racionalidade, como guia da vida.

Primeiramente vou considerar a Ringstrasse em si como expressão visual dos valores de uma classe social. É importante lembrar, porém, que, para o desenvolvimento municipal, havia outras coisas além da projeção de valores no granito e no espaço. Os liberais que governaram Viena dedicaram alguns dos seus esforços mais bem-sucedidos à tarefa técnica, sem expressividade dramática, que permitiu à cidade acomodar, em condições razoáveis de saúde e segurança, uma população em rápido crescimento. Desenvolveram com uma presteza notável aqueles serviços públicos comuns às metrópoles modernas em expansão por todo o mun­ do. O Danúbio foi canalizado, para se proteger a cidade contra as inun­ dações que tinham-na atormentado durante séculos. Os especialistas da cidade, nos anos 1860, implementaram um magnífico sistema de forne­ cimento de água. Em 1873, com a inauguração do primeiro hospital da cidade, a municipalidade liberal assumiu, em nome da medicina, as res­ ponsabilidades tradicionais que, antes, a Igreja cumprira em nome da caridade. Um sistema sanitário público eliminou grandes epidemias, em­ bora a tuberculose continuasse a ser um problema nos bairros operários.1/ Ao contrário de Berlim e das cidades industriais do norte, a Viena em expansão manteve, em termos gerais, seu compromisso barroco com os espaços abertos. É certo que os parques não eram mais concebidos ex­ clusivamente segundo a linguagem da geometria, mas seguiam também os termos fisiológicos e orgânicos caros ao século xix: “ Os parques” , disse o prefeito Kajetan Felder, “ são os pulmões de uma mcgalópole” .2 No abastecimento de parques, serviços e utilidades públicas, os liberais de Viena estabeleceram um recorde respeitável.3 Em contraposição, aque­ las características de planejamento urbano que, mais tarde, fizeram a

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fama de Viena — o fornecimento de habitações a baixo custo e o pla­ nejamento social de expansão urbana — estiveram totalmente ausentes da era Ringstrasse.*v O planejamento da Ringstrasse foi controlado pelos habitantes prósperos e profissionais liberais, cuja instalação e glorifica­ ção constituíam as metas fundamentais do seu projeto. O' decreto im­ perial que regulava seu programa de desenvolvimento excluiu o resto da cidade do âmbito da Comissão de Expansão da Cidade, assim entre­ gando-o aos solícitos cuidados das construtoras particulares. O planeja­ mento público se baseava num sistema de grade indiferenciada, exer­ cendo controle apenas sobre a altura dos edifícios e a largura das ruas.4 Quaisquer que fossem os pontos fortes e fracos dos vereadores li­ berais ao definirem e implementarem os serviços públicos que constituem os ossos e músculos da cidade moderna, sentiram o maior orgulho em transformar o rosto da cidade. O novo desenvolvimento de Viena, de­ vido à sua concentração geográfica, superou, em impacto visual, qual­ quer reconstrução urbana do século xix — mesmo a de Paris. Na nova Viena, seus genitores “ projetaram sua imagem” de modo tão consciente quanto os diretores do Chase Manhattan Bank ao exprimirem seu cará­ ter, há poucos anos atrás, naquilo que chamaram de “ angulosidade em alto vôo” do seu arranha-céu modular em Nova York. Os objetivos prá­ ticos, que poderiam ser alcançados com o remodelamento da cidade, subordinaram-se solidamente à função simbólica de representação. O que dominou a Ringstrasse não foi a utilidade, mas a autoprojeção cultural, f/O termo mais comumente empregado para descrever o grande programa dos anos 1860 não era “ renovação” nem “ redesenvolvimento", e sim “ embelezamento da imagem da cidade [ Verschönerung des Stadtbildes].5 De modo mais sucinto do que qualquer outra fonte isolada, o grande fórum construído ao longo da Ringstrasse de Viena, com seus monu­ mentos e residências, oferece-nos um índice iconográfico da mentalidade do liberalismo austríaco ascendente. —

I s

A existência de uma enorme extensão de terra livre no centro de Viena, disponível para o desenvolvimento moderno, foi, ironicamente, uma

{*) Houve duas exceções: a implantação de um único projeto de habitação pública por uma fundação criada pelo Jubileu de Francisco José em 1898, e um projeto comercial de 1912. Ver Hans Bobek e Elisabeth Lichtenbergcr, Wien

(Graz-Colônia, 1966), pp. 56-7.

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conseqüência do atraso histórico da cidade. Viena mantivera suas fortificações muito tempo depois de terem sido demolidas em outras capitais européias. Ás defesas maciças e a larga esplanada que tinham protegido a capital imperial contra a pilhagem turca há muito tinham deixado de definir os limites da cidade. Nosso mapa de 1844 mostra como era só­ lido o anel de ocupação que se fechara em torno da ampla esplanada (figura 1). A cidade interna man­ teve-se isolada dos seus subúrbios através do vasto cinturão de terra aberta. José n , o benévolo “ impe­ rador do povo” , converteu grande parte da esplana­ da em área recreativa, mas a Revolução de 1848 redefiniu, política e militarmente, o papel da espla­ nada na vida da cidade. A abolição da jurisdição política feudal levou à incorporação completa dos subúrbios dentro da cidade. Ao mesmo tempo, de­ pois de três séculos de domínio imperial direto, os liberais extraíram do imperador o direito à auto­ gestão municipal. O novo estatuto municipal de 6 de março de 1850, embora não totalmente implan­ tado até a introdução do governo constitucional para toda a Áustria, em 1860, forneceu um quadro político para o avanço das reivindicações civis à es­ planada. Por trás da pressão política estava o rápido crescimento económico dos anos 1850, que trouxe para a cidade de meio milhão de habitantes um novo influxo populacional e uma séria escassez ha­ bitacional.*6

A Revolução de 1848, ao mesmo tempo em que resultou num aumento das reivindicações po­ líticas e econômicas da utilização civil da zona de defesa, também revitalizou sua importância estra­ tégica. O inimigo em questão, agora, não era um invasor estrangeiro, mas um povo revolucionário. Durante a maior parte da década de 1850, o exér­ cito austríaco, humilhado pela sua retirada forçada

(*} Entre 1840 a 1870, tanto a população de Viena como o número de empresas duplicaram.

Figura 1. Viena antes do novo desenvolvimento, 1844.

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de Viena em 1848, opôs-se aos planos de desenvolvimento civil da espla­ nada. A Chancelaria Militar Central assumiu como premissa básica a persistência de uma ameaça revolucionária. A corte imperial devia se manter em segurança, contra possíveis ataques “ do proletariado dos su­ búrbios e locais distantes. Só se poderia contar com o exército para a defesa do governo imperial” , sustentou o Generaladjutant KarI Grünne, ainda em 1857 contestando a proposta de se tocar nas fortificações. Num período de “ ladroeira revolucionária” , disse ele, até os conserva­ dores ficariam passivos ao “ tumulto” .7/

À medida que avançava a década, as necessidades econômicas, nos meios mais altos do governo, mostraram-se mais fortes do que os re­ ceios contra-revolucionários. Em 20 de dezembro de 1857, o imperador Francisco José anunciou sua intenção de abrir o espaço militar para usos civis, e instaurou uma Comissão de Expansão da Cidade, para planejar e executar seu desenvolvimento. O jornal liberal Neue Freie Presse pos­ teriormente interpretou a importância simbólica do fato em linguagem de conto de fadas: “ O comando imperial rompeu o velho cinturão de pedra que por muitos séculos manteve os nobres membros de Viena prisioneiros de ura feitiço maléfico” .8 Mas o autor dessas linhas, ao escrever em 1873, quando os liberais tinham assumido o controle sobre a Ringstrasse, distorceu os primórdios do desenvolvimento. De fato, durante os três primeiros anos (1857-60), a distribuição do espaço e principalmente as prioridades à construção monumental ainda expressa­ vam os valores do neo-absolutismo dinástico, Primeiramente veio uma grande igreja, a Votivkircbe (1856-79) — “ um monumento de patrio­ tismo e devoção do povo da Áustria à Casa Imperial” — , construída para celebrar a sobrevivência do imperador ao atentado de um assassino nacionalista húngaro. Financiada por contribuições públicas, sob a lide­ rança da família real e do alto clero, a Votivkircbe expressava a unidade indissolúvel entre trono e altar contra aquilo que o arcebispo de Viena, cardeal joseph von Rauscher, nas cerimônias de assentamento da pedra fundamental, chamou de “ o tigre mortalmente ferido da Revolução” .’ Por ter sido planejada para servir simultaneamente como igreja para a praça-forte de Viena e uma Abadia de Westminster para os homens mais importantes da Áustria, a Votivkirche se converteu, nas palavras da Neue Freie Presse, num símbolo do “Sabei — und Kultenregiment

[governo do sabre e da religião]” .

O exército, por seu lado, embora perdendo a batalha pelos muros e fortificações, recebeu um tratamento privilegiado nos primeiros planos da Ringstrasse. Para completar sua cadeia de dispositivos antiinsurre- cionais modernizados, programa já bem adiantado em 1858, foram cons­ truídos dois quartéis e um imponente complexo novo de arsenais, em

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local estratégico perto das estações ferroviárias que poderiam trazer reforços das províncias para a capital. Continuaram reservados, como campos de fogo de defesa contra os subúrbios, enormes terrenos próxi­ mos ao H ofburg.*10 Finalmente, o exército deixou sua marca na Ring- strasse como via pública. Sem fortificações, os porta-vozes militares austríacos, como seus parceiros contemporâneos na construção dos bule­ vares de Paris, deram preferência à rua mais larga possível, para dar o máximo de mobilidade às tropas e o mínimo de condições para barri­ cadas de eventuais rebeldes.**11 Assim, a rua foi projetada como uma artéria larga que cercaria totalmente a cidade interna, a fim de agilizar o deslocamento de homens e materiais para qualquer ponto de perigo. Considerações militares e desejos civis assim coincidiram na escolha de um imponente bulevar que daria à Ringstrasse sua forma circular e sua escala monumental.

Dez anos depois do decreto imperial de 1857, os desenvolvimentos políticos tinham transformado o regime nco-absolutista numa monarquia constitucional. O exército, derrotado pela França e Piemonte em 1859 c pela Prússia em 1866, perdeu a voz de decisão que tinha nos conse­ lhos de estado, e os liberais tomaram o leme. Em consequência disso, o conteúdo e significado do programa da Ringstrasse se modificaram, reagindo à vontade de uma nova classe dirigente de construir uma série de edifícios públicos que exprimissem os valores de uma pax liberalis. Em 1860, o primeiro folheto a apresentar ao público o plano de desen­ volvimento registrava iconograficamente a ideologia dos novos patroci­ nadores (figura 2). O significado das figuras femininas nas laterais do mapa vem claramente exposto nas legendas: à direita, “ Forte pela lei epela paz" (i. é, não pela força militar), e à esquerda (onde o espírito da arte está literalmente despindo sua senhora, Viena), “ Embelezada pela arte".

O contraste entre a antiga cidade interna e a área da Ring inevi­ tavelmente aumentou em virtude da transformação política. O centro

(*) O Arsenal perto da Estação Sul foi construído para abrigar três regi­ mentos e uma oficina de artilharia em 1849-55. Os arquitetos Siccardsburg e van der Noll participaram da obra, embora ambos tivessem sido oficiais na Legião Acadêmica, a principal força militar que enfrentou o Exército em 1848. O Arsenal foi complementado com o luxuoso Museu Militar, a primeira "instituição cultural" construída na esplanada. Seu arquiteto foi Theophil Hansen, um entusiasta da Revolução Grega que, posteriormente, projetou o edifício do parlamento austríaco. 0 maior quartel era o Quartel Franz-Josef (1854-57), que foi demolido no finai do sécuio, para dar lugar a um novo Ministério da Guerra, sede do novo exército burocratizado.

(**) O exército pressionou inutilmente para que a rua propriamente dita fosse ainda mais larga do que os quase 25 metros estipulados.

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da cidade era arquitetonica­ mente dominado pelos sím­ bolos do primeiro e se­ gundo estados: o barroco Hofburg, residência do im­ perador, os elegantes pa­ lácios da aristocracia, a catedral gótica de Santo Estêvão e uma multidão de igrejas menores espalha­ das pelas ruas estreitas. No desenvolvimento da nova Ringstrasse, o terceiro esta­ do celebrou na arquitetura o triunfo do Recht consti­ tucional contra o Mach im­ perial, da cultura secular sobre a fé religiosa, Não fo­ ram palácios, casernas ou igrejas que dominaram a Ring, mas sim centros do governo constitucional e da alta cultura. A arte da construção, usada na antiga cidade para exprimir a gran­ deza aristocrática e a pompa eclesiástica, agora se torna­ va propriedade comum dos cidadãos, exprimindo os as­ pectos vários do ideal cultu­ ral burguês numa série de chamados Pracbbattten (edi­ fícios de esplendor).

Embora a escala e grandeza da Ring sugiram a força persistente do barroco, a concepção espacial que inspirou seu projeto era nova e ori­ ginal. Os planejadores barrocos tinham organizado o espaço para trans­ portar o observador a um foco central: o espaço servia como cenário para dar relevo aos edifícios que o cercavam ou dominavam. Os proje­ tistas da Ringstrasse praticamente inverteram o procedimento barroco, utilizando os edifícios para dar relevo ao espaço horizontal. Organiza­ ram todos os elementos em relação a uma larga avenida ou corso central, sem refreamento arquitetônico nem finalidade visível. A rua, de formato poliédrico, é literalmente o único .elemento no vasto complexo que leva

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uma vida independente, sem se subordinar a nenhu­ ma outra entidade espacial. Onde um planejador barro­ co teria tentado unir o su­ búrbio e cidade — organi­ zar amplas perspectivas orientadas para os traços monumentais centrais — , o plano adotado em 1859, com raras exceções, supri­ miu as perspectivas, em fa­ vor da ênfase sobre o fluxo circular. Assim, a Ring se­ parou o antigo centro dos novos subúrbios.

[A ] cidade interna” , escre­ veu Ludwig von Fõrster, um dos principais planeja­ dores, “ adquiriu uma forma fechada e regular preen­ chendo suas bordas irregu­ lares como uma figura de sete faces, em torno da qual um dos passeios mais no­ bres, o corso, poderia correr [ zieben ] e separar a cidade interna dos subúrbios exter­ nos.” 12./Ao invés de um só­ lido sistema radical, que se poderia esperar como

liga-da Rmgstrasse, 1860. entre as Partes ex'

ternas e o centro da cidade, a maioria das ruas que entram na área da Ring, seja a partir da cidade interna ou seja dos subúrbios, pouco ou nenhum destaque tem. Elas desembocam no fluxo circular, sem cruzá-lo. A cidade velha, assim, ficou fechada pela Ring — reduzida, como observou um crítico, a algo parecido com um museu.15 0 que fora um cinturão de isolamento militar se converteu num cinturão de insulamento sociológico.^

//No vasto e contínuo espaço circular da Ring, os grandes edifícios representativos da burguesia às vezes foram agrupados em magotes, às vezes ficaram isolados. Raramente foram postos em relação mútua, se­ gundo algum princípio de subordinação ou prioridade. A avenida larga

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não converge para eles; pelo contrário, os edifícios estão separadamente orientados para a avenida, que funciona como o único princípio de coesão organizativa, A fotografia na figura 3, tomada do ângulo em que a Ringstrasse descreve uma das suas curvas para o edifício do Parla­ mento, revela o poder linear gerado pela rua. A universidade à centro- direita não faz face ao Parlamento à esquerda, do qual está separada por um parque. Como o próprio Parlamento e a Rathaus que aponta à centro-esquerda, a universidade dá de frente para a Ringstrasse, de modo totalmentc independente da pesada presença dos seus vizinhos.* As ár­ vores que se alinham ao longo de toda a extensão da Ringstrasse servem apenas para ressaltar a supremacia da rua e o isolamento dos edifícios. A massa vertical está subordinada ao movimento plano, horizontal da rua. Não é de se estranhar que a "rua em anel” [BÁngstrasse] tenha dado seu nome a todo o complexo de desenvolvimento.

Às diversas funções representadas pelos edifícios — a política, a educação e a cultura — são expressas como equivalentes na organização espacial. Centros alternados de interesse visual, não se relacionam entre si de nenhuma forma direta, mas apenas em seu confrontamento soli­ tário da grande artéria circular, que leva o cidadão de um edifício a outro, de um aspecto da vida a outro. Os edifícios públicos flutuam desorganizados num meio espacial cujo único elemento estabilizador é uma artéria de homens em

movimento-O senso de isolamento e ausência de relações, criado pela disposi­ ção espacial dos edifícios, acentua-se com a diversidade de estilos his­ tóricos em que foram executados. Na Áustria, como em outros lugares, a classe média triunfante foi peremptória em sua independência do pas­ sado, quanto ao direito e à ciência. Mas sempre que lutou para expressar seus valores na arquitetura, ela retrocedeu para a história. Como Fõrster tinha observado no início de sua carreira (1836), quando pôs-se a trazer os tesouros do passado à atenção dos construtores modernos em seu periódico Die Bauzeitung, “ [ . . . ] [O ] gênio do século xix não é capaz de seguir seu próprio caminho. [ . . . ] O século não tem cor determi­ nada” .14 Por isso ele se exprimiu no idioma visual do passado, tomando de empréstimo o estilo cujas associações históricas fossem mais adequa­ das à finalidade de representação de um determinado edifício.

O chamado bairro Rathaus, que mencionei acima para ilustrar o princípio de equivalência na disposição dos edifícios, também exempli­ fica o pluralismo dos estilos arquitetônicos e seu significado ideal. Os quatro edifícios públicos desse setor formam, em seu conjunto, um ver­

(*) Exceções notáveis à disposição voltada para a rua são os dois grandes mu­ seus de História da Arte e História Natural, que ficam um defronte ao outro, atra­ vés de um espaço concebido como praça pelos seus planejadores (ver p. 115).

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dadeiro quadrilátero de Recbl e Kultur. Eles representam, como que numa rosa-dos-ventos, o sistema de valores do liberalismo: o governo parlamentar no edifício do Rcichsrat, a autonomia municipal na Rathaus, o ensino superior na universidade e a arte dramática no Burgtheater. Cada edifício foi executado no estilo histórico tido como adequado à sua função. lAssim, para evocar suas origens como uma comuna medieval livre, agora renascida depois de uma longa noite de domínio absolutista, a Viena liberal construiu sua Rathaus em gótico maciço (figura 4). O Burgtheater, abrigando a tradicional rainha das artes austríacas (figura 5), foi concebido no estilo barroco inicial, comemorando a época em que o teatro uniu pela primeira vez o clérigo, o cortesão e o plebeu, num entusiasmo estético partilhado em comum. Na grande escadaria interna, um dos mestres mais jovens da pintura da Ringstrasse, Gustav

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Figura 4. Rathaus (Friedrich Schmidt, arquiteto), 1872-8). 55

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Klimt, ganhou fama ao decorar o forro com quadros que traçavam a história do teatro.* Tal como a Ópera e o Museu de História da Arte, o Burgtheater forneceu um local de encontro para a velha elite aristo­ crática e a nova elite burguesa, cujas diferenças de casta e política po­ deriam ser, se não eliminadas, ao menos atenuadas por uma cultura estética condividida. A corte imperial (Hof) poderia se oferecer como­ damente ao público recém-ampliado nas instituições artísticas — o Ho/burgtheater, a Ho/oper, o Ho/museen — , ao passo que a nova bur­ guesia poderia absorver sofregamente a cultura tradicional nessas artes sem ceder em seu orgulhoso sentimento de separação na feligião, polí­ tica e ciência.

A universidade em estilo renascentista, em contraste com o Burg­ theater, era um símbolo inequívoco da cultura liberal. Assim, teve de esperar muito tempo até concretizar suas reivindicações quanto a uma localização significativa na Ringstrasse. Enquanto fortaleza do

raciona-(*) Ver pp. 203-4.

Figura 5- Hofburgtheater (Gottfried Sem per e Cari Hasenauer, arquitetos), 1874-88.

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lismo secular, a universidade foi a última a obter reconhecimento das forças intransigentes da velha direita, e a primeira a sofrer com a as­ censão de uma nova direita populista e anti-semita. A localização da universidade, e mesmo seu estilo arquitetônico geraram anos de conflito dentro do governo e entre os variáveis grupos sociais de interesses que o constituíam. A universidade ficou por anos sob a sombra do papel que desempenhara na Revolução de 1848. A Legião Acadêmica, composta de professores e estudantes da universidade e de outras instituições de ensino superior, tinha sido o núcleo da força de luta organizada da Viena revolucionária. O exército imperial não podia esquecer nem perdoar sua retirada vergonhosa frente à intelligentsia-em-arTnas. Eliminada a revo­ lução, o exército ocupou a velha universidade na cidade interna, e obri­ gou a dispersão de suas funções em edifícios espalhados pelos distritos externos. Ao assumir o cargo em julho de 1849, o ministro da Religião e Educação, conde Leo Thun, homem aristocrático, piedoso, conserva­ dor, mas esclarecido, procurara ao mesmo tempo modernizar e domes­ ticar a universidade, restaurar sua autonomia, mas ligando-a ainda mais estreitamente ao trono e ao altar. Lutou inutilmente contra o exército e outros adversários políticos para retirar a universidade da diáspora que lhe fora imposta como castigo. De 1853 a 1868, Thun e seus co­ laboradores se empenharam em criar um novo bairro universitário, em estilo inglês e gótico, que se agruparia em torno de Votivkirche — sem nenhum resultado.15

O problema da universidade só foi resolvido quando os liberais chegaram ao poder. Naquela época, as três instituições públicas mais importantes para os liberais — a universidade, o Parlamento e a Rathaus — ainda sc situavam em bairros ou temporários ou inadequados, ao passo que o exército aferrava-se ao campo de manobras, última área livre (200 hectares) da antiga esplanada. Imediatamente depois de sua formação em 1868, o novo Bürgerministerium (Ministério dos Cida­ dãos) solicitou o terreno ao imperador, sem sucesso. O prefeito Kajetan Felder finalmente rompeu o impasse, formando uma comissão composta por três arquitetos para o Parlamento, a Rathaus e a universidade, para elaborar projetos que acomodassem os três edifícios no campo de ma­ nobras. Em abril de .1870, com o apoio entusiástico do conselho muni­ cipal de maioria liberal, Felder conseguiu a aprovação do imperador para o tríplice projeto. Recebendo uma grande indenização do Fundo de Expansão da Cidade, o exército finalmente entregou seu ckamp de Mars aos paladinos da política e do ensino liberais.16

A transformação política que permitira à universidade ocupar um lugar de tanta honra na Ringstrasse refletiu-se também na forma e estilo do edifício em si. Os projetos do conde Thun quanto a uma ciié uni- versitére medievalizante, com edifícios góticos amontoados em torno

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da Votivkirche como pintinhos em volta da mãe galinha, desapareceram com a política neo-absolutísta que os gerara. A universidade agora assu- miu a forma de um edifício independente, maciço à percepção e monu­ mental em escala. O estilo escolhido não foi o gótico, mas o renascen­ tista, para proclamar a filiação histórica entre a cultura racional moderna e o ressurgimento do ensino secular depois da longa noite de superstição medieval.

Seu projetista, Heinrich Ferstel (1828-1883), um “ vigário de Bray” * mesmo entre os arquitetos politicamente flexíveis de então, do­ minava todas gs variedades históricas da chamada “ arquitetura de esti­ lo” capazes de responder às alterações de gosto que acompanhavam as alterações do poder político. Filho de um banqueiro, Ferstel tivera seu ímpeto juvenil como revolucionário da Legião Acadêmica de 1848, mas logo emendou esse começo malogrado trabalhando como arquiteto para a aristocracia boêmia dos anos conservadores de 1850. Contando com o patronato de um desses aristocratas, conde Thun, Ferstel alcançou fama como arquiteto da Votivkirche.17 Mas quando, finalmente, rome- çou a fase liberal dos projetos para a universidade, Ferstel foi encarre­ gado de projetar um edifício em estilo renascentista.'Foi, então, ao berço do ensino humanista moderno, a Itália, para estudar as universidades de Pádua, Gênova, Bolonha e Roma. Sem dúvida, alguns cientistas na­ turais objetaram contra a tentativa de Ferstel em transpor para sua grandiosa estrutura os modelos do passado renascentista. Aqueles edi­ fícios veneráveis, disseram em sua petição, não serviam ao propósito de aperfeiçoamento das ciências naturais. Estas floresciam em outros luga­ res — nas universidades de Berlim e Munique, no Collège de France, na Universidade de Londres. Em suas construções simples, “ mais ade­ quadas a exigências sóbrias, [ . . . ] as ciências exatas podem se sentir à vontade” . Mas mesmo esses críticos apresentavam suas visões funcionais de forma um tanto apologética, ao final amoldando-se à ênfase predo­ minante sobre considerações representacionais: “ Quando todos se mara­ vilham com o estilo das universidades italianas, então certamente tere­ mos grande glória se as excedermos” .'8 A Renascença assim venceu como estilo apropriado para o centro monumental do ensino liberal de Viena (figura 6).

O edifício mais imponente no quadrilátero de Recbt e Kultur era, talvez, o Reichsrat ou Parlamento (figura 7). Seu arquiteto dinamar­ quês, Theophil Hansen (1813-1891), construiu cinco dos edifícios pú­ blicos do complexo da Ringstrasse,** mas foi no Parlamento que prodi­

(*) Personagem vira-casaca de Chaucer, em Contos da Cantuiria. (N. T.) (**) Salão da Sociedade de Música, Academia de Belas-Artes, Bolsa, Escola Evangélica e Parlamento.

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galizou seus melhores esforços. Escolheu o esrilo que mais reverenciava — o grego clássico —- para decorar o exterior do edifício, muito embora seus volumes articulados, semelhantes a blocos, tivessem maior afini­ dade com o barroco. Helenista autêntico, Hansen achava que suas “ for­ mas nobres, clássicas, produziriam com força irresistível um efeito edi­ ficante e idealizante sobre os representantes do povo” .19 Como no caso da universidade, os projetos quanto à forma, estilo e localização do Parlamento mudavam à medida que crescia o poder dos liberais. Ini­ cialmente, as duas câmaras do Legislativo deveriam ficar em edifícios separados, executados em estilos diferentes. Em seus planos originais, Hansen projetou a Câmara dos Lordes em grego clássico, o estilo “ mais nobre” . Para a Câmara dos Representantes, pensou na Renascença ro­ mana. Mas todos os projetos foram suspensos com a Guerra Austro- Prussiana e a crise interna que se seguiu em 1866. Quando o horizonte se clareou e foi instituída uma constituição mais liberal, decidiu-se em 1869 unir as duas câmaras em "um só monumental edifício de esplen­ dor [Prachtbau]” , com uma ala para cada câmara. Como símbolo da esperada integração parlamentar entre nobres e plebeus, optou-se por

Figura 6. Universidade (Heinrich Ferstel, arquiteto), 1873-84 59

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Figura 7. Reichsrat (Parlamento) (Theophil Hansen, arquiteto), 1874-83.

um salão central e salas de recepção em comum para os presidentes de ambas as câmaras, com a adoção do estilo grego “ mais nobre” para o conjunto.20 Não se pouparam despesas nos materiais mais ricos para a execução dos projetos luxuosos de Hansen.

A liberação do campo de manobras do exército também propor­ cionou ao Parlamento um local adequado à sua nova importância polí­ tica. Ao invés da modesta localização oríginalmente pensada,* a cons­ trução agora ocupava o principal terreno frontal da Ringstrasse, onde, através de um pequeno parque, ficaria diretamente em frente ao Hof- burg. Assim, Hansen projetou o edifício de modo a criar a máxima ilusão de altura possível, como mostra a figura 7. Dispôs a entrada

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principal do edifício do Parlamento no segundo andar de um grandioso pórtico de colunas, e construiu uma larga rampa de acesso para veículos, que subia do nível da calçada até ela. A vigorosa linha diagonal ascen­ dente confere ao andar térreo maciço, de textura bruta, o caráter de uma acrópole de pedra de onde se erguem os andares superiores em material polido e estilo clássico. Mas, por engenhosa que fosse a ilusão obtida, o templo do Recbt não conseguiu o efeito de domínio sobre o ambiente desejado, ao que parece, pelo seu criador.

As estátuas que adornavam a rampa de acesso traíam o sentimento de falta de ancoragem no passado, experimentado pelo liberalismo par­ lamentar austríaco. Não tendo passado, ele não tinha heróis políticos próprios cuja memória pudesse ser gravada em pedra. Ele tomou de empréstimo ao Capitólio romano um par de “ domadores de cavalos” para guardar a entrada da rampa. Ao longo dela, foram colocadas as estátuas de oito historiadores clássicos: Tucídides, Políbio e outras fi­ guras ilustres. Onde faltava tradição histórica, a erudição histórica teria então de preencher o vazio. Finalmente, escolheu-se Palas Atena como símbolo central à frente do novo edifício (figura 8). Onde faltava his­ tória, entrava o mito. Os parlamentares austríacos não se sentiram atraí­ dos por uma figura tão carregada de um passado revolucionário como a Liberdade. Palas Atena, protetora da pólis, deusa da sabedoria, era um símbolo mais seguro. Era também uma divindade adequada para representar a unidade liberal entre política e cultura racional, unidade expressa pelo lema do Iluminismo tantas vezes repetido, "W issen machl frei" (O conhecimento [nos] liberta). A despeito de suas grandes pro­ porções, Palas não consegue dominar a cena, da mesma forma que o Reichsrat de Hansen. Seu fixo olhar pétreo atravessa o centro vital varrido pelo vento: a própria Ringstrasse.*

O primado do imponente estilístico sobre o útil funcional, presen­ te mesmo no edifício do Parlamento bem projetado, nem sempre encan­ tava a mentalidade prática dos membros das comissões- de edificação. Em 1867, quando os arquitetos Ferstel e Hansen submeteram à apro­ vação projetos para os museus de História da Arte e História Natural, com um espaço interior prejudicado em favor das fachadas, um dos membros da comissão se contrapôs traçando o esboço de uma obra de engenharia, com “ uma estrutura funcional [N utzbau], uma planta baixa utilizável e uma fachada inutilizável” . Um novo arquiteto, Gottfried Semper, que defendia como princípio a unidade entre esplen­ dor e utilidade, teve de ser trazido da Alemanha para reconciliar as

(*) A estátua de Palas de Kundmann, embora fizesse parte do projeto de Hansen, só foi erguida em 1902, quase vinte anos depois da conclusão do edifício, e muito depois que o espírito de racionalidade abandonara o Reischsrat.

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exigências conflitantes.21 Bastante interessante foi que somente na cons­ trução urbana os pais burgueses se sentiram levados a sustentar a prio­ ridade estética. No campo, não sentiram necessidade de encobrir sua identidade de homens de negócios. Assim, quando os conselheiros mu­ nicipais tiveram de escolher um estilo para o aqueduto de Baden, do novo sistema de abastecimento de água em Viena, rejeitaram uma su­ gestão de “ algo com decoração [ etwas mit Schmuck]. Pelo contrário, seguiram o conselho de um dos arquitetos, que afirmou que, para uma tal estrutura prática no campo, só existia um estilo apropriado, “ que

Figura 8. Fonte de Palas Atena na frente do Parlamento (Theophil Hansen e Karl Kundmann), 1896-1902.

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é chamado de estilo de Adão, isto é, nu e forte” .22 Na cidade, esse des­ nudamento de músculos seria considerado grosseiro. Aí, a verdade da sociedade industrial e comercial tinha de ser envolta nos tecidos deco­ rosos dos estilos artísticos pré-industriais. A ciência e o direito eram verdades modernas, mas a beleza provinha da história.

Tomados em conjunto, os edifícios monumentais da Ringstrasse expressavam bem os valores mais elevados da cultura liberal reinante. Sobre os remanescentes de um ckamp de Mars, seus devotos tinham erigido as instituições políticas de um estado constitucional, as escolas para educar a elite de um povo livre, e os museus e teatros que levariam a todos a cultura que redimiria os no vi homines de suas baixas origens. Se era difícil o ingresso na velha aristocracia dos livros genealógicos, já a aristocracia do espírito estava teoricamente aberta a todos, através das novas instituições culturais. Elas ajudavam a forjar o elo com a cul­ tura mais antiga e a tradição imperial, para fortalecer aquela “ segunda sociedade” , às vezes chamada “ o mezanino” , onde os burgueses em as­ censão se encontravam com os aristocratas dispostos a se adaptar a novas formas de poder social e econômico, um mezanino onde a vitória e a derrota se transmutavam em compromisso social e síntese cultural.

O historiador liberal contemporâneo Heinrich Friedjung interpre­ tou o desenvolvimento da Ringstrasse em conjunto como uma promessa cumprida da história, realização da labuta e sofrimento de gerações de habitantes comuns de Viena, cujas riquezas e talentos enterrados foram finalmente exumados no século xix, “ como imensos veios de carvão sob a terra” . “ Na época liberal” , escreveu Friedjung, “ o poder, pelo menos em parte, passou para a burguesia, e em parte alguma alcançou uma vida mais plena e pura do que na reconstrução de Viena.” u

Um rapaz provinciano, Adolf Hitler, que fora a Viena porque, como disse, “ queria ser alguma coisa", caiu sob o feitiço da Ringstrasse, da mesma forma que Friedjung: “ De manhã até tarde da noite” , ele escreveu sobre sua primeira visita, “ passei de um a outro objeto de interesse, mas foram sempre os edifícios que atraíram meu maior inte­ resse. Eu poderia ficar horas na frente do Ópera, poderia contemplar por horas o Parlamento; todo o bulevar Ring me pareceu um encanta­ mento saído do As mil e uma noites",*n Aspirante a artista e arquiteto, Hitler logo aprendeu com frustração que não era fácil entrar no mundo mágico do Recht e K u l t u r Trinta anos depois, voltaria à Ring como o conquistador de tudo o que ela representava.

(*) A crítica discreta, pessoal e muitas vezes perspicaz de Hitler à Ringstrasse deixa claro o seu poder e vitalidade como símbolo de um modo de vida.

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9 I I g

A ostentação extraordinária de edifícios monumentais no complexo da Ringstrasse pode facilmente obscurecer o fato de que a maior parte da área construída era ocupada por grandes prédios residenciais. A habili­ dade da Comissão de Expansão da Cidade consistia precisamente em aproveitar o setor privado para criar a base financeira para a constru­ ção pública. O produto apurado com a venda de terrenos seguia para um Fundo de Expansão da Cidade (Standterweiterungsjond), que por sua vez arcava com os custos das ruas, parques e, em considerável me­ dida, edifícios públicos.

As autoridades manifestaram confiança total na capacidade da em­ presa privada em gerar os resultados financeiros desejados, e assim, ao invés de refrear, preferiram incentivar a especulação nas propriedades liberadas. A aguda demanda habitacional da cidade interna nos anos 1850 forneciam um argumento econômico atraente para esse rumo. Apesar dos protestos dos proprietários de terrenos na cidade interna, que temiam a concorrência de um vasto setor de novas construções habi­ tacionais, a Comissão de Expansão seguiu o princípio de que a explora­ ção mais lucrativa da terra geraria os melhores resultados para a comu­ nidade. A comissão definiu suas metas, não em termos, evidentemente, das necessidades habitacionais dos grupos de baixa renda, nem tam­ pouco em termos do desenvolvimento econômico urbano global, mas simplesmente em termos dos espaços e edifícios públicos representativos da Ringstrasse. Os controles de edificação para o setor residencial se limitaram à altura, ao alinhamento e, em certa medida, ao parcelamento dos terrenos. Quanto ao resto, o mercado determinava os resultados. E "o mercado” significava o cruzamento entre os interesses econômicos e valores culturais dos ricos.

A geógrafa urbana Elisabeth Lichtenberger realizou um estudo in­ tensivo sobre a estrutura social e econômica da Ringstrasse que, jun­ tamente com as pesquisas de Renate 'Wagner-Rieger sobre a arquitetura, da Ring, permite-nos entender o habitat que a nova classe ascendente vienense construiu para si no meio século que se seguiu a 1860. Tanto a organização espacial como o estilo estético revelam as necessidades e aspirações dos construtores e sua clientela.

< A principal construção residencial era o prédio de apartamentos. De quatro a seis andares, os edifícios em geral raramente tinham mais de dezesseis unidades.26 O modelo formal empregado nesse tipo de cons­ trução era o Addspalais (palácio aristocrático) da época barroca, com muitos belos exemplos na cidade interna. Adaptado às necessidades da nova elite da Ringstrasse, o Adefspalais se tornou, na linguagem de

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então, um Mietpalast (palácio de aluguel) ou Wohn palas t (em tradução tosca, um palácio de apartamentos).* Era também chamado, mais do ponto de vista do investidor do que do inquilino, de Zinspalast (palá­ cio de rendas). Plebeu em comparação com o Adelspalais, o Mietpalast era aristocrático em comparação com as Mietkaserne (casernas de alu­ guel), monótonos prédios de vários andares que surgiram ao mesmo tempo em bairros externos de Viena para abrigar a classe operária.27 Ambos os tipos de edifícios anunciavam em suas formas retangulares e dimensões amplas sua filiação aos genitores barrocos e clássicos do cen­ tro da cidade: o Mietpalast burguês ao palácio nobre, a Mietkaserne operaria aos quartéis dos soldados imperiais. Nem os novos ricos em mobilidade ascendente, nem os artesãos em mobilidade descendente, que vinham ingressando no exército de trabalhadores industriais, conserva­ ram suas formas tradicionais de habitação que, simples ou múltiplas, serviam ao mesmo tempo de residência e local de trabalho para o patrão e seus empregados .a 'A vida urbana do século xix separou gradativa­ mente a vida pessoal e o trabalho, a residência e a oficina ou escritório: o prédio de apartamentos refletiu a mudança*Os edifícios da Ringstrasse marcaram uma etapa de transição nessa transformação. Embora o es­ paço comercial e a residência ainda se integrassem no pseudopalácio que era o Mietpalast, a parte comercial quase nunca era o local de trabalho dos moradores do edifício.

Quando a questão dos modelos habitacionais se apresentou pela primeira vez aos planejadores da Ringstrasse, alguns viram nela a opor­ tunidade de reparar os erros que achavam que a história cometera, ao for­ çar a população a viver em núcleos de concentração residencial. Como se deve construir Viena?; com esse título, um folheto da época levantava a pergunta enfrentada pela elite dirigente. Na cidade antiga, o predomínio de habitações de múltiplas unidades para a classe média tinha sido imposto pelo crescente aumento populacional. A residência para uma só família encontrara agora dois defensores destacados, os autores do folheto. Eram Rudolf von Eitelberger, o principal historiador da arte da universidade, e Heinrich Ferstel, que já encontramos como arquiteto da Votivkirche, da universidade e outros edifícios importantes da Ring­ strasse. Ambos eram historicistas românticos e, como tantos liberais austríacos, anglófilos. Ferstel, inspirado por viagens pela Inglaterra e Países Baixos em 1851, insistia nos méritos superiores da casa gemi­ nada inglesa, com seu jardinzinho particular, para o desenvolvimento

(*) A palavra Palast, usada sozinha, além de designar o casarão individual dc uma família, significava também grandes clubes, edifícios administrativos c mesmo depósitos dc certa amplitude. Cf. Renate Wagner-Rieger, Wiens Arckitektur im 19. Jahrbundert (Viena, 1970), pp. 205-6.

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da Ringstrasse. Mas a casa urbana inglesa, principalmente em sua en­ carnação oitocentista, era mera residência. Produto c sintoma da di­ visão moderna do trabalho, que concentrou o trabalho em edifícios especializados e até em distritos à parte, a residência inglesa da classe média alta não servia mais como local de trabalho. Porém, quando os dois críticos austríacos defenderam o uso da casa inglesa na Ringstrasse, adaptaram-na a um estilo de vida anterior: o do artesão ou comerciante próspero do início do capitalismo, cuja casa era também seu local de trabalho. A casa-modelo de Eitelbergcr e Ferstel conteria, de modo absolutamente não-moderno e não-inglês, uma loja ou escritório no tér­ reo, alojamentos para a família no segundo andar, oficinas e alojamentos para os empregados e trabalhadores nos andares de cima. Para aquelas famílias burguesas mais modernas para quem a residência era separada do local de trabalho, Eitelbergcr e Ferstel propuseram uma casa com apartamentos separados, um por andar,./Essa, chamada Beamtenhaus (na Áustria, o funcionário público na verdade foi o precursor do executivo de negócios), ainda conservava a escala da casa medievalizante do habi­ tante do burgo, por razões de homogeneidade estética.” A concepção da classe média que emerge desses projetos residenciais reflete o ritmo lento do desenvolvimento capitalista austríaco e o arcaísmo social que, consequentemente, marcou alguns dos porta-vozes artísticos mais vigo­ rosos da classe média.

! Nem a casa urbana inglesa, nem a residência aristocrática preva­ leceram nos conselhos de desenvolvimento da Ringstrasse. Não satisfa­ ziam à demanda pela utilização máxima da terra, e tampouco à ânsia pelos símbolos de posição aristocrática. Os habitantes da cidade interna de Viena tinham-se habituado à Miethaus através da tradição barroca. O problema não era substituí-la, mas exaltá-la, O novo vienense de classe média aspirava ser antes um nobre que um patrício, se não em seus valores internos, pelo menos em sua aparência externa. O Mietpalast da Ringstrasse, como tipo padrão de edificação, trazia a marca, com todas as suas contradições, da aproximação austríaca entre burgueses e aristocratas.

1 O que efetivamente selou o destino da idéia de casa inglesa foi a decisão de vender a terra em lotes do tamanho demarcado para o pa­ lácio tradicional, e não no tamanho predominante no centro e subúrbios. Embora tenham sido construídos nesses lotes uns poucos palácios novos e imponentes, como residências individuais para a nobreza dc sangue ou fortuna, a maioria dos edifícios foi concebida como residência para várias famílias, cujo caráter “ aristocrático” foi dado primeiro e acima de tudo pelas fachadas. Enquanto o andar térreo, muitas vezes em pedra maciçamente rusticada, ficava entregue ao uso comercial, o segundo andar continha o{s) apartamento(s) mais espaçoso(s), e trazia o nome

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dc N oM eta&e ou Nobehtock (da expressão italiana piano nobile) Às VCZ? S> 0 [ « “ ‘ro piso reproduzia a planta baixa do Nobehtock, às vezes vinha subdividido em apartamentos menores. A diferenciação vertical da fachada, pela altura da janela, riqueza da ornamentação, pilares e assim por diante, refletia em certa medida o tamanho e a prodigalidade dos apartamentos: quanto mais alto o piso, menores e mais numerosas as unidades de moradia. Mas o chamado enobrecimento (Nobilitierung) da fachada era, com freqüência, enganoso. O número e disposição dos apartamentos no espaço interno, como indicou Wagner-Rieger, era uma questão da demanda do consumidor e da vontade do especulador.31

No primeiro período de edificação da Ringstrasse, 1861-65 a ne­ cessidade premente de moradia para a faixa de renda média gerou uma

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Figura 9. Kärntner Ring. 67

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Figura 10. Reichsratsstrasse.

tendência a unidades menores e uniformes, às quais correspondeu uma certa uniformidade clássica na fachada. A Kärntner Ring mostra essa tendência (figura 9). Na segunda onda de construções, 1868-73, predo­ minou a diferenciação tanto na fachada como no interior, expondo igual­ mente a realidade da estratificação dentro da sociedade da Ringstrasse e as aspirações dos seus membros. Na Reichsratsstrasse, uma rua seleta por trás do Parlamento, a fachada laminada atingiu seu auge (figura 10). Os arquitetos aperfeiçoaram plantas baixas com o máximo possível de apartamentos em ângulo reto com a rua, de modo a repartir as bên­ çãos privilegiadas de janelas frontais e, assim, aumentar o valor dos aluguéis.52 Não era preciso que as características “ enobrecedoras” que aumentavam o preço do aluguel esfivessem dentro dos apartamentos

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in-dividuais. Um expediente favorito foi a adaptação de grandiosas esca­ darias (figura 11) e amplos vestíbulos (figura 12) da arquitetura pala­ ciana para o prédio de apartamentos.33 Essas características,

evidente-Figura 11. Escadaria na Kãrntner Ring, n.° 14, 1863-5. 69

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mente, também eram empregadas para dar grandiosidade aos edifícios públicos — pensa-se na “ Escadaria Imperial” (Kaiserstiege) no Ópera, ou nas duas alas inteiras do Burgtheater, dedicadas exclusivamente a

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escadarias prodigamente decoradas, uma para a corte, outra para o pú­ blico (ver quinto ensaio, figura 33). Nos prédios residenciais com forte diferenciação vertical, a escadaria principal (Herrscbaftsstiege) podia chegar apenas até o NoM stock, ou um andar acima, com degraus sim­ ples para os pisos superiores. Assim como nas ruas largas da área da Ring, também no interior dos seus edifícios (públicos e particulares) o espaço de comunicação era desmedidamente ampliado para criar uma sensação de grandeza.

' Como área residencial, tanto para os compradores como para os inquilinos, a Ringstrasse teve um êxito assombroso. Até a queda da monarquia — não obstante o desenvolvimento de bairros elegantes nos subúrbios — , a Ringstrasse conservou seu poder magnético de atrair todos os elementos da elite vienense: o aristocrático, o comercial, o burocrático e o profissional.34 Os estratos superiores da sociedade não só moravam na área da Ring como também, com frequência surpreen­ dente, eram os proprietários dos edifícios onde viviam. Isso porque os apartamentos da Ringstrasse, embora de modo geral construídos por companhias de desenvolvimento, estavam cotados entre os investimen­ tos privados mais seguros e lucrativos. Para torná-los ainda mais atra­ tivos, a cidade e o Estado suspenderam por trinta anos os impostos prediais. O alto aristocrata, o grande comerciante, a viúva com renda fixa ou o médico que podia se permitir esse luxo, foram todos levados a comprar um prédio de apartamentos, morando numa unidade e rece­ bendo a renda do aluguel das outras. Na casa da Ringstrasse, o pres­ tígio social e o lucro assim se reforçaram mutuamente.

Empregou-se muito engenho para satisfazer a exigência de se ter a custo razoável o máximo de grandeza para a produção de rendimentos. As companhias de desenvolvimento compraram partes inteiras de quar­ teirões. Os melhores arquitetos — August von Siccardsburg e Eduard van der Nüll do Ópera, Theophil Hansen do Parlamento — empenha- ram-se em dedicar suas artes à utilização máxima do terreno. Ocupando o quarteirão inteiro com um único edifício, com escalas e proporções que proclamavam sua grandeza, eles recorreram a escadarias e pátios para conseguir um impacto retórico sem usar espaço demais, em comparação às unidades de moradia propriamente ditas. Mas, para atrair investi­ dores individuais, era preciso unidades menores. Hansen resolveu esse problema para uma companhia de desenvolvimento, a Allgemeine Oesterreichische Baugesellschaft, com uma espécie de condomínio, a Gruppenzinshaus (figura 13). Hansen projetou o seu edifício de quar­ teirão de modo a poder ser dividido em oito entidades de unidades múltiplas, cada uma a ser vendida para um comprador em separado (figura 14). Condividindo o pátio interno e uma vasta fachada palacia­ na, e utilizando entradas projetadas segundo um mesmo modelo, cada

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Figura 13. Gruppenzinshaus (prédio de apartamentos) (Theopbil Hartsen, arquiteto), 1870.

proprietário podia se beneficiar de um grande espaço, cujo preço teria sido proibitivo se as unidades, do mesmo tamanho das que comprara, tivessem sido projetadas individualmente.35 Ao projetar edifícios vizinhos para clientes diferentes, os arquitetos às vezes harmonizaram suas plan­ tas de modo a conseguir não só economia nos custos, mas também a grandiosidade que derivaria da homogeneidade estilística nas linhas dos peitoris e pavimentos e até na ornamentação.36

A feliz combinação entre prestígio e lucro nos palácios de aluguel de um só proprietário refletia uma das principais tendências sociais da era liberal: a aproximação entre aristocracia e burguesia. O impulso de integração nem sempre vinha de baixo. Na verdade, a nobreza de for­ tuna e a nobreza de linhagem estavam, nos anos 1860, entre os

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primei-Figura 14. Planta baixa do Gruppenzinsbaus.

ros grandes investidores na construção residencial da Ringstrasse. Esse estrato social mais elevado desenvolveu um bairro praticamente seu, concentrado na espaçosa Schwarzenbergplatz (figura 15). Aí, seus mem­ bros, como o arquiduque Ludwig Victor e o banqueiro Freiherr von W ertheim,* eram os donos de quase metade das casas. Os aristocratas não eram simples senhores ausentes: metade deles morava nas casas de aluguel que tinham construído. Embora as várias espécies de nobreza titulada ainda em 1914 também possuíssem muitas propriedades em toda a Ring (cerca de um terço de todas as casas particulares), foi só no bairro Schwarzenberg que tenderam a morar nos edifícios de sua propriedade.37

Na classe média, os industriais têxteis compunham o maior grupo de proprietários residentes concentrados numa só região profissional- mente definida. O que o bairro Schwarzenberg significava para a aris­ tocracia, o bairro Têxtil era para a burguesia: uma área de prestígio visível. Nos anos 1860, quando começou o desenvolvimento da Ring­ strasse, a indústria têxtil ocupava o centro do processo de moderniza­ ção. Mas ela tinha sólidos laços com o passado. Até o século xx, as empresas têxteis na Áustria não eram sociedades anônimas, mas firmas familiares dirigidas por empresários individuais. Embora a manufatura funcionasse principalmente nas províncias, em especial na Boêmia e Morávia, a administração continuou a se concentrar na capital. O antigo bairro dos fabricantes de roupas da cidade interna simplesmente

trans-(*) Ferstcl construiu os palácios desses dois tipos de clientes, com variações interessantes na planta interna, ajustando-se à diferença que persistia nos estilos de vida da antiga nobreza e aristocracia financeira. Ver Norbert Wibiral e Renata Mikula, Heinrich von Ferstel, cm Renatc Wagncr-Rieger, org., Die Wiener Rings­ trasse, vni, iii, 76-85.

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bordou para o setor nordeste da Ringstrasse e se transformou no novo bairro Têxtil. Lá, os empresários têxteis construíram casas que conju­ gavam residência e local de trabalho, à maneira tradicional (figura 16). No térreo, e às vezes no mezanino, ficava o

escritório da companhia. No Nobelêtage mo­ ravam o proprietário e família. Os andares de cima, quando não eram usados como de­ pósito ou continuação do escritório, eram alugados. Depois da nobreza, os industriais têxteis pertenciam ao grupo com a propor­ ção mais alta de proprietários e inquilinos na área da Ringstrasse. Em geral, evidente­ mente, eram apenas os donos das firmas mais prósperas que podiam se permitir comprar suas sedes no complexo da Ringstrasse. Dois terços das 125 empresas representadas na área empregavam mais de quinhentas pes­ soas, c dois quintos empregavam mais de mil.36

Existiam outras empresas de negócios espalhadas pela Ring, mas a tendência era a de instalarem seus escritórios em edifícios projetados como prédios residenciais. Na época em que a grande companhia burocra­ tizada começou a anunciar sua necessidade de um tipo de edifício com projeto especí­ fico, a Ringstrasse estava praticamente com­ pletada e estabelecido o predomínio do Alietpalast residencial. Só se poderiam insta­ lar escritórios novos em caso de reforma. Ainda em 1914, somente 72 dos 478 edifí­ cios de propriedade particular da Ringstrasse estavam em mãos de sociedades, e entre eles apenas 27 com escritórios instalados nas casas.35 Aqui também o desenvolvimen­ to da Ring revelou-se fruto da era do indi­ vidualismo. Os escritórios ficaram subordi­ nados às moradias nos andares superiores, as quais absorviam-nos visualmente em suas

Figura 15. Schwarzenbergplatz

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fachadas. Não se permitia que as necessidades comerciais dominassem a face dos quarteirões residenciais, nem a função social de representação que os edifícios deveriam preencher.

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Enquanto o bairro Têxtil e a área em torno da Schwarzenbergplatz apresentavam marcas de classe muito distintas, a maioria dos bairros da Ringstrasse combinava os estratos fluidos da aristocracia e alta burgue­ sia. À medida que se avançava em sentido horário ao longo da Ring, da Schwarzenbergplatz para o bairro do Ópera, a “ segunda sociedade’’ — aquela fusão entre a elite cultivada aristocrática, rentière, burocrá­ tica e de negócios — passava a

predominar, ao passo que dimi­ nuía a presença da alta nobreza. Seguindo mais adiante, até a área entre os museus e a univer­ sidade, entrava-se na zona clás­ sica do Grossbürgertum, o bair­ ro da Rathaus. Aqui moravam os pilares sociais mais sólidos do liberalismo em ascensão, como as personagens majestosas a pas­ sear pela Reichsratsstrasse (figu­ ra 10) sugerem e as estatísticas demonstram. Aí moravam os lí­ deres das finanças e negócios, rentiers, professores universitá­ rios e a maioria dos altos fun­ cionários do governo e negócios que se encontrariam em qual­ quer bairro.40 O aglomerado de construções monumentais da no­ va ordem política e cultural — o Reichsrat e a Rathaus, os mu­ seus e o Burgtheater, a universi­ dade — funcionava como um ímã que atraía a elite dirigente para morar nessa área, assim como o imperial Hofburg da velha cidade tinha atraído an­ teriormente a nobreza para se estabelecer em seus arredores.

Os apartamentos do bairro da Rathaus, ainda que

cons-Figura 16.

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truídos numa escala que faz lembrar São Petersburgo, apesar de sua pom- posidade individual, compõem um conjunto dc grande dignidade. A Reichsratsstrasse, atrás do Parlamento de Hansen e levando à Rathaus (figura 10), parece quase que uma resposta burguesa à vclba Herrcngasse aristocrática que vai até a praça defronte o Hofburg (figura 17). As fa­ chadas dos prédios de apartamentos da Reichsratsstrasse, embora

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mente individualizadas em seu pesado estilo neo-renascentista, ajustam-se entre si pelos peitoris, pela rusticação das pedras e escala de enquadra­ mento das janelas, produzindo uma perspectiva homogênea de rua com linhas de visão para os grandes edifícios públicos, a Rathaus e Votivkir- che. Tal como a Herrengasse, a Reichsratsstrasse oferece um sólido senti­ do de rua residencial. Faz contraste com a própria Ringstrasse, que dimi­ nui os edifícios tanto pela sua largura em comparação à altura deles como pela força do seu empuxo horizontal. Finalmente, os arquitetos do bairro Rathaus abafaram o comercialismo dos seus palácios de aluguel com a acomodação mais discreta das lojas e escritórios no andar térreo. Seja ocultando as fachadas de comércio ou negócios sob suntuosas arca­ das à maneira da rue de Rivoli em Paris, seja simplesmente evitando . sinais evidentes, os projetistas conseguiram uma elegância rara até na própria área da Ringstrasse. Ainda que não tão imponente como a Schwarzenbergplatz, com sua vasta praça barroca e seus edifícios total­ mente expostos, o bairro Rathaus alcançou o senso de dignidade opu­ lenta a que aspirava a elite da era liberal. Seus edifícios residenciais proporcionaram um cenário-ambiente adequado para os edifícios públi­ cos monumentais de caráter confiantemente afirmativo que constituíam as jóias da Ring da Viena liberal..

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Se a Ringstrasse encarnou em espaço e pedra um feixe de valores so­ ciais, os que a criticaram inevitavelmente voltaram-sc para questões além do plano puramente arquitetônico. A crítica estética ancorou-se em temas e atitudes sociais mais amplas. Os que percebiam dissonâncias na relação entre estilo e função na Ringstrasse estavam, de fato, levantan­ do uma questão maior, uma questão sobre a relação entre aspiração cultural e conteúdo social numa sociedade burguesa liberal. Mas a dis­ crepância entre estilo e função poderia ser abordada de outro lado. Camillo Sitte levou a sério as aspirações histórico-estéticas dos constru­ tores da Ringstrasse, e criticou o sacrifício da tradição em favor das exigências da vida moderna. Otto Wagner desferiu seus ataques a partir do ponto de vista contrário, denunciando o mascaramento da moder­ nidade e suas funções por detrás das cortinas estilísticas da história. Assim, na luta dos livros em torno da Ringstrasse, antigos e modernos investiram contra a síntese dos construtores urbanos de meados do sé­ culo. O arcaísmo de Sitte e o futurismo funcional de Wagner, ambos

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alimentaram uma nova estética da construção urbana, onde os objetivos sociais foram influenciados por considerações de ordem psicológica.

Em sua principal obra, Der Städtebau [A construção urbana, 1889], Sitte apresentou a crítica básica à cidade moderna do ponto de vista dos antigos, empregando a Ringstrasse como modelo negativo. Sitte se autodenominava “ advogado do lado artístico” , visando “ um

Referências

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