DESIGUALDADESSOCIAIS,DIREITOSEPOLÍTICASPÚBLICASDEPROTEÇÃO SOCIALNAAMÉRICALATINA:LUTASERESISTENCIAS
Rodrigo Cristiano Diehl1 Marli Marlene Moraes da Costa2
Resumo: Conjeturar Estado de orientação neoliberal, desigualdades sociais, garantia de
direitos e proteção social na América Latina no atual cenário é um desafio instigador. Sendo assim, o objetivo com o presente estudo é analisar as desigualdades sociais e a concretização de direitos na América Latina utilizando por base o processo histórico de construções e lutas até os atuais movimentos de resistências frente aos constantes desmontes dos sistemas de proteção social. Diante desse contexto da pesquisa, questiona-se: quais são as perspectivas que devem ser levantadas para analisar as desigualdades sociais e a não garantia de direitos na América Latina utilizando como base os processos de lutas, resistências e desmontes dos sistemas de proteção social? A metodologia aplicada na pesquisa está dividida em três eixos: para alcançar os objetivos inicialmente propostos será utilizado a pesquisa exploratória-descritiva; para organizar e coletar os materiais utilizar-se-á da pesquisa bibliográfica de caráter quanti-quali e; para o tratamento desses dados o método a ser empregado será o materialismo-dialético.
Palavras-chave: América Latina. Direitos. Estado. Proteção social. Resistência.
1 INTRODUÇÃO
Construir um processo dialógico com desigualdades sociais, direitos e proteção social hoje, isto é, na fase contemporânea do capitalismo marcada pelo avanço do conservadorismo e pelo domínio do capital neoliberal nos Estados latino-americanos, é um grande desafio. Portanto, pensar em direitos sociais e políticas públicas requer compreender o significado e os fundamentos que os sustentam para que seja possível atuar no combate a extrema desigualdade social, econômica e política.
Com base nas críticas ao acordo político que resultou da trajetória do fordismo e do keynesianismo na configuração das políticas da era social, ideias conservadoras (mantendo o status quo) emergiram vitoriosas e, a partir disso, serviram de base para uma grande parte dos países do mundo. Os períodos conhecidos como Tatcherismo (no Reino Unido) e Reaganismo
1
Doutorando em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa Capes. Mestre em Política Social e Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com bolsa Capes. Advogado e professor. E-mail: rodrigocristianodiehl@live.com
2
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado em Direito pela Universidad de Burgos, com bolsa Capes. Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito – Mestrado e Doutorado da Universidade de Santa Cruz do Sul. Professora, psicóloga e advogada. E-mail: marlim@unisc.br
(nos Estados Unidos) ajudaram a irradiar ideias neoliberais, transformando o Estado, pensado nesta lógica para ser mínimo, em um Estado hegemônico.
Ao mesmo tempo, nesse período, o consenso social democrático das sociedades abriu espaço para o Consenso de Washington promover, segundo Matta (2013), uma lista de contrarreformas estruturais nos serviços e em seus financiamentos. Portanto, as estratégias de contrarreforma podem ser agrupadas em dois blocos: I) as chamadas contrarreformas de primeira geração que abordaramas atividades produtivas e os serviços públicos essenciais por meio, principalmente, de privatizações e; II) contrarreformas de segunda geração voltadas para os sistemas de proteção social.
Nesse contexto, o objetivo deste estudo é analisar as desigualdades sociais e a realização dos direitos na América Latina utilizando o processo histórico de construções e lutas até a atual resistência contra os constantes desmantelamentos dos sistemas de proteção social. É importante mencionar que, ao dialogar com as desigualdades, direitos e sistemas de proteção social na América Latina, não se deve esquecer das inúmeras especificidades de cada Estado, o que neste estudo se faz é buscar reunir elementos próximos que permitam a construção de vínculos.
Na construção do trabalho, o percurso metodológico utilizado em relação aos objetivos foi uma investigação exploratória-descritiva; em relação aos procedimentos, uma investigação bibliográfica quanti-quali e, por sua vez, para a análise dos dados foi utilizado o método materialismo-dialéticopor permitir aproximações dos fenômenos naturais e sociais a partir do ponto dialético, fazendo sua interpretação, sua maneira de focalizá-los, na perspectiva de materializar um movimento real, suas contradições e forças.
Oproblema de pesquisa que circunda toda a discussão é: quais são as perspectivas que devem ser consideradas na análise das desigualdades sociais e na não concretização de direitos na América Latina, utilizando como base os processos de lutas, resistências e desmontes dos sistemas de proteção social?
2 DESIGUALDADES SOCIAIS E PROTEÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA: PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO, LUTA E RESISTÊNCIA NAS POLÍTICAS SOCIAIS
O processo de desconstrução, em nome dos ditames internacionais, dos direitos sociais que pouco foram construídos vem de vários séculos. Segundo Mattel (2013), a América
Latina possui inúmeras marcas históricas que remontam ao processo de colonização (ou exploração), onde o espaço territorial era utilizado para a função de produção agrícola e fornecimento de bens primários aos interesses da metrópole: portuguesa e espanhola. Essa lógica da colonização, de estabelecer uma estrutura produtiva, social e econômica voltada para o exterior, deixa marcas ainda presentes, como a pobreza, a concentração de renda e a exclusão social.
Nesse campo, é relevante o pensamento de Sen (2010) que, mesmo fazendo a distinção entre pobreza como falta de capacidade e pobreza como falta de oportunidades, estabelece que ambos estão intimamente ligados, uma vez que as oportunidades são um meio importante para atingir a capacidade. No entanto, a atenção deve ser focada na pobreza pela privação de capacidade, já que o aumento da capacidade de vida de uma pessoa normalmente aumentaria a capacidade de ser mais produtiva e receber uma renda maior.
Sen (2010), contudo, ao considerar a necessidade de entender a pobreza e a privação de liberdade, garante que a pobreza se tornou o principal problema da sociedade capitalista e, como resultado, o foco das políticas sociais. Deste modo, o Estado abandona a possibilidade de universalizar o acesso à serviços básicos para incorporar a redução ou o enfrentamento da pobreza por meio da igualdade de oportunidades, direcionamento e seleção de beneficiários e transferência de renda condicionada.
Entre os sistemas que ainda permanecem, prevalece a identificação com a lógica da jornada de trabalho, ou seja, a inserção no mercado de trabalho como fonte de bem-estar, capaz de libertar os pobres da pobreza e, portanto, não criar dependência de indivíduos em relação aos benefícios sociais. Dessa forma, os sujeitos passivos e ativos dos direitos sociais são responsáveis por si mesmos e pelo usuário da assistência: de titular do direito a um simples beneficiário. Segundo Stein (2017), a moralização e a individualização dos sujeitos, como princípios de ativação, visam mudar comportamentos e atitudes individuais, onde a cultura empreendedora é marcada como saída e a única alternativa à autonomia econômica.
Os sérios problemas e riscos para os sistemas de proteção social devem ser reconhecidos diante das desigualdades que o capitalismo produz e reproduz, o que constitui uma ameaça à ordem e ao trabalho social. Outro ponto de contradição está na tentativa de contrarreforma dos sistemas de proteção social que, incorporados nas políticas sociais, são o núcleo rígido dos Estados Democráticos de Direito reconstruídos: a Constituição Federal
Brasileira de 1988; a Constituição da Nação Argentina de 1994; A Constituição Mexicana de 1917, a Constituição Política da Bolívia de 2006, por exemplo, estão no centro das disputas político-ideológicas.
A política social foi constituída como uma mediação institucional político-econômica que resulta, ao mesmo tempo, das contradições e reivindicações das lutas de classes e da lógica da acumulação capitalista. Quando apresentado como um processo dinâmico explicado no movimento histórico das sociedades, é possível reconhecer a multiplicidade de perspectivas, visões e significados das políticas sociais que contestam a construção ou a (re)construção da hegemonia (SOTO; TRIPIANA, 2014).
Nesse processo de construção das políticas sociais, Cecchini (2015) ensina que nem todas são predominantemente orientadas para o fim da proteção social, embora todas tenham, em geral, dimensões de proteção social. Logo, a proteção social é a parte central da política social e, por sua vez, é a parte essencial dos regimes de bem-estar social, que consideram não apenas a ação do Estado, mas também, a operação de mercados, das famílias e das instâncias comunitárias.
A proteção social deve se materializar através de um conjunto de mecanismos e instrumentos que viabilizem os direitos sociais, como forma de abordar a lacuna no campo das políticas sociais, especialmente nos últimos anos. No entanto, juntos, é preciso tentar transpor a fratura histórica que resultou nas desigualdades sociais, políticas e econômicas observadas na América Latina a partir da relação entre trabalho e capital (MENDES; WÜNSCH; CAMARGO, 2011).
O estudo das políticas sociais é um fenômeno complexo, pois deve abranger vários aspectos, como: I) a importância do sucesso nos direitos sociais, culturais e econômicos dos segmentos mais marginalizados da população, apesar da extensão das políticas sociaisabranger todos os setores de uma sociedade; II) seus efeitos na qualidade de vida das pessoas como ser social; III) a aceitação ou não de um determinado governo por meio da coesão social, que causa, em várias ocasiões, a primazia na concepção dos interesses de determinados setores e não as reais necessidades da população e; IV) sua ligação direta com o crescimento e com o desenvolvimento econômico de um país ou região (SOTO; BORREGO, 2018).
Nesse processo de construção de políticas sociais está a proteção social que, no contexto latino-americano, pode ser entendida a partir da história de seus modelos de desenvolvimento e de seus respectivos paradigmas econômicos e sociais. Assim, Stein (2017), usando Cecchini e Martínez (2011), identifica essa evolução com base em quatro momentos: o primeiro que começa no século XIX e termina com a crise de 1929, influenciada pelo pensamento liberal, dominado pelo modelo de exportação primária.
Aqui, os indicadores sociais são caracterizados, por um lado, pela conformação das sociedades nacionais e pelo sentimento de pertencimento dos cidadãos ao seu país e, por outro, pela caridade, onde a atenção aos problemas sociais é realizada por meios da ajuda aos necessitados, seja através de organizações da sociedade civil ou através da igreja. No final da década de 1920, começaram a surgir os primeiros sistemas de proteção social inspirados no modelo universal (STEIN, 2017).
O segundo momento se estende do início da década de 1930 ao final da década de 1970 e é caracterizado pelo modelo de substituição de importações, quando as questões sociais estavam relacionadas à justiça, ordem social e seguridade social, destacando o impacto e o papel da sociedade civil organizada e dos sindicatos na luta para construir modelos melhores e mais abrangentes de proteção social.
Segundo Stein (2017), as limitações de cobertura comprometeram a perspectiva universalista da política social, priorizando a proteção contributiva de funcionários e, em termos de proteção não contributiva, restrita aos grupos mais vulneráveis. Nesse período, a gestão das políticas sociais é marcada pelo planejamento central e predominantemente pelo financiamento estatal, com pouca participação do setor privado.
O terceiro momento na evolução dos sistemas de proteção social ocorre entre o final dos anos 70 e o início dos anos 80 e tem como principais marcas: a crise da dívida pública, o déficit fiscal, as transformações do capitalismo industrial nacional para o capitalismo globalizado, financeiro e de serviços. As recomendações do Consenso de Washington e a crença de que o mercado é o melhor instrumento para designar bens e serviços caracterizam a abordagem neoliberal do crescimento externo. Austeridade fiscal, ajuste estrutural, programas de estabilização econômica destinados a promover o crescimento não levaram em consideração as desigualdades e a distribuição de renda (STEIN, 2017).
Para Stein (2017), a proteção social nesse período começa a assumir uma dupla característica, a saber: proteção contributiva e não contributiva para aliviar a pobreza extrema por meio do acesso a níveis básicos de bem-estar. Apesar da institucionalidade democrática e de algumas ações concretas do Estado na área econômica e social, a América Latina apresentou altos níveis de desigualdades e pobreza nas décadas de 1980 e 1990.
E o quarto momento do desenvolvimento histórico da proteção social construído por Stein (2017) começa em meados da década de 1990 e se estende até o presente, com base no paradigma da competitividade sistêmica, onde é necessário incorporar o progresso técnico no processo produtivo, com vistas ao aumento da produtividade. Assim sendo, as políticas sociais se tornam muito mais importantes devido às suas contribuições para a formação de capital humano, razão pela qual é considerada essencial para a competitividade dos países no médio prazo.
Nesse ambiente de expansão seletiva de políticas que materializam a proteção social que, diferentemente do que está previsto em vários textos constitucionais da América Latina, como no Brasil, não constituem uma estratégia de universalização dos direitos sociais. O que realmente acontece, segundo Barreto (2016), é que o Estado, imbuído de anseios neoliberais, intensifica o bem-estar, a mercantilização e a privatização da proteção social, ou seja, expande a assistência social, comercializa a saúde, vigia a educação, censura a cultura e restringe o acesso à previdência social por meio de contrarreformas, que favorecem a previdência privada complementar: os famosos fundos de pensão.
Nesse ponto do desenvolvimento do capital neoliberal, não se pode esquecer que a inserção de países classificados como periféricos no capitalismo também reflete a divisão internacional do trabalho, que apresenta suas marcas históricas de persistência em sua formação e desenvolvimento. Segundo Iamamoto (2015), o desenvolvimento dessas novas condições histórico-sociais metamorfoseia a questão social inerente ao processo de acumulação capitalista, expressando-a com novas determinações e relações sociais produzidas historicamente, e impõe o desafio de elucidar seu significado social na atualidade.
A análise dos sistemas de proteção social não pode ser separada de outros elementos, muito menos dos fundamentos das lutas de classes institucionalizadas (através do reconhecimento de grupos de capital e de trabalho) e do papel do Estado como garantidor que essa luta não afete diretamente o princípio da acumulação de mais-valia. Nesse contexto, a
proteção social aparece como objeto móvel, segundo Valle (2012), uma vez que, por um lado, existe a lógica da acumulação daqueles que possuem capital e, por outro, a lógica da distribuição.
Classificada como determinante na regulação das relações econômicas e sociais dos indivíduos no sistema de produção keynesiano-fordista, a proteção social, como vista, se expande pela seguridade social e materializa-se por meio de políticas sociais. A previsão ocorre como o núcleo rígido central dos Estados sociais após a Segunda Guerra Mundial. Os direitos nele previstos, baseados no modelo bismarckiano (alemão) ou no modelo beveridgiano(inglês), têm como parâmetro as relações trabalhistas e, em sua fase inicial, a garantia de benefícios básicos para quem perdeu a capacidade de trabalhar, momentânea ou permanentemente (BOSCHETTI, 2009).
Um dos desafios nesse cenário inicial foi a construção da articulação entre o problema social e a política de proteção social, para que juntos eles possam entender o contexto sociopolítico das vulnerabilidades e dos riscos sociais. O que torna relevante esse processo de reestruturação da proteção social é o fato de que, no século passado, segundo Fernandes (2007), a humanidade foi responsável, por um lado, pelo excelente progresso científico e tecnológico em diversas áreas, que proporcionou impactos positivos na qualidade de vida dos cidadãos. Por outro lado, na América Latina, esse progresso foi lento e extremamente desigual.
Sob esse manto de contradições, com base no trabalho de Valle (2012), é possível estabelecer três observações centrais: a primeira se refere ao desenvolvimento de sistemas de proteção social na América Latina, que tem como característica comum o princípio da subsidiariedade que até então orientava a ação e apenas "autorizava" o Estado a intervir na questão social quando as instituições mais próximas do cidadão, por exemplo, a igreja e outras associações religiosas falhassem.
A segunda observação indica que, desde o início da história da proteção social, ela foi segmentada em diversos microssistemas, o que acabou por privilegiar e garantir o acesso, em particular, aos funcionários que estavam vinculados a esses sistemas. Para ter essa possibilidade de ingresso, foram estabelecidos níveis de serviço devido à condição profissional e, com o desenvolvimento de mecanismos de representação, a prestação de serviços relacionados ao bem-estar individual e social passou a ser do tipo corporativo
(VALLE, 2012). E a terceira observação sobre os sistemas de proteção social no contexto latino-americano é que seu principal objetivo era proteger o provedor da família (geralmente o marido/pai), subtraindo os outros membros da casa da falta de proteção do Estado.
Atualmente, a proteção social, incorporada na seguridade social e nas políticas sociais, pode ser constituída como elemento central da proteção, considerando o mecanismo legítimo de reconhecimento e enfrentamento das desigualdades sociais e econômicas na América Latina, proporcionado por padrões de disparidades em relação à produção, à acumulação e à concentração da riqueza socialmente produzida (MENDES; WUNSCH; SILVA, 2014). Isso demonstra a importância de entender a relação entre sociedade, Estado e classes sociais nas mais diversas interfaces de interlocução.
De maneira diferente, Cortés e Flores (2014) definem a proteção social a partir de três dimensões e indicadores principais: o primeiro seria a cobertura horizontal ou a proporção da população que de alguma forma está coberta pela seguridade social; o segundo seria a cobertura vertical ou benefícios oferecidos aos membros (no sistema de beneficiários) e; terceiro, proteção social financiada ou mensurada para que as despesas não aumentem a desigualdade de renda.
Como elemento presente no desenvolvimento social, a proteção social deve ser entendida em um contexto de tratamento da dívida social herdada do capitalista, que é transcendida com uma abordagem de totalidade capaz de capturar a diferenciação e superá-la para alcançar a justiça social. Nesse contexto, o projeto corporativo socialista não reduz a proteção dos indivíduos, mas o coloca como protagonista do desenvolvimento social com o objetivo de expandir seu potencial (COUTO, et al., 2018).
Mendes e Wünsch (2011) apontam que as contínuas mudanças que envolvem a esfera do trabalho na sociedade atual guardam repercussões diretas na proteção social e que também estão relacionadas a mudanças no papel e na orientação dos Estados, principalmente se contextualizadas no início das décadas de 1980 e 1990, com o advento do paradigma neoliberal. Esse novo paradigma oferece a oportunidade de revelar a incompatibilidade no tripé capital-trabalho, Estado e proteção social, liderada pela urgência de criar novas formas de produção.
Esse não-fechamento é o que permite uma ampla análise dos fenômenos envolvidos, como a visualização das duas consequências mais sérias das políticas neoliberais na América
Latina: a expansão das desigualdades sociais e o colapso do aparato industrial nacional (SALAMA, 1995). Os efeitos negativos, em grande parte gerados pelos governos neoliberais, podem ser apresentados como o resultado claro do fracasso do próprio Estado em manter a superexploração, por um lado, e, por outro, a luta infrutífera contra as desigualdades sociais.
O passo inicial para sua problematização é discutir os principais modelos de materialização da proteção social na América Latina, levando em consideração o centro de ação, os momentos históricos listados acima e os ensinamentos de Fleury (1994), que são: assistência, seguro e a seguridade. O primeiro modelo tem seu núcleo formado na Assistência Social e surge em contextos socioeconômicos nos quais o mercado é o agente controlador das demandas sociais, e cabe a cada indivíduo perseguir seus interesses individuais, como a aquisição de bens e serviços, que conduzem a uma cidadania invertida. Os valores predominantes são liberdade e individualismo, visando à igualdade de oportunidades (FLEURY, 1994).
O segundo modelo, chamado de Seguro Social, tem como elemento central a possibilidade de cobrir determinados grupos ocupacionais por meio de uma relação contratual, ou seja, uma cidadania regulada. A única característica distintiva do seguro privado é o órgão que o sancionou, neste caso o Estado. O atendimento aos trabalhadores é realizado por meio de contribuições anteriores, o que não elimina uma forte burocracia que busca a lealdade dos beneficiários (FLEURY, 1994).
O terceiro e último modelo tem como elemento constitutivo da proteção social a Seguridade Social, na qual o Estado, através de um conjunto de políticas públicas3, governamentais e unificadas, visa garantir as condições básicas da humanidade e o ideal de justiça sociais, incluindo renda, bens e serviços. Esse sistema, segundo Fleury (1994), permite a redistribuição da riqueza socialmente produzida e, portanto, a correção de desigualdades sociais extremas, vinculando a cidadania universal aos povos latino-americanos.
3Utiliza-se o termo política pública neste trabalho com base no seguinte conceito: políticas públicas são respostas do poder público à problemas políticos. Ou seja, as políticas designam as iniciativas do Estado (governos e demais poderes públicos) para atender demandas sociais referentes às questões comuns à população, sendo executadas diretamente por órgãos públicos ou delegadas às organizações da sociedade civil ou privadas (SCHMIDT, 2018).
TABELA 01: Modelos de proteção social (assistência, seguro e seguridade)
MODALIDADES ASSISTÊNCIA SEGURO SEGURIDADE
Denominações Residual Meritocrático Institucional
Ideologia Liberal Corporativa Socialdemocracia
Princípio Caridade Solidariedade Justiça
Efeito Discriminação Manutenção Redistribuição
Status Desqualificação Privilégio Direito
Finanças Doações % Salário Orçamento público
Atuaria Fundos Acumulação Repartição
Cobertura Alvos Ocupacional Universal
Benefícios Bens/Serviços Propor. Salarial Mínimo vital
Acesso Teste meios Filiação Necessidade
Administração Filantrópico Corporativo Público
Organização Local Fragmentada Central
Referência PoorLaws4 Bismarck Beveridge
Cidadania Invertida Regulada Universal
Fonte: FLEURY, 1994, p. 108.
O modelo ideal de proteção social enfoca a ideia de seguridade e de cidadania universal, especialmente considerando as peculiaridades do Estado latino-americano no capitalismo periférico. No entanto, em vários países da região, a política social foi desenvolvida não pela presença do Estado de Bem-estar (WelfareState), mas pela existência, no processo de construção, de assistencialismo e clientelista, eliminando a sua universalização e o reconhecimento pleno dos direitos de cidadania (MARCOSIN; SANTOS, 2010).
A problematização da proteção social em tempos de crise de capital e neoliberalismo não deve ser resumida simplesmente na discussão entre crise econômica e crise de proteção social; deve ser historicizada, politizada e traduzida em sistemas de proteção social,
4PoorReliefAct (lei de amparo aos pobres) foi instituída em 1601 na Inglaterra e permitia de juízes da Comarca instituição um imposto de caridade a ser pagos por todos os ocupantes e usuários de terras. O valor arrecadado era centralizado nas paróquias (que faziam o auxílio direto aos indigentes) e administrado por inspetores nomeados pelos juízes.
entendendo-a em um mundo de mudanças (como regra, com retirada de direitos) nas relações de trabalho e no movimento de resistência das classes. Como esferas constitutivas da relação entre o Estado e a sociedade, os sistemas de proteção social são determinados por um conjunto de necessidades que surgem no mundo da produção, mas não param por aí (MOTA, 2008).
Nesse contexto, o reconhecimento dos elementos presentes nos processos de afirmação e expansão dos sistemas de proteção social na América Latina, bem como, os destinados à sua redução, desmonte e descaracterização por meio de contrarreformas, são essenciais na luta para reduzir desigualdades sociais e na luta contra a desproteção social. A chave é analisar a proteção social como o piso e não como o teto a ser alcançado para garantia dos direitos sociais; no entanto, essa construção está ameaçada por contrarreformas estruturais impostas pelo capital neoliberal.
3CONCLUSÃO
O estudo sobre desigualdades sociais, direitos e proteção social no Estado latino-americano baseia-se na necessidade de problematizar teorias eminentemente decoloniais que compreendem e, levam em consideração, as especificidades e a diversidade das nações. Nesse novo contexto de proposta, pode-se dizer que as sociedades latino-americanas devem lutar contra discursos e ações, especialmente as neoliberais, que visam reduzir ou até exterminar os sistemas de proteção social e afastar-se qualquer possibilidade de garantia de direitos dos cidadãos.
É essencial perceber a exploração e o domínio como uma maneira de conhecer a realidade, pois o capital não pode ser revelado no mundo dos fenômenos sem essas ações. O capital tem entre suas promessas a de promover um mundo com homens livres e iguais que, mesmo violando, devem reconstituí-lo. Existe, portanto, a criação de um mundo imaginário (ficção) que cobre e distorce a essência de seu ser (mundo real), onde o capital precisa se apresentar de maneira distorcida, para não revelar, à primeira vista, o que é feito. Esse fenômeno é chamado fetichização do capital, que acaba criando um mundo encantado: o capital como uma fábula.
Em virtude de representar uma das principais fontes de provisão de bem-estar social nas sociedades latino-americanas, os sistemas públicos de proteção social são contraditoriamente o objetivo de políticas neoliberais já conhecidas, mas agora travestidas
com outros fenômenos (neoconservadorismo, por exemplo), que promovem seu desmantelamento e descaracterização, o que implica diretamente na concretização de direitos e na expansão de vulnerabilidades e desigualdades.
A construção de um processo dialógico com as desigualdades, a pobreza extrema e os sistemas de proteção social na América Latina foi um desafio, especialmente na atual fase das sociedades em que o conservadorismo, mais uma vez, dita as regras, agora sob o comando do neoliberalismo. Quando se trata da realidade latino-americana e da necessidade de entender os fenômenos produzidos e reproduzidos aqui, fala-se de uma região que possui um gasto público médio inferior a quinze por cento do PIB, enquanto a taxa de pobreza e indigência é alta: 28,2% e 11,3%, respectivamente (CEPAL, 2019).
Nesse cenário, o objetivo deste estudo foi responder a seguinte problemática: quais são as perspectivas que devem ser levantadas para analisar as desigualdades sociais e a não garantia de direitos na América Latina utilizando como base os processos de lutas, resistências e desmontes dos sistemas de proteção social?Onde, devido a esse movimento de contrarreformas no Estado e nos sistemas de proteção social, que até então eram guiados pelos princípios de igualdade, equidade e justiça distributiva, mostra-se um ambiente de contratempos e retirada de direitos. Contraditoriamente, as ideologias, valores e práticas que se opõem à garantia de direitos ganham espaço, impondo limites à realização de políticas públicas que beneficiem a todos, com base em uma nova administração de recursos públicos.
Como perspectivas para a compreensão das desigualdades sociais e a garantia de direitos na América Latina, é necessário verificar a tentativa de "comercializar" a vida em sociedade, usurpando os direitos de cidadania e, portanto, diminuindo o papel e a participação do Estado na proteção social. Nesse ponto, afirma-se que a realidade, os fatos e os eventos precisam ser desmascarados, para que haja um longo caminho de construção entre aparência e a essência, entre a parte e a totalidade, entre o singular e o universal.
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