O cientista da música
Naquele começo da noite de 2 de fevereiro de 1997, um Fiat Uno seguia do Recife para Olinda. Cumpria um trajeto corriqueiro, sem nada de especial, exceto o trânsito intenso, quando às 18h30, inesperadamente, outro carro o fechou, jogando-o de encontro a um poste em frente à Escola de Aprendizes de Marinheiros. O cinto de segurança falhou, e o motorista sofreu um impacto que resultou em afundamento do tórax, múltiplas fraturas faciais e traumatismo
craniano. Foi socorrido, mas só chegou ao Hospital da Restauração cerca de uma hora depois, apesar da distância tão curta. Chegou tarde demais. O Brasil acabava de perder um dos seus mais expressivos músicos, um artista criativo e ousado, um autêntico inovador. O cantor e compositor Chico Science, líder da Banda Nação Zumbi e um dos criadores do manguebeat, sincretismo da música popular nordestina com o
rock'n'roll,
estava morto aos 31 anos de idade.
Dizem que é nos menores frascos que estão os melhores perfumes, e a discografia de Chico Science parece comprovar.
Com a promissora carreira interrompida prematuramente, ele gravou apenas dois discos ― Da Lama ao Caos
e
Afrociberdelia
―, mas neles imprimiu uma obra marcante. Só para você fazer ideia, ambos os discos são parte da lista dos
Cem Melhores Discos da Música Brasileira , da revista
Rolling Stone
, elaborada a partir da escolha de sessenta jornalistas, produtores e estudiosos de música nacional.
Da Lama ao Caos, o primeiro deles, lançado em 1994, é tido como um verdadeiro clássico da música, apresentando um som revolucionário, em que mescla rock com embolada, maracatu, psicodelia e música afro. Foi o disco que inaugurou a cena
manguebeat
, bem como um dos responsáveis pela abertura para o rock and roll
dos anos 1990. Está na décima terceira posição na lista dos Cem Melhores Discos da Música Brasileira
.
O segundo, Afrociberdelia, que ocupa o décimo oitavo lugar da mesma lista, funde influências marcantes no som e nas ideias da Banda Nação Zumbi, quais sejam a influência africana objetivamente pela música e pelos toques de candomblé ou, de maneira indireta, pela
preponderância do ritmo sobre a melodia; pela cibernética, como ferramenta de composição e de comunicação; e pelo piscar de olhos para o psicodelismo, através do contato com o
rock
inglês dos anos 1960, o dub
jamaicano e o funk
norte-americano de meados dos anos 1970.
Como consequência desse trabalho criativo e superativo, a mesma revista Rolling Stones prom oveu a Lista dos
Cem Maiores Artistas da Música Brasileira
, reservando a Chico Science o décimo sexto lugar de uma lista dos cem melhores cantores, compositores, instrumentistas e maestros. Para dar uma dimensão da importância da lista, basta dizer que os dez primeiros eram Tom Jobim, João Gilberto, Chico Buarque, Caetano Veloso, Jorge Ben Jor, Roberto Carlos, Noel Rosa, Cartola, Tim Maia e Gilberto Gil.
Mas como começou essa carreira brilhante? ― você pode estar perguntando. Vamos à resposta.
Começou no alvorecer dos anos 1980. Chico Science, então um adolescente, cerca de catorze anos de idade, integrava grupos de dança e hip-hop, passando, mais tarde, a fazer parte de
algumas bandas de música inspiradas no s
oul , no ska , no funk
seus tambores, chocalhos e gonguês, aconteceu em 1991, quando Chico Science mesclou o ritmo daquela percussão com o som de sua antiga banda. Estava formada a Banda Nação Zumbi, e definitivamente marcado o encontro com o sucesso.
A partir daí o grupo passou a se apresentar no Recife, fez nascer o manguebeat, e em 1993, após breves apresentações em São Paulo e em Belo Horizonte, despertou o interesse dos meios de comunicação. O primeiro disco, sucesso de crítica e de público, projetou a banda nacionalmente, enquanto o segundo,
Afrociberdelia
, igualmente sucesso, confirmou a criatividade de Chico Science e da Nação Zumbi. O grupo, então, excursionou pela Europa e pelos Estados Unidos, onde, com sucesso em todos os níveis, tocou com Gilberto Gil, que, a propósito, reputava Chico Science, tanto quanto o grupo Olodum e o compositor Carlinhos Brown como o que surgira
de mais importante na música brasileira nos últimos vinte anos .
É lamentável que Chico tenha morrido tão cedo. Uns dois meses antes daquele acidente conversamos e ele me dizia que estava pensando em fazer frevos, em tentar unir o popular ao erudito (não exatamente de acordo com os cânones armoriais). Pois é, Jimi Hendrix e Chico Science, em 2001 qual seria o som desses dois astronautas libertados?
Palavras de José Teles, crítico de música do Jornal do Commercio.
Já a declaração do jornalista Renato L. é um lamento.
Mais de uma década sem o cientista dos ritmos. A passagem do tempo aumenta a saudade. Não é todo dia que se encontra um amigo desses: bem-humorado, positivo, generoso. E o que dizer do artista? Uma jóia rara. Capaz de buscar inspiração nas quebradas mais diversas. Tipo os quadrinhos. Francisco França pegou de Corto Maltese, o personagem de Hugo Pratt, as costeletas e certo tom romântico-aventureiro. Do desenhista argentino Loustal sampleou o nome para seu melhor projeto paralelo. Os livros também foram bons companheiros: a Geografia da Fome, de Josué de Castro, dividiu sem ciúmes a cabeceira da cama com os clássicos da ficção-científica.
Francisco França foi um filho legítimo da modernidade. Na concepção do Mangue, entrou com o corpo e o cérebro. Não foi um “intuitivo”, capaz apenas de “sacadas”. Pelo contrário: esse maracatu pesou uma tonelada por conta da complexa operação estética envolvida na sua formatação. A síntese Zumbi/Zulu – encontro de várias nações – trouxe Palmares, a África e o Bronx de Afrika Bambaataa para o mesmo espaço imaginário. Ainda permanece uma
articulação de mestre.
Palavras do cantor e compositor Fred 04:
Semana passada, indo para uma festa em Olinda, senti um incômodo arrepio. Varreu-me o espírito a repentina lembrança de que fazendo aquele mesmo percurso, de carro, quatro anos atrás, indo para a mesma festa – a prévia do bloco "Enquanto Isso Na Sala da Justiça" –, meu parceiro Chico Science, por descuido de seu anjo da guarda, distraiu-se para a morte. Santo compromisso! – exclamaria o anjo Robin aos prantos.
A sequência de imagens, sons, enfim, o filme sombrio que me vem à mente sempre que a tragédia emerge da minha memória está longe de ser razoavelmente suportável. É como se o absurdo da condição humana viesse à tona para me fazer sentir um palhaço miserável,
esperando a minha hora, na antessala do nada.
O pior é saber que não tem apelação. Acho até que foi essa, mais ou menos, a sensação que eu tive alguns minutos depois de receber, de minha esposa (por telefone, eu estava no México, com a banda, fazendo as malas para voltar de uma turnê) a notícia. "Deve ter havido um
engano", "chegando lá em Recife eu vou reclamar, alguém vai ter que explicar isso direitinho".
O cantor Lenine disse, certa vez, que Chico Science era o Bob Marley pernambucano. Não viva para que a sua presença seja notada, mas para que a sua falta seja sentida.
.., dizia o astro jamaicano. Com Chico Science, o astro pernambucano, aconteceu que sua presença inovadora era fortemente notada e sua ausência é melancolicamente sentida.