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A liberdade política em Maquiavel

Political freedom in Machiavelli

José dos Santos Filho

Professor de Filosofia na Unimontes, mestre em Filosofia pela UFG, doutorando em filosofia pela UFG, Montes Claros, MG – Brasil, e-mail: santosfil@hotmail.com

Carlos Eduardo Ruas Dias

Graduado em filosofia pela Unimontes, especialização em filosofia pela Unimontes, professor de Filosofia na Rede Estadual de Ensino em Minas Gerais, Montes Claros, MG – Brasil, e-mail:

carloseduardordias@yahoo.com.br

Resumo:

A teoria política maquiaveliana fornece novos limites ao pensamento político. A partir dos escritos de Maquiavel o trato com as coisas do Estado passou a ser analisado por uma espécie de estadística ou, podemos dizer, de um modo específico de tratar dos fenômenos no campo da política. O que discutiremos a seguir é o modo como o secretário florentino trata a temática da liberdade. Na verdade trata-se da análise de uma liberdade política relacionada à vida numa republica. Como as instituições desse tipo de governo podem garantir ao povo esse benefício e quais as implicações dela no ânimo do povo?

Palavras-chave: Maquiavel. Liberdade. Política. República.

Abstract:

The Machiavellian political theory provides new limits on political thought. From the writings of Machiavelli, the deal with the state of things came to be examined by a kind of statecraft or, as we can say, in a specific way of dealing with the phenomena in politics. What we discuss below is how the Florentine secretary deals with the theme of freedom. In fact, it is the analysis of a political freedom related to life in a republic. How such governmental institutions can assure the people that kind of benefit and what the implications of it on the people´s state of mind?

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1- O problema da fundação do corpo político

A fundação é um momento crucial da história de um Estado. É nesse momento que se delineiam as primeiras características desse corpo político que terá grande influência para toda a história desse lugar. Maquiavel lança o seu olhar para a questão da força fundante de uma cidade e discorre sobre algumas de suas diversas nuances. Na obra O príncipe ele se utiliza dos primeiros onze capítulos para apontar o proceder da fundação de um Estado por parte de um príncipe. Segundo De Grazia (1993), o próprio Maquiavel entende que há pelo menos duas formas básicas de fundação de um novo corpo político: A primeira é de um governante que anexa uma nova região ao seu Estado e a segunda é de um príncipe novo proveniente da vida privada1, alguém que conquista um Estado sem ser governante de outro.

A primeira vez que o príncipe novo surge na obra é no capítulo terceiro2, quando ele vai tratar dos principados mistos. Na verdade o autor pretende mostrar que para o sucesso da fundação de novas instituições em um Estado, há uma série de empecilhos a serem superados, como Bignotto diz: “Maquiavel procura mostrar que todos os que pretendem criar novas leis terão de vencer uma série de obstáculos, independente da forma que pretenda dar ao novo regime”. (BIGNOTTO, 1991, p. 128).

É possível verificar também que logo no primeiro capítulo dos Discorsi,3 Maquiavel começa falando sobre a fundação de um Estado como uma necessidade que os habitantes de determinada região têm de se resguardar e, por isso, se unirem em uma dada região onde se possa viver com segurança. É em sua História de Florença que ele faz alusão à fundação de Veneza como um exemplo. Dentre os cidadãos que fugiam das guerras no centro da Itália e se uniram em pequenas ilhas no litoral leste da península Itálica, estavam os paduanos 4 que fundaram uma cidade livre. (MAQUIAVEL, 1998, p.70) Esse foi um exemplo da fundação de uma cidade para possibilitar a defesa de seus habitantes. Porém, a fundação de um Estado vai muito além de uma simples criação de uma nova cidade. A fundação também passa pela construção de uma estrutura política e a sua manutenção para garantir a estabilidade do Estado. Podemos ver a necessidade do uso da opressão logo nesse primeiro

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No caso daquele príncipe proveniente da vida privada, ele enfrentará as dificuldades da fundação no interior de seu Estado, que é o único que possui. Como De Grazia (1993) deixa claro, esse príncipe terá de enfrentar sérios problemas no início de seus exercícios como fundador de novas instituições para aquele Estado, seja ele a pátria de origem do novo governante, seja ele um Estado de nova formação.

2 Esse é, inclusive, o título do referido capítulo: De principatibus mixtus ou Dos principados mistos.

3 Trata-se dos Discurso sobre a primeira década de Tito Lívio (2007) que aqui citaremos sempre como Discorsi. 4 De acordo com a lenda da fundação de Veneza, foram paduanos que se uniram em um lugar seguro para

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19 momento em que a figura do príncipe novo surge. Isso porque o povo o força a ser enérgico, como o secretário mostra: “Os homens mudam de bom grado de senhor, acreditando que assim melhorarão de estado, e tal crença os faz pegar em armas contra aquele; mas nisso se enganam, pois mais tarde constatam por experiência que sua situação piorou”. (MAQUIAVEL, 2010, p. 49).

Essa “decepção” do povo com a situação de uma nova instituição pode levá-lo a atentar contra as novas instituições. Assim, Maquiavel chama a atenção talvez para a mais importante de seus conselhos: “O príncipe novo, seja com suas tropas, seja com as infinitas violações que uma conquista recente implica” (MAQUIAVEL, 2010, p. 49) deve saber agir de tal modo que não atraia o ódio dos seus cidadãos.5 Por outro lado, o novo governante não pode tornar-se amigo de um povo que trai o seu soberano facilitando a entrada de um invasor em seu Estado. O novo príncipe deve se postar de modo cauteloso, não pode ter esses cidadãos como amigos, mas também não pode lhes infligir corretivos violentos, devido ao fato de ter certa obrigação para com eles, afinal de contas, eles deverão ser a primeira base para a fortaleza desse novo Estado.

Porém todas as dificuldades de um príncipe novo podem ser superadas, uma vez que este efetue as suas ações com prudência. Pois como o próprio secretário diz: “observadas prudentemente, as coisas expostas acima fazem um príncipe novo parecer antigo, tornando-o de imediato mais seguro e mais firme à frente do Estado que se estivesse há muito tempo em seu comando" (MAQUIAVEL, 2010, p. 129).

A justificativa maquiaveliana para essa afirmação vem do fato de que o príncipe novo é mais observado, ou seja, todos se voltam para ele analisando e comparando o seu comportamento com o do antigo soberano. Por isso o uso da prudência é tão importante, o governante que saiba conquistar o bom olhar do povo mantém a segurança de seu Estado, uma vez avaliado melhor do que seu antecessor é possível estabelecer um laço de obediência por parte do povo mais estreito do que o que tinha com aquele que perdera o Estado. O fundador de um Estado vive, portanto, dois lados de um mesmo campo, mudando de um para o outro com muita rapidez. Segundo Bignotto, o sujeito que pretende fundar em um lugar novas instituições estatais “passa, numa mesma fração de segundos, da pura negatividade para a posição de criador” (BIGNOTTO, 1991, p.127).

5 O secretário deixa explícito em diversas partes de O príncipe: “ evite atrair o ódio” (MAQUIAVEL, 2010, p.

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2- A manutenção do poder e a coesão do corpo político

Tendo vencido e conquistado o controle de uma região o príncipe passa a ser o fundador de um novo Estado. Agora a grande preocupação é exatamente a manutenção do seu poder. É importante deixar claro que Maquiavel inicia um processo de ruptura com a tradição de pensamento político e por isso não vê dificuldades em desprezar as fórmulas previamente estabelecidas das teorias filosóficas da tradição que concebiam o campo político a partir de um ideal de governo. Vejamos como ele nos apresenta os argumentos para que esse novo príncipe possa conquistar a adesão e a coesão do corpo político fundado.

Maquiavel começa ressaltando a importância da construção de uma boa imagem por parte do príncipe. Trata-se de como o governante aparece para seu povo. Qual é o juízo que o povo faz de seu príncipe. É a partir do capítulo XV até o capítulo XIX de O príncipe, que encontramos o tema sendo discutido com mais detalhes em nosso autor. O problema da imagem que se constrói de um príncipe já é um tema antigo da teoria política, mas sem dúvida, o modo como Maquiavel trata da questão o distancia radicalmente de tudo que se escreveu sobre política. Logo no capítulo XV Maquiavel expressa o seu desejo de escrever algo útil ao governante que lê a sua obra, então, se decide por apresentar a verdade efetiva da coisa. Sendo assim, a sua escrita vai se basear na realidade dos fatos da política e não em um ideal de Estado como se via outrora.

Diferentemente dos que o precederam nos estudos dos fatos políticos, o secretário quer mostrar que não há necessidade do governante deter em si todas as qualidades necessárias a um homem de poder:

A um príncipe, pois, não é indispensável ter de fato todas as qualidades acima descritas, mas é imprescindível que pareça possuí-las; aliás, ousarei dizer o seguinte: tendo-as e observando-as sempre, elas são danosas, ao passo que, aparentando tê-las, são úteis. (MAQUIAVEL, 2010, P. 106).

Como podemos ver, o governante não precisa possuir e sim parecer ter todos aqueles valores que o povo quer que ele possua. Nesse ponto poderemos ver despontar no pensamento maquiaveliano uma retórica da impostura.6 Mas o que vem a ser isso? De acordo com Berlin (2002), o secretário não desconsidera as coisas vistas como boas ou más. Mas quando se trata de pensar no campo da política esses valores não são aplicáveis. Na verdade o seu desejo é estabelecer o espaço próprio da política e dos princípios ordinários que em geral

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21 os homens observam e deste modo estabelecer uma diferença entre os dois padrões, um padrão compatível e um incompatível com a vida política. Sobre isso Berlin apresenta:

O que Maquiavel distingue não são valores especificamente morais de valores especificamente políticos; o que ele faz não é emancipar a política da ética ou da religião; o que ele institui é algo que possui um impacto ainda mais profundo – uma diferenciação entre dois ideais incompatíveis de vida e, portanto, duas moralidades.

(BERLIN, 2002, p. 314).

Esse ponto no pensamento maquiaveliano é bastante delicado, pois ele deixa transparecer que os valores do príncipe não são compatíveis com os valores do cristianismo, ou seja, os valores que são necessários para fundar e manter uma unidade estatal são incompatíveis com os valores do cristianismo e que são observados pelo povo em geral. Essa tese vai de encontro com os princípios políticos defendidos pelos pensadores que desenvolveram suas teorias antes do secretário e que pensaram um governante regendo o seu Estado a partir da tábua de valores cristãos. Esses valores, externos à política, que regem a vida cotidiana de todos os homens não podem ser os valores que regem a conduta de um príncipe. Sendo assim parece surgir no pensamento de Maquiavel um novo ethos. Essa nova ética, por sua vez, vem reger as ações do príncipe, pois o governante deve aprender a lançar mão de meios pouco apreciados pela ética cristã, para dirigir o seu Estado.

O secretário não tem a intenção de fazer com que o povo abra mão de seus valores, o que ele deseja é fazer uma distinção daquilo que é praticável e daquilo que não o é. Sobre isso Berlin diz:

Os valores de Maquiavel, gostaria de repetir, não são instrumentais, mas morais e últimos, e ele exige grandes sacrifícios em seu nome. Por eles rejeita a escala rival – os princípios cristãos de ozio e da submissão –, não, realmente, por serem deficientes em si mesmos, mas por serem inaplicáveis às condições da vida real. (BERLIN, 2002, p. 326).

Por isso, aquele príncipe que ambiciona fundar ou conservar um Estado deve estar atento a esse elemento novo que o nosso autor traz para o campo do debate acerca das coisas políticas. Estamos falando do problema da aparência do príncipe a fim de receber do povo a aprovação devida para a manutenção do seu regime. No capítulo XVIII de O príncipe, ele apresenta uma análise interessante sobre as duas formas possíveis de se julgar e a forma de como se processa o juízo do povo. Segundo o secretário, há dois modos de julgar: o primeiro modo se dá pelo olhar e um segundo modo de julgar que se procede pelo tocar:

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Os homens em geral julgam mais com os olhos que com as mãos; porque todos são capazes de ver, mas poucos, de sentir; todos veem aquilo que você parece, poucos tocam aquilo que você é; e estes poucos não ousam opor-se à opinião de muitos, que contam com a majestade do Estado para defendê-los. (MAQUIAVEL, 2010, p. 106).

Adverse (2009) explica que esse exemplo dado por nosso autor mostra que a visão é sentido operacional no campo político, que se liga à aparência. Ele apresenta a visão como o sentido mais sintético, mais preciso, mais eficaz e ao mesmo tempo mais passível de engano, a visão pode sofrer influência dos afetos do sujeito, suas fraquezas, seus sentimentos, seus interesses. Podemos compreender os juízos da seguinte forma, o juízo por meio do olhar se dá à distância, o olhar tem um alcance maior e isso faz com que o juízo, por assim dizer, possa ocorrer sem a necessidade de uma proximidade. Isso faz com que o sentido do olhar seja facilmente ludibriado, pois, com a distância – o que pressupõe esse tipo de julgamento – o indivíduo que observa perde os detalhes e isso faz com que ele chegue a conclusões, por vezes falsas. Por sua vez, o juízo por meio do tato é próprio do príncipe. É o meio pelo qual o governante obtém o maior controle sobre o seu Estado, isso faz com que ele tome consciência do que ocorre ao seu redor tendo a possibilidade de conhecer a verdade efetiva da coisa política. O julgamento por meio das “mãos” é mais próximo da realidade, por isso é dever do governante que queira manter o seu Estado aprender a julgar por meio das suas “mãos”. Essa questão é de singular importância, pois partindo dessa forma de juízo, pode-se manter e se extinguir um governo. O príncipe deve saber se postar frente ao povo, para que este construa um conceito positivo do seu soberano. Sendo assim, partindo de sua posição a plebe estabelece um juízo acerca do seu governante e, deste modo, este pode manter-se no poder e executar todas as medidas que julgue necessárias para a criação e manutenção das instituições estatais.

3- Os conflitos e a liberdade política

O conceito de liberdade política é muito caro para o secretário florentino, pois é por esta via que um Estado pode alcançar a sua grandeza. Nesse ponto podemos nos perguntar por que em um autor como Maquiavel, o Estado, uma comunidade política, tem maior garantia através da liberdade dos cidadãos? Podemos compreender a liberdade como o elemento fundamental para que um Estado se mantenha forte. E, ainda que haja tumultos e discórdias, a liberdade política é a finalidade do Estado. Como nos explica Lefort:

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A liberdade política se entende por seu contrário; é a afirmação de um modo de coexistência, em certas fronteiras, de tal sorte que ninguém tem autoridade para decidir assuntos que dizem respeito a todos, isto é, para ocupar o lugar do poder. A coisa pública não pode ser a coisa de um só ou de uma minoria. A liberdade, posta como finalidade, implica a negação da tirania, quaisquer que sejam as variantes. Implica, por isso, a negação de toda instância que se arroga o saber do que é o bem comum, quer dizer, a negação da filosofia quando ela pretende fixar as normas da organização social, conceber o que é a vida boa para a cidade e para o indivíduo na cidade. (LEFORT, 1999, p. 170).

Nesse caso o sujeito se depara com uma situação que seria impossível de ocorrer em um regime despótico. Esse fenômeno, a liberdade política, se podemos assim dizer, é, portanto, um elemento crucial para os corpos político. E aqui podemos destacar uma relação estreita entre liberdade e republicanismo. Um governo aos moldes da república efetua todas as suas deliberações voltando-se para o princípio de liberdade política. É estabelecida uma relação estreita entre o povo e a vida política da cidade, nesse contexto podemos ver o motivo da liberdade ligado à presença popular nas coisas referentes ao cuidado com a coisa pública. A liberdade política se manifesta em caráter externo e em caráter interno em relação ao Estado. De acordo com De Grazia, a liberdade em caráter externo designa o aspecto de independência perante as outras nações, destaca a sua soberania nos assunto que lhe diz respeito. A liberdade em caráter interno, por sua vez designa a descentralização do poder, ou seja, a participação dos cidadãos nas decisões. É importante destacar que nesse caso não há súdito, pois este não tem parte no governo de seu Estado, mas apenas observa as delegações de seu príncipe, que tem poder supremo sobre tudo e todos. O cidadão, por sua vez, tem voz ativa e o direito de se posicionar nos assuntos de sua cidade. Sobre isso De Grazia esclarece: “internamente, nos assuntos domésticos, significa que uma república em que um corpo considerável de cidadãos partilha o privilégio de um príncipe, de uma aristocracia ou oligarquia, a saber, legisla por e para si mesmos” (DE GRAZIA, 1993, p. 197).

O momento da fundação, como dissemos anteriormente, é de singular importância para o Estado. As instituições que daí decorre são a segurança de Estado. São as instituições oriundas da fundação que podem ou não garantir ao povo a sua liberdade política. As leis são a segurança do Estado e nelas está contida a possibilidade de manutenção da unidade estatal. Maquiavel mostra nos primeiros capítulos dos Discorsi, quando trata da fundação dos Estados o exemplo de Roma, que desde a sua origem tem a liberdade presente na vida da cidade. Isso pode atribuir às boas condições que os seus fundadores encontraram para fundar o Estado. Deste modo podemos ver em Skinner: “é essencial que uma cidade tenha tido um ‘começo

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24 livre, sem depender de ninguém’ para que possa ter qualquer perspectiva de alcançar uma glória cívica” (SKINNER, 1988, p. 85).

Mas, não há qualquer segurança de estabilidade num regime cuja finalidade seja a liberdade. Atento à forma como os homens vivem, seja num principado, e sobretudo numa república, nos Discorsi Maquiavel mostra que os homens são, de modo geral, egoístas e que “nunca fazem bem algum, a não ser por necessidade.” (MAQUIAVEL, 2007, p. 20) Em uma cidade os homens têm os seus interesses particulares e, por isso, eles se unem e formam os partidos, facções de cidadão com ideias comuns, unidos em prol de uma bandeira. Essas diferenças existentes em uma república, aparentemente trazem maus desdobramentos, conflitos que desgastam as instituições do Estado podendo arruiná-lo. Ainda nos Discorsi, Maquiavel enfatiza que: “em toda república há dois humores diferentes, o do povo, e o dos grandes, e que todas as leis que se fazem em favor da liberdade nascem da desunião deles” (MAQUIAVEL, 2007, p. 22). Os dois humores existentes em um Estado são de fundamental importância para a vida da república, pois deles nascem os conflitos, estes, por conseguinte, geram a liberdade política. Assim sendo, devemos considerar que em uma cidade os humores representam uma pluralidade de partidos que tendo desejos diferentes com relação à direção que o Estado vai tomar, entra em disputa para defender a sua posição.

Daí se conclui que a vida em uma república tem um dinamismo extremamente elevado, que faz com que as coisas em uma república se movam de modo acelerado. Por isso, as leis se fazem necessárias para que as vontades sejam contidas e que haja harmonia na convivência entre os homens. A geração desse instrumento de coesão estatal nasce a partir desse animo egoísta do ser humano. Então a função das leis, segundo o nosso autor é que os homens ajam como se fossem bons (MAQUIAVEL, 2007, p. 20). Esse mecanismo do Estado que chamamos lei, existe com a finalidade de afinar os homens para a vida em comunidade. Mas, curiosamente, além de garantir os bons hábitos e a segurança daqueles que as observam, as leis tem uma função muito importante para a saúde da organização política. Como mostramos anteriormente, os homens por si mesmos são egoístas, empreendem ações que primam apenas por seu próprio benefício. O que os torna aptos à vida social são as leis, isso se deve ao fato de que as leis freiam os desejos dos homens e os faz agir de modo a contribuir para que o Estado se mantenha estável.

Essas diferenças existentes em uma república, aparentemente trazem maus desdobramentos, conflitos que desgastam as instituições do Estado podendo arruiná-lo. Porém, o que acontece é o contrário, conforme o secretário aponta, os conflitos da república romana foram o motivo pelo qual aquele Estado conseguiu alcançar tal nível de grandiosidade. Da luta

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25 de interesse entre essas duas classes surgiram as instituições que tornaram possível viver em liberdade. O que é importante para a nossa análise é o fato de que Roma, por meio de suas leis, soube assimilar todos esses tumultos e usá-los em seu favor. Isso se apresenta a nós como o resultado do desejo de liberdade do povo, uma vontade que o leva a se levantar contra qualquer tentativa de extingui-la. Isso é um fato vital para a república, pois, com os conflitos nascem os germes que vão garantir a possibilidade de uma vida livre. Assim nascem as instituições que vão garantir a liberdade política daquele povo. As leis surgidas a partir das desordens internas de um Estado servem como uma espécie de aparador de arestas que regula os humores de plebe e de nobres, não permitindo que um se sobreponha ao outro, deste modo garantindo a liberdade em seu caráter político para todos os homens. A mobilidade gerada pelas instituições do Estado e a possibilidade de uma vida livre, proporciona a semente da prosperidade para a república. Havendo discórdia, há movimentos para que não haja a sobreposição de um grupo sobre o outro. O elemento liberdade presente nas instituições de um Estado proporciona algo impar, de grande valor e que merece destaque, o vigor visto nos homens é de extremo benefício para o Estado. O fato de não haver uma classe que oprima o povo e a tentativa daqueles mais poderosos de fazê-lo gera movimento na vida política daquele lugar, pois os que têm a sua liberdade ameaçada vão lutar para preservá-la.

Esse é o diferencial da república, a igualdade entre os cidadãos e a possibilidade de uma atuação popular nas coisas relacionadas à direção das políticas internas. Com isso, a liberdade torna-se um fator que traz os homens para dentro da vida política da sua cidade, pois dentro de seus domínios há homens inteirados da importância de serem livres, assim sendo, esses homens sempre se organizarão para manter intacta a sua liberdade. A liberdade para uma cidade representa tudo o que os homens precisam para que a sua voz seja ouvida de algum modo. Nenhuma força externa pode coagir uma comunidade que seja regida dessa forma, onde os homens são parcela importante das decisões. Sobre isso Skinner expõe: “significa que dizer de uma cidade que ela tem liberdade é o mesmo que dizer que ela se mantém independente de qualquer autoridade que não seja a da própria comunidade. Assim, a liberdade acaba por se identificar com o autogoverno” (SKINNER, 1988, p. 84).

Nesse contexto podemos ver que o princípio da república está contido na autonomia da cidade deliberar suas leis segundo as necessidades dos homens. Isso torna a república um regime sedutor aos olhos do povo, isso se faz devido à visão da liberdade que esse regime proporciona aos seus seduzidos. A liberdade é um fato em uma república. A sua presença deve ser marcante desde a fundação do Estado, ou a saúde daquela república estará comprometida. Caso não haja elementos de liberdade nos primeiro momentos da vida do

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26 Estado, alcançar a excelência da república se tornará sempre mais difícil, nesse caso os homens deverão mostrar a sua capacidade de lutar para transformar as circunstâncias desfavoráveis em propícias para a edificação de uma república.

4. Conclusão

O pensamento maquiaveliano é inovador. Maquiavel provoca uma ruptura no pensamento político renascentista. A sua análise partindo da verdade efetiva da coisa, como ele mesmo diz, oferece novos contornos ao estudo da política. Baseando-se nos fatos recorrentes no mundo político, o secretário aproxima a política do homem e destaca a sua importância e os seus efeitos na vida cotidiana dos cidadãos. A temática trabalhada acima mostra como o secretário traz a política para o campo prático. A sua análise, passa necessariamente pelo conceito de liberdade. Este é o fator que atrai os homens para as coisas do Estado, pois, aqueles que são livres defendem a sua liberdade com todas as suas energias. Esse fenômeno de mobilização em prol da liberdade proporciona a força do Estado. E foi pensando num regime de governo aos moldes da republica que Maquiavel encontrou as condições de possibilidade para se efetivar esse círculo virtuoso. A ideia de res publica, coisa pública, proporciona no cidadão um senso de responsabilidade para com o Estado e as coisas a ele relacionadas. Essa experiência pode proporcionar o gozo de uma liberdade que não se encontra em outras formas de governo.

5. Referências

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BERLIN, Isaiah. Estudo sobre a humanidade: uma antropologia de ensaios. Trad. Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das letras. 2002.

BIGNOTTO, Newton. Maquiavel republicano. São Paulo: Loyola, 1991.

DE GRAZIA, Sebastian. Maquiavel no inferno. Trad: Denise Bottman. São Paulo: Cia das Letras, 1993.

LEFORT, Claude. Maquiavel e a veritá effetuale, IN: Desafios da escrita política. São Paulo: Cia das Letras, 1999.

MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad: Martins Fontes. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

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____________________. O príncipe. Trad. Maurício Santana Dias. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad: Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia das letras: 1978.

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