As ações da censura na ditadura civil-militar à MPB
Carolina Mary Medeiros1
Resumo: Este artigo destina-se a mapear e refletir brevemente sobre as formas de ações da censura durante o período da ditadura civil-militar instaurada no Brasil na década de 1960, principalmente no que tange à Música Popular Brasileira (MPB) criada no referido período histórico.
Palavras Chave: Ditadura Civil-Militar – Censura – Música Popular Brasileira.
1 Professora do Departamento de História do Colégio Pedro II – Campus Engenho Novo II. Integrante do
Curso de Especialização em Ensino de História da África do Departamento de História em parceria com a PROPGPEC do Colégio Pedro II. Mestre em Sociologia pelo PPCIS da UERJ. Graduação em História pelo IFCS-UFRJ.
“Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir Por me deixar respirar, por me deixar existir Deus lhe pague Pelo prazer de chorar e pelo estamos aí Pela piada no bar e futebol pra aplaudir Um crime pra comentar e um samba pra distrair Deus lhe pague.”
(Chico Buarque. Deus lhe pague. 1971).
Esse artigo destina-se a mapear, brevemente, as formas de ações da censura
durante o período da ditadura civil-militar instaurada no Brasil a partir da década de 60,
principalmente em sua relação com a Música Popular Brasileira produzida no período.
Entende-se por MPB, um segmento dentro do campo de produção musical mais amplo no
Brasil que privilegia, sobretudo neste período, letras de canções com forte cunho de
crítica ou crônica social, bem como parcela significativa das canções tendem a traduzir a
luta política de oposição à ditadura. Este segmento da produção de canções é consumido
principalmente por setores jovens de classe média urbana intelectualizada que dialogam
diretamente com as canções, fazendo delas suas trilhas sonoras, seja para a luta política,
seja para a revolução cultural e comportamental que promoviam.
Antes de uma análise específica das ações da censura à música popular brasileira,
é importante estabelecer o conceito de censura e, claro, compreender a censura
estabelecida durante o período militar a partir dos anos 1960. O histórico de ações de
repressão e censura no Brasil é bastante longo. As produções intelectuais e artísticas
sempre foram motivos de vigilância no país e instrumentos reguladores como lei de
imprensa e classificação etária são constantes no cotidiano brasileiro. Não só como
da sociedade brasileira que consideram o ato de vigiar o que é dito em livros, jornais,
teatro, música e cinema como atos normais e necessários.
Este braço repressor de censura do Estado de exceção estabelecido no Brasil do
período atuava em toda a produção cultural brasileira, seja ela audiovisual, teatral,
televisiva, cinematográfica ou musical. Nada que fosse produzido poderia ser difundido ao
público sem o crivo violento da censura e neste caso, não tratamos somente da violência
simbólica, mas por muitas vezes física. Entender as formas e mecanismos de ação do
Estado repressor é um trabalho fundamental e infinito. Estas reflexões são uma breve e
pequena contribuição.
Retornando à questão específica da censura, a ditadura militar estabelecida nos
anos 1960, não criou mecanismos da censura, mas os adequou aos seus interesses. Em
14 de março de 1967, entrava em vigor um conjunto de dispositivos de legais reunidos na
Lei n.5.2502. Estes dispositivos ficaram conhecidos como Lei de Imprensa e esta foi a
primeira regulamentação de censura estabelecida pelo regime. A censura à imprensa,
objeto de numerosos estudos3, se estabelecia como uma censura prévia aos textos,
sobretudo, de jornais e revistas. Aliás, é válido relembrar que a censura prévia era uma
atividade legal do Estado desde a Constituição de 1934, que introduziu, no sistema
jurídico, a censura prévia aos espetáculos de diversões públicas. A Constituição de 1937
aumenta a área de atuação da censura para a radiodifusão, o que foi ratificado pela
constituição de 1946 pós-abertura política com o fim do Estado Novo.
Os anos 1960 e 1970 consolidaram a indústria fonográfica e a televisiva, A música,
por exemplo, teve seu período de maior crescimento e junto à televisão marcou presença
2 BRASIL. Presidência da República. Lei no 5.250, de 9 de fevereiro de 1967. Lei que regula a liberdade de
manifestação do pensamento e de informação. Fonte: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L5250.htm
3 Temos trabalhos importantes sobre a censura à imprensa podemos destacar: KUSHNIR, Beatriz. Cães de
guarda: jornalistas e censores, do AI-5 a constituição de 1988. São Paulo. Bomtempo. 2004. SOARES,
Gláucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 4, n º 10, 1989.
constante na vida dos habitantes das grandes cidades. Neste sentido, a produção artística
ou de diversões públicas tornavam-se uma preocupação ainda maior durante os governos
militares. Diferentemente da ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945 com Getúlio
Vargas, no âmbito da qual o intuito de construir uma hegemonia através do consenso era
muito maior, chegando a criar um órgão de propaganda do governo, Departamento de
Imprensa e Propaganda − o DIP −, na ditadura militar de 1964, apesar de tentativas como
“Brasil ame-o ou deixe-o” e “Eu te amo meu Brasil, eu te amo...”, o que vigorava durante o
regime militar era a repressão dura e crua.
(...) contrariamente ao Estado Novo, no período militar estudado nunca houve, efetivamente, uma política de capitalizar as manifestações culturais para seu projeto de hegemonia, nem através da AERP, no governo Médici, nem através do SCDP (Serviço de Censura e Diversões Públicas) da Polícia Federal, tendo a censura papel apenas silenciador...” (MOBY, 1994).
Mesmo em períodos de exceção, de autoritarismo, o Estado sempre tenta, através
do consenso, legitimar o seu poder, dando uma aparência de legalidade ao ilegal e
ilegítimo. A “revolução vitoriosa”, como o golpe de 1964 era intitulado pelos governos militares posteriores, precisava ser institucionalizada e a próprio termo revolução dava
esse caráter legitimador do Estado, à medida que este só pode ter legitimação quando
eleito ou quando fruto de uma revolução vitoriosa.
Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se legitima a si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir o novo governo. Nela se contém a força normativa inerente ao Poder Constituinte. Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normalidade anterior à sua vitória.4
O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) existia desde os anos 1940,
mas com caráter regional. Grupos de censores em cada Estado do país eram contratados
para análise da produção para “diversões públicas”, ou seja, canções, peças de teatros, filmes para cinema, programas de televisão programação radiofônica e atividades
circenses. Nestas análises, a censura em forma de veto ou sugestões para possíveis
modificações interferia diretamente na produção. Em 1961, o governo Jânio Quadros
através do Decreto 50.5185, concedeu às unidades Federativas o direito de censura,
mantendo o caráter regional das ações de censura.
Em 1965, iniciou-se um processo de centralização da atuação censória. Esta
tendência foi mantida pelo Decreto nº. 43, de 19666, que estabeleceu a exclusividade da
união para a execução de censura. Mas foi a partir de 1972 que o SCDP foi transformado
em Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), por meio do Decreto n. 70.665
(junho de 1972). A criação do DCDP ratificou a tendência de centralização do processo de
análise e censura dos produtos de diversões públicas. Desta forma, a produção cultural
deveria ser mandada diretamente para este órgão pertencente ao Departamento de
Polícia Federal (DPF) com sede em Brasília. O caso das canções e peças de teatro, de
acordo com a região, o DCDP redirecionava o produto cultural para os setores regionais
que continuaram existindo com o mesmo nome: Serviço de Censura de Diversões
Públicas (SCDP). O SCDP cuidava da produção cultural dos Estados sob o comando
central de Brasília. No caso das peças de teatro, por exemplo, o texto era censurado
pelos censores do DCDP em Brasília, mas eram os técnicos de censuro do SCDP
Estadual que acompanhava os ensaios gerais e também davam seus pareceres, podendo
ampliar a censura já feita ao texto, ou somente, confirmar que, nas apresentações, os
vetos foram mantidos. Os censores regionais funcionavam, neste sentido, como
responsáveis diretos pela fiscalização da censura, mas sempre, subordinados à censura
federal.
5 BRASIL. Presidência da República. Decreto nº 50.518, de 2 de maio de 1961. Diário Oficial da União,
seção 1 - 2/5/1961, página 4020 (Publicação Original).
6 BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 43, de 18 de novembro de 1966. Fonte:
No caso das canções, apesar da centralização imposta a partir do Decreto Lei
56.510 de 19657, que unificava os critérios para liberação das letras de músicas que
deviam ser censuradas somente em Brasília, os censores regionais também atuavam. A
partir do Decreto Lei, o requerente da censura seria o autor ou outorgante, anexando o
original de letra e duas cópias carbônicas sem borrão ou rasura. As verificações da
censura teriam prazo de 30 dias. Ficava claro, que os departamentos destinados à
repressão às artes e artistas se relacionavam intensamente. Assim, tanto o DCDP como
SCDP faziam o serviço de censura, através de seus técnicos, mas enviavam dossiês de
artistas mais visados e censurados que passavam a ser vigiados pelos DOPS (Delegacia
de Ordem Política e Social). O DOPS se encarregava de enviar relatórios bimestrais das
atividades dos artistas à DCDP. O DCDP também pedia ao DOPS a operação de
apreensão de discos, como ocorreu com o LP de Chico contendo Apesar de Você. Em
alguns casos, os artistas eram intimados pelos DOPS para dar explicações sobre suas
canções. Chico Buarque recebeu diversas intimações do DOPS, tendo que prestar
esclarecimentos sobre algumas de suas canções na Rua da Relação aqui no Rio de
Janeiro. Segundo o compositor: “Eu conhecia todos lá na Relação. No começo ficava tenso, depois acostumei, reservava sempre algum tempo, caso viesse a ser chamado.”8
O ambiente se era de asfixia generalizada. À medida que o tempo foi passando, as
ações da censura começaram a ser mais rígida, assumindo o seu auge a partir de 1968,
com o governo de Médici, representante da chamada linha dura das Forças Armadas, foi
o “golpe dentro do golpe” que institucionalizou os ideais e princípios da “revolução” e continuou a “obra revolucionária”. Governando através de Atos Institucionais, em dezembro de 1968, a linha dura do governo decreta o Ato Institucional n 5, o AI-5:
7 BRASIL. Presidência da República. Decreto Lei que aprovou o Regulamento Geral do Departamento
Federal de Segurança Pública. Diário Oficial da União, seção 1, 30/7/1965, Página 7470 (Retificação).
8 Entrevista de Chico Buarque em 1971. In: BAHIANA, Ana Maria. Nada será como antes: a MPB nos anos
Esse modelo político-econômico de modernização, baseado no trinômio segurança-integração-desenvolvimento e apoiado no grande capital privado e estatal, no arrocho salarial, na cassação das liberdades civis e numa rígida censura, ficaria conhecido por “milagre brasileiro” e só iria dar os primeiros sinais de exaustão em 1974. (MOBY, 1994, p. 52)
Acabou-se o último sopro de liberdade que ainda se podia ter. Através dessa
medida, os militares poderiam invadir casas, prender suspeitos, torturar para conseguir
confissões, nomes de outros colegas participantes de movimentos contra o governo
imposto pela “revolução”. Iniciou-se uma caça aos elementos considerados subversivos e a possíveis suspeitos. Todo e qualquer ato subversivo deveria ser reprimido para o
bem-estar da nação e para que se desse continuidade a obra revolucionária iniciada com o
golpe em 1964. O AI-5 visou, portanto, combater:
Atos nitidamente subversivos, oriundos dos mais distintos setores políticos e culturais, comprovam que os instrumentos jurídicos, que a Revolução vitoriosa outorgou à Nação para sua defesa, desenvolvimento, e bem-estar de seu povo, estão servindo de meios para combatê-la e destruí-la.” 9
Tudo deve passar por uma censura prévia tanto no meio artístico como na própria
imprensa. Notícias como sucessão presidencial, possibilidade ou necessidade de práticas
democráticas e violação de direitos humanos devem ser vetadas. Proíbe-se ainda que se
reclame da censura ou que se discuta sua legitimidade, críticas ao governo e registro de
atividades subversivas. Ainda mais notícias vindas do mundo, sobre comunistas e
exaltação da imoralidade e, principalmente do homossexualismo. O Brasil que se queria
criar e difundir pelos meios de comunicação era um país cujo regime não se esgota, com
um mercado sempre próspero, sem problemas sociais maiores, sem homossexuais nem
comunistas. Um país da ordem, sem conflito.
Não se deve supor simplesmente que a censura era formada por ordens ridículas
de policiais despreparados, apesar da arbitrariedade contatada em muitos casos. Esta
9 BRASIL. Presidência da República. Preâmbulo do Ato Institucional n 5, de 13 de dezembro de 1968.
ideia difundida pelo senso comum durante e após o período da repressão política se
mostra na maioria dos casos infundada. Por trás dos policiais havia pessoas competentes
que se orientavam pela ideologia do regime. É nesse sentido que vemos documentos
como as notas mandadas à imprensa sobre as regras gerais da Censura, mostrando o
que vetar. Tais notas eram enviadas ora em nome da Polícia Federal, ora com os próprios
nomes de militares como foi o caso de General Antônio Bandeira, Coronel Moacir Coelho
e General Canepa (GASPARI, 1978).
Segundo essas notas mandadas constantemente à imprensa, ficavam vetadas
quaisquer notícias sobre a inconformidade com a censura de qualquer tipo; campanhas
de revogação dos Atos Institucionais, principalmente o AI5; contestação ao regime;
campanha de descrédito sobre política habitacional e mercado de capitais; tensão entre
Governo e Igreja e agitações nos meios sindicais e estudantis; publicidade sobre nações
ou pessoas comunistas; acusação de uso da violência por parte dos Órgãos de
Segurança; crítica sobre a situação econômico-financeira; notícias de choques armados
entre policiais e terroristas; pronunciamento de determinados políticos (especificado nos
pareceres) da Câmara; noticiar mortes ou prisão de elementos subversivos; notícias sobre
as atividades de Segurança Nacional; notícias sobre passeatas, manifestações, reuniões,
assembleias de estudantes. Fica claro, que o Estado, em suas instituições repressoras,
sabia exatamente o que queria censura. O que devia ser calado, silenciado, para que um
discurso de moralidade e fé nas instituições militares gritasse mais alto.
É importante fazer um parêntese sobre a ação dos censores. Em alguns estudos
ela aparece como despropositada, aleatória e ignorante, enfatizando erros absurdos e
famosos cometidos pelos censores. É famoso o relato de apreensões de livros como A
capital de Eça de Queiroz no lugar de O Capital de Marx. Em outros textos, a censura
ultra-competentes e muito bem orientados para que nada que interferisse nos preceitos
conservadores dos militares passasse. Esta dubiedade é bastante significativa à medida
que, apesar de como vimos, os órgãos responsáveis pela censura serem bastante
equipados e organizados em hierarquias rígidas como o SCDP, o DCDP e o DOPS, a
censura efetivamente dependia das ações de técnicos de censura que não
necessariamente eram graduados para tal trabalho, ou e, principalmente, também
estavam sujeitos as suas preferências e concepções. Um grau de subjetividade deve ser
visto como pertencente a todo o aparato de repressão. Neste sentido, apesar das
tentativas de uniformizar e centralizar a censura a partir do DCDP, os departamentos
censores sofriam com grande falta de critérios já que estavam também sujeitos a
impressões pessoais e subjetivismo.
Além disso, o número de censores não era tão grande ou suficiente para abarcar
toda a produção cultural. Havia limitações técnicas significativas. Em 1973, o número de
censores somavam 34 em Brasília, trabalhando pelo DCDP. Em 1978, formavam 45
censores, chegando aos 59 em 1981. Neste mesmo ano, somados os censores da DCDP
com todos os outros técnicos de censura dos Serviços de Censuras regionais formavam
um total de 221. As dificuldades técnicas eram tantas que em 1974, a Academia Nacional
de Polícia promoveu um “Curso de Transformação” para interessados em se tornar censores.
Odette Martins Lanziotti foi técnica de censura durante quase toda a década de
1970 e trabalhava especificamente com letra de músicas. Aposentada da Polícia federal
desde 1980, a ex-censora de 85 anos contribui para os estudiosos com depoimentos
interessantes para pensar nesta dimensão mais subjetiva das ações da censura.
Muitas vezes, a gente reprovava a música, mas se sentia como se estivesse se prostituindo, porque não concordava com aquilo. Mas os censores tinham de ter o máximo de cuidado. Recebíamos muitas orientações que deviam ser seguidas. Quem aprovasse uma música que
depois fosse reprovada em Brasília tinha de responder processo interno. (...). Os censores eram saco de pancada. Recebiam ordens e tinham de executá-las. Recebíamos orientações dos chefes. Algumas vezes, a recomendação era prestar mais atenção na política, no duplo sentido. Outras chamavam atenção para a apologia das drogas, para a preservação dos bons costumes. As autoridades tinham supremo cuidado, às vezes até em excesso. (LANZIOTTI, 2005)
Estes depoimentos esclarecem uma série de fatores interessantes. Apesar de
algumas canções serem censuradas por técnicos regionais que trabalhavam para o
SCDP, a vigilância sobre eles em Brasília através do DCDP era rigorosa. Em muitos
casos o clima de hierarquia e vigilância gerava um excesso de zelo que acabava vetando
além do necessário estabelecido pelo próprio regime. Eram comuns também os conflitos
entre os órgãos de censura, sobretudo o SCDP de São Paulo e do Rio de Janeiro, onde a
produção cultural era mais intensa e suas relações com o DCDP com sede em Brasília.
Em outro depoimento a censora Odette Lanziotti deixa escapar como a
subjetividade também era um fator importante no ato de censurar. Em entrevista ainda
para o Estado de São Paulo, quando ouvia por telefone trechos dos pareceres que
assinou, perguntou ao repórter,
Não tem aí uma música chamada Dois homens? Sou louca para encontrar essa música. Era uma letra muito inteligente, bem elaborada, mas eu sentia algo que não podia aprovar. Li de cima para baixo, de baixo para cima e demorei muito a descobrir o que era. Não me lembro dos versos, mas fazia apologia a dois homens juntos. Nunca mais vi esta música. (LANZIOTTI, 2005)
A partir de 1968, tendo sido decretado em dezembro deste ano o Ato Institucional
nº 5 em que a linha dura militar golpeia o governo, a repressão chegou ao seu clímax. A
censura se acirrou, a tortura entrou na ordem do dia, e o que ocorreu no campo artístico
foi a diáspora cada vez maior de artistas e intelectuais de um lado, e as tentativas de
sobrevivência cultural camuflada e disfarçada em espaços mínimos, de outro.
Em relação ao campo da música especificamente, a política federal foi mais dura,
canalizando força para o movimento político, vide canção de protesto, quebrando o
silêncio e a paz dos cemitérios. Dessa forma, maior força de protesto, maior repressão. Como declarou Gilberto Gil em entrevista ao Pasquim de março de 1970: “As aves daqui não gorjeiam como as de lá - mas ainda gorjeiam.”
A abertura de Geisel trouxe à tona, com o afrouxamento da censura, o debate
sobre as consequências de uma política de controle rígidos dos meios de comunicação,
em termos de desenvolvimento social. Iniciou-se um debate sobre a censura em si e suas
consequências sociais. Nesse debate, são relevantes os artigos de Gustavo Dahl ao
Opinião em março de 1975. Diz ele:
Subordinada à área do Ministério da Justiça e vista de um ponto de vista funcional, a competência da cultura é exclusivamente policial. (...) crescendo no organismo que representa dentro da população a autoridade do Estado, a censura tende a comportar-se dentro dos métodos e normas desse mesmo organismo. Ou seja, a censura proíbe ou corta baseada na mesma fonte de direito que permite o uso de armas pelos policiais ou fecha com grades as prisões: a meta é a defesa da sociedade como um todo e a repressão aos que estejam fora da lei (DAHL, 1975, parte I).
É à população como um todo que a censura se dirige. Suas conotações são
sociais, na medida em que atinge a todo um público dos meios de comunicação. Diferente
de um assaltante que é preso, pois as consequências referem-se só ao assaltado, ao
assaltante e a sua família. A censura produz cultura. Deixa de ser meramente policial
quando analisa aquilo que é bom ou ruim para a população,
Não é possível deixar de constatar em suas intervenções uma proposta de comportamento humano, uma filosofia de vida. Esta proposta se manifesta tanto no que é aprovado pela censura quanto no que ela condena, e termina formando um sistema, que é ele mesmo integrante da cultura nacional. (...). Na sociedade atual, a censura sempre presente na criação ou expressão, participa do processo de informação ou da elaboração artística, conjuntamente com o produtor de cultura. (DAHL, 1975, parte I).
Informação e cultura que demonstram a visão que o governo tem do país. Tal
concepção vai ao encontro de nossa ideia sobre a censura como co-autora imposta no
cultural seja feita a partir de um determinado discurso de ordem, moralismo e manutenção
das estruturas sociais, ainda que desiguais. Da mesma forma, este conceito abre espaço
para um aspecto produtivo da censura que obriga os autores a consumir essa produção e
a produzir segundo estas regras. A respeitabilidade da obra, dos autores e da tradição de
seu trabalho não é suficiente para sobrepor-se aos critérios repressivos. Além disso, o
censor não pode se separar de sua condição de brasileiro e, assim sendo, se vê retratado
nos filmes, peças e músicas.
No momento em que o censor censura, este cruzamento de função legal com sua subjetividade o leva a censurar a si mesmo. Queira ou não queira, pelo simples fato de ser brasileiro, daquele ser um produtor cultural de seu grupamento social, de sua nação, o filme ou peça ou música que estão sendo censurados são dele também. Há na censura um componente de auto-agressão cultural muito forte, justificada pela necessidade de manutenção da ordem. (DAHL, 1975, parte II.)
A criatividade, a invenção tem um compromisso etimológico com o novo, pois isso
está na raiz da atividade poética. A formação de novos valores, a invenção de novas
formas de expressão. A censura se compromete com a conservação, conservar formas e
valores já adquiridos, mantendo a ordem, dessa forma, pela via de um comportamento
estático a contrapor-se ao comportamento dinâmico da atividade poética.
Outro aspecto da análise é sobre o conceito de subdesenvolvimento do povo que
estaria contido na censura, já que se pensa na incapacidade da população adulta do país
de se ‘proteger’ dos atentados ao seu pudor e da subversão da ordem pública (que também é sua). É preciso que a censura faça essa proteção, assim, não só uma
concepção de desenvolvimento, mas também de paternalismo está presente.
Um fato que a própria censura evidencia é sobre a utilidade social da arte e sobre a
importância da arte no período de ditadura. Ou seja, não se censuraria tanto aquilo que
não tivesse relevância. Os departamentos de censura sabiam o quanto a música era um
... às vezes me passa pela cabeça se a música, mesmo a música de forma mais revolucionária, teria mesmo condições de alterar, em alguma coisa, o processo político. Agora proíbem tanto que sou obrigado a acreditar que uma música, uma peça de teatro, um filme, importam, de fato, dentro de um contexto geral. Essa é uma impressão de fora para dentro, causadas pelas proibições. (CHICO BUARQUE, 1976)
E ainda − ele transmite como é complicado ser supervisionado pela censura:
Há uma geração que nasceu dentro da censura, para a qual o certificado de liberação é tão normal e necessário quanto a carteira de identidade. Para mim, para uma geração que se criou quase sem censura, é chocante ter que mandar textos, às vezes muito íntimos - toda criação requer um entrega muito particular -, para um funcionário examinar, dizer se pode ser divulgado ou não. (CHICO BUARQUE, 1976)
Cabe ressaltar, ainda, que muitos compositores, ainda que tendo produzido com
status e locais diferentes dentro do campo musical, como Gonzaguinha (Luís Gonzaga
Jr.) Tayguara, Milton Nascimento, Jards Macalé, Ivan Lins, Caetano, Gilberto Gil, dentre
outros, tiveram que aprender o jogo da censura para aí sim conseguir produzir em tempos
de repressão. Ou seja, para transgredir a ordem é preciso conhecê-la. Seria preciso, pois
reconhecer o jogo da censura e entrar nele para poder driblá-lo. Desta forma, se
estabelecem os diálogos entre as ações dos censores, sob a imposição dos
departamentos de censura, e a produção cultural. É neste sentido, que o conceito de
co-autoria se insere. Não que o diálogo ocorra num mesmo sentido. Produtor musical e
censores não estão do mesmo lado, não falam a mesma língua e não tem o mesmo
objetivo. Mas como o diálogo é imposto e inevitável, a voz produzida pelos censores e
departamentos de censura se impõe na co-autoria da produção cultural. Duas canções,
uma chamada Geraldinos e Arquibaldos de composição de Gonzaguinha, e outra
chamada Aprendendo a jogar, de composição de Guilherme Arantes, mostram isso
perfeitamente, ou seja:
(...) Matilda, Matilda, no campo do adversário É bom lutar com muita calma
Vivendo e aprendendo a jogar Nem sempre ganhando Nem sempre perdendo,
Mas aprendendo a jogar. (1980)
As formas de lutas variavam como nos mostra Moby (1994), mas em todas elas − sejam as que primam pela metáfora e sutileza nas letras como é o caso das canções de
Chico, Milton Nascimento, Tayguara, Ivan Lins, sejam as que lutam de forma mais direta
como as de Gonzaguinha (apesar desse compositor notificar na canção Geraldinos e
Arquibaldos que era preciso mais cautela), seja pela canção marginal de Jards Macalé e
Torquato Neto − era preciso reconhecer a obviedade do período, ou seja, vivia-se numa ditadura militar que colocava toda a forma de manifestação artística sob censura e
repressão.
É sempre válido frisar que as várias tentativas dos compositores de refazer a
música, não eram para agradar a censura, ou para pôr outra letra na mesma melodia,
mas para refazer a letra para que, mesmo tendo sido modificada, transmitisse a mesma
mensagem desejada pelo compositor. Assim, o jogo continuava sempre, a censura vetava
versos, impunha outros, e os compositores aprendiam seu jogo para na próxima canção
manter a mensagem desejada através de uma forma que satisfizesse ao gosto dos
censores. A censura tentava modificar o conteúdo e os artistas, mudavam a forma para
manter o conteúdo.
Nesse trecho da entrevista que Chico fez à Revista Veja em 1971, fica claro essa
ligação de reconhecer a censura e da própria introdução, extremamente impositiva e
forçada, da censura no momento de criação artística. A censura arromba a porta da
canção brasileira, não só porque interdita, porque impede e porque cala, mas porque
impõe o que tem que ser feito, o que pode ser feito e o que deve ser feito, como uma
trecho se torna interessante, nesse sentido, porque mostra como a censura passa a atuar
diretamente na produção da música. Ou seja, Chico passa a compor tendo em vista o
espírito da censura. Ele transmite:
É claro que cheguei à autocensura. Mas, dentro desse limite que já me coloquei, eu acho que ainda tenho campo para fazer o negócio. Esse tipo de música eu tenho feito, que para mim é uma coisa nova, é a razão de eu fazer um disco novo. Elas estão dentro do limite, que, eu acho, no espírito da censura, podem passar. Agora, se eles me fizerem recuar mais, eu paro. Quando eu mando três músicas para a censura e me liberaram uma, essa não me dá vontade de gravar. Não é só o problema de ter que fazer 36 músicas para completar um Lp - o que me dá um trabalhão. É que vai ficar uma visão mutilada e o que me interessa realmente é mandar o recado inteiro.” (CHICO BUARQUE, 1971)
No show Phono 73, produzido para divulgar o cast MPB da gravadora Phonogram,
o microfone de Chico entrou em pane na hora em que ele tentou dizer: “Não me deixaram cantar minha música. Não faz mal, faço outras” (MOBY, 1994, p. 136). Se referia a canção Cálice composta em parceria com Gil e vetada pela censura. A perseguição a
Chico foi implacável e se tornou antológica na história da resistência à ditadura militar.
Chico assim como Milton começou a se utilizar de uma linguagem metafórica, hermética,
que visava colocar suas mensagens nas entrelinhas, na linguagem de frestas.
Milton Nascimento padecia de mal semelhante. No Lp Milagre dos Peixes é
interessante notar as táticas para expressar suas emoções, usando a voz como
instrumento musical e assim derramar todo o conteúdo emocional do que estava vivendo,
sem o auxílio da palavra, interditada por esse parceiro inesperado - a censura. A censura
vetou as letras de Hoje é dia d’el Rei; Escravos de Jó; Cadê, e Diálogo entre Pai e Filho. Por “estar curtindo no momento exatamente essas músicas”, Milton decidiu gravar apenas as melodias, superpondo-lhes ruídos, gritos lamentações, ainda que isso, às vezes,
agredisse os arranjos. Milton desabafa: “Fica para outra vez. Não vamos parar de compor por causa de todas essas dificuldades”. (SOUZA, 1973). Chico também, como veremos, se utilizava deste mesmo mecanismo. Para parte do público consumidor de MPB,
sobretudo jovens urbanos mais intelectualizados, a melodia sem letra evidenciava a
intervenção da censura.
Gonzaguinha, outro exemplo no campo da música de luta contra a ditadura,
declarou que as rádios recebiam sugestões para não tocarem suas músicas. Pedia ao
público em seus shows que divulgassem suas músicas no boca a boca como única forma
de ver sua obra divulgada. A repressão política, dessa forma, se une a indústria cultural
contra a MPB. Algumas gravadoras, como é o caso da Odeon, receberam ameaças de
perderem seu registro caso lançassem determinados Lps. O caso refere-se a um Lp de
Tayguara, que, enquanto era cantor de canções românticas nos festivais, não fora
molestado. É válido ressaltar a ambiguidade deste importante ator na relação que se
pretende analisar entre as ações de censura, as canções e os produtores culturais: as
gravadoras. A posição desta parte industrial da cultura se tornou ambígua dado o objetivo
mercadológico maior. Ou seja, quando os vetos se tornavam maiores, ameaçando os
lucros, como no caso de Tayguara, a indústria cultural sucumbia aos desígnios das
instituições censoras.
Esta análise aponta para um aspecto importante que não pretendo aprofundar
neste momento artigo, mas é válido ressaltá-lo. As ações da censura para alguns
compositores contribuíram para a produção de um capital simbólico importante no campo
musical (BOURDIEU, 1996). E também revertido em capital financeiro para as gravadoras
já que compositor de protesto era, como no caso de Chico Buarque, venda garantida aos
consumidores de MPB que viam na arte uma possibilidade de luta e incentivo para o
enfrentamento à ditadura militar. Chico, como exemplo, começou como um compositor
popular e estourou com sucessos como a banda, gerando um lucro garantido. Diante das
mudanças em sua trajetória, numa proposta de enfrentamento político maior, como vimos,
BOURDIEU, 2002) de compositor maldito era muito consumido por parte do público que
lutava contra a ditadura. Para outros compositores, como foi Tayguara, as ações de
censura foram devastadoras, impedindo carreiras e silenciando sua arte.
Um caso interessante que evidencia não só a repressão e a censura que invadiam
o país, mas ainda a importância do campo musical no período, importância esta
considerada e muitas vezes usada pela ditadura, foi a visita de Caetano Veloso ao Brasil,
que estava exilado em Londres. Isso ocorreu em 1971 quando Caetano voltou do exílio
para participar das comemorações dos 40 anos de casamento dos pais. Foi pego no
aeroporto e submetido a uma “entrevista” de 6 horas, na qual, além de tentarem obrigar o artista a compor uma canção de exaltação ao governo, exigiam que ele não cortasse o
cabelo ou fizesse a barba, para aparentar normalidade e demonstrar que não houve
violência por parte do governo. Caetano teria ainda que participar de um programa de TV
para poder passar um mês no país. Esses esforços fariam de Caetano um testemunho da
normalidade do regime. Nesse episódio, mostra-se, ainda, a importância que tais artistas
tomaram não só no campo musical e artístico, mas no contexto político do país. A canção
que Caetano se negou a fazer exibiria ao público uma falsa normalidade e usaria o status
do compositor em benefício do governo.
Essa tentativa de usar o status do compositor em benefício do sistema também
ocorreu com Chico. Apesar de tudo, ou melhor, “apesar de você”, Chico Buarque, além de exercer enorme influência sobre o público jovem universitário dos anos 1970, era um
compositor elogiado por todos não só do meio artístico, mas pelo público em geral. A
própria ditadura militar se utilizou dessa autoridade e influência do compositor quando
exibiu um comercial para o alistamento militar, tendo como música fundo A Banda,
composta por Chico Buarque em 1966. Chico protestou, mas espertamente a ditadura
Inúmeros seriam os exemplos e a possibilidade de análise das ações da censura
na produção de um discurso moralizante, das formas de silenciar um discurso
revolucionário e libertário que gritava das canções da MPB do período. Igualmente seriam
múltiplas as táticas utilizadas pelos compositores para continuar “jogando no campo do adversário” e passando sua mensagem “subversiva” aos ouvidos sempre atentos de um público jovem urbano, intelectualizado e, porque não dizer, engajado com a luta política
que se estabeleceu com o endurecimento da ditadura militar.
Aqui nos coube um breve pulsar de reflexão. Contribuição pequena para o
importante ofício do historiador em iluminar este período da história brasileira, sobretudo
em momentos de instabilidade política como o que vivenciamos na atualidade. Momentos
em que as classes médias, as mesmas que se uniram ao golpe militar dos anos 1960 e
apoiaram organicamente a censura neste país, reeditam o mesmo discurso conservador e
idealizador do período de repressão instaurado pela ditadura civil-militar. É ainda preciso
estar atento e forte. Esclarecer aos jovens que não viveram regimes de exceção a ponto
de não querer vivê-los. E combater os que ainda se levantam contra as liberdades,
violentamente conquistadas, por uma geração que não ousou se calar.
Referências
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THE CENSORSHIP POLICY TO THE BRAZILIAN POPULAR MUSIC:
Censorship Practices during the civil-military dictatorship.
Abstract: This article intends to map out and reflect briefly upon the forms of institutionalised censorship practices during the civil-military dictatorship, which was established in Brazil in the decade of the 1960s. Bearing in mind the mentioned historical period, this study addresses censorship practices regarding the Brazilian Popular Music (MPB).
Keywords: Civil-Military Dictatorship – Censorship – Brazilian Popular Music (MPB).
Recebido em: 25/10/2015 Aprovado em: 26/11/2015.