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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do
grau de Doutor em Filosofia , área de especialidade em Estética, realizada sob a
orientação científica do Professor Doutor José Nuno Gil
A G R A D E C I M E N T O S
Ao Prof.º Doutor José Gil, agradeço a confiança que em mim depositou e o
privilégio de ter aceite orientar esta tese; o estímulo e o questionamento, bem como a
constante chamada de atenção para o concreto, sem os quais não poderia sequer ter
existido o trabalho que aqui se apresenta.
Agradeço à Universidade do Porto, instituição a que me encontro vinculada
como técnico superior, nas pessoas do Prof.º Doutor José Carlos Marques dos Santos, e
do Prof. Doutor António Marques, terem criado as condições necessárias para que
pudesse dedicar-me à minha investigação.
Cabe-ma ainda agradecer à Dra. Andreia Teixeira, coordenadora do Núcleo de
Doutoramentos da FCSH/UNL, o sempre cuidadoso acompanhamento que soube
prestar em cada fase deste processo.
Uma última palavra, virtualmente primeira: aos meus filhos, Emília e Pedro, à
Emília pelas infindáveis horas de leitura até ao limite, pelas preciosas sugestões e pelo
apoio sem quebras, ao Pedro pela confiança atenta; à minha mãe, cuja força e
inteligência de vida sempre me orientou, ao meu pai e aos meus irmãos, a todos eles
O Plano de C riação
.
O ntologia da Difer
ença e E
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tética da
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s
idade
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Monteiro Pac
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R ESU M O
PALAVRAS-CHAVE: Pensamento e experiência da diferença, individuação, intensidade, ser
do sensível, imanência, autonomização da expressão, sensação e composição estética, plano de
criação
Não é possível isolar em Deleuze a problematização filosófica da estética no conjunto
de uma obra que une, consistentemente, filosofia e arte, estabelecendo a sua
singularidade numa fabricação incessante de relações na fractalidade dos planos.
Tomamos como linha condutora de aproximação à obra a ideia de construção de um plano próprio de criação no qual o acto criativo encontraria as suas condições de potência, considerando, do lado da criação, a expressão estética e, do lado do
próprio, o fulcro de uma
ontologia. Neste plano de imanência coexistem opróprio do pensamento, da criação e da
sensibilidade com o engendramento simultâneo dos processos singulares e das entidades dele resultantes. O engendramento do plano não é separável do processo da criação nas condições da experiência real.T h
e
C r
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o
A BST R A C T
KEYWORDS:
Thought and experience of the difference, individuation, intensity, being of the sensible, , immanence, autonomy of expression, sensation and aesthetic composition, creativeplane
A BST R A C T
We cannot possibly isolate in Deleuze the philosophical questioning of aesthetics from the ensemble of a work that consistently unit art and philosophy, establishing his singularity in a non-stoppable fabrication of relations in the fractal variety of the planes.
We take as a guide line for the approach of his work the idea of the construction of a proper plane of creation in which the creative act would meet his conditions of potency, considering, from the point of view of
c
r
e
a
t
ion, the aesthetical expression and, from what belongs to the
prop
e
r, the fulcrum of his ontology. On that plane of immanence coexists the proper of thought,
of creation, and of the sensibility with the simultaneous engendering of singular processes and of the entities they produce. The engendering of the plane cannot be separated from the process of creation in the conditions of its real experience.ÍNDI C E
IN T R O DU Ç Ã O
...
1
I E MPIRISM O T R A N C E ND E N T A L
...
24
Intróito ... 24
1. Campo problemático e movimento da crítica ... 30
1.1 O avesso da forma... 57
2. O que significa pensar? ... 77
2.1 Condições e campo da experiência real ... 102
3. Figuras do excesso: passagem ao limite e limiar de metamorfose ... 122
³
S
HUGRVHQVtYHO´
e exercício disjunto das faculdades ... 144
Recapitulação ... 166
II EST É T I C A D AS IN T E NSID A D ES
...
170
Intróito ... 170
1. Pensar é criar. O jogo do pensamento e da arte ... 179
2. Actualização do virtual e dramatização ... 194
3. Imanência e construção de um corpo sem órgãos... 214
4. Da função à expressão ... 230
4.1. Primeiro movimento: ritornelo (do caos ao cosmos) ... 230
4.2. Segundo movimento: diagrama (do caos ao acto criativo) ... 246
5. Realidade do criado. Composição estética e
³6
er da sensação
´
... 259
Recapitulação ... 279
C O N C L USÃ O
...
282
A B R E V I A T U R AS
Critique et Clinique
±
CC
Deux Regimes de Fous
±
RF
Dialogues
±
D
Différence et Répétition
±
DR
Empirisme et Subjectivité
±
ES
Francis Bacon. Logique de la Sensation
±
FB
/¶
Image-Mouvement
±
IM
/¶
Image-Temps
±
IT
La Méthode de Dramatisation
±
MD
La Philosophie Critique de Kant
±
PCK
Le Bergsonisme
±
B
Le Pli. Leibniz et le baroque
±
P
/¶,OH
Deserte et autres textes
±
I
Logique du Sens
±
LS
Mille Plateaux
±
MP
Pourparlers
±
PP
Proust et les Signes
±
PS
4X¶HVW
-ce-que la Philosophie?
±
QPH
IN T R O D U Ç Ã O
I
.
Não é possível isolar em Gilles Deleuze a problematização filosófica da estética
no conjunto de uma obra que, estabelecendo a sua singularidade numa fabricação
incessante de relações tecidas sobre a fractalidade dos planos, une consistentemente
filosofia e arte. Esperamos vir a demonstrar esta implicação no decurso da investigação.
Tomamos como linha condutora de aproximação à obra a ideia de construção de
um plano próprio de criação no qual o acto criativo encontraria as suas condições de
potência, considerando, do lado da criação, a expressão estética e, do lado do
próprio
, o
fulcro de uma ontologia. Neste plano, que é um plano de imanência, coexistem
³
o que
diz exclusivamente respeito
´
1ao pensamento, à criação e à sensibilidade, com o
engendramento simultâneo dos processos singulares e das entidades dele resultantes. É
exactamente um plano de constituição, que não existe anteriormente ao seu traçado e
que dele não se destaca. Sem referência prévia (pré-existente ou fundadora), sem centro,
objecto e finalidade transcendentes, isto é, sem síntese de unificação da consciência ou
termo que se possa desligar da relação em que está envolvido, é
±
também
d
e
dir
e
i
t
o
±
um plano de produção. A sua génese não é separável do processo de criação nas
FRQGLo}HVGDVXDH[SHULrQFLDUHDOFRQGLo}HVHVVDVTXHVHJXQGRRDXWRU³VHFRQIXQGHP
FRPDSUySULDLQWHQVLGDGH´
.
2Por isso, e por supor constitutivamente um regime intensivo, o
próprio
, a que
acima aludimos
±
e que procuraremos elucidar, em toda a complexidade do conceito, ao
longo das páginas que se seguem
±
, não é auto-evidente, não pode ser confundido com o
originário
, ou com qualquer essência estável a revelar, núcleo identitário de que partisse
o pensamento. Bem pelo contrário, é apropriativo das inúmeras passagens através das
quais algo
±
uma coisa, um ser, uma maneira, um movimento
±
se afirma como
1
Gilles Deleuze, Différence et Répétition, PUF, Paris (1ère edition 1968), 11ème edition 2003 (ed. consultada=, doravante citada com a sigla DR, p. 186.
2 Op
diferença que produz
VLPXOWDQHDPHQWH³JpQHVHGDDILUPDomR´H³GLIHUHQoDDILUPDGD´
.
3Assim sendo, é o que precisamente, conforme adiantámos,
GL]³H[FOXVLYDPHQWHUHVSHLWR´
a algo, a sua
r
e
alidad
e
, na terminologia do autor, ou o que o
³ID]VXUJLUQRPXQGRFRPR
WDO´
,
4DVXD³GLIHUHQoDUDGLFDO´
5e positiva.
6No entendimento que Deleuze defende da noção de intensidade enquanto
³IRUPD
da diferença como razão do sensível
´
7³SULQFtSLRWUDQVFHQGHQWDO´
8³LQGLYLGXDQWH´
9que
afirma a diferença sendo diferença em si mesmo, elemento genético
³GHWHUPLQDQWHQR
SURFHVVR GH DFWXDOL]DomR´
,
10estado da diferença como disparidade pensada enquanto
³UD]mR VXILFLHQWH GR IHQyPHQR´ H ³FRQGLomR GH WXGR R TXH DSDUHFH´
,
11pensamos nós
que reside uma linha principal de fractura (e transformação) relativamente à filosofia
transcendental, tal como ele a retoma e reinventa a partir de Kant. Retoma-a, todavia,
numa outra lógica de conjugação das condições dos problemas a que procura responder,
a qual emerge, no seu pensamento, pela consideração da passagem da condição externa
à génese interna, concebida a partir de Maimon,
12e, divergindo da fenomenologia, na
exigência de uma nova determinação do campo transcendental, de modo a não
pressupor mais como referente a forma unificadora da consciência.
Em que consiste esta nova composição? Simultaneamente na articulação
fundamental entre ontologia e estética, no sentido mesmo da consideração de que a
quan
t
idad
e
in
te
n
s
iva
(intensidade) se encontra implicada em toda e qualquer produção
de existência, ligada a um
³
campo prévio intenso de individuação
´
13e em
3 Op. cit
., p. 78. 4 Op. cit
., p. 186. 5 Op. cit
., p. 186. 6 Op. cit
., p. 314. A diferença para Deleuze não é convertível ao mesmo como forma de identidade na qual se anularia, nem tem tão-pouco que passar pelo negativo para poder ser pensada. Como analisaremos ao longo deste estudo, é afirmação produtiva.
7 Op. cit
., p. 287. 8 Op. cit
., pp. 298, 310. 9 Op. cit
., p. 317. 10 Op. cit
., p. 316. 11 Op. cit
., p. 287. A obra de Roberto Machado, Deleuze, a Arte e a F losofia, Jorge Zahar Ed, Rio de Janeiro, 2009, é particularmente esclarecedora a este respeito, pp. 124-127.
127DOFRPRUHIHULGRHP'5S³e6DORPRQ0DLPRQTXHSURS}HXPUHPDQHMDPHQWR
fundamental da
FUtWLFD XOWUDSDVVDQGR D GXDOLGDGH NDQWLDQD GR FRQFHLWR H GD LQWXLomR « 2 JpQLR GH 0DLPRQ pR GH
mostrar quanto o ponto de vista do condicionamento é insuficiente para uma filosofia transcendental: os dois termos da diferença devem ser igualmente pensados ± quer dizer que a determinabilidade deve ela própria ser pensada como ultrapassando-se em direcção a um princípio de determinDomRUHFtSURFD´2u, noutra formulação, em Le Pli, Leibniz et le Baroque (doravante citado como P), Minuit, Paris, 1988, pp.
118- ³3DUD DOpP GR PpWRGR NDQWLDQR GH FRQGLFLRQDPHQWR 0DLPRQ UHVWLWXL XP PpWRGR GH JpQHVH interna subjectiva: entre o vermelho e o verde não há apenas uma diferença empírica exterior, mas um conFHLWRGHGLIHUHQoDLQWHUQD«´.
13
correspondência com a disparidade constituinte de todo e qualquer fenómeno; bem
como na pressuposição de que a diferença
±
a diferença na intensidade como distinção
³
inclusa
´
14±
,
pSULPHLUDHQmR³DVTXDOLGDGHVHDVH[WHQV}HVDVIRUPDVHDVPDWpULDVDV
HVSpFLHVHDVSDUWHV´
.
15Consideremos, a título de exemplo, a noção de
³
grandeza intensiva
´
da realidade
do fenómeno, exposta por Kant
QRFDStWXORVREUHDV³$QWHFLSDo}HVGD3HUFHSomR´QD
Crí
t
i
c
a da Razão Pura
,
16princípio cuja apreensão é instantânea como unidade de um
JUDX TXH QmR SRGH VHU GHFRPSRVWR HP SDUWHV H QR TXDO ³D SOXUDOLGDGH Vy SRGH VHU
representada como aproximação com a negação =
´
.
17Ainda que um dos pontos de
partida para a teoria da intensidade em Deleuze resida nesta noção, ela é deslocada para
fora do domínio da intuição empírica e, nesse movimento, a intensidade é redefinida
como condição do fenómeno (o que dá a sentir o diverso que cria). Tomada, afinal,
como princípio plástico individuante que se exprime através de dinamismos
espacio-temporais, ela preside à actualização da diferença (virtual) nas qualidades e nas
extensões que assim constitui.
1814
Gilles Deleuze, Logique du Sens, Les Édition de Minuit, Paris, 1969, a partir de agora referida como LS,
p. 356.
15
DR, p. 318.
16
Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, trad. Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão,
Int. e notas de Alexandre Fradique Morujão, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2.ª edição, 1989, pp. 201-208.
172SFLW$%$%S³'RXRQRPHGHgrandeza intensiva
àquela que só pode ser apreendida como unidade e em que a pluralidade só pode representar-se por aproximação da negação = 0. Toda a realidade no fenómeno tem portanto grandeza intensiva, isto é, um grau. Se considerarmos esta realidade como causa (quer seja da sensação ou de outras realidades no fenómeno, por exemplo, de uma mudança) então, ao grau da realidade, como causa, chama-se um momento, o momento do peso por
H[HPSORSRUTXHRJUDXGHVLJQDDSHQDVDJUDQGH]DFXMDDSUHHQVmRQmRpVXFHVVLYDPDVLQVWDQWkQHD´HP
itálico no original). Vejam-se a título enumerativo as ocorrências: no seminário de Vincennes sobre Kant de 21.3.78, em www.webdeleuze.com, ³Les cours de Gilles Deleuze´ GLUi ³De cada vez que alguma
FRLVDSUHHQFKHRHVSDoRHRWHPSR«.DQWGLULDHQFRQWUDU-se face a uma intuiçmRHPStULFD«5HFHER algo que é dado e, nesse sentido, tenho uma intuição empírica. Mas na medida em que o que é dado tem uma quantidade intensiva, quer dizer, um grau, capto-o numa relação à sua produção a partir do zero ou à sua extinção´HPF rancis Bacon. Logique de la Sensation, Seuil, Paris, 2002 (1ª edição por Ed. de la
Différence, 1981), doravante citada como FB, sobre a queda e a descida como passagem da sensação, p.
³.DQW GHVWDFRX R SULQFtSLR GD LQWHQVLGDGH TXDQGR D GHILQLX FRPR XPD JUDQGH]a apreendida num instante: concluía que a pluralidade contida nessa grandeza só podia ser representada pela sua
DSUR[LPDomR GD QHJDomR ´ Deleuze retoma esta formulação kantiana, com um deslocamento fundamental de sentido que a recoloca na génese da própria sensibilidade e do sensível, em inúmeras passagens das suas obras e nos seus seminários. Ver, por exemplo, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Mille Plateaux, capitalisme et schizophrénie 2, Minuit, Paris, 1980 (que citaremos sob a sigla MP), sobre a
construção do corpo sem órgãos, pp. 44, 189; em Gilles Deleuze, Cinéma 1, /¶Image-Mouvement, Minuit,
Paris, 1983 (que citaremos como IM), sobre o movimento intensivo, p. 74; ou finalmente em Gilles Deleuze, ³/¶pSXLVp´, in Samuel Beckett, Quad et Autres Pièces pour la Television, Les Éditions de
Minuit, Paris, 1992, sobre a imagem como intensidade pura, p. 97.
18
A intensidade torna-se pois, desse modo, um princípio genético positivo na base
de toda e qualquer formação ou produção do real. Deixando de ser considerada a partir
do empírico (do constituído, actual), como preenchendo o fenómeno, ela passa a ser
pensada na sua diferença transcendental,
19como o que permanece virtualmente
implicado em si, enquanto se explica criando o empírico, ou seja, a actualidade da
experiência.
20Elaborando uma ontologia
que afirma o contínuo engendramento do sensível
como acontecimento, Deleuze propõe uma crítica da representação fazendo-lhe
corresponder uma estética da resistência (ética e política) como abertura real de um
espaço (virtual, inconsciente) das intensidades, campo de experimentação permeável à
circulação de forças, afectos e ritmos vitais. Assim, destitui a ontologia do original
v
e
r
s
u
s
modelo, nos termos daquilo que designa, na continuidade de Nietzsche, como a
WDUHID GD ILORVRILD GH ³LQYHUVmR GR SODWRQLVPR´
21e liberta, concomitantemente, a
experiência de uma funcionalidade mimética, criando amplitude para outro movimento
±
o da expressão
±
sempre a produzir-se.
Essa crítica pretende, pela sua mobilização, ir ao encontro do que no pensamento
é modo intensivo, produtivo, enfim. Como escreve em
Di
ff
é
r
e
n
ce
e
t
R
é
p
é
t
i
t
ion:
³4XDQGR D GLIHUHQoD VH HQFRQWUD VXERUGLQDGD SHOR VXMHLWR SHQVDQWH j LGHQWLGDGH GR
conceito (mesmo que essa identidade seja sintética), o que desaparece é a diferença no
pensamento, essa diferença do pensar com o pensamento
´ GR PHVPR PRGR ³TXH R
GHVLJXDO´RLQWHQVLYR³WHQGHD
igualar-
VHQDH[WHQVmRHPTXHVHUHSDUWH´
.
22preenche esse extenso. Mas essa qualidade, bem como esse extenso, é a diferença que os cria. A intensidade explica-se, desenvolve-se numa extensão [extensio]. É essa extensão que a refere ao extenso [extensum] no qual aparece fora de si, recoberta pela qualidade. A diferença de intensidade anula-se ou tende a anular-se nesse sistema; mas é ela que, explicando-VHFULDHVVHVLVWHPD´'5S³2TXHp extensivo é a intuição empírica. O erro de Kant, no próprio momento em que recusa ao espaço bem como ao tempo uma extensão lógica, é o de manter-lhe uma extensão geométrica, e reservar a quantidade intensiva SDUD XPD PDWpULD SUHHQFKHQGR XPD H[WHQVmR HP WDO RX WDO JUDX « 2 HVSDoR HQTXDQWR intuição pura, spatium, é quantidade intensiva «´
19
É em DR que o filósofo usa o conceito de diferença transcendental, num longo desenvolvimento em que atribui a Kant a sua descoberta pela ultrapassagem do impasse dos dois valores lógicos cartesianos concorrentes na estrutura do cogito ± determinação e indeterminado (a existência) ± na forma do GHWHUPLQiYHOS³(VWHWHUFHLURYDORUpVXILFLHQWHSDUDID]HUGDOyJLFDXPDLQVWkQFLDWUDQVFHQGHQWDO Constitui a descoberta da Diferença, não mais como diferença empírica entre duas determinações, mas diferença transcendental entre A determinação e o que ela determina ± não mais como diferença exterior que separa, mas Diferença interna, e que reporta a priori RVHUHRSHQVDPHQWRXPDRRXWUR´
20
DR. pp. 294, 298, 310-311; MP, pp. 44, 177, 189. 21
LS, pp. 347 e 352. 22
Envolvendo, portanto, a constituição de um plano de imanência
±
entendido não
como pré-existente, dizíamos, mas como o que não existe fora de cada um dos actos,
enquanto lhes define as suas condições internas
23±
, a criação, o pensamento e a arte são
construções dinâmicas no tempo e espaço segregados pelos processos. Mas como
procedem estas construções?
O trabalho da criação liga-se à energia que passa en
t
re as coisas, ao e
s
paço-en
t
re
(cria um meio próprio), procurando o elemento diferencial genético e de composição
das intensidades que permite o auto-posicionamento do bloco de
s
en
s
açõe
s
, a aquisição
de consistência dos materiais-forças
24TXH VH ³DJXHQWDP´
[
t
iennen
t
] em conjunto,
capturando forças na heterogénese das formas. Ao par matéria-forma (que pressupõe
uma função individualizadora da forma assente na sua valorização para a representação)
substitui-se a dinâmica materiais-forças,
25através da qual a matéria em movimento
(fluxo) adquire autonomia expressiva. Sensação e percepção ganham, então, uma
GLPHQVmRRQWROyJLFD³QDVVtQWHVHVTXHOKHVVmRSUySULDV´
26e os agregado
s
de
s
en
s
açõe
s
(as obras de arte) sustentam-se porque, precisamente, se auto-posicionam,
27criando
desse modo a sua realidade. Daqui resulta o engendramento da sensibilidade
na
sensibilidade e do acto do pensamento
no pensamento, pois em nenhum domínio da
experimentação o produzido pré-existe ao processo de que resulta.
O comentário de Jacques Rancière segundo o qual os princípios estéticos de
Deleuze estariam mais aptos para compreender a obra de arte moderna, cumprindo o
que o autor designou como o
³UHJLPH HVWpWLFR GD DUWH´
,
28será aqui reflectido.
23
Gilles Deleuze, Felix Guattari, Quest-ce que la Philosophie?, Minuit, Paris, 1991, p. 43. Esta obra será sempre citada em notas pela sigla QPH.
24
MP, S³$FRQVLVWrQFLDID]-se necessariamente GHKHWHURJpQHRDKHWHURJpQHR´7DPEpPS 25
MP, pp. 120-121, p. 422; P, p. 49. 26
DR, p. 373. 27
QPH, p. 154-155. 28-DFTXHV5DQFLqUH³([LVWH
-t-LOXQHHVWKpWLTXHGHOHX]LHQQH"´LQGilles Deleuze
. Une Vie Philosophique,
dir. E, Alliez, Ed. Shynthélabo, Paris, 1998, pp. 532-RQGHVHOr³«UHDOL]DURGHVWLQRGDHVWpWLFD tornar coerente a obra moderna incoerente, não é destruir a sua consistência, não é fazer uma simples SDUDJHPQRFDPLQKRGDFRQYHUVmRXPDVLPSOHVDOHJRULDGRGHVWLQRGDHVWpWLFD"´ No mesmo sentido vai DHQWUHYLVWDFRP'DYLG5DERXLQ³'HOHX]HDFFRPSOLWOHGHVWLQGHO¶HVWKpWLTXH´LQMagazine littéraire, nº 406, fev. 2002, número dedicado ao tema ³O¶Effet Deleuze. Philosophie, Esthétique, PROLWLTXH´SS-40. Ressalve-se que, emborD HVWH SURSRQKD R FRQFHLWR GH ³UHJLPH HVWpWLFR´ GDV DUWHV SDUD FRQWUDULDU XP FRQFHLWR TXH FRQVLGHUD GHPDVLDGR YLFLDGR H PHQRV LQWHUHVVDQWH TXH pR GH ³PRGHUQLGDGH´ ± estética, nomeadamente ±, a ideia de realização do destino da estética contém, por si, a carga de uma historicização da questão estética. Sobre a sua diferenciação de três regimes da arte e sobre a passagem do UHJLPH ³UHSUHVHQWDWLYR´ DR ³UHJLPH HVWpWLFR´ YHU HP SDUWLFXODU R VHX OLYURLe Partage du Sensible.
Consideramos que esta interpretação crítica da estética deleuziana e o questionamento
da sua existência não deixam de radicar na representação de uma periodização histórica
da arte e, paralelamente, do pensamento sobre a arte, situação a que Deleuze se furta,
desde logo pelo deslocamento que defende ao afirmar o conceito de
d
e
vir, e,
simultaneamente, o acaso, em detrimento da história, da sedimentação da história
±
e da
sua ordenação vectorializada
±
, no núcleo de uma teoria do tempo e da temporalidade
paradoxal própria do acontecimento.
29Para Deleuze, as
t
ran
s
-
f
orma
ç
õ
e
s
ocorrem como processos de diferenciação e
criação, e não através de rupturas, ou transportes metafóricos, no que configuram pontos
críticos
³ItVLFR
s
´ GR DFRQWHFLPHQ
to.
30São metamorfoses que se destacam da
continuidade intensiva (
³
um mesmo
philum maquíni
c
o
´
)
±
depois seccionada e
modulada por variações inerentes à vitalidade [nomo
s
]
GD³PDWpULDHPPRYLPHQWR´
31±
,
e arrastam, do ponto de vista da sua apreensão, a passagem para outros limiares
perceptivos.
Não podemos esquecer que para o nosso autor o tempo do acontecimento não é
cronológico, sendo que as sínteses do tempo expostas em
Di
ff
é
r
e
n
ce
e
t
R
é
p
é
t
i
t
ion
coerência de que as palavras de Rancière não dão conta, a coerência do excesso, do excessivo, nunca a da conversão a uma identidade, mas a que reporta o mesmo, o semelhante, o convergente, à diferença sem tradução para a representação, aquilo que, com o humor e a liberdade que lhe são característicos, Deleuze
VLQWHWL]D QD H[SUHVVmR ³Cao-HUUDQFH´A este respeito ver DR, pp. 59-60, 77, e particularmente p. 80:
³-R\FHDSUHVHQWDRvicus of recirculation como aquilo que faz girar um caosmos e Nietzsche já dizia que
o caos e o Eterno Retono não eram duas coisas distintas, mas uma mesma afirmação. O mundo não é finito, nem infinito, como na representação, ele é acabado e ilimitado. O Eterno Retorno é o ilimitado do próprio acabado, o ser unívoco que se diz da diferença. No Eterno Retorno a caos-errância opõe-se à coerência da representação, ela exclui a coerência de um sujeito que se representa, bem como de um
REMHFWRUHSUHVHQWDGR´
2903S³(VVDVWUrV³LGDGHV´RFOiVVLFRRURPkQWLFRHRPRGHUQRQDIDOWDGHXPRXWURQRPHQmR devem ser interpretadas como uma evolução, nem como estruturas, com rupturas significantes. São agenciamentos, que envolvem Máquinas diferentes, ou relações diferentes com a Máquina. Num certo sentido, tudo o que atribuímos a uma idade estava já presente na idade precedente. Assim com as forças
«O que estava composto num agenciamento, o que ainda não estava, devem componente de um novo agenciamento. Nesse sentido não há história a não ser da percepção, enquanto que aquilo de que fazemos
DKLVWyULDpDQWHVPDWpULDGHXPGHYLUHQmRGHXPDKLVWyULD´9HUWDPEpP43+S³2³GHYLU´QmR
é a história, ainda hoje a história designa apenas o conjunto de condições, por mais recentes que sejam, de que nos afastamos para devir, quer dizer, para criar qualquer coisa GHQRYR´
30
Sobre a importância da noção de ponto crítico do acontecimento em Peguy, que se articula com uma
constelação de outras noções fundamentais para a compreensão da nossa matéria de estudo, como as de
ponto de viragem da experiência, metamorfose ou mudança da natureza de uma multiplicidade, ver DR,
pp. 244-245, e também LS, p. 75. 31
MP, p. 506; p. 384, mas também pp. 471-³O trajecto nómada bem pode seguir as pistas ou os caminhos habituais, não tem a função de um caminho sedentário que é a de distribuir pelos homens um espaço fechado, atribuindo a cada um a sua parte, e regulando a comunicação das partes. O trajecto nómada faz o contrário, distribui os homens (ou os animais) num espaço aberto, indefinido, não comunicante. O nomos acabou por designar a lei, mas em primeiro lugar porque era distribuição, modo de
correspondem efectivamente à inversão da cronologia,
32no plano da autonomização da
obra produzida e do movimento como obra de que procede o
in
c
ondi
c
ionado
.
33À
sucessão linear de estados substitui-se a coexistência de dimensões, nas quais se joga,
no paroxismo da anacronia, o tempo da criação, em sínteses que preparam o surgimento
da diferença
±
o
novo
34±
na repetição.
Assim se esclarece a inadequação do acoplamento matéria/forma para dar conta
da individuação. Porque coexistem dimensões, estratos e níveis, tempos, em suma, a
³IRUPD´VXUJH
meramente como termo transitório de um processo que, levado ao limite,
é relançado: metamorfose de forças (intensidades, afectos), tal como dissemos acima.
Por essa razão, talvez convenha falar antes de
in
f
orm
e
35, na base do processo criativo,
FRQWUDDULJLGH]GD³IRUPD´RXRVHXFDUiFWHUDFDEDGRUHDOL]DGR
. Deleuze descreve-o
como intenso e resistente ao acabamento, nascendo da germinação virtual de linhas e
formas em formação incessante. E, mesmo, mais do que no
³
informe
´
±
como
32
Esta será a questão de Gilles Deleuze em &LQHPD /¶,PDJH-Temps, Les Édition de Minuit, Paris,
1985 (obra doravante citada sob a sigla IT), ainda que através do recurso a outras noções, nesta obra polarizadas em torno do conceito de imagem-cristal, S³eQHFHVViULRTXHDLPDJHPFRPSUHHQGDR
antes e o depois, que reuna assim as condições de uma nova imagem-tempo directa, em vez de estar no SUHVHQWH«eVREHVVDVFRQGLo}HVGDLPDJHP-tempo que uma nova transformação arrasta o cinema de ILFomRHRFLQHPDGHUHDOLGDGHHPLVWXUDDVVXDVGLIHUHQoDV«eWRGRRFLQHPDTXHGHYém um discurso LQGLUHFWROLYUHRSHUDQGRQDUHDOLGDGH«eXPDWHUFHLUDLPDJHP-WHPSRTXHVHGLVWLQJXHGDV«TXH GL]LDPUHVSHLWRjRUGHPGRWHPSR«Diz respeito à série do tempo, que reúne o antes e o depois num GHYLUHP YH]GHRVVHSDUDU«. As três imagens-tempo têm em comum romper com a representação indirecta, mas, também, quebrar o curso e a sequência empíricos do tempo, a sucessão chronológica, a VHSDUDomRGRDQWHVHGRGHSRLV´.
33
DR, pp. 379-3³6yKi(WHUQR5HWRUQRQRWHUFHLURWHPSRpDtTXHRSODQRSDUDGR[figé] se anima novamente ou que a linha recta do tempo, como que empurrada pelo seu próprio comprimento, faz um círculo [boucle] estranho, que não se assemelha de modo nenhum ao ciclo precedente, mas que desemboca no informal, e não vale senão para o terceiro tHPSRHSDUDRTXHOKHSHUWHQFH«9LPR-lo, a condição da acção por deficiência não retorna, a condição do agente por metamorfose, não retorna; só UHWRUQDRLQFRQGLFLRQDGRQRSURGXWRFRPRHWHUQRUHWRUQR´
34
DR, pp. 103 e 122.
35
A noção de informe em Deleuze remete-nos para um estado sub-representativo da matéria, da vida, ou da vida da matéria, no qual as forças ± o intensivo ± não se encontram ainda anuladas por uma qualquer organização que as estratifique ± o extensivo. Pertence à esfera do virtual, tal como o conceito de corpo
sem orgãos ou o de vida inorgânica$HVWHUHVSHLWRpIXQGDPHQWDORWH[WR³$/LWHUDWXUDHD9LGD´HP Gilles Deleuze, Crítica e Clínica, ed. Século XXI, Lisboa, 2000 (que passaremos a citar pelo sigla CC), de que destacamos um excerto, p 11³(VFUHYHUQmRpFHUWDPHQWHLPSRUXPDIRUPDGHH[SUHVVmRDXPD matéria vivida. A literatura está, ao invès, do lado do informe, ou do inacabamento, como Gombrowicz o GLVVHHIH]´S12: ³'HYLUQmRpDWLQJLUXPDIRUPDLGHQWLILFDomRLPLWDomR mimésis), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação tal que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula: não imprecisos, nem gerais, mas imprevistos, não pré-existentes, tanto menos determinados numa forma quanto mais sLQJXODUL]DGRVQXPDSRSXODomR´. Neste sentido cf. também F. Zourabichvili, Le Vocabulaire de Deleuze, ed. Ellipses, Paris, 2003, pp 84-89: ³Vie (ou vitalité) non-organique´. Do máximo interesse, pela articulação do informe e do sub-representativo, é ainda DFRQVXOWDGH*LOOHV'HOHX]H³/Dméthode de dUDPDWLVDWLRQ´GRUDYDQWHFLWDGRFRPR0'LQ/¶Île Déserte et Autres Textes, ed. David Lapoujade, Les Éditions de Minuit, Paris, 2002 (doravante citada
ind
e
t
e
rminado
±
, será talvez sobretudo no
³
informal excessivo
´
de Hölderlin,
36multiplicidade caótica, virtual, que se enxerta e desenvolve o processo de actualização
estética
«
Mas até que ponto esta compreensão se poderá aproximar do in
f
orm
e
batailliano
(retomado por Rosalind Krauss e Yves-Alain Bois, ou, de outro modo, por Georges
Didi-Huberman, para pensar as categorias estéticas da Contemporaneidade? Se criar,
pensar, é produzir real, poderemos hoje dizer, com Deleuze, que uma obra de arte é um
modulador que encontrou um determinado estado de equilíbrio numa determinada
composição de forças? Poderemos afirmar que, sustentando-se na sua heterogénese, ela
está animada por uma vida inorgânica
37que conserva o virtual no actual? E que
vida
será esta que se confunde com a conservação da potência? Qual é, afinal, o próprio do
objecto artístico, admitindo que ele possa, pelo menos, ser sondado?
Deleuze recusou toda a espécie de transcendência afirmando a imanência
absoluta de um plano de criação, desfazendo as formas organizadas
±
s
uj
e
i
t
o,
au
t
or,
c
on
s
c
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c
ia, p
e
r
ce
p
ç
ão, r
e
pr
e
s
e
n
t
a
ç
ão
±
em prol de um regime de experimentação que
emerge do sub-representativo, articulando linhas divergentes e criadoras de
diferenciação. É a compreensão desse regime que nos interessa sobretudo explorar, nas
suas várias dimensões e facetas, nomeadamente enquanto nos permite aceder a uma
UHDOLGDGH³PDLVSURIXQGDHPDLVDUWLVWD´
.
3836
Este conceito é trabalhado pelo nosso autor em DR, pp 122-123, quando o autor expõe a terceira síntese do tempo, como síntese do futuro em ligação com o conceito de Eterno Retorno de Nietzsche, aqui afirmado afectar apenas o novo produzido por intermédio da metamorfose, HQTXDQWR ³UHSHWLomR SRU H[FHVVR´. Na mesma obra, em passagem anterior sobre a obra de arte moderna e o abandono da UHSUHVHQWDomR R WHUPR LQIRUPDO TXDOLILFD R FDRV FRPR ³FDRV LQIRUPDO DIXQGDGR´p. 94. De novo, a noção de informal aparece em LS, a propósito do novo discurso introduzido por Nietzsche, p. 145. 37
Este tema, a que regressaremos, é de fundamental importância para a compreensão da estética das intensidades. De momento vejamos apenas o que Deleuze e Guattari escrevem em MP, p. 623, a SURSyVLWRGH:RUULQJHUGDOLQKDJyWLFDHGDRSRVLomRHQWUHRUJkQLFRHDEVWUDFWR³(VVDOLQKDIUHQpWLFDGH YDULDomR«HPHVSLUDOHP]LJXH]DJXH«OLEHUWDXPDSRWrQFLDGHYLGDTXHRKRPHPUHFWLILFDYDRV organismos encerravam, e que a matéria exprime agora como o traço, o fluxo ou o élan que a atravessa. Se tudo está vivo, não é porque tudo é orgânico e organizado, mas ao contrário porque o organismo é um desvio (détournement) da vida. Em suma, uma intensa vida germinal inorgânica, uma potente vida sem yUJmRVXP&RUSRWDQWRPDLVYLYRTXDQWRpVHPyUJmRVWXGRRTXHVHSDVVDHQWUHRVRUJDQLVPRVµXPD YH]URPSLGRVRVOLPLWHVQDWXUDLVGDDFWLYLGDGHRUJkQLFDMiQmRH[LVWHPOLPLWHV¶´9HUWDPEpP)%SS 48-49, 121; QPH, p. 200. Vt. a entrevista a Deleuze por Raymond Bellour e François Ewald, ³6LJQHVHW pYpQHPHQWV´, Magazine Littéraire, septembre de 1988, n.º 257, p. 20, retomada e revista em Gilles Deleuze, Pourparlers 1972-1990, Minuit, Paris, 1990, que doravante citaremos sob a sigla Pp.
38
Nada pré-existindo à singularidade (pr
é
-individual e a-
s
ubj
ec
t
iva), a consciência
é levada (expandida) pelo traçar do plano de imanência.
39A violência que força a
pensar,
40como encontro e relação com o
Fora,
41pura exterioridade, suscita o
movimento dos processos e a heterogénese das formas e reconfigura-se pela
diferenciação expressiva como criação do novo e afirmação das potências de
vida não
orgâni
c
a.
A consistência do processo criativo está directamente associada à constituição de
meios adequados a tornar sensível o anteriormente
in
s
e
n
s
ív
e
l, visível o
invi
s
ív
e
l,
pensável o
imp
e
n
s
áv
e
l, outros tantos modos de atingir a vida aquém e além do
organismo, tocar a diferença absoluta,
42e não a relativa, mediatizada na representação.
Este tema, que Deleuze retoma de Klee, e glosa em
Mill
e
Pla
t
e
ux,
F ran
c
i
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Ba
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.
Logiqu
e
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la S
e
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s
a
t
ion,
4X¶HV
t
-
ce
qu
e
la Philo
s
ophi
e
, entrosa completamente na
questão do afrontamento do limite próprio
±
limite imanente
±
de cada faculdade,
amplamente trabalhado em
Di
ff
e
r
e
n
ce
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R
é
p
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ion,
Logiqu
e
du S
e
n
s
e
Prou
st
e
t
l
e
s
Sign
e
s
,
43por exemplo, como acontecimento constitutivo de cada uma na sua
contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência. A todos os títulos, a repetição é a transgressão. Põe em questão a lei, denuncia-lhe o carácter nominal ou geral, em proveito de uma realidadHPDLVSURIXQGDHPDLVDUWLVWD´ Veja-se o que escreve em 1977 a pretexto dos novos filósofos, Gilles Deleuze, Deux Regimes de Fous
. Textes et Entretiens 1975-1995, ed. David Lapoujade, Minuit, Paris, 2003 (doravante RF), S³WHQWDPRVIRUPDUconceitos de articulação fina, ou muito diferenciada, para escapar às grandes noções dualistas. E tentamos destacar funções-criadoras, que não passariam mais pela função-DXWRUQDP~VLFDQDSLQWXUD«QRFLQHPDPHVPRHPILORVRILD´, ou adiante, p.133: ³reencontrar com o seu próprio trabalho o trabalho dos músicos, dos pintores ou dos sábios, é a única combinação actual que não se reduz nem às velhas escolas, nem ao neo-marketing. São esses pontos singulares que constituem núcleos de criação, de funções-criadoras independentes da
função-DXWRU´ Em Proustet les Signes, PUF, Paris, 1986 (obra que citaremos a partir de agora como PS), escreve VREUHRVVLJQRVLPDWHULDLVHPTXHFRQVLVWHDREUDGHDUWHGL]HQGRTXH³MiQmRWrPQDGDGHRSDFRSHOR
menos para o oOKRHRRXYLGRDUWLVWDV´, p. 64. 39
Escreve com Guattari em MP, p. 348: ³7XGRPXGDVREUHXPSODQRGHFRQVLVWrQFLDRXGHLPDQrQFLD que é necessariamente percebido por sua conta ao mesmo tempo que é construído: a experimentação substitui-se à interpretação, o inconsciente que deveio molecular, não figurativo e não simbólico, é dado como tal às micro-percepções; o desejo investe directamente o campo perceptivo em que o imperceptível
DSDUHFH FRPR R REMHFWR SHUFHELGR GR SUySULR GHVHMR «. O inconsciente já não designa o princípio escondido do plano de organização transcendente, mas o processo do plano de consistência imanente, enquanto que aparece sobre este, à medida que vai sendo construído. Porque o inconsciente é para se fazer, não para reencontrar. Já não há uma máquina dual consciente-inconsciente, porque o inconsciente
«SURGX]-se aí onde chega a FRQVFLrQFLDOHYDGDSHORSODQR´. 40
DR, pp. 182-184; PS, por exemplo, nas pp. 24, 41, 117. 41
Em MP, numa passagem em que Deleuze e Guattari retomam o tema da imagem do pensamento e das suas definições e figuras, do ponto de vista político da sua estatização, na qual percorrem autores e questões abordados por Deleuze em DR e PS, aferem os contornos de uma nova imagem de pensamento, p. 467: ³Em relação LPHGLDWDFRPRIRUDFRPDVIRUoDVGRIRUD´, remetendo a noção de fora [déhors]
para Foucault.
4236S³0DVRTXHpXPDGLIHUHQoD~OWLPDDEVROXWD"1mRpXPDGLIHUHQoDHPStULFDHQWUHGXDVFRLVDV
RXREMHFWRVVHPSUHH[WUtQVHFD´
43
singularidade que as torna aptas a apreender a realidade diferencial mais profunda de
que falámos antes.
O nosso trabalho pretende seguir o movimento do pensamento de Deleuze nas
passagens que indicia, de concreto a concreto
±
funções, territórios, operadores, relações,
agenciamentos, singularidades
±
, na construção da paisagem
44de uma outra
imag
e
m do
p
e
n
s
am
e
n
t
o
, não separável de uma sensibilidade a engendrar a múltiplas velocidades,
arrostando a criação do sensível; da emergência daquilo que designou como
³
novas
condições perceptivas
´
;
45e da determinação do
próprio
do pensamento.
II
.
E o que é o
próprio
do pensamento de Deleuze? Quais os problemas que lhe
dizem directamente respeito? De que forma contribuiu, então, para uma compreensão
nova do moderno e do contemporâneo? Qual o seu potencial de transformação? É
possível aproximar a criação artística por outra via que não a das intensidades, da
heterogénese das forças na formação das formas e sustentabilidade das sensações, por
ele sugerida? No contexto da sua compreensão paradoxal na charneira da filosofia e da
arte, em que consiste a experiência estética? Quais são finalmente as suas condições de
potência e qual o meio / plano em que se constituem?
Kierkegaard, Les Miettes Philosophiques, Traduction de Paul Petit cap. III ³/HSDUDGR[HDEVROX ± une FKLPqUHPpWDSK\VLTXH´pp. 79-80: ³1mRGHYHPRVSHQVDUFRPOLJHLUH]DRSDUDGR[RSRUTXHRSDUDGR[Rp a paixão do pensamento e o pensador sem um paradoxo é como um amante sem paixão: uma pobre PHGLRFULGDGH « 2 VXSUHPR paradoxo de todo o pensamento é a tentativa de descobrir algo que o pensamento não pode pensar. Essa paixão é um limite presente em todo o pensamento, e também no do indivíduo, na medida em que, quando ele pensa, não é apenas ele mesmo. Mas o hábito impede-o de se aperceber disso´
44
As noções de paisagem, imagem e ideia correspondem-se quando o pensamento procura as multiplicidades, a diferença sob o sentido único do mesmo e do semelhante. A paisagem de que Deleuze fala é animada e preenchida por forças, afectos e perceptos, a-presentação de um campo perceptivo dilatado com zonas de vizinhança e indiscernibilidade, deslocamentos, passagens e evoluções a-paralelas; ³SDLVDJHPYLWXDO´WDOFRPR'HOHX]HH*XDWWDULDGHVFUHYHPHP03SS-³GHVWHUULWRULDOL]DGD´ 03SYLGHQWHH³GHDQWHVGRKRPHP´QRVWHUPRVGH43+S$H[SUHVVmR³paisagem do transcendental´WRGDYLDpMiLQWURGX]LGDHP'5S
45
Ao desenvolver o presente trabalho, deixaremos de lado as questões que relevam
dos modos como, na obra do autor, se cruzam genealogicamente influências. Esta opção
não diz respeito à relevância que estas possam ter, ou não, na leitura de Deleuze mas,
antes, à convicção de que distingui-las e apontá-las não serve o nosso propósito de
aproximação à sua singularidade, a partir da sua diferença. Poder-se-á aduzir, ainda,
outra razão. De facto, o uso livre e sincrético dos autores da tradição filosófica (mas
também literária e outras) e dos problemas que levantam, sob o prisma do que interessa
e respeita a Deleuze, vai plenamente ao encontro do que erige como aquisição
fundamental (d
e
dir
e
i
t
o) da filosofia transcendental kantiana: a assunção da natureza
imanente da crítica. As aporias dos anteriores sistemas filosóficos, os seus pontos
críticos de resolubilidade, a sua casuística, os conceitos, pertencem à memória material
do pensamento.
Por outro lado, relativamente à produção da obra propriamente dita, e às
questões que a atravessam e mobilizam, consideramos que o seu nexo é de molde a
permitir-nos a liberdade de a abordar como um diagrama assinado. E, por isso, a opção
que tomamos implica, directamente, a ecologia deste estudo e a necessidade de, para
melhor servir os objectivos propostos, isolar
±
independentemente da colaboração do
autor por exemplo com Guattari ou, de outro forma, com Claire Parnet
±
, o que cremos
pertencer a um corpo de questões e problemas mobilizadores da sua filosofia que
pretendemos destacar.
A filosofia de Deleuze tem, pensamos nós, um desígnio orientador: o de
reintroduzir o movimento (da vida) no pensamento, sem mediação. Quer dizer,
³SURGX]LU QD REUD XP PRYLPHQWR FDSD] GH PRYHU R HVStULWR SDUD IRUD GH WRGD D
UHSUHVHQWDomR´ ³ID]HU GR PRYLPHQWR REUD´ REMHFWLYR TXH QDV SiJLQDV LQLFLDLV GH
Di
ffé
r
e
n
ce
et
R
é
p
ét
i
t
ion atribui a Nietzsche e Kierkegaard,
46e que entendemos que faz
seu, deixando neste ponto clara uma linhagem de pensamento.
Assim sendo, traz para primeiro plano da reflexão a questão da diferença, não
reportada ao idêntico mas considerada
e
m-
s
i, absoluta, como um
imp
e
n
s
ado no
pensamento
47e, concomitantemente, a questão da sua apreensão, a que associa um
plano de experiência singular. Se o elemento da diferença e o elemento da reflexão não
se correspondem, mesmo porque as exigências da representação submetem a diferença à
³IRUPDGD
identidade, sob a dupla relação da coisa vista e
GRVXMHLWRYLGHQWH´
,
48pensar a
diferença em-si,
49isto é, no seu elemento próprio, exige duas tarefas críticas:
A primeira, tem como principal objectivo a denúncia da representação como
³OXJDUGDLOXVmRWUDQVFHQGHQWDO´
tal como Deleuze a define em
Di
ffé
r
e
n
ce
et
R
é
p
ét
i
t
ion,
QDV VXDV IRUPDV ³TXH FRUUHVSRQGHP DR SHQVDPHQWR DR VHQVtYHO j LGHLD H DR VHU´ H
,
correlativamente,
H[LJHPTXHVHUHVWDXUH³DGLIHUHQoDQRSHQVDPHQWR´
; a diferença
³QD
LQWHQVLGDGHFRPRVHUGRVHQVtYHO´
;
³RGLIHUHQFLDOQD
ideia, e a diferença na afirmação
TXHGHOHGHFRUUH´
. Obriga ainda a
RXWUDGLVWULEXLomRGDGLIHUHQoDTXHQmRDWUDLoRH³D
natureza do ser (como conceito colectivo e cardinal), e a natureza das próprias
distribuições (como distribuições nómadas, e já não sedentárias
HIL[DV´
.
50A segunda, implica o esforço de, na esteira
GH %HUJVRQ DFHGHU DR ³LPHGLDWR´
subrepresentativo.
51Tal objectivo
FRORFD R SHQVDGRU QXP ³SRQWR GH YLUDJHP GD
H[SHULrQFLD´
,
52impelindo-o a
³LUSURFXUDUDH[SHULrQFLDQDVXDIRQWHRXPHOKRUDTXpP
desse ponto de viragem decisivo em que, inflectindo-se no sentido da nossa utilidade, se
torna
SURSULDPHQWH H[SHULrQFLD KXPDQD´
, uma vez que
³DR GHVID]HU R TXH DV QRVVDV
47
A este respeito ver DR, p. 188³«2TXHKiDSHQVDUpGRPHVPRPRGRRLPSHQViYHORXRQmR
SHQVDGR´. Ver também DR, pp. 157, 164, 183-184, 198, 293. Ver também IT, pp. 221, VREUH ³R
LPSHQVDGR´H43+SVREUH³RQmRSHQVDGRQRSHQVDPHQWR´ 48
DR, p 94.
49
DR, p. 154: ³eQDVPHVPDVFRQGLo}HVTXHRHPVLGDGLIHUHQoDVHHVFRQGHHTXHDGLIHUHQoDFDLQDV
FDWHJRULDVGDUHSUHVHQWDomR´ 50
DR, pp. 341-346.
51
DR, p. 79. Henri Bergson, La Penséeet le Mouvant38)3DULV³$RDIDVWDUHVWHYpXLQWHUSRVWR
UHJUHVVDPRVDRLPHGLDWRHWRFDPRVQXPDEVROXWR´S'HOHX]HUHIOHFWHVREUHesta noção de imediato
SRU H[HPSOR QR DUWLJR ³%HUJVRQ -´ , SS -31, ou em Le Bergsonisme (doravante citado
como B), PUF, Paris, 1966 (1989), p. 24. O tema está também presente em DR, S ³$ IRUPD GD repetição no Eterno Retorno é a forma brutal do imediato, a do universal e do singular reunidos, que destrona toda a lei gera, dissolYH DV PHGLDo}HV «´ ou p. 79: ³1mR p HQWmR PXOWLSOLFDQGR DV
UHSUHVHQWDo}HVHRVSRQWRVGHYLVWDTXHVHDWLQJHRLPHGLDWRGHILQLGRFRPRVXEUHSUHVHQWDWLYR«$REUD
de arte moderna realiza as condições de deformação, desvio e descentramento para atingir o imediato sub-representativR«´; ou ainda a propósito da penetração no sub-representativo, MD, p. 161.
52
Henri Bergson, Matièreet Mémoire, PUF, Paris. 1939 (1985), p. 206³5HQXQFLDUDFHUWRVKiELWRVGH SHQVDUH PHVPRGHSHUFHEHUp MiGLItFLO«(quando o tivermos feito, quando nos tivermos situado naquilo que nós chamamos de ponto de viragem da experiência, quando tivermos aproveitado do luar nascente que, aclarando a passagem do imediato ao útil, dá lugar à aurora da nossa experiência humana, resta reconstituir com os elementos infinitamente pequenos da curva real de que assim nos apercebemos,
necessidades fizeram, restabeleceríamos a intuição na sua pureza primeira e
UHWRPDUtDPRVFRQWDFWRFRPRUHDO´
53Neste sentido diremos que a apreensão da diferença obriga a um conjunto de
operações do pensamento: reportar o constituído ao processo de constituição e articular
a experiência singular às suas condições e processos de produção; considerar a
passagem à existência (que Deleuze define como
e
xpr
ess
ão) de uma produtividade pura
a partir da matriz intensiva de todos os processos, nomeadamente o da produção do
real
54como positividade. O que assim se altera, e se espelha no desdobramento destas
operações noutras que se possam adequar à transformação perceptiva que lhes é
concomitante, é precisamente aquilo que Deleuze designa por imag
e
m do p
e
n
s
am
e
n
t
o.
55A matriz intensiva do real
±
a intensidade zero como princípio de produção
±
corresponde, assim o entende, à agregação de um meio próprio de experimentação de
que é contemporânea.
56Neste ponto de vista, a criação/produção do real sobrepõe-se a
todas as formas de pré-existência: sejam elas as de uma ontologia das essências, de cariz
metafísico, sejam as das condições da experiência possível, no quadro da lógica
53 Henri Bergson, op
.cit. , p. 205. Deleuze evidencia esta orientação em inúmeras passagens da sua obra,
em B, p. 93, PDV Mi QR DUWLJR ³%HUJVRQ -´ DFLPD FLWDGR OKH GHGLFD DOJXPDV SiJLQDV fundamentais não apenas para a compreensão da intuição em Bergson como para a compreensão das linhas que definem a ontologia da diferença no seu próprio pensamento.
54
Esta questão será posteriormente tratada na segunda parte desta dissertação, dedicada à estética das intensidades. Importa aqui referir a ancoragem crítica da sua teorização na obra de Kant, e particularmente na Crítica da Razão Pura, no capítulo ³$QWHFLSDo}HV GD SHUFHSomR´, no qual o autor
diferencia a grandeza extensiva da grandeza intensiva e trata da apreensão da realidade da sensação, por exemplo, p. 202. A discussão deste entendimento e a noção de diferença de potencial como relação a zero, tema nuclear do pensamento de Deleuze, ocupa um lugar de charneira em DR, pp. 298-299. Será fundamental para a sua exposição sobre a realidade intensiva da sensação como descida em profundidade ou queda, não no espaço, mas como diferença de nível ou passagem na sensação, aproximação do zero = queda, tal como a pensa por exemplo em FB, p. 78.
55
Deleuze ocupou-se sistematicamente daquilo que designou SRU ³,PDJHP GR 3HQVDPHQWR´que se prende com a sua consideração do pensamento como problema, associado às suas condições intrínsecas, e por isso, concretas, de produção. Em Nietzsche et la Philosophie, Paris, PUF, 1962 (N), capítulo III,
parágrafo 15; DR, capítulo III, pp. 169-217; PS, Conclusão, pp. 115-124; QPH, cap. 2, pp. 38-59; MP, capítulo I, pp. 9-37; IT, cap. 7, pp. 203-245. Sobre esta questão ver infra I, 2: ³2TXHVLJQLILFDSHQVDU"´S 77 e seguintes. Deleuze refere continuamente, em entrevistas e textos ao longo da sua obra, essa preponderância do tema no seu pensamento. Ver, por exemplo, RF, S³«SDUHFLD-me que não se poderia atingir as potências da diferença e da repetição, senão pondo em questão a imagem do SHQVDPHQWR´ H, na página seguinte, ³XPD QRYD LPDJHP GR SHQVamento, ou antes, uma libertação do pensamento por relação com as imagens que o aprisionam, foi o que havia já procurado com Proust. Mas em Différenceet Répétition essa procura torna-se autónoma e devém a condição para a descoberta dos dois conceitos. Assim é o capítulo III que hoje me parece mais necessário e mais concreto e introduzir aos livros seguintes, até às investigações com Guattari, quando invocamos para o pensamento um modelo YHJHWDOGHUL]RPD«´
56 Tal como expresso, por exemplo, em MP, p. 20³2&V2pRRYR0DVRRYRQmRé regressivo: pelo
transcendental, como acima já apontámos. A apreensão da diferença
±
da novidade
±
,
põe em jogo a indicação bergsoniana, expressa, por exemplo, em
La P
e
n
s
ée
e
t
l
e
Mouvan
t
, relativa à
QHFHVVLGDGHGH³LQYHUWHU
a direcção
KDELWXDOGRSHQVDPHQWR´
.
57Isto
é, desencadeia uma aproximação crítica, associada a um processo
±
esse da inversão da
direcção habitual do pensamento
±
, que Deleuze não cessará de utilizar como processo
inerente ao seu pensamento e à elaboração da sua obra.
58No entanto, pensar o engendramento a partir da posição de imanência, isto é,
sem referência nem condicionamento externo, intentando apreender directamente o
processo, como dissemos, conduz a pensar a positividade do acto no processo, a eclosão
do
novo no movimento imanente, como re-começo,
³
segunda origem
´
.
59É nessa
medida que o engendramento se dá (acontece) a partir do interior, de próximo a
próximo, e arrasta a segregação de um espaço e de um tempo de actualização, tal como
GHXPD³FRQVFLrQFLDHOHPHQWDU´
.
60Teremos que indagar que tempo é esse que é introduzido pela repetição: do
recomeço, da metamorfose e da retoma da primeira origem pela imaginação,
61que
sintetiza como tempo do acontecimento, da aquisição do sentido e da autonomização da
57 Henri Bergson, La Penséeet le Mouvant
, p. 214: ³)LORVRIDUFRQVLVWHHPLQYHUWHUDGLUHFomRKDELWXDOGR
SHQVDPHQWR´ D TXH VH SRGH FRQMXJDU R TXHo autor afirmara DQWHV ³UHFRPHQGDPRV XPD GHWHUPLQDGD
PDQHLUDGLILFXOWDGRUDGHSHQVDU´S
58 Uma fórmula que pode sintetizar esse procedimento e torná-lo evidente é a da inversão do platonismo, motivo maior que aflora em momentos chave da obra de Deleuze, por exemplo, em DR, p. 82, quando a tópica é introduzida como tarefa da filosofia, ou na p. 92, quando é HQXQFLDGDFRPRQHJDomRGR³SULPDGR
GHXPRULJLQDOVREUHDFySLDGHXPPRGHORVREUHDLPDJHP´³DIXQGDPHQWRXQLYHUVDO´GRIXQGDPHQWR UHGXomRGDFRLVD³jGLIHUHQoDTXHDHVTXDUWHMDHDWRGDVDVGLIHUHQoDVQHODLPSOLFDGDVSHODVTXDLVSDVVD´
Regressa ao tema na conclusão do capítulo II (³La répétition par ele même´), em jeito de síntese, p. 168:
³3ODWmRWHQWDYD GLVFLSOLQDU R (WHUQR 5HWRUQR ID]HQGR GHOH XP HIHLWR GDV ,GHLDV TXHU GL]HU ID]HQGR-o copiar um modelo. Mas no movimento infinito da semelhança degradada «atingimos esse ponto em que tudo muda de natureza´. Com a mesma questão abre o texto que publica em apêndice à LS,
³6LPXODFUH HW SKLORVRSKLH DQWLTXH´ S 7DPEpP Dt R SURFHVVRé descrito como conduzindo ao afundamento do fundamento (p. 358). O que está em causa, em ambas as obras, é afinal o desfazer da coerência da representação (DR, pp. 165-168; LS, p. 360) e a sua substituição pela coerência do excesso
³LGHQWLGDGH LPDQHQWH GR FDRV FRP R FRVPRV´ '5 S, 166; LS, p. 359). Entendemos, no entanto, que mesmo este tema pode subsumir-se no quadro maior da utilização metodológica da inversão como procedimento crítico determinante para o pensamento, porque como escreve em RF, p. 58, se o pensamento se organiza ³VHJXQGR HL[RV H GLUHFo}HV´ ³FRQIRUPH DV GLUHFo}HV QmR IDODPRV GD PHVPD maneira, nem encontramos as mesmas matérias: com efeito, é também uma questão de linguagem e de
HVWLOR´.
59*LOOHV'HOHX]H³&DXVHVHWUDLVRQVGHVvOHVGpVHUWHV´LQ
I, pp. 16-17: ³1mR é suficiente que tudo comece, é necessário que tudo se repita, uma vez completado o ciclo das combinações possíveis. O segundo momento não é o que sucede ao primeiro, mas a reaparição do primeiro quando o ciclo dos outros momentos se completou. A segunda origem é então mais essencial que a primeira, porque nos dá a lei da
VpULHDOHLGDUHSHWLomRGHTXHDSULPHLUDQRVGDYDDSHQDVRVPRPHQWRV´
60
DR, p. 284.
61*LOOHV'HOHX]H³&DXVHVHWUDLVRQVGHVvOHVGpVHUWHV´
I, p. ³«RPRYLPHQWRGDLPDJLQDomRdas
obra, isto é, como tempo próprio da criação. Teremos, igualmente, que indagar de que
modo o pensamento apreende as condições do engendramento, tornando-se por seu
turno acto de pensar, quer dizer, de que modo o pensamento pensa a sua própria
génese.
62III
.
'HOHX]H GL] UHSHWLGDPHQWH ³FRPHoD
-
VH VHPSUH SHOR PHLR´
,
63tomaremos
literalmente essa indicação. O nosso ponto de partida para a compreensão da construção
do plano de criação
±
na articulação que pressupomos entre a ontologia da diferença e a
estética das intensidades
±
, é, assim, a consideração do que designa por duplo
movimento da imanência,
64no qual se conjugam a constituição ontológica e a produção
expressiva ou estética.
Mas é aqui imprescindível proceder a um acerto das noções em jogo, que terá
que ir sendo feito e aferido à medida do desenvolvimento desta investigação, desde logo
neste momento inicial de definição de um campo problemático, para identificar as
questões que levantamos num léxico próprio do autor, de molde a evitar colagens com
outros léxicos com os quais se cruza e dialoga, e o obscurecimento do seu pensamento e
das distinções que efectua.
Se Deleuze cria novos conceitos, como veremos, também reutiliza, reactiva e
transforma conceitos de outros pensadores, como é, por exemplo o caso do conceito de
essê
n
c
ia
,
a
c
id
e
n
te
,
t
ran
sce
nd
e
n
t
al
(Kant) ou do
E
te
rno R
et
orno
(Nietzsche). Assim,
esta especificação preliminar é necessária e tanto mais premente quanto procura ir ao
62 DR, pp $t QR FDStWXOR ³,PDJH GH OD SHQVpH´ LQWURGX] D TXHVWmR GD SDVVDJHP QR
pensamento, da possibilidade ao engendramento, que é também a passagem do hipotético ao categórico.
63
MP, p. 36, mas também Gilles Deleuze, Claire Parnet, Dialogues, Flammarion, Paris, 1977 (doravante
citado como D), pp. 50-51.
64 ³&DXVHVHWUDLVRQVGHVvOHVGHVHUWHV´, I, p. ³O élan do homem que o arrasta para as ilhas retoma o
duplo movimento que produz as ilhas em VL SUySULDV´. Fundamental para o esclarecimento do desdobramento expressivo da imanência é a leitura de Gilles Deleuze em Spinoza et le Problème de