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Durkheim e o Mito

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Academic year: 2021

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Pierre Sanchis**

Resumo: para Durkheim a relação entre mito e ciência não é simples. Nem constante.

Ela vai se enriquecendo no decorrer do tempo, numa complexa trama analítica que põe em jogo as oposições, por um lado entre a radical função mitológica e o repertório concreto dos mitos, por outro lado o nível gnosiológico e aquele do “faz viver” social dos humanos, onde se pode constatar a permanência de certa dimensão mítica.

Palavras-chave: Durkheim. Mito. Religião. Estrutura.

O

pensamento de Durkheim foi pouco trabalhado neste sentido1. Vê-se de

prefe-rência nele o instaurador de um positivismo sociológico, o homem que lutou contra os Mitos, para liberar os seus concidadãos daquilo que os impedia de aceder à visão científica - ou “racional” - do mundo das coisas e das relações sociais.Este Durkheim, de fato, existiu.

DURKHEIM E O MITO*

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* Recebido em: 24.01.2013. Aprovado em: 30.01.2014. O presente texto, inicialmente desti-nado à transmissão oral, retoma a substância de dois trabalhos anteriores (“Ainda Durkheim, ainda a religião” [em ROLIM 1997, p. 11-31] e “A contribuição de Emile Durkheim” [em TEIXEIRA, 2003, p. 36-66]), reformatando-a nas perspectivas do Mito. Agradeço à Profa. Izabel Missagia, que incentivou sua publicação e assumiu generosamente, com a colabo-ração de Carlos Eduardo Cardozo, a quem também agradeço, a sua formatação conforme as exigências editoriais da revista.

** Doutor pela Ecole des Hautes Études em Sciences Sociales de Paris. Professor emérito na UFMG. Estudou o catolicismo popular em Portugal e no Brasil. É autor de Arraial, a festa

de um povo: as romarias portuguesas, Lisboa, Dom Quixote (Edição francesa pela EHESS) e de vários artigos. Organizou Catolicismo (São Paulo, Loyola, 3 vol) e Fiéis e cidadãos.

Percursos de sincretismo no Brasil (Rio de Janeiro, Eduerj). Atualmente estuda a relação do campo religioso no Brasil com o sincretismo e a modernidade.

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Em 1895, no Prefácio das Regras do Método Sociológico, Durkheim não esconde sua preocupação ao constatar um “tempo de renascimento do misticismo”, mas ex-pressa imediatamente - e em contraposição - sua “fé no futuro da razão”. É para contribuir ao advento deste futuro que ele empreende de “estender à conduta hu-mana o racionalismo científico”, pois uma “operação racional”, espera ele, pode-rá vir um dia a “transformar-se em regras de ação para o futuro” (DURKHEIM 1963, p. IX)2 . Um nítido programa iluminista, positivista e laicizador do

cam-po ético e cam-político. E esta instauração de uma cosmovisão “cientista”, deve se processar limpando o terreno do primeiro ocupante que a dificulta: o “Misti-cismo”. Neste sentido, Durkheim opõe o “conceito cientificamente formado” (DURKHEIM 1963, p. 32) às “categorias empíricas” sobretudo àquelas cuja formação está sendo influenciada pelo sentimento: Nos apaixonamos por nossas crenças políticas ou religiosas. Ora, estes “sentimentos” são objetos da ciência e não seus instrumentos. “Não seria exagerado qualquer protesto contra tal doutri-na mística, que - como qualquer misticismo, aliás - não passa de um empirismo disfarçado, inimigo de toda a ciência” (DURKHEIM 1963, p. 33).

Ora, do ponto de vista epistemológico puro, quais as formações “ideáticas” que corres-pondem a este estado “místico”? Representações coletivas, produtos da “ideação coletiva” (DURKHEIM, 1963, p. XVIII), que ele enumera duas vezes na mesma página, começando nas duas vezes pela mesma categoria: “Os mitos, as len-das populares, as concepções religiosas de todo tipo, as crenças morais, etc...” e ainda: “Os temas míticos, as lendas e tradições populares, as línguas” etc.. (DURKHEIM, 1963, p. XVIII-XIX). E destas “concepções religiosas” - em primeiro plano, dos Mitos - eminentemente coletivas, ou sociais, ele descreve o caráter “específico” e, para dizer mais claramente, “estranho” para o cien-tífico: “De fato, é difícil não ter o sentimento desta especificidade. Não será ela, com efeito, que nos faz parecer tão esquisita a maneira toda especial com que as concepções religiosas (eminentemente coletivas) se misturam, ou se separam, se transformam umas nas outras, produzindo composições contra-ditórias que contrastam com os produtos ordinários do pensamento privado?” (DURKHEIM, 1963, p. XIX).

Para situar exatamente o meu raciocínio, acrescento que, em outros textos ainda - e até o fim da vida (DURKHEIM 19893, p.139) nunca Durkheim pretendeu estudar

os Mitos em si, mas somente enquanto eles ajudam a entender “as ideias sobre as quais [a religião] repousa” e sem o estudo das quais “é impossível entender o que quer que seja de uma religião”. Neste sentido, “os mitos” são somente uma parte das crenças religiosas.

Não é nossa intenção retraçar aqui todas as especulações das quais se fantasiou o pensamento religioso. O que estamos procurando são apenas as noções

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ele-mentares que estão na base da religião: mas não seria o caso de segui-las atra-vés de todos os desenvolvimentos, às vezes tão densos, que a imaginação mito-lógica lhes imprimiu, a partir daquelas sociedades (DURKHEIM 1989, p.139). O que não prejudica a afirmação concomitante do princípio complementar. Com

efeito, quando fala das “crenças religiosas”, Durkheim pretende não poder analisá-las com êxito senão a partir do princípio que constitui a raiz mesma do processo mitológico - ou mitologizante. Se, num determinado nível, o nosso autor quase não fala dos mitos (i.e., do corpus mítico, da “mitologia”), num outro nível, mais radical e seminal, ele não fala de outra coisa. E não só quando fala de religião.

Pois o Universo-para-os-homens (para os grupos de homens) é, de fato, o produto de uma imensa operação que põe em jogo imaginação, emoção e sentimento, e que se aproxima formalmente do processo de constituição do mundo mítico. O homem social é naturalmente um fabricador de mitos. É até esta função que o caracteriza: “A vida social é feita de representações”.

Isto é o fato - que mostra a importância de certa dimensão mítica na vida da humani-dade. Mas é sobre a avaliação - a valorização - deste processo, aparentemente oposto em seu princípio, ao processo de constituição do universo científico, que Durkheim vai evoluir, desde as Regras do Método [1895] até as Formas elementares da vida religiosa [1913], sua última grande obra.

No início, e paralelamente à sua obra científica, ele se lança à missão constru-tora de uma sociedade laica, em que as representações coletivas, cada vez mais racionais, seriam administradas às novas gerações por uma escola (a “escola laica”) liberada do estorvo da religião. Este empreendimento político não seria outra coisa senão um reforço sistemático a uma metamorfose espontânea do pensamento humano, chamado a passar, historicamente, do Mito à Ciência. Pois tal é o seu caminho natural, que o leva progressivamente, a partir das

“representa-ções coletivas” pouco racionais, precisamente porque coletivas, imaginativas, embrulhadas nas impurezas dos sentimentos, das paixões, das sensações - a umas representações reguladas pelo exercício de uma razão controlada pela ló-gica. Lembrem-se do famoso texto escrito com Mauss em 1902 (Algumas formas primitivas de classificação), sobre as “categorias”, um texto que tenta redescobrir o caminho epistemológico do espírito humano e das construções do mundo que, sucessivamente, ele opera. No início estava a sociedade. A partir dela e de suas “formas” (a “morfologia social”), os homens, coletivamente vão desenhando os contornos de um universo - que será o seu universo (um universo próprio a cada grupo social, correspondente à sua experiência) - através da construção de uma grelha de categorias, que tornem este universo cognoscível, compreen-sível, intelegível. Mas de uma “intelecção” ainda toda presa, embrulhada, no

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concreto da experiência imediata do grupo e nas imagens que esta experiência, carregada de sentimento, suscita. Neste sentido, a história será um imenso movimento de purificação, em direção à emergência do indivíduo autônomo e à dominação da razão. Do concreto ao abstrato e da “lógica da emoção” à “lógica do conceito”. Podemos dizer: do Mito à Ciência, pois os exemplos que Durkheim dá desta lógica sociocêntrica da emoção são precisamente elemen-tos comuns nos universos míticos. Por exemplo, a capital política do grupo considerada como o “centro do mundo” ou o “umbigo da terra” (DURKHEIM; MAUSS, 1901-1902, p. 202).

Desse modo, a história da classificação científica é, em definitivo, a própria história das etapas no curso das quais este elemento de afetividade social se enfraqueceu progressivamente, deixando cada vez mais o lugar livre para o

pen-samento refletido dos indivíduos (DURKHEIM; MAUSS, 1901-1902, p. 203a).

Mas este movimento hoje terá chegado a sua plena realização?: “Todavia muito falta ainda para que essas influências longínquas, que acabamos de estudar, tenham cessado de se fazer sentir” (DURKHEIM; MAUSS, 1901-1902, p. 203a). Daí a necessidade de uma política educacional que ajude a transformação, para que a “ciência” possa acabar ocupando a totalidade, que lhe compete por di-reito, do espaço epistemológico.

Logo em 1898 ou 19024, no entanto, Durkheim expressa o cuidado que lhe inspira,

como um já palpável resultado desta cruzada, a situação da moral laica, aque-la que “se proíbe qualquer empréstimo às religiões reveaque-ladas”. Com efeito, constata ele neste sentido, uma vez destacada do seu conúbio multisecular com a religião, esta moral, na qual Durkheim tanto tinha apostado, parece ter perdido a sua “força”. “Empobrecida, descorada”, ela “ministra uma edu-cação moral sem prestígio e sem vida”. O já calejado militante parece então resignar-se à constatação de um fracasso: uma ética cortada da religião não se revelaria impotente para o cumprimento de seu papel essencial: infundir “verdadeiramente”, não já aos indivíduos mas à França coletiva, “um estado de saúde moral”. É que, em perspectivas laicas, falta ao educador “aquilo que o levantava acima dele próprio e lhe comunicava um suplemento de energia”. Seria preciso, pois, voltar à religião? Sem dúvida, não! Mas também “não bas-ta suprimir; é preciso substituir”. Finalmente, para funcionar como cimento de uma nova sociedade, a moral deve revestir-se de uma aura religiosa - ainda que não se saiba bem como... Trata-se, na verdade, nesse texto, de uma po-sição problematizadora, ambígua e indefinida entre o campo da moral e o da religião5, problema fundamentado numa outra ambivalência: entre a Ciência e

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Mais dez anos passam, e Durkheim. escreve, enfim, as Formas elementares da vida reli-giosa. O “frio moral” continua. A “potência criadora de ideais enfraqueceu-se”. Mas tal situação “não saberia prolongar-se”. Aquele misticismo que anteontem merecia exorcismo, é chamado agora a manifestar-se e a se reafirmar. Mais ain-da: ele está como que exorcizado: já desponta, já vem!...” Nossas sociedades portam nelas mesmas suas fontes de calor”. “Este estado de incerteza e de confusa agitação não saberia durar eternamente. Um dia virá...!”

(DURKHEIM 1968, p. 610; 1969 [1914], p. 77, 102). É a proclamação da ne-cessidade e da permanência da “religião”. Mas de uma religião que não repita simplesmente as religiões do passado e, sobretudo, que não pretenda anular a progressiva e definitiva investida triunfante da “razão”.

Pois nada é negado da análise anterior. O homem social continua sendo considerado como fabricante de universos imaginários (ou “imaginativos”), ao contrário do que sugeriria a pura lógica da razão conceitual, mas esta dimensão (faculdade) não é mais agora simplesmente um defeito, e um defeito provisório. Ela faz parte da realidade humana, uma realidade que precisa dela para poder desen-volver-se em plenitude. Por isso, enquanto houver homens, ela subsistirá. Vejamos algumas das características próprias a este universo imaginário (mítico) que

Durkheim identifica doravante como parte da “religião”. MITO E RELIGIÃO

O seu traço fundamental, ao contrário do que os fundadores da República laica tinham pensado, é seu caráter “dinamogênico”.6 A palavra é de Durkheim, e pretende

recobrir a realidade da Vida. A religião vem para fazer viver os homens. Toda uma dialética, sem dúvida inscrita na concretude da história, continua a existir entre essas produções imaginárias que a fundem e a progressivamente vito-riosa razão. O tema desta oposição não desapareceu. Mas aquele progressivo deslizar que fazia os conceitos desprender-se pouco a pouco de seu “embru-lhamento” nas coisas humanas (os fatos de morfologia social e o compro-metimento com os sentimentos e as emoções, a propósito da família, do clã, da tribo, emoções que acabam colorindo de imaginação qualquer categoria primitiva...), para desembocar, purificados, numa lógica estritamente racional, doravante não se afirma mais de modo linear. Ele está preso num movimento dialético. As categorias, que serviam antes de tudo para tornar o mundo in-teligível, desdobram-se agora, sem perder este papel, em múltiplas funções entrelaçadas: a de conhecer, sem dúvida, mas também a de embasar e guiar a ação (a ética), e, mais fundamente ainda, a de motivar e impulsionar esta ação coletiva, pelo desafio permanente que elas dirigem às “fontes de energia” imersas nas profundezas da vida coletiva, as únicas capazes de dar origem a

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esta ação. Tal é a missão primordial, mais ainda do que a simples tarefa epis-temológica, doravante impartida à categoria fundante da religião, a categoria do Sagrado, uma categoria que domina o universo mítico, como já estava claro no texto de 1902 sobre a classificação primitiva. “A religião, com efeito, não é somente um sistema de idéias, é antes de tudo um sistema de forças [O “mito” não se reduz a um conjunto de “ideias”...]. O Homem que vive religiosamente não é somente o homem que se representa o mundo de tal ou tal maneira, que sabe o que outros ignoram; é antes de tudo um homem que experimenta um poder que não se conhece na vida comum, que não sente em si-mesmo quan-do não se encontra em estaquan-do religioso. A vida religiosa implica a existência de forças muito particulares. Não posso pensar em descrevê-las aqui. Direi simplesmente que são as forças que levantam montanhas. Entendo com isso que, quando um homem vive da vida religiosa, ele pensa participar de uma força que o domina, mas que, ao mesmo tempo, o sustenta e o eleva acima de si próprio. Apoiado nela, parece-lhe que pode enfrentar as dificuldades da existência, que pode até dobrar a natureza a seus desígnios” (DURKHEIM, 1969 [1914], p.74). O mundo das representações míticas diz assim diretamen-te respeito à ação. E à Vida. Ele nasce da “efervescência” criadora do social e contribui para manter as condições da mesma criatividade. O seu caráter mais fundamental é ser “dinamogênico.”7

Mas trata-se, é claro, de ação e de vida coletivas. Conhece-se a tese fundamental de Durkheim, tese de que a sua obra inteira não foi senão um comentário - ou, melhor em torno da qual a obra constitui-se em “variações”, como uma sin-fonia musical que retomaria sem parar um tema singelo até fazê-lo revelar potencialidades latentes e inesperadas... As “ideações coletivas”, a “consci-ência coletiva”, as “representações”, quando são coletivas - e no primeiro plano as representações míticas - precedem o indivíduo e impõem-se a ele. Mas também, ambigüamente ou, melhor, de maneira ambivalente, o ajudam a viver: “Pois um deus não é somente uma autoridade de que dependemos, é também uma força sobre a qual se firma a nossa força” (DURKHEIM 1968, p. 299). Um deus? É igualmente bem conhecida a equação aparentemen-te tranquila de Durkheim: Deus sive societas. Sem dúvida os aparentemen-textos nesaparentemen-te sentido são numerosos e claros. Notemos somente por enquanto que mais os anos passam mais a noção de símbolo introduz-se entre este deus e a sociedade, que ele não mais “é”, simplesmente, mas “simboliza”. Simbo-lizar... fazer dizer às coisas outra coisa que o que elas são, fazer falar o mundo. “A vida social, dirá Durkheim, não é possível senão graças a um vasto simbolismo” (DURKHEIM, 1968, p.331). Por cuja operação nasce en-tão um universo-para-o-homem, além daquilo que o universo “é”. Ou me-lhor, as representações coletivas fazem existir o universo, “acrescentando” à

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sua materialidade (os “dados imediatos da intuição sensível” [DURKHEIM, 1968, p.325]) uma dimensão “delirante” (a palavra, insistente, é do próprio Durkheim [DURKHEIM, 1968, p. 324-5]8) que, mesmo se “tecida de

aluci-nações”, confere às coisas uns “poderes que agem como se fossem reais e determinam a conduta do homem com a mesma necessidade de forças físi-cas” (DURKHEIM, 1968, p. 326). Neste sentido, a faculdade “mitológica” constitui simplesmente a exacerbação de uma faculdade fundamental, que faz o homem, porque faz o universo-para-o-homem: “Em sentido filosófico, o mesmo se dá com todas as coisas, pois tudo existe pela representação. Mas, como mostramos (DURKHEIM 1989, p.325-6), a proposição é duplamente verdadeira no que concerne às forças religiosas, porque na constituição das coisas não existe nada que corresponda ao caráter sagrado” (DURKHEIM, 1989, p. 414). Toda vida social é assim dominada por processos “ideais” (“idealismo temperado” [DURKHEIM, 1989, p. 414]), processos cuja na-tureza paradoxal consiste em terem eles consequências verdadeiras e até ra-dicais, mesmo tratando-se de investir em alguns seres, coisas e gentes uma qualidade totalmente “superacrescentada”9: entre outras, e a um nível

funda-mental, a do “sagrado”!10 A força religiosa é o sentimento que a coletividade

inspira a seus membros, mas projetado fora das consciências que o experi-mentam, e objetivado. Para objetivar-se, ele se fixa sobre um objeto, que se torna sagrado (DURKHEIM, 1989, p. 327). Atribuição perfeitamente arbi-trária, em nada correspondendo a qualidades intrínsecas do objeto, mas que doravante vai comandar uma partição do universo (“sagrado” / “profano”), que lhe atribui sentido e institui, no seu interior, uma escala hierarquizante de valores11. O universo que passa a ser o “verdadeiro” para o homem é fruto

desta sua faculdade mítica. O mundo no qual o homem vive e atua é o mundo do “delírio”, de um relativo “escândalo lógico” (DURKHEIM, 1989, p.177), que, por sua vez, o desenvolvimento dos mitos (da “mitologia”) é precisa-mente destinado a “atenuar”. Como se houvesse dois níveis na consideração do mito. O primeiro, o da faculdade mítica, que se confunde com a exacerba-ção desta faculdade fundamental, cuja existência define o homem (“Apenas o homem tem a faculdade de conceber o ideal e de acrescentá-lo ao real...” [DURKHEIM, 1989, p. 499]) e que se traduz pela criação de um invólucro imaginário para o mundo (“delírio”), invólucro que, sem existir realmente neste mundo, o investe de “um imenso simbolismo”, carrega-o de sentido e vem culminar na emergência da dimensão “sagrada”, totalmente “inventada” ela, e “superacrescentada ao real”, mas que acaba criando “valor”, originan-do a partição originan-do munoriginan-do em “bem” e “mal”, finalmente organizanoriginan-do e impul-sionando a ação humana... O segundo nível, objetivado na produção mítica: o conjunto dos mitos, a mitologia, cuja elaboração seria um meio de exorcizar

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o caos lógico cujo princípio foi introduzido pelo primeiro nível, e de “dar [a esta duplicidade] um ar de inteligibilidade” (DURKHEIM, 1989, p.177). Durkheim pretendeu estudar o primeiro nível (as “ideias fundamentais”, a função mítica) e nunca o segundo, o “dos mitos concretos”.

E quais são as condições para que este processo fundamental se desencadeie? As con-dições de uma “termodinâmica sociológica”12, baseada nas “energias novas”

(DURKHEIM, 1968, p. 315), nas “forças excecionalmente intensas” que se “de-sentranham dos homens reunidos” (DURKHEIM 1969 [1914], p.74). É preciso ler, no coração das Formas, a longa descrição do intichiuma, sequência ritual dominada por um “delírio” (DURKHEIM, 1989, p. 282-6) coletivo - ou ainda a dos ritos piaculares por ocasião da morte e das catástrofes sociais, ou ainda da iniciação e do sacrifício. “Uma vez os indivíduos reunidos, desentranha-se de sua aproximação um tipo de eletricidade que os transporta rápido até um grau extraordinário de exaltação”. “Exaltação”, “entusiasmo”, “efervescência”, “frenesi”, “tumulto”, “ser novo”, “mundo diferente”, “metamorfose,” “galva-nização” caracterizam o mundo sagrado. Por oposição ao mundo profano, em que se arrasta, na banalidade quotidiana da produção, uma existência enlan-guescida (DURKHEIM, 1989, p. 269-86; 464-92).

Por causa de tais condições de excepcionalidade na irrupção do sagrado, um tipo par-ticular de ações sociais instaura-se no coração do fenômeno religioso: o rito, a Festa. Pois tal estado de superexcitação não poderia durar (DURKHEIM 1989, p. 415). A vida quotidiana e suas tarefas (a razão “prática”) chamam o homem; as suas energias vitais pedem para se distender, os interesses individuais para dispersar os que os perseguem. Por isto será preciso reavivar recorrentemente o acesso criador e coletivo à emergência do sagrado, quando o grupo “exalta-se acima de si próprio”. E são os ritos, nestas condições, que terão de assegurar em permanência “o renascimento parcial e enfraquecido da efervescência das épocas criadoras” (DURKHEIM, 1989, p.135).

Mas estes “ritos” não adquiririam sentido nem infundiriam sentido à vida social se se esgotassem ao nível dos gestos ou dos comportamentos. Eles devem atingir as faculdades intelectivas (a “ideação”). E, para isso, precisam de ser “explicados”. Esta é a função dos Mitos. Por isso, Durkheim, mesmo se não estudou explicita-mente as “mitologias”, proclama a necessidade de seu estudo. “Representações” e “práticas rituais” compõem juntas qualquer religião. Os dois aspectos se ex-plicam um pelo outro: “O culto deriva das crenças, mas reage sobre elas: o mito modela-se muitas vezes pelo rito afim de explicá-lo, sobretudo quando o seu sentido não é, ou não é mais, aparente. Inversamente, existem crenças que só se manifestam claramente através dos ritos que as exprimem. As duas par-tes da análise não podem , portanto, deixar de se interpenetrar (DURKHEIM 1989, p. 139)”.

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MITO E CIÊNCIA

Durkheim reencontra, no fim de sua carreira, o problema que a inaugurou. A Conclu-são das Formas o aborda explicitamente. Nossa época é a da Ciência. Cujo prestígio epistemológico, aliás, depende da “fé” que a nossa consciência cole-tiva põe nela13. Mas nenhuma fé religiosa poderia independentizar-se de suas

conclusões. A religião é destinada, antes de tudo, a “fazer viver”14. Fé e rito

são seus instrumentos neste sentido. E, neste plano, sua competência não está atingida pela Ciência, cuja ambição é somente de permitir ao homem conhe-cer15. Mas um rito não poderia funcionar sem que os homens vejam sua razão

de ser; uma fé ser aceita sem que se “estabeleça a sua teoria” (DURKHEIM, 1989, p. 509). Eis, pois, um terreno em que os mitos religiosos não podem ignorar a ciência e têm que se articular com suas conclusões. Mesmo assim, no entanto, as premências da vida virão impor aos homens urgentes desafios de conhecimento, que o lento caminhar metodológico da ciência será impo-tente para solucionar. “Teorias que se destinam a fazer viver, a fazer agir, são pois obrigadas a passar à frente da ciência, completando-a prematuramente” (DURKHEIM, 1989, p. 509). Mas “levando-a em conta”, aceitando as suas conclusões adquiridas16, “sem que seja possível, [aliás], determinar limites a

sua influência futura” (DURKHEIM, 1989, p. 509)17.

Por sua vez, esta sucessão de ritos e o universo de representações míticas que a jus-tificam (DURKHEIM, 1989, p. 163) exigem de ser regulados, afim de que o acesso ao Sagrado recriado e recriador, uma vez ordenado, possa canalizar a energia coletiva assim liberada O que implica um aparelho administrador do sagrado (ritos e crenças), feito de agentes, de crenças normativas, de gestos e sua justificação, de complexos verbais, de tempos, lugares e coisas: uma “igre-ja”, com sua potencialidade de permanência trans-histórica e também as suas aderências pesadamente socio-históricas. A religião torna-se então, no dizer de Hubert, um fiel colaborador de Durkheim, a “administração do sagrado”. Vê-se como um Mito pode transformar-se - sem deixar de existir e cumprir sua função-, em ideologia.

“Sagrado” e “Religião”, função mítica e “mitologia”, dois patamares deixam-se assim distinguir no interior do mesmo fenômeno religioso18. O primeiro, do momento

“fontal”, do acesso e da emergência, da efervescência criadora, do princípio; o segundo, da manutenção e da reviviscência, voltado para o passado, a repeti-ção, a conservação - eventualmente a manipulação e a exploração. O “sagrado” e o “religioso”, a dimensão mítica e “os mitos”, não se confundem simples-mente; também não se opõem sem mais: eles se articulam dialeticamente, pois mesmo o momento administrador, além de sua necessária função mantenedora e reafirmadora, recela sempre a possibilidade de ressurgência efervescente do

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mesmo sagrado redivivo, ou do surgimento de um sagrado novo, surpreenden-te, inesperado. A análise durkheimiana, tanto do rito quanto da função mítica, deixa assim pairar sobre o tempo da celebração uma ambigüidade significa-tiva. A repetição pode, sem dúvida, resvalar na entropia, mas também pode virar novidade, o rito não se encerrar no ritualismo, o mito passar a informar o desenrolar da existência toda e os seus mínimos comportamentos19. O mundo

da reprodução torna-se então o da reassunção do ser, talvez até o da mudança e da projeção para uma história aberta e indeterminada. A “religião” como administração, mas também viabilização, do “sagrado”. “Mito”, sim, mas não fora da Vida.

Em todo caso, este tipo de gesto social - o rito, informado pelo mito - não é simples-mente expressivo de uma realidade já constituída. “Sistema de signos”20, sim,

mas “não de signos pelos quais a fé se traduz para fora” (DURKHEIM, 1968, p.596). Ao contrário, e numa função muito mais radical, ele constitui “uma cole-ção dos meios pelos quais a fé se cria e se recria periodicamente” ((DURKHEIM, 1968, p.596). Analogamente, este poder criador não diz respeito somente ao cul-to, mas ao complexo inteiro de crenças, sentimentos, emoções, gestos, que se constituem em emergência social do sagrado. A religião - conjunto simbólico de crenças e atitudes, mitos e ritos - é fato social, emerge do social, é signo do social, sem dúvida - e tal é a afirmação de Durkheim mais repetida pelos co-mentadores21. Mas sublinha-se menos o oposto dialético, também fortemente

afirmado por nosso sociólogo: A gênese societária da religião corresponde a gênese religiosa da sociedade (DESROCHE, 1969). Pois é por esta criação e recriação constantemente renovada do seu “sagrado”, que a sociedade, não somente se expressa a si própria - tal é, sem dúvida, a lição da moderna antro-pologia: o rito é, de fato, um meio para a sociedade se dizer a si-mesma - mas emerge à existência (“se faz e se refaz periodicamente” [DURKHEIM 1968, p. 603]) precisamente enquanto sociedade22.

Está assim explicada a angustia do militante da República laica, da escola e da “moral sem Deus”. Para que possa cumprir o seu papel de criadora do laço social e mantenedora da sociedade, a imagem “ideal” que o grupo de homens elabora de si-próprio não pode simplesmente lhe ser apresentada no prosaísmo de uma “lição” racional. Ela deve pairar acima do grupo, flamejar na sua frente, emer-gida de um episódio de efervescência coletiva, para ser capaz de “elevá-lo acima dele próprio”. Não se sabe, é certo, o que serão as religiões do futuro: semelhantes às dos evangelhos que conhecemos? ainda possuidoras de uma mitologia povoada de deuses? (DURKHEIM, 1968, p. 611)23. Mas o que é

certo é que a “nossa” sociedade perecerá se ela não gestar uma “religião” que seja a sua. Pois uma sociedade não emerge simplesmente da natureza (a “sua natureza”, “sui generis”, está precisamente neste fato), nem nasce da coleção

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de indivíduos que a compõem. Mas existe constituindo-se em super-socieda-de24, imagem “ideal” dela própria - mito dela própria - , que paira acima dela, a

define e a faz subsistir.25. É através de seu mito e em torno dele que a sociedade

“pega” (a expressão é de Marcel Mauss).

Provavelmente situamo-nos aqui à raiz mesmo do fenômeno social enquanto tal, no

locus de seu princípio, de sua emergência, de sua permanência - e não sim-plesmente em referência a uma sociedade empírica qualquer. Neste sentido, à raiz do fato social está a função mítica26.

Ao que tudo indica, Durkheim ultrapassa assim decisivamente o caráter “positivista” de seu sistema explicativo (caráter que sempre teve dificuldade em aceitar, aliás27),

para ler o princípio da criação e subsistência do social num processo logicamen-te situado aquém do “objetivo”, do simplesmenlogicamen-te empírico. A “imensa empre-sa de simbolismo”, de que falava, “acrescenta ao real” e, no entanto, através desta mesma operação, faz que o real social seja real para os homens. Já

incoativamente verdadeira em relação ao mundo físico das sensações - “pois os cheiros, os sabores, as cores que colocamos nos corpos não estão neles” (DURKHEIM, 1968, p.325), esta transfiguração criadora triunfa no campo das representações coletivas do social, soberanamente daquelas referidas ao Sagrado: “o pensamento social acrescenta ao real ou subtrai-lhe parte dele próprio” (DURKHEIM 1968, p. 327); “somente o homem tem a faculdade de conceber o ideal e de acrescentar ao real” (DURKHEIM 1968, p. 602). E é isto “que define o sagrado: que ele é superacrescentado ao real” (DURKHEIM 1968, p. 602): ele é de natureza mítica. Mito, Sagrado, Ideal,

uma sociedade não pode nem criar-se nem recriar-se sem, pelo mesmo movi-mento, criar algo ideal. Esta criação não constitui, para ela, um tipo de ato supérfluo, pelo qual completar-se-ia, uma vez formada; é o ato pelo qual ela se faz e se refaz periodicamente [...] A sociedade ideal [o Mito da sociedade, sua identidade mítica] não está fora da sociedade real; faz parte dela.[...]. Pois uma sociedade não é simplesmente constituída pela massa dos indivíduos que a compõem, pelo chão que eles ocupam, pelas coisas de que usam, pelos movi-mentos que realizam, mas, antes de tudo, pela idéia que ela se faz de si própria

(DURKHEIM, 1968, p. 604, ênfase nossa).

Pelo mito (“político’ a bem da verdade) que define, para os seus membros, o seu ser intencional28. O milagre da corda de que fala Mircea Eliade, através do qual o

fakir joga no ar uma corda e a ela se suspende, não estando ela suspensa a nada. Assim, na religião e pela religião, o real social, ultrapassando o “real” no mito, pode existir, no seu nível específico de ser. A religião, com o mundo sagrado que ela cria e administra, é sinal (símbolo, emblema), e sinal eficaz do próprio laço

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social29. Neste sentido, a “natureza” do “social”, mais ainda do que da

“socie-dade”, consiste em escapar, por este processo constituinte e transfigurador (“As mitologias engrandecem, transformam, idealizam” a realidade [DURKHEIM, 1989, p. 498], da condição de “ob-jeto”. Processo, aliás, ambíguo, sempre carregado da ambivalência (dialética?) do mito (utopia) e da ideologia.30

Mas é preciso acrescentar ainda dois traços a esta “revelação” tal é a palavra, epifânica, que melhor traduz a dinâmica, tanto das Formas elementares quanto da obra inteira de Durkheim.

O primeiro é que esta dupla sociogênese, da religião pelo social e do social pelo sa-grado, por “estrutural” que seja (faz parte da “natureza” do fenômeno coleti-vo, neste sentido é-lhe coextensiva e permanente), não está menos inscrita na história. “Há períodos históricos” onde o processo de criação de mitos é mais visível, mais real, abrangente e intenso. As revoluções, as cruzadas, o tempo de Joana d’Arc, a Revolução Francesa, mais perto de nós e tão característica deste processo (DURKHEIM, 1989, p.301): “Esta aptidão da sociedade para erigir-se em Deus e criar deuses, nunca foi mais visível do que nos primeiros anos da Revolução” (DURKHEIM, 1989, p.305). Mas se estes períodos se situam no passado e se o fenômeno é permanente (“não pode haver socie-dade sem...” [DURKHEIM, 1989, p.301]), é preciso que possamos esperá-lo também no futuro. Pois mesmo sendo impossível prever as formas de que se revestirão seus símbolos, e em que consistirão os seus mitos, é necessário afirmar que é da vida coletiva - e não de sofisticadas ideações individuais em torno de um passado morto, como a “religião da Humanidade” de Augusto Comte - “que pode surgir um culto vivo” (DURKHEIM, 1989, p.611).

Tudo o que importa, então, é sentir, por baixo do frio moral que reina na super-fície de nossa vida coletiva, as fontes de calor que nossas sociedades portam em si. Pode-se até ir além, e dizer com alguma precisão em que região da sociedade essas forças novas estão particularmente em via de formar-se: é nas classes

populares (DURKHEIM, 1969 [1914], p.77).

Estas extrapolações, bem pouco “positivistas” e até parcamente “racionalistas”31,

per-mitem entrever que o Sagrado, para Durkheim, não se expressa necessaria-mente num sistema “religioso”, no sentido que o senso comum dos últimos séculos, cartesianamente racionalizadores , gostaria de consagrar: o de um domínio abrigado dos embates da vida, e da vida social. Ao contrário, vimos Durkheim inscrever-se na linhagem dos utopistas do séc. XIX, Saint-Simon, Comte, Cabet, Fourier, os quais, todos, chegados ao fim de sua vida e de sua trajetória reflexiva, reinstauraram, de um modo ou de outro, um tipo de “reli-gião” na confluência de funções radicalmente sociais e políticas. A perspectiva

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aqui é de fronteiras movediças e abre sobre modalidades de “sagrado” ou de “mito” não “religioso”32 pendentes ou para o lado do contraste e da oposição,

cara a Péguy, entre a “mística” e a “política”, ou, simplesmente, para a “sacra-lização do político”33.

As concretizações históricas destes princípios mantêm-se, aliás, plenamente em aber-to. Já sublinhamos que se, para as tribos australianas, o momento da “produ-ção” (subsistência, economia) está do lado do profano, carregado de menores e mais individuais energias, outras sociedades poderão elevar este “momento” à centralidade de sua produção mítica, do locus matricial do seu simbolismo fundamental, como diz M. Sahlins (1979, p. 237) a propósito das sociedades modernas, numa relação eventualmente diferente com o “sagrado” e o “profa-no” que lhes são próprios.

Dizer isto poderia ainda manter a imagem de um Durkheim com perspectivas estrei-tamente estruturo-funcionalistas. “Para Durkheim, a função da religião, e do culto - por conseguinte também do Mito - é de criar coesão”, repete-se frequen-temente neste sentido, banalizando assim as posições do Mestre e deixando de lado um duplo aspecto, mais essencial. Primeiro não se trata simplesmente de manter coesa uma sociedade concreta, mas, mais radicalmente, de proporcio-nar a um grupo de homens a condição fundamental para que, ultrapassando a simples soma do seu número, possam conhecer o laço social. Segundo, existe sempre neste processo indefinidamente repetido um horizonte de surgimento do novo e de possível ruptura. Os sagrados , com os mitos que lhes correspon-dem, nascem, desenvolvem-se, morrem - e com eles as sociedades que eles sustentavam no ser. Durkheim não analisa o “como” destas possíveis mudan-ças, mas afirma o seu princípio, enquanto parte do processo normal.

PARA FINALIZAR A CONVERSA

Estes aspectos do seu pensamento parecem-me desenhar o essencial do que Durkheim teria hoje a nos dizer sobre o tema da “religião”. Resta saber se a “lição” con-servou sua eloquência para o analista da sociedade contemporânea. Importa, pois, apontar em conclusão para alguns complementos, indicar matizes, quem sabe explicitar ressalvas. A partir do conjunto destas “posições e proposições” é que será possível cotejar a teoria do mestre com a empiria que nos desafia. É evidente, para começar, que deveria ser frisada, na evolução do pensamento de

Durkheim, o seu misto de perturbação e entusiasmo diante da progressiva emergência da “religião do Indivíduo”, que marca, também para ele, o mundo moderno34. “O indivíduo [...] cobriu-se de religiosidade; o homem tornou-se

um deus para os homens” (DURKHEIM, 1973 [1897], p. 395). Mas é preciso notar, em primeiro lugar, que este indivíduo é mais frequentemente chamado

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“pessoa”: “O axioma fundamental de nossa moral é que a pessoa humana é a coisa santa por excelência; que ela tem direito ao respeito que o crente de qualquer religião reserva para o seu deus” (DURKHEIM, 1902, p. 91). Acon-tece até que os termos de “indivíduo”, “pessoa”, “humanidade”, entrem simul-taneamente no jogo, como para afirmar fortemente que “o culto do homem é muito diferente deste individualismo egoísta a que se fez referência anterior-mente” (DURKHEIM, 1973 [1897], p. 399). Pois a “pessoa” é o resultado de um processo constitutivo que refere o indivíduo aos outros homens e à humanidade como um todo. Neste sentido, é importante cotejar o “culto do indivíduo” e a “religião da humanidade” durkheimianos com a emergência, moderna e pós-moderna, do indivíduo. Por outro lado, se a religião acaba se transformando num fato individual, ou se o indivíduo-pessoa, enquanto ho-mem, passa a revestir-se no decorrer de nossa história de um caráter hierático, estes fatos, para Durkheim, em nada contradizem a tese da origem social do sagrado: “Quando a religião parece caber inteira no foro íntimo do indivíduo, ainda assim é na sociedade que encontra a fonte viva da qual ela se alimenta” (DURKHEIM 1968, p.607). E Mary Douglas não faz senão prolongar a posi-ção do Mestre até numa situaposi-ção limite, quando escreve:

Quando pensamos ser a primeira geração não controlada pela idéia do sagra-do, os primeiros a sermos capazes de nos colocar uns frente aos outros como indivíduos verdadeiros, os primeiros, pois, a atingir uma verdadeira consciência de si, trata-se, sem dúvida, de uma representação coletiva (DOUGLAS, 1986, p. 99, apud BELLAH, 1990, p. 23).

Mesmo assim, a brilhante análise da “efervescência coletiva” deixa descoberto outra origem possível - e historicamente atestada - do sagrado e das religiões: ao lado do modelo explosivo e extrovertido e em contraponto a ele, o modelo introvertido da ataraxia. No mapa do sagrado, e por larga que se apresente a estrada traçada por Durkheim, talvez não constitua o único caminho.

A “descoberta” que tentei mostrar como progressiva na obra de Durkheim35

poderia ter sido periodicizada com mais detalhe e rigor. Não com muito mais nitidez conceitual, no entanto. Este fato é sinal de que as perspectivas que acabamos de ler nos últimos textos de Durkheim, se, por um lado, existiam incoativamente no pensamento elaborado nas suas primeiras obras36, por outro

lado não chegaram a expressar-se, nas Formas, com a clareza que poderíamos desejar37. Parece todavia que os comentadores estão cada vez mais a insistir

sobre a efetiva existência destas perspectivas no último Durkheim e a frisar a inflexão radical que elas imprimem ao pensamento durkheimiano e à interpre-tação que a ele se pode dar.38

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Este progressivo desafio teórico à teoria da secularização deixa subsistir o inteiro pro-blema do confronto desta análise com resultados empíricos a respeito do mes-mo fenômeno39. Resultados que podem refluir em questionamentos no próprio

nível teórico. Como entender, por exemplo, o papel “durkheimiano” da religião na situação de “pluralismo religioso”40 que a secularização implica; sobretudo

quando não se trata da simples multiplicação de agências religiosas, mas da presença num mesmo espaço social de “sistemas de significação” de natureza diferente. Situação que começa com a separação da Igreja e do Estado. Neste caso até, “quando um sistema de significação enfrenta outro sistema de signi-ficação, é a própria expressão ‘sistema de significação’ que muda de sentido” (HAMMOND 1974, p.121). E entra então em jogo a definição mesma da “reli-gião”. No interior da lenta - ou rápida - deriva das sociedades contemporâneas longe de suas impregnações tradicionais pelas religiões institucionalizadas, e no bojo do surto de resignificação “religiosa” que, em muitos casos, parece prescindir de eixo e de fundamento para constituir-se “individualisticamente” através de empréstimos parciais articulados (ou acumulados) em conjuntos fluidos e provisórios, como reconhecer, qualificar e analisar, em termos de suas relações genéticas com o laço social fundamental, as novas formas, “reli-giosas” ou não, de “sagrado”? (SANCHIS, 1995, p. 81-131).

Individualismo, ataraxia, pluralismo das próprias identidades e secularização. As po-tencialidades da teoria durkheimiana carecem constantemente de uma atuali-zação, quem sabe reafirmadora, ou inovadora, ou ainda corretiva e relativiza-dora. Em todo caso, continuam elas a revelarem-se seminais. Em particular, junto com as emergências que acabamos de citar, aparentemente críticas para as elaborações durkheimianas, outras parecem vir para confirmar as linhas mestres destas elaborações. Por exemplo, o questionamento de um perfil ex-clusivo para o funcionamento legítimo da “razão”, o reconhecimento da plura-lidade dos regimes de convicção, sobretudo, talvez, a importância da emoção coletiva nas assembléias rituais dos novos fenômenos religiosos41.

Estas perspectivas do último Durkheim não evacuaram - é preciso, enfim, afirmá-lo para acabar - mas sim matizaram seriamente nele a sua “fé” primeva no triunfo definitivo e total da razão. É que, para o autor das Formas Elementares, não é mais o campo inteiro da ação social que está destinado a ser entregue ao domínio da razão científica. Por certo, tratando-se de modelar uma imagem do mundo conforme à sua verdade, é a ciência, instrumento de conhecimen-to especificamente humano, que é chamada, incontestavelmente, a substituir quase inteiramente o mito e a religião. Mesmo sob este viés epistemológico no entanto, a ciência depende em parte das representações coletivas que cada so-ciedade se faz a seu próprio respeito (“O Mito da ciência”, o “Mito da razão”, o “Mito do indivíduo”).

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Quanto à religião - e, pois, ao mito -, “sua verdadeira função não é de nos fazer pensar, de acrescentar às representações que devemos à ciência representações de outra ori-gem e de outro caráter, mas de fazer-nos agir, de ajudar-nos a viver” (DURKHEIM, 1968, p. 595). Neste particular, a ciência não saberia suplantá-la. Preocupada em não avançar suas afirmações senão escudada em certezas metodologicamente adquiridas, a ciência será sempre lenta demais para acompanhar os desafios que a vida coloca à ação dos homens em sociedade. Parece longe, pois, a espe-rança do jovem Durkheim iluminista, de que certezas “científicas” possam vir a determinar um dia os comportamentos sociais. Em duas dimensões a religião conservará sua primazia: uma, necessária para uma vida social sem anomia, a dimensão ética; a outra, mais radicalmente indispensável ainda: a da motiva-ção para a vida societariamente coletiva, que o mundo ritual e mítico, conjunto simbolico-expressivo energetizado pelas potências emocionais, proporciona aos homens “reunidos”42.

Não se trata mais, pois, de substituir a dimensão mítica da relação do homem ao mundo por uma dimensão exclusivamente “racional”, no sentido da ciência moderna. Mito e razão (moderna) precisam articular-se para permitir ao homem viver e viver em sociedade.43

Para pensar esta articulação, aliás, é preciso debruçar-se sobre o destino do princípio gerador da lógica, o princípio de identidade e não- contradição. Nas últimas obras, Durkheim recusa a dicotomia clara que permitiria opor com facilidade - até numa aparente concordância com a tese de Lévy-Bruhl - Mito e Razão como a negação ou o acatamento do princípio de não-contradição. Trata-se mais de dois regimes da razão, que não se opõem senão pelo equilíbrio diferen-te que estabelecem entre dois princípios contrários: “O princípio de identidade domina hoje o pensamento científico, mas há vastos sistemas de represen-tações, que desempenharam na história das idéias papel preponderante, nos quais muitas vezes ele é desprezado: trata-se das mitologias, das mais grossei-ras às mais elaboradas”. E, em Nota:

Não queremos dizer que o pensamento mitológico o ignore, mas que o rompe mais frequente e abertamente que o pensamento científico. Inversamente mos-traremos que à ciência é impossível não violá-lo, mesmo conformando-se mais escrupulosamente a ele que a religião. Entre a ciência e a religião, não existe, sob este aspecto bem como sob muitos outros, senão diferenças de graus; mas se não se deve exagerá-las é importante considerá-las, porque são significativas

(DURKHEIM, 1989, p. 41).

Resta saber - e a pergunta voltou a ser de uma atualidade candente, depois do triunfo - e da ruina - das grandes ideologias totalitárias, numa época que se quer pós-ideológica

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mas que vê renascer todo o dia os antigos fundamentalismos - se, em que me-dida e sob que modalidades as forças motores da ação coletiva podem, e devem, dispensar a regulação da razão. E a partir de que grau de a-racionalidade, para não falar em irracionalidade, torna-se insuportável e letal para a vida social o “delírio sagrado”, quando se apodera de coletividades humanas44. A articulação

do “mito” e da ciência, do “sagrado” e da “razão” exige, hoje, nas perspecti-vas de Durkheim ou a partir delas, uma tematização renovada.

Mas quem diz tematização reconhece a existência e a permanência do problema. Se para nós este problema pode ainda se colocar na esteira de uma leitura da obra de Durkheim, é porque a última mensagem deste filho de rabino, depois de ter ele passado pela militância antirreligiosa institucional e sem abandonar uma clara postura ateísta, implica que “existe na religião algo eterno, destinado a sobreviver a todos os símbolos particulares nos quais o pensamento religioso sucessivamente se envolveu” (DURKHEIM, 1968, p. 509).

O fenômeno religioso, tal como Durkheim pretendeu apresentá-lo ao mesmo tempo aos “livres crentes” e aos “livres pensadores” (DURKHEIM, 1969 [1914], p. 73;75), pode, no seu pensamento, revelar a uns e outros o chão em que se enraíza e de onde brota a essência do fato social pois

não significaria alguma coisa poder reconhecer que existe em nós, fora de nós, forças religiosas que depende de nos revelar, chamar à existência, que nem po-demos não gerar, pelo simples fato de nos aproximarmos uns dos outros, de

pensarmos, sentirmos e agirmos em comum? (DURKHEIM, 1969, p.76).

Para o Durkheim da maturidade, a produção de verdades em regime “científico” nun-ca irá substituir totalmente a projeção de uma rede mitológinun-ca que abarque o mundo e seu significado. Projeção “ideal”? Sem dúvida, mas para ele necessá-ria. E necessária para sempre. Neste sentido é bom terminar por esta evocação implícita do Mito e do seu valor permanente: “Enquanto houver sociedades humanas, elas tirarão do seu seio grandes ideais, dos quais os homens se farão os servidores” (DURKHEIM, 1969 [1914], p.76).

DURKHEIM AND THE MYTH

Abstract: according to Durkheim, the relationships between myth and science are not

sim-ple. Not even constant. It becomes richer with the passing of time, in a complex analytic plot which brings into play the oppositions between the radical mytholo-gical function and the concrete repertoire of myths on the one hand, and the gno-siologic level as well as the level of the social “makes living” of human being on the other, in which one can see the permanence of a certain mythical dimension.

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Keywords: Durkheim. Myth. Religion. Structure. Notas

1 “Pelo menos neste preciso sentido. Pois o caso seria diferente se tratando de mais ampla perspectiva (“Durkheim e a religião”), quando a dimensão religiosa poderia ser abordada preferencialmente a partir dos ritos, o enfoque privilegiado do autor. A pergunta seria então: terá ainda o “velho Durkheim” (R. Bellah) algo de válido a nos propor sobre um assunto que se-nos-apresenta hoje com cara tão profundamente renovada? Ou ao contrário suas teses, que a aceleração das mudanças faz soar a nossos ouvidos como repetitivamente “clássicas”, terão perdido qualquer pregnância analítica frente a fluxos sociais domina-dos por uma individualização galopante? Quero apostar, quanto a mim, que exista entre Durkheim e nós a analogia de certo “clima” intelectual, capaz de permitir significativa comunicação em torno da observação do fenômeno “religioso” e, mais precisamente, do “mito”. Quem sabe, até, com maior propriedade do que há alguns anos atrás, nesta hora em que parece instaurar-se, ambígua mas incontestável, senão uma “volta do Sagrado”, pelo menos a volta a um certo sagrado. Também no campo do estudo da religião - e não só no domínio da sociologia geral - o velho e austero Durkheim mereça ser redescoberto. Como, de fato, o está sendo. Penso no exemplo de sociólogos e antropólogos como R. Bellah (1990, pp..22-25), em artigo que comenta as conclusões do trabalho mais antigo e muito notado, reproduzido no mesmo número da Revista: “Morale, Religion et Société dans l’oeuvre durkheimienne”, Ibib., pp. 9-21) , sem falar de Parsons (1978, pp. 213-231), nos USA; Jeffrey C. Alexander (1988) e Mary Douglas (1986) do lado inglês ou, na França, os vários autores de um número dos Archives de Sciences Sociales des Religions 69 (1990), que tem por título: “Reler Durkheim”. Poder-se-ia até falar de um caráter cíclico desta redescoberta: não publicava H. Desroche há vinte e cinco anos na mesma revista o artigo intitulado: “Uma volta a Durkheim? (1969, pp. 79-88)”?

2 Parece, pois, que Durkheim, como A. Comte - ao contrário do que sugere R. Ortiz (1989) - acreditou um tempo que “a Ciência” forneceria um dia à Sociedade os princípios normativos de sua ação.

3 As referências às Formas elementares da vida religiosa correspondem à edição brasileira quando datadas de 1989. No caso contrário [1968], à edicão francesa.

4 “La morale laïque” (DURKHEIM 1963a) (As citações restantes deste parágrafo referem todas a este texto). Os comentadores discordam sobre a data do texto original. Cf. J.Baubérot (1990, p.152).

5 Ortiz (1989) destaca esta polivalência de Durkheim, ao mesmo tempo fundador de uma “Ciência”, e cultor de uma “ideologia” (no sentido moderno) ou de uma “Filosofia social”: a pedagogia,” a meio-caminho entre a “filosofia” como entendida no seu tempo (formação de um consenso republicano) e de uma ciência verdadeira, necessariamente mais lenta, mais prudente, menos diretamente engajada no fornecimento de uma “doutrina” capaz de fundar uma nova sociedade. A pedagogia, ela, misto de conclusões científicas e de orientações diretamente políticas, teria como função principal a formação dos educadores da França moderna. Encontraremos, sem dúvida, parte destas afirmações nas Formas elementares, mas não sem o que nos parece, por outro lado, ruptura e abandono de certas ilusões.

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6 “Esse caráter é o que podemos chamar a virtude dinamogênica de toda espécie de religião”. “O problema religioso e a dualidade da natureza humana”, Conferência de Durkheim sobre o seu livro na Société Française de Philosophie, 1913 (DURKHEIM 1978 [1913], p.4). 7 “É ele (o poder que possui o homem religioso) que permite à humanidade viver”, “O

pro-blema religioso e a dualidade da natureza humana” (DURKHEIM 1978, p.5). 8 “Num certo sentido (...) alucinação,(...), delírio(...), pseudo-delírio “, etc.

9 “As forcas religiosas nunca têm lugar próprio” (DURKHEIM 1989, p. 390) “Não se ligam por laços internos aos diversos suportes nos quais se colocam, não têm raízes aí; segundo uma expressão que já empregamos, e que pode servir para caraterizá-las melhor, elas lhe são superacrescentadas (ib. 389)”.

10 Há, pois, um processo universal de transfiguração do mundo pela representação: “”Criar um mundo de ideais através do qual o mundo das realidades percebidas apareça transfigurado” (DURKHEIM 1989, p. 295) ou ainda: “as qualidades sensíveis que atribuímos às coisas não estão nelas verdadeiramente”. E o mesmo processo existe como num segundo grau, no domínio da religião, através do qual “o meio no qual vivemos nos aparece como povoado de forças ao mesmo tempo imperiosas e prestativas, augustas e benfazejas, com as quais estamos em relação(...) Enquanto [as ‘coisas sensíveis’, causas objetivas de nossas sensa-ções] se vêem reduzidas a seus caracteres empíricos tais como se manifestam na experiência vulgar, enquanto a imaginação religiosa não veio metamorfoseá-las, não tínhamos por elas nada que se assemelhasse ao respeito e elas não tinham nada do que é preciso para nos elevar acima de nós-mesmos (DURKHEIM 1989, p. 267)”.

11 “Uma oposição ainda mais marcada é a que existe entre as coisas sagradas e as coisas profanas. Elas se repelem e se contradizem com tal forca que o espírito recusa-se a pensá-las ao mesmo tempo. Elas se excluem mutuamente da consciência” (DURKHEIM 1989, p. 296) Situação que torna permanente (e essencial) o efeito que o texto de 1902 atribuía às “classificações primitivas”: “As coisas, antes de mais nada, são sagradas ou profanas, puras ou impuras, amigas ou inimigas, favoráveis ou desfavoráveis” (ib., p.201). Sobre esta hierarquia e esta presença definitiva do valor, cf. L.F.D.Duarte (1986, pp. 69-94), “Classificação e valor na reflexão sobre identidade social”.

12 A expressão é de H. Desroche (1969, p.83).

13 “Temos fé na ciência. Mas essa fé não difere essencialmente da fé religiosa” (DURKHEIM 1989, p. 517)

14 “A ciência não poderia substituir a religião enquanto ação, enquanto meio de fazer os ho-mens viverem, porque se ela exprime a vida, não a cria; ela pode perfeitamente procurar explicar a fé, mas por isso mesmo ela a supõe” (DURKHEIM, 1989, p. 508)

15 “A fé é antes de tudo um motivo para agir, e a ciência, por mais longe que a levemos, per-manece sempre à distância da ação (DURKHEIM, 1989, p.509).

16 “Pode-se ir mais longe que ela sob a pressão da necessidade, mas é dela que se deve partir (ib.)”.

17 “O pensamento verdadeiro e propriamente humano não é dado primitivo, mas produto his-tórico; é limite ideal do qual nos aproximamos sempre mais, mas que, muito provavelmente, nunca chegaremos a atingir” (DURKHEIM, 1989, p.524)

18 A linhagem interpretativa dos “dois patamares” foi resenhada por D. Hervieu-Léger 1990, p.221 ss.), como tinha sido ilustrada, tempos atrás, tanto por H. Desroche (1969; 1968, p. 60) quanto por P. Berger (1979, p.43ss).

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19 Para Leenhardt como para Durkheim, o Mito mantem uma relação dialética com a racio-nalidade. Mas “não há anterioridade de um em relação ao outro”. Afinal, um pensamento “mítico” absolutizado introduziria a uma vida vivida mas impediria o conhecimento; o pen-samento a-mítico tende para uma vida que não seria mais do que conhecimento e que poria fim á vida. O Mito na sua concepção inteira, ao contrário constitui “uma forma essencial de orientação, uma forma de pensamento e, melhor ainda, uma forma de vida” (empréstimos de Leenhardt ao pensamento de Van der Leeuw; cf. cap. publicado por Religião e Sociedade, 14/1,”O Mito”, p.88-99).

20 A ideia torna-se “signo e, assim, “pode até determinar diretamente a ação”. Pois “é ele que é amado, temido, respeitado [...]. É a ele que as pessoas se sacrificam” (DURKHEIM 1989, p. 275).

21 Por isso, “se, como procuramos estabelecer, o princípio sagrado outra coisa não é senão a sociedade hispostasiada e transfigurada, a vida ritual deve poder ser interpretada em termos leigos e sociais” (DURKHEIM 1989, p. 416).

22 “É certo que para Durkheim o fenômeno religioso é fenômeno social, fenômeno instaurado pela sociedade para a sociedade. Mas é-o de tal forma e a tal ponto consubstancial ao ser social, que seria impossível não haver religião. A religião é criação da sociedade, mas criação que se confunde, em última instância, com o acontecimento da própria sociedade.” M.Gauchet (1980, p. 56-7). Parsons (1937, p. 427) já afirmava que, para Durkheim: “A sociedade é um fenômeno religioso”.

23 Sabe-se que, para Durkheim, “religião” não implica necessariamente a existência de Deus ou deuses. Nem em teoria - basta a segregação de um “Sagrado”- nem na prática: houve grandes religiões sem Deus, como o Budismo.

24 Eis como H. Desroche (1969, p.84) justifica o termo: “O termo de super-sociedade não é de Durkheim. Ele está aqui utilizado para apontar o que Durkheim identifica como não sendo nem a sociedade real, ‘cheia de defeitos e imperfeições’, nem a sociedade ideal, ‘quimera, sonho, simples ideia’, que ‘supõe a religião sem poder explicá-la’, mas a sociedade psiqui-camente atingida nos estados de super-animação social, sociedade sonhada que se ‘sobrepõe’ ao mundo profano, sociedade em ato efervescente de idealização (DURKHEIM 1968, p. 602-603)”. R. Bastide (1973, p.125-131) subscreve a esta análise, longamente comentada em ‘Trois livres et un dialogue’.

25 “É a homogeneidade destes movimentos que dá ao grupo o sentimento de si e, consequen-temente, o faz existir” (Ib., p.330). “Pois uma sociedade (...)é constituída antes de tudo pela ideia que se faz de si própria (Ib., p.604).

26 Opondo Comte e Durkheim a de Maistre e Bonald, J. Milbank escreve :” Embora tenham hipostasiado a sociedade, de Maistre e de Bonald ao menos mostraram vislumbres da per-cepcão pós-moderna de que nenhuma explicação social pode ser buscada além do mythos infundado que uma sociedade particular projeta e representa para si. Comte e Durkheim, em comparação, tendem muito mais a recair num formalismo que remete todo conteúdo religioso ou mítico particular às constantes exigências das relações sociais” (MILBANK 1995, p. 92). A situação de Durkheim não parece tão simples. Por um lado, é a própria so-ciedade que existe enquanto tal por ser fundada na sua auto-representação erigida em valor sagrado (MILBANK, 1995, p. 92: “Por vezes, [Durkheim] insiste em que a sociedade só existe por meio de sua auto-representação simbólica”); por outro lado, estas representações “míticas”, apesar de emergir de situações sociais particulares, não constituem “simples

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epifenômeno de sua base morfológica” podendo libertar-se destes constrangimentos para se desenvolver conforme uma lógica própria (DURKHEIM 1989, p. 501).

27 “Na verdade, nem um nem outro destes títulos -materialista ou espiritualista - nos convém com exatidão. O único que aceitaríamos seria o de racionalista [...] O que apelidaram de nosso positivismo não é nada, na verdade, senão uma consequência deste racionalismo” (DURKHEIM, 1963, p. IX). E, mais tarde, “O racionalismo que é imanente a uma teoria sociológica do conhecimento é, pois, intermediário entre o empirismo e o apriorismo clás-sico (DURKHEIM 1989, p. 48)”.

28 “Nenhum povo e mais a mais um povo de tantos séculos de vida comum e tão prodigioso destino , pode viver sem uma imagem ideal de si-mesmo” A propósito de Portugal, Lou-renço (1978, p.55). Ou ainda, falando da construção ideal que Camões fez de Portugal: “...invocando e construindo a imagem mítica da pátria de que [ela] precisa para sobreviver na verdadeira, eco, sombra e caricatura dessa outra, filha de si mesmo (LOURENÇO, 1983, p.93).

29 “Esta sociurgia, em que a sociedade atesta-se como sociedade no próprio ato em que o sagrado se diferencia como sagrado (DESROCHE, 1968, p.62).

30 Esta passagem progressiva para além de posições banalmente positivistas parece não ter sido percebida por J. Milbank, que considera a obra de Durkheim como estática, fazendo dele fundamentalmente um positivista (até mais positivista que seu “Mestre” Comte), “por vezes” melhor inspirado pela (também sua) linhagem neo-kantiana: “É, no entanto, verdade que o elemento neokantiano em Durkheim por vezes parece modificar a sua insistência positivista na exterioridade, como quando símbolos religiosos públicos são considerados mera “objetivização” de emocões que existem apenas na mente de sujeitos individuais (DURKHEIM 1989). Aqui, Durkheim parece próximo de ver o objeto social tão-somente como projeção objetificada da lei moral universal” (MILBANK 1995, p. 89-90).

31 “As categorias mudam de acordo com os lugares e os tempos (DURKHEIM, 1989, p. 47). 32 Em outras palavras, a perspectiva durkheimiana contribui para instaurar no fulcro do fato social, elemento necessário e constituinte da sociedade, um tipo de ideologia (ORTIZ, 1989, p. 11), não para reduzir a “religião” a simples forma de “ideologia”, mas para transfigurar esta última numa forma de religião.

33 Em todo caso, a perspectiva do político se impõe. Cf., partindo da obra de Durkheim Lacroix (1981); e, partindo do político: Debray (1981).

34 “Um teórico dilacerado, dividido entre suas preferências liberais em favor do indivíduo e

suas certezas racionais relativas à primazia efetiva da sociedade” (LACROIX, 1990, p.110). 35 Apesar do bem conhecido “corte” de 1895, (“tamanha transição”, diz Durkheim, que fala de suas “novas introvisões” de então), provavelmente devido à leitura da obra de Robertson Smith, revelação, para o militante “laico”, da importância da”religião”.

36 Ou, pelo menos, como o quer A. Giddens (1981, p.11), a partir da “revelação” de 1895. 37 “Situação que, sem dúvida, teria sido modificada se Durkheim tivesse vivido mais”

(HAM-MOND, 1974, p. 115-42).

38 Balanços positivos, entre outros, nos artigos de R. Bellah e de T. Parsons citados no início deste trabalho. Por exemplo, R. Bellah: “simplesmente alguns indícios mostram que a pista que eu havia começado a abrir, quinze anos atrás, e que Alexander chamava “a última so-ciologia, religiosa, cultural e simbólica” de Durkheim, pode atingir o seu pleno potencial” (BELLAH, 1990, p.23). Já citamos H. Desroche e R. Bastide.

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39 A literatura sobre a secularização, depois de contar com certo consenso positivo, encontra-se em fase de revisão. Mas continua possivel, empiricamente baseada, a pergunta: “Repre-sentam os surtos emocionais contemporâneos o fim da secularização ou o fim da religião?” (HERVIEU-LÉGER, 1994).

40 Uma primeira ruptura crítica deveria ser apresentada como objeção ao “unanimismo” durkheimiano: a divisão da sociedade em classes e grupos de interesse. Além, no entanto, de não considerar impensáveis vários tipos de articulação destes dois níveis aparentemente opostos (nenhuma sociedade subsistiria sem cultivar, ao mesmo tempo, sua totalidade e suas divisões), poderíamos lembrar o texto já citado, que deixa esperar o surto previsível de misticismo como originado em determinada “região da sociedade: as classes populares” (DURKHEIM, 1969 [1914], p.77), texto que sugere que a visão da sociedade como globa-lizada e consensual não era exclusiva no pensamento de Durkheim.

41 Duas duplas referências, uma delas pelo menos levando explicitamente em conta a teoria durkheimiana, podem orientar a discussão neste ponto: A. Corten (1995a, 135-54; 1995b, p. 23-45), especialmente o capítulo 5 (1995a): “La louange, un énoncé originaire” e D. Hervieu-Léger, Les renouveaux émotionnels contemporains. Fin de la sécularisation ou finde la religion? CHAMPION; HERVIEU-LÉGER, 1989).

42 Cf.T.Parsons (1937, p. 222-223). Ou R. Collins (1982, p.42-47), bem orquestrado in

A.A.P.Prates, A.L.Paixão e R.S. de Freitas (1991, p.69-71).

43 Leenhardt frisava que dois “primitismos” são possíveis, o do “primitivo” que se recusa a deixar seu universo mítico ser penetrado pelas exigências racionais, o do “homem moder-no” que reduz sua visão do mundo e suas motivações à uma versão empobrecida e seca da racionalidade: nada mais racional, dizia, que a guerra total. E nada menos “humano”. 44 Cf. R. Aron (1967, p.356). O autor aludia então às grandes ideologias políticas coletivas.

Acontecimentos mais modestos vieram nos anos seguintes - e ainda recentemente - cha-mar a atenção sobre dramas mais limitados mas de inspiração explicitamente religiosa. O acúmulo desses dramas constitui enfim hoje um horizonte ameaçador.

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