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DESIGUALDADE E SEGREGAÇÃO URBANA: UMA REALIDADE SOCIOCULTURAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO

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Academic year: 2021

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 158

Desigualdade e segregação urbana: uma realidade sociocultural

na cidade do Rio de Janeiro

Victor Pereira de Sousa1 Leonardo de Souza Medeiros2 Marcelo Penna da Silva3 Resumo:

O estado do Rio de Janeiro foi o estado brasileiro que mais passou por estatutos jurídicos na história nacional. Ainda assim, isso não impediu que a atual capital fluminense ficasse livre de processos como a desigualdade e a segregação urbana, pois como nos mostra uma análise crítica sobre a história em um olhar sociocultural, tais elementos assolam a vida de muitos membros que compõem a sociedade do Rio de Janeiro. Dessa forma, o presente trabalho busca realizar uma análise sociocultural diante de um viés histórico sobre, primeiramente, o estado do Rio de Janeiro, e em sequência, sobre como tais fenômenos afetam a cidade do Rio de Janeiro e seus membros da sociedade.

Palavras-chave: Rio de Janeiro; Desigualdade; Segregação; Urbano.

Abstract:

The state of Rio de Janeiro was the Brazilian state that most passed by legal statutes in national history. Even so, this did not prevent the current capital of Rio de Janeiro from being free of processes such as inequality and urban segregation, because as a critical analysis of history shows us in a sociocultural view, such elements devastate the lives of many members that make up society from Rio de Janeiro. Thus, the present work seeks to carry out a sociocultural analysis in the face of a historical bias on, first, the state of Rio de Janeiro, and in sequence, on how such phenomena affect the city of Rio de Janeiro and its members of society. Keywords: Rio de Janeiro; Inequality; Segregation; Urban.

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Licenciado em Geografia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

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Mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 159 Introdução

Ao longo da história do Brasil, o território fluminense passou por diversos estatutos jurídicos. Essas variadas mudanças nas delimitações político-administrativas do estado do Rio de Janeiro contribuíram de forma significativa para que o estado se consolidasse no território nacional, e também, para a perda dessa centralidade política e administrativa (RIBEIRO, 2016).

Como destaca Ribeiro (2001), nenhuma unidade político-administrativa brasileira passou por tantos estatutos jurídicos como a do Rio de Janeiro, principalmente quando o assunto diz respeito ao seu núcleo, representado pelo município e capital Rio de Janeiro.

Ainda durante o período colonial brasileiro, o território fluminense como conhecemos hoje tinha seu território formado por duas Capitanias Hereditárias, que eram: a Capitania de São Tomé, ao norte, e a Capitania de São Vicente, ao sul. Já o núcleo, ou seja, a cidade do Rio de Janeiro, pertencia à Capitania Real.

No ano de 1793, o território fluminense passou por sua primeira transformação em seu estatuto jurídico: a transferência da capital do vice-reinado de Salvador para a cidade do Rio de Janeiro. Como previsto, com a elevação da cidade do Rio de Janeiro à capital do vice-reinado, houve um deslocamento do epicentro administrativo da colônia do nordeste para o sudeste do país.

Com a vinda da Família Real para o Brasil, em 1808, o Rio de Janeiro adquire aspectos de cidade “desenvolvida” e torna-se a capital da colônia portuguesa, porém em 1815 com elevação do Brasil à categoria de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, o Rio de Janeiro adquire nova característica institucional e jurídica, passando a ocupar a categoria de capital do Reino do Brasil. Anos mais tarde, após a Independência do Brasil, em 1834, a cidade do Rio de Janeiro acaba sendo desvinculada da província fluminense, que ganha o estatuto de município neutro da Corte.

Com isso, a cidade do Rio de Janeiro torna-se a cidade/capital do Brasil, constituindo-se num território único e institucionalmente diferenciado das demais províncias (RIBEIRO, 2016).

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 160 Em 1889, com a Proclamação da República e, também, com a Constituição Federal de 1891, o território fluminense ganha um novo estatuto jurídico. Como nos aponta Ribeiro (2016), agora, o antigo município neutro passa à condição de Distrito Federal, e a antiga província fluminense é elevada a categoria de estado.

Tal condição de Distrito Federal é exercida até o ano de 1960, quando ocorre a transferência da capital para Brasília. Neste mesmo ano, é criado o estado da Guanabara, que remete a cidade do Rio de Janeiro a uma posição singular no contexto histórico do Brasil: o papel de estado e capital, simultaneamente.

No ano de 1975, em plena ditadura militar, o território atual do estado do Rio de Janeiro é institucionalizado. Logo, os processos de transformações dos estatutos jurídicos são finalizados. Esse processo final de institucionalização se deu por meio da fusão dos estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, que estavam separados desde o ano de 1834. Com essa fusão, o estado da Guanabara deixa de existir, e a cidade do Rio de Janeiro volta a ter o estatuto de município, porém, agora não mais de município neutro da Corte, mas apenas de município e capital fluminense.

Mesmo diante de questões tão específicas em relação à cidade do Rio de Janeiro, é necessário deixar claro que não há uma repetição das mesmas ao longo do tempo, uma vez que o processo histórico do estado do Rio de Janeiro, e consequentemente da cidade do Rio de Janeiro, se mostra com singularidade na história do Brasil. Alguns dos fatos históricos e das representações que os mesmos proporcionaram para o Rio de Janeiro, seja enquanto estado ou município, deram novos caminhos para a construção histórico-temporal do que conhecemos hoje, e dessa forma, o Rio de Janeiro é agente constituinte e constitutivo de sua trajetória no espaço geográfico brasileiro, e até mesmo global. Ainda assim, fenômenos de desigualdade e segregação não estão isentos da estruturação histórica desse município, pelo contrário, é possível encontrarmos situações desses fenômenos em uma escala de espaço-tempo na história do Rio de Janeiro, seja enquanto estado ou município.

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 161 Assim, diante desse recorte no espaço-tempo na história do estado e da cidade do Rio de Janeiro, o presente trabalho tem como objetivo tratar da problemática que permeia a cidade do Rio de Janeiro em relação às desigualdades e segregações ocorridas no município, de um ponto de partida sociocultural, instrumento basilar em nossa história. É necessário refletirmos e repensarmos nossas ações ao nível desse viés que se compacta cada vez mais sobre os cidadãos e que desestabiliza cada vez mais os núcleos urbanos brasileiros. É uma realidade sociocultural, e também socioespacial, que não pode ser naturalizada e muito menos deixada de lado por nós cidadãos e constituintes membros da sociedade.

Uma breve abordagem crítica sobre o Rio de Janeiro

A cidade do Rio de Janeiro traz consigo uma história construída através de seus 452 anos de vida, realizados em 1º de março de 2017, história que, através dos tempos, envolveu importância e referência sobre a formação geral da história do Brasil. Reconhecer e relatar essas concisas histórias faz da cidade um objeto real de análise, construção e reconstrução do irreconhecível movimento dimensional ao qual seus habitantes se adequaram e se posicionaram na luta e na relação de si mesmos com o direito e a condição urbana a qual lhes foi dada.

A "Cidade Maravilhosa" torna-se uma intrigante e reveladora forma espacial que acomete múltiplas relações e especificações que só uma cidade como o Rio de Janeiro seria capaz de expor. Aqui não se vangloria a cidade como superior, mas sim, como uma cidade que apresenta uma história singular na construção da história de nosso país, como uma cidade que, a cada passo se torna maior em sua consequência, de uma cidade que é capital do estado que mais teve estatutos jurídicos em território nacional. Cada ação se transforma em uma maior reação, devido ao que nos conta a história, devido ao que presenciamos no agora, devido ao que somos capazes de "prever" para o amanhã.

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 162 As percepções desse espaço geográfico numa reta cronológica de espaço e tempo podem ser basicamente suplantadas por qualquer pessoa que, ao se deparar sem de fato enxergar, passar-se ao simples fato reducionista, de ver e não enxergar o espaço como de fato ele é. Dessa forma, como relata Moreira:

Enxergar os lugares é apenas parte de conhecê-los, captá-los com todos os nossos sentidos, tomar posse deles, inserir-se neles. Por isso, paisagem, território e lugar são alguns conceitos que a geografia utiliza para expressar a forma como os seres humanos podem perceber, compreender e relacionar-se consciente e intencionalmente com os espaços. A verdade é que grande número de pessoas “conhecem” durante a sua vida muitos espaços diferentes, mas não apreendem seus múltiplos sentidos. Tais sujeitos nunca chegam de fato a conviver e interagir com tal espaço. E, por não entendê-lo, não percebem com inteligência todas as suas dimensões físicas e humanas (MOREIRA, 2014, p. 23).

Desde o Brasil Colônia, vemos intrínseca à história das cidades brasileiras marcas da injustiça e da desigualdade social que, até os dias de hoje, assombram nossas cidades. Diante da visão sociocultural, essa é uma realidade marcante em nossa história, onde as favelas padronizam novos estereótipos de senzalas, marcadamente oprimidas pelo preconceito, onde os "favelados" são vistos como indivíduos marginalizados e causadores de uma desaceleração do país e da quebra na padronização da estética das cidades; onde, a exemplo do Rio de Janeiro, a Zona Sul que, preconceituosamente, tem marcada em suas raízes a visão de que os moradores da Zona Norte são alvo de perigo constante ou possíveis delatores da segurança pública.

A desigualdade é certamente um dos maiores problemas sociais identificados em qualquer momento de nossa história. Se nos reportarmos a um período bastante pretérito, veremos que a própria formação territorial brasileira foi marcada por desigualdades. Basta lembrar dos primórdios da desigual distribuição de terras no Brasil: o processo de doação de sesmarias durante o nosso período colonial. Já naquele momento, tanto as chamadas sesmarias de chão (as terras distribuídas nas primeiras aglomerações urbanas), quanto as sesmarias localizadas mais ao interior da colônia, eram concedidas pelas Câmaras Municipais já seguindo determinados padrões desiguais (GOMES, 2015, p. 12).

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 163 A teia sociocultural em que se constrói a cidade do Rio de Janeiro se mostra fragmentada e diversificada. Uma “selva de pedras” urbana que se mantém de pé pelo suor e pela luta de sua sociedade. Ou melhor dizendo, de suas sociedades, já que podemos destacar diversos núcleos sociais que montam um mosaico real da face do Rio de Janeiro. Esse mosaico sociocultural, subsidiado por subculturas, se vê em crise de existência desde os primórdios do processo de civilização da cidade, mostrando-se cada vez mais voraz, em diferentes formas, em variadas geometrias, sobre os indivíduos menos favorecidos ou menos privilegiados que são oprimidos e subordinados pela parcela dominante da sociedade.

Esse fenômeno sociocultural que assola os habitantes da cidade do Rio de Janeiro não pode e nem deve mais ser visto como algo natural de nossa história. Como uma marca deixada por nossos antepassados. Assim como nos esclarece Gomes (2015), seja a desigualdade de gêneros ou a desigualdade racial, toda e qualquer sociedade tem na desigualdade um ponto em comum de diferenciação social. Porém, essa forma naturalizada de se tratar a questão da desigualdade é, até hoje em dia, uma das principais justificativas de determinados argumentos preconceituosos que legitimam a própria desigualdade entre os homens.

Essa é uma herança que não cabe a nós aceitarmos. Não mais. Devemos enxergar a realidade a nossa volta e perceber que problemas como as diversidades de gênero, raça, a violência, a divisão da cidade do Rio de Janeiro em dois núcleos urbanos, Zona Norte versus Zona Sul, são problemas que devem ser superados e que existem maneiras para que possamos ao menos mitigar essas disparidades.

A desigualdade como realidade urbana: uma visão sociocultural

A cultura é um instrumento de extrema importância quando o assunto é desigualdade. Se pararmos para pensar, quando os europeus se instalaram no território brasileiro, uma das principais características utilizadas por eles para

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 164 interpretar a inferioridade dos índios que aqui viviam foi a cultura indígena, os modos de vida e as práticas cotidianas que eram vistas pelos europeus como atos de selvageria, perfis ultrapassados de pessoas que "precisavam" ser "civilizadas". Logo, em uma visão extremamente eurocêntrica e mesmo reducionista, os europeus dizimaram contextos irreparáveis da cultura indígena que é componente estruturante e fundamental para a cultura brasileira.

Por suas vestes diferenciadas, seus modos de vida, seus instrumentos e indumentários e suas moradias quase sempre feitas com materiais simples, ainda sem processamento, os europeus entenderam que aquele povo precisava ser civilizado e que sua cultura era submissa à cultura europeia, nada mais que uma visão eurocêntrica, que ainda hoje pode ser vista nas relações geopolíticas do mundo contemporâneo.

É errôneo acreditarmos que uma cultura pode estar superior à outra, uma vez que, em um exemplo simples, podemos perceber que tal afirmativa seria facilmente invalidada. Então, podemos comparar, por exemplo, a medicina que encontramos hoje nos mais modernos hospitais pelo mundo e a medicina utilizada pelos índios. Em uma análise mais crítica, é possível percebermos que a medicina praticada pelos índios não tornou possível ainda a cura de muitas doenças, todavia, também encontramos esse mesmo problema na medicina praticada pelos médicos, mesmo nos hospitais mais sofisticados. Mesmo diante de todo o avanço tecnológico e biomédico atualmente, a AIDS ainda não tem cura - nem nas práticas medicinais indígenas nem nas ditas "civilizadas", científicas.

Voltando a nosso assunto principal, em se tratando de desigualdades, e nesse caso as urbanas, podemos destacar também a problemática da fome. Uma metrópole como o Rio de Janeiro apresenta altos índices de desenvolvimento, devido a sua importância em território nacional. Ainda assim, o progresso e o desenvolvimento do Rio de Janeiro não foram capazes de extinguir o problema da fome, que ainda hoje dizima centenas de vidas, principalmente nas localidades periféricas da cidade. Mas, mesmo em menor escala, é sempre possível cruzar o centro da "Cidade Maravilhosa" e encontrar alguém passando por situações de inexistência de atendimento às necessidades básicas à saúde humana.

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 165 Quando tratamos de um olhar sociocultural sob qualquer aspecto, independentemente do que ele possa significar para uma sociedade, devemos sempre pensar em como isso se realiza numa visão como o todo. Primeiramente, é claro, em linhas gerais, devemos olhar como o fato a ser analisado leva a sociedade a agir de certa forma, e após isso, devemos afunilar esse olhar para as individualidades que fazem da sociedade um fenômeno plural.

A desigualdade socioespacial é gerada pela má distribuição da riqueza produzida pela sociedade. Isso gera a fragmentação do tecido sociopolítico-espacial, gerando, por um lado a autossegregação da elite, e por outro a segregação residencial das classes mais pobres, nas favelas ou aglomerados subnormais (SILVA, 2015, p. 14).

Na cidade do Rio de Janeiro, essa visão sociocultural dos habitantes existentes no núcleo urbano não foi diferente. Primeiramente, com a vinda da Coroa Portuguesa para a cidade do Rio de Janeiro, em 1808, fugindo das investidas de Napoleão, muitos habitantes da cidade carioca foram despejados de forma cruel e desumana para a construção de estadias para a família real. É possível percebermos que a construção sócio-histórica da cultura do Rio de Janeiro foi arcabouçada por atos violentos, desumanos e desleais à vida humana, assim como a seus direitos.

Anos depois, com a produção cafeeira se expandindo pelo território fluminense, a vinda de trabalhadores, escravos e imigrantes assalariados e dos "grandes fazendeiros" para as terras fluminenses acabou por escravizar e até mesmo dizimar tribos indígenas inteiras.

Especificamente, aqui, em se tratando de assuntos como os das desigualdades e segregações que vemos diariamente ao circularmos pelas ruas do Rio de Janeiro, focamos esse olhar sociocultural em cada um dos indivíduos que esbarram em nós todos os dias nas ruas. Ao atravessar um sinal, somos capazes de ali reconhecermos diversos personagens das mais diversas origens, que, não analogamente, fazem parte de um grupo social ainda maior, grupo esse que faz com que o núcleo urbano ganhe vida todos os dias. Criando e recriando

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 166 formas as quais o quebra-cabeça sociocultural, se solidifica e se materializa em algo ainda mais diverso.

É nesse ponto em que vemos a ordem que declara o que entendemos ou não sobre desigualdade. Afinal, sobre esse aspecto, podemos passar anos em uma discussão sem fim, de acordo com os diferentes tipos de pontos de vistas nos quais teremos para analisar e fundamentar nossa informação informal em uma análise de fundamentação teórico-metodológica que seja de fato válida para propormos um debate construtivo e auspicioso em nossa discussão acadêmico-científica.

Voltando ao ponto o qual destacamos, é na diversidade que encontramos a diferença, e é na diferença que sofremos a desigualdade. Esse é um caminho bem simples para se entender como a desigualdade chega até nós, e às vezes, nem mesmo a percebemos. Um simples e claro exemplo é de um jovem branco do sexo masculino, que nasce em uma família de classe média que lhe proporciona oportunidades de fazer uma faculdade e ter uma formação dita como digna, estipulada pelos "padrões sociais". Aqui podemos considerar qual o futuro que a família desse jovem, e a sociedade como um todo, espera.

Para o futuro do suposto rapaz, podemos, supostamente, prever uma grande profissão, estabilidade de vida, uma família composta por pai-mãe-filho, na qual é ele quem impõe as ordens em casa, e muito provavelmente, é religioso. Podemos ver aqui que esse jovem já nasceu com privilégios que muitos de nós não temos. Privilégios dados – ou retirados – pela própria sociedade, de acordo com as "regras" estipuladas pelo padrão social.

Um bom exemplo é o fato de ele ter nascido homem, o que já elimina aí o fato de ele sofrer qualquer tipo de machismo – em uma sociedade como a nossa que foi estruturada em preceitos extremamente machistas –, da maioria estatística dos assédios comprovados diariamente – com maioria maciça de casos contra mulheres –, da maioria gritante dos casos de estupro, e da forma a como ele deve ou não se vestir. O fato de ele ter nascido branco elimina suas chances de sofrer com o racismo – também preceito estruturante de nossa sociedade. Por ter nascido heterossexual, extinguimos aí as chances de ele sofrer

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 167 o pesado viés da homofobia. Como podemos ver que ele tem tudo para ser um "cidadão de sucesso": homem, pai de família, estabilizado pessoal e financeiramente, seguidor de uma doutrina religiosa.

Mas e se esse jovem tiver nascido homossexual e/ou negro? Aqui somos capazes de ver como ele perde seus privilégios perante a sociedade. É nesse diferencial que ele começa a sofrer preconceitos e é aqui que a desigualdade e a segregação entram em sua vida como um novo amigo indesejado. A questão de raça e de gênero faz com que ele não tenha mais o futuro auspicioso esperado. Este parece um simples exemplo metafórico, mas que é real em todas as cidades brasileiras, sejam elas grandes metrópoles nacionais ou pequenas zonas urbanas de um simples vilarejo, e de forma alguma se diferencia na cidade do Rio de Janeiro.

Todavia, a proposta aqui não é apenas tratar das situações de desigualdades de gênero ou raça, mas sim, das desigualdades de uma forma geral, novelas da vida real a que muitos indivíduos assistem diariamente, querendo ou não.

Segregação e autossegregação urbana

Trataremos inicialmente dos fenômenos da segregação e da autossegragação urbana que são claramente vistos nas grandes metrópoles brasileiras, como a cidade do Rio de Janeiro.

A segregação urbana é um fenômeno que separa de forma muito singular a população dominante da população dominada. Tal maneira de se compreender a questão da desigualdade nos faz perceber que um desigual acúmulo de capitais de ordem simbólica, social e cultural pode variar em função das posições ocupadas pelos indivíduos nas sociedades. Assim, entender que o acesso diferenciado à educação e outros bens imateriais faz aumentar a própria reprodução da desigualdade social, é, certamente, uma das grandes contribuições da sociologia sobre a questão em tela (GOMES, 2015, p. 17).

Por mais que viver em cidades brasileiras nos leve sempre a experiências diárias de desigualdades sociais, ainda de acordo com as abordagens de Gomes

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 168 (2015) feitas à temática, temos de ter em mente as duas diferentes abordagens geográficas para se entender as escalas do urbano:

A primeira diz respeito à escala da rede urbana. Cidades que compõe uma mesma rede distinguem-se não tão só quanto às suas diferentes funções ou mesmo tamanho populacional. Dentro de uma mesma rede urbana há reais diferenciações no que se refere à distribuição de riquezas, tornando maior ainda as disparidades entre cidades centrais e periféricas. Já a outra escala é a escala intra-urbana, a escala que, ao mesmo tempo, é passível de nos fazer compreender a organização interna das cidades, e que também se configura como a experiência espacial que nos é mais próxima, a nossa experiência espacial cotidiana (GOMES, 2015, p. 17-18).

Tais escalas nos remetem às experiências vividas por nós mesmos todos os dias, sem ao menos, muitas das vezes, termos a ciência de tal fato. De uma visão crítica da análise, podemos perceber que a segregação urbana não é um fenômeno recente, mas que ainda assim se faz muito presente em nossas vidas.

Tratamos da segregação urbana como um fenômeno corriqueiro, que acontece "sem querer", como se fosse algo genético em nosso DNA. Essa é uma visão que deve ser rompida para que tal fenômeno tenha a oportunidade de ao menos se atenuar diante da vida de nossa população.

Da mesma forma em que acontecem os fenômenos da desigualdade e da segregação urbana, acontece o fenômeno da autossegregação urbana, que separa a população "indesejada" da população de alto poder aquisitivo que se trancafia sob muros e portões fechados, excluindo-se de uma realidade urbana da qual eles não querem participar.

Gomes (2015) relata que, num país como o Brasil onde as formas de habitação coletiva (cortiços, casas de cômodo etc.) foram sempre desprezadas e estigmatizadas, classificar as novas modalidades de moradia de condomínio foi, sem a menor sombra de dúvida, um ato para lá de simbólico. Dessa forma, a população que se utiliza desse simbolismo para, de forma quase sempre preconceituosa, afastar-se dessas formas de habitação coletiva, se fecham em condomínios fechados, "livres" de toda e qualquer forma de marginalização urbana.

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 169 A questão é que o próprio nome “condomínio fechado”, quando criado, afastava quaisquer identificações com as antigas formas de habitações coletivas, além de acrescentar a ideia de exclusivismo em contraposição à cooperação; de individualismo em oposição à solidariedade. Os condomínios fechados que surgem crescentemente nos últimos trinta anos promoveram o aparecimento de uma nova urbanidade, ao propor a criação de cidadelas isoladas, ainda que dentro da própria cidade (PECHMAN, 2014, p. 28).

A questão da autossegregação cria dentro da cidade uma ideia de uma cidade dentro da outra, pois o isolamento causado pelos condomínios fechados afasta os habitantes destas localidades da realidade que acontece do lado de fora dos altos muros que os isolam da realidade urbana.

O crescimento do Rio de Janeiro é parte fundamental do processo de urbanização que se viveu no Brasil, entre as décadas de 1960 e 1980, como consequência da forte industrialização ocorrida na década de 1950. O Brasil, nesse período, viveu o fenômeno da explosão demográfica, que o tornaria, na década de 1960, um país majoritariamente urbano.

Ao mesmo tempo, durante essas mesmas décadas, houve uma intensificação das migrações internas ao longo dos decênios de 1960 e 1970 e o desenvolvimento dos dois principais centros metropolitanos. O crescimento da população urbana excedeu o crescimento demográfico do país (RESNIK & BARBOSA, 2015).

Isso trouxe para a cidade do Rio de Janeiro dois acontecimentos: o esvaziamento do centro da cidade e, em contrapartida, o crescimento de outras regiões como a “zona sul, zona oeste – notavelmente Campo Grande e Santa Cruz – a região de Leopoldina e a Baixada Fluminense, cada qual segundo uma dinâmica própria” (RESNIK & BARBOSA, 2015, p. 23).

Nesses novos lugares, houve um escasso investimento em urbanização e uma nítida falta de planejamento para as novas áreas residenciais que cresciam, deste modo, foram se desenvolvendo as favelas.

Em contrapartida, a expansão da zona sul aconteceu de modo diferente, as planícies costeiras de Copacabana e a Lagoa Rodrigo de Freitas começaram a se desenvolver ainda na primeira república, durante a reforma urbana empreendida

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 170 pelo prefeito Pereira Passos (1902-1906). A região se solidificou como destino preferido da população de renda mais alta durante a década de 1950, centralizando ali um forte crescimento imobiliário e demográfico, seguido de um grande investimento em pavimentação, saneamento e abastecimento de água.

A elite que dominava as políticas públicas destinadas a essa área deparou-se com dois problemas que o estado deparou-se prontificou a solucionar:

I - O avanço de quantidade de favelas, em consequência a demanda de mão de obra no setor de serviços;

II - A nova área que crescia sem planejamento, avançava isolada da cidade pelo Maciço da Tijuca.

Desta forma, não existia uma direta ligação com a zona norte, apenas de forma escassa com o centro. Não havia linhas férreas que se conectavam com a região. No ano de 1960, os bondes começaram a ser retirados de circulação por ocasião da chegada do transporte coletivo rodoviário.

Exemplo disso é o período do governo de Carlos Lacerda, no qual pouco foi feito em relação às políticas de desenvolvimento urbano. Somente o que foi realizado durante o seu mandato, com a finalidade de frear o crescimento das favelas na região da zona sul, foi a transferência das comunidades, em especial as que se localizavam na área da lagoa Rodrigo de Freitas, para conjuntos habitacionais localizados na Zona Oeste.

Os moradores dessas comunidades foram levados para regiões até então desconectadas dessas áreas centrais da cidade. Exemplo de tais localidades é a Cidade de Deus e a Vila Kennedy. De acordo com Resnik & Barbosa:

A política de Lacerda teve desdobramentos ambíguos: por um lado, o governo conseguiu eliminar as comunidades que se localizavam nas planícies da zona sul, ou seja, que ocupavam espaços de possível expansão imobiliária; por outro, a continuidade dessas políticas da década seguinte mostrou-se limitada (RESNIK & BARBOSA, 2015, p. 17).

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 171 No entanto, foi nesse caráter nitidamente excludente que houve o investimento urbano do Rio de Janeiro durante as décadas de 1960 e 1970 no planejamento urbano da Zona Sul e de sua conexão com a cidade.

A cidade passou por um processo seletivo e totalmente excludente, em relação à escolha das populações e regiões que seriam beneficiadas com a resolução de seus problemas. Para Resnik & Barbosa, é possível se referir a dois tipos de relação centro-periferia:

O primeiro reproduziu a relação que se tornou clássica nas cidades modernas, em que um centro formado por locais de trabalho cercava-se de zonas residenciais; nessa relação, a zona sul integrou-se como região periférica. No segundo tipo, a clivagem foi dada a partir da seletividade do poder público: as regiões centrais caracterizavam-se pelo maciço investimento público, ao passo que as periféricas, pela ausência de investimento e renda. Conformaram-se pelas regiões destinadas a expansão industrial, com parcos investimentos em urbanização residencial, e outras que se priorizou o investimento público em equipamentos urbanos por meio dos quais se logrou a expansão do mercado imobiliário voltado as classes de maior renda (RESNIK & BARBOSA, 2015, p. 25).

Nesse arranjo, a Zona Sul ocupou um lugar central, ainda que permeada pela contrastante presença de enclaves periféricos na forma das favelas. A galopante exclusão social, proveniente do modelo de desenvolvimento do Milagre Econômico, aprofundou, nesse cenário, seus contornos espaciais.

Considerações finais

Mesmo se tratando de uma cidade tão importante para o território nacional e que faz parte de uma história singular na história do Brasil, o Rio de Janeiro não está isento, de forma alguma, das desigualdades e segregações que observamos diariamente ao circularmos pelas ruas da cidade. Devemos compreender que diferença não é sinônimo de desigualdade e que a cidade do Rio de Janeiro tem em sua população um mosaico plural de diferenças que compõe a sociedade carioca, ou melhor, as sociedades, pois, como vimos, não é possível compreendermos que fazem parte da população do Rio de Janeiro somente as

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 172 pessoas nascidas na cidade, uma vez que temos um grande fluxo migratório de nordestinos que aí se instalam em busca de melhoria de vida, e temos também um grande contingente populacional de estrangeiros que vivem na "Cidade Maravilhosa".

Diariamente, encontramos situações de violência, intolerância e preconceito que prejudicam a integridade da população do Rio de Janeiro. Tais fatores são gerados por problemas na gestão e administração da cidade, na criação de políticas públicas eficientes, na ineficiência da segurança e do sistema de saúde, e ainda, na desqualificação da educação existente no município. Há ainda um descompasso em relação aos integrantes da sociedade que usam de situações de violência, intolerância, preconceito, poder, dentre tantas outras, para instalar um caos ainda maior na qualidade de vida carioca.

No dia 30 de março de 2017, Maria Eduarda de 13 anos foi morta dentro da quadra da escola na qual estudava, enquanto se alongava na aula de Educação Física, por balas – supostamente – perdidas. O que mais intriga nesse fato é que as balas saíram de um confronto entre policiais e traficantes, numa operação em Acari, Zona Norte do Rio de Janeiro. Maria Eduarda foi atingida por balas que atravessaram seu crânio e que também causaram perfurações em seus glúteos.

Na reportagem da GloboNews, os repórteres Menezes e Cunha (2017) informaram que, de acordo com o laudo dos períodos, o corpo da menina tinha duas perfurações na base do crânio e dois ferimentos na região dos glúteos. Um deles é típico de saída de projétil, conforme aponta o laudo. Ainda segundo o resultado apresentado pelos peritos, a causa da morte foram os tiros que atravessaram a cabeça da jovem. Ainda segundo a reportagem, o projétil retirado da coxa da estudante Maria Eduarda, de 13 anos, foi disparado pela arma que estava com o cabo Fábio de Barros Dias (MENEZES & CUNHA, 2017).

Diante de um caso desumano como esse, é possível percebermos que, nem mesmo nas instituições de ensino, nossas crianças estão protegidas. A aluna se preparava para aula de Educação Física quando morreu, por uma ação irresponsável conduzida por quem devia estar dando segurança a ela e a todos os moradores de Acari e da cidade do Rio de Janeiro.

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ANO V – Volume 1 - Número 1 2018 Artigo completo 173 Casos como o de Maria Eduarda dão base para fenômenos como o da autossegregação, que justificam esse ato como uma medida de segurança para suas famílias. Todavia, a segurança de nossa população é dever do Estado, como uma de nossas necessidades para a vida humana. A liberdade é um dos direitos de todo o cidadão, e o impedimento do mesmo em vias de circulação da cidade não deve ser visto com naturalidade.

Todos os tipos de desigualdades - sociais, raciais, sexuais, de gênero, econômicas, culturais, políticas, espaciais etc. - devem ser superadas em prol de justiça social. O mesmo devemos dizer em relação à segregação e à autossegregação urbana, que nada mais são do que instrumentos de desigualdade, que fazem das diferenças algo ruim, enquanto as diferenças nada mais são do que componentes essenciais para a vida humana em qualquer esfera do espaço geográfico.

E assim, nas palavras de Paulo Freire (1987), concluímos que se nada ficar destas páginas, algo, pelo menos, esperamos que permaneça: nossa confiança no povo. Nossa fé nos homens e na criação de um mundo em que seja menos difícil amar.

Referências bibliográficas

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Referências

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