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PAISAGEM NA ARTE: ANOTAÇÕES SOBRE A ESTÉTICA DA NATUREZA EM GOETHE E CARUS

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Academic year: 2021

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PAISAGEM NA ARTE: ANOTAÇÕES SOBRE A ESTÉTICA

DA NATUREZA EM GOETHE E CARUS*

Esdras Araujo Arraes**

Resumo: reflete-se sobre a articulação entre a ideia de natureza e a representação da

paisagem, em literatura e pintura, no período entre a segunda metade do século XVIII e as primeiras décadas do Oitocentos. Considera-se inicialmente o tratamento literário da paisagem feito pelo poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe, com foco em seu romance epistolar Os sofrimentos do jovem Werther. A seguir, aborda-se o entendimento de Carl Gustav Carus sobre as categorias “paisagem” e “natureza” apresentado em seu opúsculo Briefe über Landschaftsmalerei “Cartas sobre pintura de paisagem”. Percebe-se que em ambos os casos, a aparência Percebe-sensível da natureza Percebe-se dá por meio de formas estéticas e científicas.

Palavras-chave: Carus. Estética. Goethe. Natureza. Paisagem.

LANDSCAPE INTO ART: NOTES ON AESTHETICS OF NATURE IN GOETHE AND CARUS

Abstract: it addresses the articulation between the idea of nature and landscape`s

repre-sentation, in literature and painting, from the second half of eighteenth century to early nineteenth century. It considers initially the poetic treatment of landscape done by Ger-man poet Johann Wolfgang von Goethe, focusing on his epistolary novel The sorrows of young Werther. Next it is presented the understanding of landscape by Carl Gustav Carus in his work Briefe über Landschaftsmalerei (“Letters on landscape painting”). It is noticed that in both cases the sensitive apprehension of nature occurs by means of aesthetics and scientific forms.

Keywords: Carus. Aesthetics. Goethe. Nature. Landscape.

* Recebido em: 12.03.2020. Aprovado em: 20.08.2020.

** Pesquisador visitante de Pós-doutorado na Freie Universität Berlin (FUB), Pesquisador de Pós-doutorado do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP).

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lguns comentadores conferem ao Renascimento italiano o marco cronológico original da paisagem no ocidente. Simmel (2013, p. 43) afirmou que, graças à individualização das formas interiores e exteriores asseguradas a partir do século XVI, assim como devido à dissolução das crenças do medievo, há a possiblidade de fragmentos da natureza se tornarem paisagem. Isso se deu em razão do aparecimento da perspectiva nas artes figurativas, como técnica que submeteu a natureza numa espécie de quadro organizado e coerente, uma unidade da totalidade percebida sensivelmente: “e justamente isso que o artista faz – partindo do fluxo caótico e da infinitude do mundo imediata-mente dado, delimita uma porção, capta-a e enforma-a como uma unidade que encontra agora o seu sentido nela mesma” (SIMMEL, 2013, p. 45).

Na mesma direção, Anne Cauquelin considera a pintura perspectivada como uma figuração sintética de um todo organizado e coerente percebido pela experiência visual do homem. Aliás, o olho seria a mediação contínua entre o espírito e a compreensão objetiva das coisas (2007, p. 81-87).

Roger (2007) concorda com Simmel e Cauquelin. Para ele, a primeira aparição da paisagem ocorreu na Europa, especificamente a do Norte. O nascimento surgiu da junção de dois fatores com-plementares. O primeiro seria a laicização de objetos naturais expressos em arte. A emancipação requeria uma mirada à distância, desinteressada, que estabelecesse a nítida distinção entre o apreciado e o espectador da cena. O primeiro enfoque redunda na segunda condição, voltada à autonomia dos elementos naturais dispostos em conjunto sem, contudo, prejudicar a coerência interna do mesmo (ROGER, 2007, p. 76). O afastamento entre o contemplado e o sujeito se dá com a aparição da janela no universo pictórico, tornando-se o marco da conversão da categoria “território” em paisagem, isto é, da condição física da natureza em princípio estético (ROGER, 2008, p. 81). A metáfora da janela e a perspectiva seriam, segundo os argumentos de Roger e Cauquelin, a condição sine qua non da invenção da paisagem e o instrumento paisagístico por excelência.

A própria dimensão etimológica do vocábulo também denota a procedência estética. Em alemão, por exemplo, o vocábulo Landschaft [“paisagem”], a primeira forma da palavra em qualquer língua europeia, origina-se da aglutinação do substantivo Land [território, região, país] com o sufixo schaft que denota “molde”, “decoração” e “ordenamento”, quer dizer, Landschaft seria a ornamentação do território segundo a sensibilidade humana. Landschaft anglicizou-se para landscape, cujo significado primeiro se referia à pintura que retratava uma seção da natureza ou um cenário rural. Essa acepção aparece na definição do termo sugerido no dicionário do jesuíta Raphael Bluteau (1712-1728, v. 6, p. 187). A paisagem reside no âmbito sensível, na medida em que foi assimilada como a “mais fermosa vista da que representão os paineis [sic] de boas pastagens”. O adjetivo “formoso” direciona o caráter sensível da paisagem. As boas pastagens referidas por Bluteau evocam, ainda que indiretamente, as pinturas de paisagem de Nicolas Poussin, Salvator Rosa ou Claude Lorrain, nas quais a Idade do Ouro aparece como conteúdo figurativo. O pastoreio idealizado em imagens remete o espectador a lugares bucólicos ou idílicos, uma nostalgia impregnada de simbolismo fundamental à teoria da pintura de paisagem de meados do século XVIII.

As interpretações óptica e pictórica influíram na literatura e na pintura germânicas do Sete-centos e OitoSete-centos. O poeta alemão, Johann Wolfgang von Goethe, e o médico e pintor, Carl Gustav Carus, compreenderam a paisagem segundo aquelas dimensões ligadas ao sentido da visão. Goethe reconheceu o papel da janela na construção imagética e visual da paisagem. No romance epistolar

Os sofrimentos do jovem Werther, os personagens Lotte e Werther assistem os efeitos dos trovões e

da chuva apoiando os cotovelos sobre a janela enquanto “o olhar percorria a paisagem” (GOETHE, 2009, p. 39). Em Die Wahlverwandschaften [“As afinidades eletivas”], outra obra do poeta que causou reações negativas na sociedade mais conservadora da Alemanha, o personagem Eduard dirige-se à cabana revestida de musgos onde se encontrava sua esposa Charlotte. Ali, seu olhar se dirige à porta e à janela, “de modo que num único olhar ele pudesse ver [...] os diversos quadros mostrando a pai-sagem como que emoldurada” (GOETHE, 1992, p. 22).

Antes de circular propriamente no universo da paisagem, é preciso mencionar que este artigo faz parte de uma pesquisa de pós-doutorado em desenvolvimento na Freie Universität Berlin (FUB), de maneira que sua narrativa apresenta considerações não peremptórias, mas se esforça em divulgar, por meio de notas, a imbricação entre arte (pintura e literatura) e natureza em perspectiva histórica na

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instituição da paisagem, com foco no período determinado entre os anos 1774-1834. Nessa cronologia apareceram as principais pinturas de paisagem e os escritos literários tanto de Goethe como de Carus.

Em termos metodológicos, o presente artigo assume as considerações filosóficas supra como basilares à fundamentação teórica da paisagem. Quer dizer, a paisagem em Goethe e em Carus refere-se, dentre alguns aspectos, a um recorte da natureza (janela/quadro) percebido sensivelmente e vertido em objetos poéticos e pictóricos. Ambos comungam com o conceito de paisagem circunscrito à ideia de quadro da natureza, usual desde o Werther até as cartas sobre pintura de paisagem de Carus. Mas será por meio da expressividade científica de Alexander von Humboldt que os “quadros da natureza” serão amplamente difundidos na literatura especializada do Oitocentos. A análise se vale, sobretu-do, da leitura interna das obras dos dois autores, interconectando-as entre si e com outros escritos contemporâneos, como os do naturalista Humboldt e as reflexões filosóficas de Schelling, professor de Carus. Além disso, não se pode esquecer que Carus foi leitor assíduo da literatura de Goethe e de seus estudos botânicos, de anatomia comparada e física, transparecendo no conteúdo das epistolas sobre a pintura de paisagem.

AS PAISAGENS DE GOETHE

Em 29 de agosto de 1749, Johann Wolfgang von Goethe nascia na cidade de Frankfurt. Filho do advogado Johann Caspar Goethe e de Katharina Elisabeth Goethe (Textor, como solteira), filha do aristocrata e prefeito Johann Wolfgang Textor. Goethe teve uma única irmã, Cornelia, que viria a casar-se com o jurista Johann Georg Schlosser.

Em sua autobiografia Dichtung und Wahrheit [“Poesia e Verdade”], Goethe anotou de forma recorrente seu interesse pela natureza e suas representações sensíveis - jardim e paisagem. Ele recordou de sua primeira casa, onde no andar superior era possível contemplar “uma vista muito agradável para um sem-número de quintais e jardins vizinhos que se estendiam até os muros da cidade” (GOETHE, 2017a, p. 45). O “quarto do jardim”, um ambiente que devido às jardineiras penduradas na janela deram-lhe a alcunha, se tornou um refúgio de onde:

Para além dos jardins que dali se podiam avistar e ainda mais além dos muros e das fortificações da cidade, abria-se uma planície bela e fértil da cidade de Höchst. Era ali que, no verão, costumava fazer minhas lições, esperar pelas tempestades; e não cansava de olhar o sol se pôr no horizonte, na direção exata daquelas janelas (GOETHE, 2017a, p. 46).

As exigências do pai levaram-no ao curso de jurisprudência na Universidade de Leipzig. Con-tudo, uma grave infecção pulmonar impediu a conclusão das disciplinas, antecipando seu retorno a Frankfurt, onde, no seio familiar, tratou da doença. Depois de curado, ele decidiu retornar aos estudos universitários em Estrasburgo, cidade que lhe havia propiciado novas percepções da paisagem envol-vente e do patrimônio arquitetônico gótico. Com efeito, em 1772, o jovem Goethe, sob os imperativos do movimento Sturm und Drang, escreveu um pequeno ensaio intitulado Von deutscher Baukunst [“Sobre a arquitetura alemã”], criticando a teoria de Marc-Antoine Lauguier que reduziu o estilo gótico à dimensão negativa, caracterizando-o de bárbaro, monstruoso e disforme (ARRAES, 2019, p. 1767). O ensaio ainda aborda as relações estéticas, históricas e morais da “natureza” com a origem do gótico, sendo a catedral de Estrasburgo o exemplo visível dessas imbricações. Goethe terminou o curso de Direito, mas abandonou a carreira logo que percebeu sua vocação artística.

A literatura e os escritos sobre arte de Goethe promovem a “natureza” e a “paisagem” como entidades vivas, mas em alguns aspectos, distintas. Enquanto que a natureza envolve a totalidade dos fenômenos, a paisagem seria “um quadro da natureza”, uma parte dessa totalidade formulada pela experiência de um olhar treinado (ARRAES, 2018, p. 14). De maneira que a paisagem seria uma cisão do ato de contemplar. Retirada a paisagem da natureza, aquele fragmento torna-se igualmente uma nova totalidade. Paradoxalmente, tanto a natureza quanto a paisagem assumem uma forma, entendida como um organismo formulado de diferentes partes que se relacionam entre si (GOE-THE, 2017, p. 581). Essa mesma forma, que é sensível, apoia-se na afinidade entre sensibilidade e empiria: “o conhecimento das montanhas e das pedras que delas se extraem resultaram em grande

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progresso no que diz respeito à arte” (GOETHE, 2017, p. 97). Representar o mundo que nos envolve sensivelmente, isto é, a paisagem em termos formalistas, significa atribuir-lhe uma carga ontológica própria. Se há uma forma é preciso entendê-la como uma unidade expressiva animada por uma realidade exterior conjugada com um “espírito interno”, do qual se pode extrair o sentido da livre natureza (BESSE, 2006, p. 72).

Os trabalhos literários da juventude de Goethe são, nesse aspecto, exemplares. Na primeira parte de Os sofrimentos do jovem Werther, o protagonista se encontra inteiramente sintonizado com o lugar onde decidiu morar por tempo indeterminado. A co-respondência entre o sujeito e a natureza pacifi-cada se anuncia nas primeiras cartas. Há nelas a decisão de sepultar os constrangimentos do passado e suas nostalgias correlatas, dando lugar à contingência da vida e o manifestar dos eventos presentes. A primeira carta – de 4 de maio de 1771 – chama a atenção para um jardim-paisagem criado pelo conde M., por meio do qual foi possível, aos olhos de Werther, tornar a região em um perfeito idílio. O jardim era simples, sem a pompa cerimonial do jardim criado no molde francês, pois se tratava de uma obra elaborada por mãos sem especialidade técnica – kein wissenschaftlicher Gärtner [“nenhum jardineiro cientista”] -, mas por um “coração sensível que queria gozar o prazer de estar consigo mes-mo” (GOETHE, 2009, p. 14).

O estado emocional de Werther anuncia a positiva interação com a paisagem: “nunca fui tão feliz, nunca a minha sensibilidade pela natureza, até por uma pedrinha, uma graminha, foi tão plena e tão profunda” (GOETHE, 2009, p. 58). Essa sensação de plenitude exprime a paisagem como a representação de um sujeito pacificado imerso numa natureza análoga (BESSE, 2006, p. 47). A afini-dade entre o ser e a paisagem aponta para aquilo que o filósofo Arnold Berleant (1995) denominou de

aesthetics of reciprocity [“estética da reciprocidade”], que ajuda a entender como o homem contribui

para a formação do mundo, mas também como a natureza assegura conversões anímicas em sua existência (BERLEANT, 1995, p. 239).

Ainda naquela carta, o jovem elogia a solidão e as feições paradisíacas da região em que co-nheceria sua amada Lotte:

[...] estou me sentido muito bem aqui. Nestas terras paradisíacas, a solidão é um bálsamo valioso para o meu coração, tão fortemente aquecido pelo fervor juvenil. Cada árvore, cada arbusto é um ramalhete de flores, e dá vontade de virar borboleta para poder flutuar neste mar de fragrâncias e retirar dele todo o sustento (GOETHE, 2009, p. 14).

A descrição idílica de Werther sublinha, como argumenta Marco Aurélio Werle (2017, p. 43), o caráter visual do romance, emoldurando os textos epistolares em quadros de grande vitalidade e vigor. Com efeito, buscar o campo como ideal de vida e a interação equilibrada da paisagem com a subjetividade representam a proposta de Goethe para uma estética centrada na sensibilidade e imagi-nação (WERLE, 2017, p. 43). Ao percepcionar o belo natural como continuidade do ânimo, Werther participa da paisagem, não simplesmente como espectador, mas como estando nela. A reciprocidade entre o belo natural e a arte resulta numa experiência estética na qual se vivencia e aprecia ambas as categorias de maneira unificada (BERLEANT, 2013, p. 296).

A harmonia entre o jovem protagonista e a paisagem se mostrou transitória. Esvaiu-se logo de-pois de tomar conhecimento da decisão matrimonial de Lotte com Albert. Nesse momento a natureza se transmudou numa paisagem insípida. Seus verdadeiros testemunhos são tempestades enfurecidas, inundações e a morte de todos os elementos orgânicos. Se por um lado o sujeito e a natureza estão sin-tonizados, por outro existe a renúncia da contemplação da natureza devido à sua condição destrutiva, pois a natureza é, para Goethe, substancialmente polarizada. A ela pertencem a graciosidade da vida e o medo da morte. Na carta de 18 de agosto, o espetáculo idílico desaparece, metamorfoseando-se numa cena matizada por tons sublimes:

Toda esta ardente sensibilidade de meu coração pela natureza, cuja vida me invadia com tanta voluptuosidade fazendo do mundo à minha volta um paraíso, transformou-se agora num in-suportável carrasco, num espírito atormentador que me persegue por toda parte...As grandes e raras misérias do mundo: essas inundações que varrem as suas vilas, esses tremores de terra que engolem as suas cidades, não me comovem; o que me corrói o coração é a força destrutiva,

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oculta no âmago da natureza...O céu e a terra e as forças criadoras me rodeiam: não passam de um monstro eternamente devorador e ruminante. (GOETHE, 2009, p. 74)

A mudança de enfoque na narrativa diferencia o romance em dois quadros distintos: o primeiro – pitoresco – relativo à alegria de apreciar a natureza à maneira dos gregos, isto é, idílica e pastoral. Lembre-se que o único livro Werther carrega consigo é um Homero (carta de 13 de maio). O segundo, que se pode classificar como sublime, devota ao protagonista as incertezas, as angústias e o terror da vida projetados numa paisagem “carrasca”. Para Werle (2017, p. 40), a segunda parte do Werther ecoa a grandeza da alma expressa em sentimentos que transcendem a racionalidade e a estreiteza da sociedade.

O tratamento dado à paisagem até aqui admite a articulação entre o dizível e o visível. Um exemplo dessa relação se encontra no ensaio de Goethe – “Ruysdael como poeta” – escrito em 1806. Goethe elabora uma rica análise de três pinturas de paisagem do artista holandês Jakob Ruysdael (GOETHE, 2008, p. 197). No artigo, a visão se sobressai sobre os demais sentidos, pois opera como instrumento que movimenta a elaboração interna de narrativas que explicam o conteúdo da imagem. Nesse sentido, distintos observadores terão suas próprias interpretações sobre uma mesma tela, ou dito em outros termos, terão diferentes discursos sobre o mesmo objeto visualizado. Os quadros analisados por Goethe foram: uma paisagem de feições pitorescas enobrecida pela fertilidade da terra e pelas as ações humanas sobre o espaço; a pintura denominada “O con-vento” que conjuga passado e presente de forma admirável. O passado foi marcado por um mos-teiro em ruínas e uma ponte destruída. Pastores e migrantes, em eventos cotidianos, imprimem vida à imagem. As paisagens se configuram como um palimpsesto formado por cronologias “que tão encantadoramente se mesclam reciprocamente” (GOETHE, 2008, p. 200). Enquanto que na tela “O convento” os períodos se interpenetram, na terceira tela – intitulada de “O cemitério” – o pretérito é o conteúdo pictórico. Os túmulos e a morte simulam a impossibilidade do retorno aos eventos idos e a inexorabilidade do devir histórico, “é como se o passado não nos legasse nada mais senão a mortalidade” (GOETHE, 2008, p. 201).

Goethe tinha predileção pela pintura de paisagem. Desde muito cedo ele se dedicou ao gênero, embora em meados do século XVIII fosse considerado, dentro do sistema das artes figu-rativas, uma representação inferior à pintura de história. Notáveis são seus desenhos de paisagens noturnas da floresta da Turíngia e de Ilmenau. Esse gosto é ressaltado nos quadros feitos durante sua viagem à Itália (GOETHE, 2017). Foi na Magna Grécia onde o poeta teve aulas com o famoso paisagista alemão Philipp Hackert. A partir de então eles desenvolveram uma amizade com vieses intelectuais reconhecíveis em cartas trocadas até a morte de Hackert, em 1811.

Nas missivas, o poeta alemão comenta que a pintura de paisagem evoca a natureza apre-endida pelo constante treino da visão. Hackert concorda, opinando que o artista deve ser, antes de tudo, um bom observador dos objetos naturais, dedicando tempo para ilustrar e conhecer os fenômenos. Não bastava pintar uma tília, por exemplo, senão aprofundar o conhecimento de suas cores e formas a fim de retratá-las na tela. No poema Amor als Landschaftsmaler [“Amor como pintor de paisagem”] nota-se a permanente reciprocidade entre natureza e artista como basilar à pintura de paisagem do neoclassicismo. O personagem “Pintor”, quando indagado por um garoto sobre o que desenhar a “olhos fixos”, reiterou que a natureza o servia de modelo: “Traçou um rio, qual fora ao natural, tão igual, que captava o sol reflexo” (GOETHE, 2008, p. 84). Segundo Cláudia Valladão de Mattos (2008, p. 64), o tema do poema é significativo para o processo criativo, porque ele funciona como incentivo ao gênio enrijecendo os vínculos do homem com a natureza envolvente.

Em um outro ensaio dedicado à obra de Hackert, escrito em 1811, Goethe afirmou que seria um engano pensar que tal gênero artístico se refere à mera imitação da natureza. Convinha ao pintor, de fato, reconhecer as características físicas dos objetos observados, mas sem olvidar o caráter (Charakter) e a forma como cada parte se relaciona com o todo natural. Hackert captou bem essa relação, transparecendo em seus quadros uma natureza tão perfeita quanto a original (GOETHE, 1811, p. 309) (Imagem 1).

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Figura 1:Philipp Hackert – Ideale Landschaft, 1794.

Fonte: retirada de KRÖNIG, Wolfgang; WEGNER, Reinhard. Jakob Philipp Hackert: der

Landschafts-maler der Goethezeit. Köln: Böhlau, 1996. p. 83.

No tour pela Itália Goethe desenvolveu com profundidade seu entendimento de paisagem. Em solo clássico ocorreria seu “renascimento”, isto é, autoformação (Bildung) do espírito a partir dos objetos que se impunham diante de si, seja a arquitetura da antiguidade, os edifícios desenhados por Palladio ou os vapores atmosféricos essenciais à captação do fenômeno cromático. Em Nápoles, ele estava determinado a não retornar para a Alemanha se não fosse renascido (GOETHE, 2017, p. 249). A partir de Brenner, os vapores animaram o espírito do poeta viajante: “o vapor solar torna magnífico esse lugar (Zirl), por si só já indescritivelmente belo (GOETHE, 2017, p. 28). A mudança atmosférica por si é insuficiente para afetar a interioridade de Goethe que almeja a profunda corres-pondência entre os “objetos dos olhos” e os “objetos do coração”. A transformação fotocromática do fenômeno natural faria com que a natureza se convertesse em paisagem. O colorido natural dos va-pores atmosféricos expõe ao sujeito a natureza vivificante e legível. Nápoles é, nesse âmbito, exemplar:

Luz e sombra alternavam-se freneticamente, dando viva diversidade àquela superfície erma e deserta. As colunas de fumaça iluminadas pelo sol, exaladas por cabanas quase invisíveis, cau-savam ali um belo efeito (GOETHE, 2017, p. 208).

A forma da paisagem está incompleta quando se dá lugar somente ao colorido e aos objetos naturais. É imprescindível para sua composição a vida humana. Os relatos de Goethe no itinerário italiano são pródigos em descrever a cultura dos povos visitados. Em Terni, ele assume a sociedade como parte essencial da construção de imagens vivas, as quais, referem-se igualmente à vitalidade do lugar. Essa ideia de representação da vida na Terra definiu a pintura de paisagem e a teoria de arte do naturalista e pintor Carl Gustav Carus.

ERDLEBENBILDKUNST: CARUS E AS CARTAS SOBRE PAISAGEM

Carl Gustav Carus nasceu, em 3 de janeiro de 1789, na cidade de Leipzig. Seu pai, August Gottlob Carus, proveio de uma família de comerciantes dedicada à tinturaria. A fim de receber uma

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melhor educação, o pai de Carus decidiu enviá-lo para a casa dos avós maternos. Lá, ele recebeu, até os 12 anos de idade, aulas domiciliares e passou a admirar o seu tio, Daniel Jäger, naturalista que havia estudado química na França durante o efervescente período da Revolução Francesa. A paixão pela química e ciências humanas foi o legado do tio. Em suas memórias - Lebenserinnerungen und

Denkwürdigkeiten -, publicadas em 1865, Carus (2014, p. 7) relembra dos tempos felizes da infância em

Leipzig, onde mantinha seus olhos atentos ao cotidiano urbano, à igreja gótica da cidade, ao mercado medieval, aos jardins e ao tribunal.

Em 1804, Carus iniciou a educação universitária. Botânica foi sua primeira opção. Assim como Rousseau, ele apreciava herborizar plantas desconhecidas. Depois de um tempo, se matriculou em zoologia, química e física. Mais tarde, em 1807, se formou na faculdade de medicina. Por um tempo, exerceu a docência na Universidade de Leipzig e a medicina no hospital Saint Jacob. Nesse período, há uma rica produção científica, como seu artigo Vorlesungen über einen Teil der vergleichenden Anatomie [“Preleções sobre uma parte da anatomia comparada”]. Em 1811, se dedicou à filosofia, tendo com o professor Friedrich Wilhelm Joseph Schelling. Aos 42 anos mudou-se para Dresden, onde fez parte de um grupo de pintores de paisagem junto com Caspar David Friedrich.

Além de sua formação científica, Carus possuía talento para a pintura e literatura de paisagem [Landschaftsliteratur]. Entre 1818 e 1820, sob a influência de Friedrich, ele pintou uma série de quadros hoje expostos tanto na Alte Nationalgalerie de Berlin, como no museu Albertinum de Dresden. Uma dessas pinturas – Tannenwald (Imagem 2) – impressionou o já septuagenário Goethe. A pedido do poeta, Johann Henrich Meyer escreveu uma resenha publicada na revista Über Kunst und Altertum [“Sobre arte e antiguidade”], na qual comparou Tannenwald às obras de Ruysdael (KNITTEL, 2002, p. 26):

a outra pintura (Tannenwald) mostra uma área de floresta abandonada densamente povoada de pinheiros com um riacho atravessando as pedras. Luz moderada com um céu muito nublado, o verde escuro da floresta, o solo puro e musgoso e a água clara lembram as pinturas de Ruysdael, cujo espírito ninguém poderia entender facilmente [...] a pintura atraía por seu caráter e signifi-cado (MEYER apud GROCHE, 2001, p. 140).

Figura 2: Carl Gustav Carus - Tannenwald. Retirada de GROCHE, Stefan. ‘Zarten Seelen ist gar viel gegönnt‘: Naturwissenschaft und Kunst im Briewechsel zwischen C. G. Carus und Goethe. Göttingen, Wallstein Verlag,

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Sua amizade com Friedrich o motivou a expor outros desenhos na galeria de arte de Dresden. Ambos pretendiam dar novo significado à pintura de paisagem, deslocando-a da simples mimese dos fenômenos aparentes da natureza por introduzir um caráter, uma percepção individual no processo pictórico. A ideia de Stimmung foi fundamental tanto para as composições de Carus, assim como para a redação de seu Briefe über Landschaftsmalerei “Cartas sobre pintura de paisagem”, obra que será a seguir considerada sem seguir a sequência numérica e cronológica das cartas. À primeira vista essa maneira de abordar os textos epistolares pode parecer ilógica. Entretanto, o conteúdo de cada carta, embora circunscreva um assunto comum - estética da natureza apreensível na paisagem, é autônomo entre si.

Friedrich e Carus pertenceram a uma época na qual a arte se fez presente como uma dimensão essencial de conhecimento. Como Jutta Müller-Tamm refletiu (1995, p. 194), para eles havia um elo vivo entre ciência e arte, razão e estética, que deveria ser entendido pelo relacionamento harmonioso entre cultura, natureza e arte. Em certa medida, Carus é tributário dos conceitos de natureza e paisagem definidos por Goethe e Alexander von Humboldt, para quem a ideia de paisagem deveria ser pensada como a conjugação entre sensibilidade e razão.

É interessante mencionar que, os trabalhos artísticos de Carus são notáveis por sua multidisci-plinaridade, abrangendo temas que gravitam na órbita da estética, da literatura e das ciências naturais. As considerações a seguir apresentam de forma geral o seu tratamento com respeito à natureza e à paisagem nesse universo plural, enfocando suas "Cartas sobre pintura de paisagem". A correspon-dência entre diferentes campos do saber transparece na passagem de suas memórias (CARUS, 2014, p. 126): Es trat in diesen Briefen eine eigenthümliche Vermählung von Wissenschaft und Kunst hervor,

und dies ist es auch jedenfalls, wodurch ihnen eine bleibende Stellung in der Literatur erhalten werden wird. (Aparece nessas cartas uma curiosa mistura de ciência e arte, e isso é, em todo caso, o que lhes

dará um lugar duradouro na literatura – tradução nossa).

Escrito de 1815 a 1824, mas publicada em 1831, o opúsculo Briefe über Landschaftsmalerei es-tabelece, via teoria, história e filosofia da arte, uma conexão profunda e apaixonada no entendimento da natureza e da pintura de paisagem. A obra pode ser dividida em dois grupos: as cinco cartas pri-meiras descrevem a natureza em termos poéticos e religiosos. Há uma aproximação com a maneira de Friedrich representar a paisagem segundo a estética do Romantismo. Nesse aspecto, Carus se distancia do pensamento goethiano, na medida em que o poeta acreditava que a pintura de paisagem deveria reproduzir com exatidão os objetos naturais e seus fenômenos particulares, não cabendo ao pintor comunicar na tela unicamente a expressão da subjetividade em si, mas unificar a empiria com as emoções. Friedrich, ao contrário, expunha um certo “estado de ânimo” que desafiava as preceptivas da pintura de princípios do século XIX. As quatro últimas cartas, ao contrário das iniciais, indicam a positiva interação entre ciência e sensibilidade, aproximando-se da heurística de Goethe e com os estudos da natureza de Humboldt. Ao invés de tratar a paisagem numa dimensão mística, Carus a relaciona à vida, ou como ele chamou, a paisagem seria Erdlebenbildkunst, a forma da arte que dá vida à Terra (MITCHELL, 1984, p. 455).

As cartas apareceram após a morte Ernst Albert, filho de Carus. Ele comemorou a memória do filho nomeando o suposto remetente de "Albertus" e o destinatário de "Ernst". Durante o período de redação da obra, o entendimento de Carus sobre a paisagem mudou consideravelmente. Afinal, ao longo de nove anos a consciência de uma pessoa altera, pois "descobrimos que algumas das flores de nosso intelecto murcharam no ramo, enquanto uma nova flor explodiu precisamente na direção oposta” (CARUS, 1972, p. 77). De fato, as cartas dão a ver a mudança de direcionamento: começam com um ponto de vista próximo ao Friedrich, alcançando a ideia de paisagem na qual ciência e arte se combinam para produzir uma imagem que visa a expressar a totalidade da natureza (BÄTSCH-MANN, 2002, p. 6).

Para Carus, ciência e arte são complementares. Ambas devem se afinar no intuito de revelar a vida e as regras da natureza veladas aos sentidos humanos. Seus estudos científicos reuniram um bom número de ilustrações, reduzindo a aridez das abstrações e dos cálculos matemáticos. A tais pesquisas devem ser acrescentados trabalhos dedicados à vida e à obra de Goethe, como o artigo Goethe: dessen

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über das Erdleben [“Doze cartas sobre a vida na Terra], livro publicado dez anos após as cartas sobre

pintura de paisagem.

Na sétima carta o autor se incomoda com o termo Landschaft [“paisagem”]. Paisagem se tornou uma expressão inapropriada para expor a poética da natureza: mehr wenigstens von dem Ideale, was

ich hier aufstellen wollte, liegt gewiß in diesem Wort, als in der Landschaft (muito pouco do ideal,

que eu aqui queria elaborar, situa-se nessa palavra paisagem, tradução nossa) (CARUS, 1972, p. 57). O aspecto semântico de paisagem mantém uma espécie de "mecanicidade" que submete a natureza ao estritamente empírico. Não se trata de favorecer o subjetivo sobre o mundo das aparências, mas de reconciliá-lo como substância da paisagem.

Erdlebenbildkunt foi a palavra cunhada por Carus para apresentar os fenômenos vivos da

na-tureza por meio da arte. A tradução literal para o português - a arte de representar a vida da Terra - insere aspectos físicos e metafísicos em sua semântica. Havia uma forma e, portanto, uma totalidade orgânica sistêmica, comprometida em expor ao expectador a vida da Terra, isto é, a natureza. O termo expressa uma unidade que assume a força da criação, permitindo a compreensão de fenômenos par-ticulares, não como frações ilhadas, mas como um todo interdependente.

A Erdlebenbildkunst é essencialmente dual. O primeiro aspecto alude a paisagem como um recorte do mundo observado e representado em poesia ou pintura. O olho do artista deve ser capaz de perceber as maravilhas da natureza e sua mão rápida deve desenhar a alma da natureza. Por con-seguinte, na oitava carta o autor incentivou os jovens artistas a introduzirem elementos científicos na pintura, uma vez que “é uma verdade estranha que as atuais aulas de pintura ignoram totalmente a necessidade de componentes científicos, porque em outros ramos das artes plásticas a ciência foi aceita como indispensável” (CARUS, 1972, p. 146).

As reflexões de Carus sobre Erdlebenbildkunst dizem respeito principalmente à pintura de paisagem. No neologismo há uma exaltação oculta da estética de Friedrich, posicionada como a reden-ção da mesmice e da insignificância que assombrou a pintura na Alemanha no início do Oitocentos: “Friedrich, com uma mente profunda e vigorosa, com uma originalidade total, mudou a banalidade e tédio da paisagem, assumindo uma tendência poética radiante e distintiva” (BÄTSCHMANN, 2002, p. 17). Embora as cartas tomem a paisagem como princípio hermenêutico da natureza, elas abrangem outras questões estéticas significativas. Na segunda carta está esquematizado um sistema das artes e como elas são definidas de acordo com as determinações do belo. Na quarta existe a hierarquização das subcategorias de “estilo” - naturalista, fantástico, maneirado, nebuloso e puro - e a articulação entre poesia, escultura, jardinagem, pintura e música no efeito e produção da beleza.

A terceira carta é especialmente importante ao abordar a categoria Stimmung, tópico central da estética do Romantismo. É reconhecida a dificuldade das línguas latinas de traduzir o verbete

Stimmung, dado seu significado coloquial contemporâneo na sociedade de língua alemã. Segundo

Georg Simmel (2013, p. 40), o vocábulo leva em consideração os aspectos objetivos e subjetivos, que o transforma em uma “disposição”, uma “atmosfera”, um “caráter” ou “estado de ânimo” de um todo (SERRÃO, 2013, p. 40) (Imagem 3). A interpretação simmeliana se ajusta às ponderações de Alexander von Humboldt. O naturalista prussiano reconheceu que as “vistas da natureza” [Ansichten der Natur] eram fisionomias de caráter peculiar [eigentümlichen Charakter] reconhecíveis na conformação do clima, da altitude das montanhas, dos vapores atmosféricos e da obscuridade da floresta com a vida do homem.

A explicação de Hans Ulrich Gumbrecht converge com as considerações simmelianas. Enquanto que em inglês Stimmung é traduzido como mood e climate, em que mood diz respeito “a uma sensação interior, um estado de espírito tão privado que não pode sequer ser circunscrito com grande precisão”, e climate seria algo meramente exterior, exercendo sobre as pessoas uma influência empírica; em alemão, a palavra deriva do verbo stimmen, cuja semântica indica o ato de afinar um instrumento musical, e como tal o estado de ânimo é experienciado num continuum, como tons e escalas musicais (GUMBRECHT, 2014, p. 12). Diante desse quadro, ele conclui: “Stimmung não existe completamente independente das componentes materiais das obras [artísticas]”, mas são interdependentes entre si (idem, p. 14).

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Figura 3: Exemplo de Stimmunglandschaft. Hünengrad mit ruhendem Wanderer (1819-1820). Fonte: Pintura encontrada em Gerd Spitzer, Carl Gustav Carus in der Dresdener Galerie. Dresden,

Sandstein Verlag, 2009, p. 25.

A ideia de Stimmung se tornou essencial no processo criativo da pintura de paisagem elaborada a partir da virada do Seiscentos para o Setecentos. A noção de Stimmungslandschaft foi desenvolvida de acordo com as teorias estéticas do filósofo Christian Cay Lorenz Hirschfeld em sua monumental

Theorie der Gartenkunst [“Teoria da arte do jardim”, 1779-1785], a qual propunha a descrição de

diferentes caráteres da paisagem. Em Allgemeiner Theorie der Schönen Künste, Sulzer postulou que a contemplação da natureza seria o primeiro passo do homem no direcionamento da razão e da ordem do mundo à subjetividade. A pintura de paisagem, afirma Sulzer, aproveita o efeito da observação da natureza na emoção e no entendimento humanos: “na natureza a pintura encontra um estoque ines-gotável de material com o qual aprimora o espírito dos homens; e o paisagista tem muitas maneiras úteis de nos agradar: acima de tudo, quando ele lista os poderes superiores de sua arte para combinar assuntos morais e apaixonados com cenas de natureza” (SULZER apud BÄTSCHMANN, 2002, p. 12). Considerações Finais

A percepção sensível da natureza e a ideia de paisagem estão mutuamente atreladas, ao menos a partir da segunda metade do século XVIII, momento no qual surge a disciplina estética criada por Alexander Gottlieb Baumgarten. No Renascimento, a aparição da perspectiva “inventou” a paisagem enquanto fragmento de uma totalidade emoldurada segundo diretrizes geométricas e abstratas. Essa abordagem é paradoxal, sobretudo para críticos e historiadores da arte cientes de que a gênese da paisa-gem não é europeia. O termo já existia na China e no Japão em poemas e ideogramas desde o século XIII. A literatura e a pintura se tornaram instrumentos devotados a representar a paisagem. Vimos, a propósito desse esclarecimento, como a poética de Goethe sensibiliza o leitor a perceber a paisagem enquanto mediação estética da natureza, formulada através da apreciação subjetiva e objetiva do espectador (BERQUE, 2013, p. 44).

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As cartas de Carus frisam um novo paradigma que havia se instaurado na Europa no início do século XIX sobre o entendimento da natureza e suas aparências sensíveis (paisagem e jardim). A pintura de paisagem deveria unir a percepção humana do mundo (Stimmung) com o caráter objetivo dos fenôme-nos naturais reconhecido a partir do inquérito científico. Isso é sintomático na literatura de Alexander von Humboldt. Em Kosmos, o naturalista explica que a totalidade natural emerge sob a forma de dois âmbitos complementares: observar a natureza em sua realidade objetiva e refletir como a humanidade projeta seus sentimentos sobre a natureza. Se a ciência baseada na observação estrita transmite leis que desvendam o universo, o espetáculo da natureza estaria incompleto sem a imaginação das impressões poéticas. Ele lembra que o destino do homem seria “capturar o espírito oculto da natureza por trás de suas manifestações”, a fim de abranger a natureza como um todo, para então “submeter simultaneamente a matéria bruta da intuição empírica através de ideias” (HUMBOLDT, 1852, p. 9).

No segundo tomo de Kosmos, Humboldt estabeleceu três dispositivos de difundir o estudo da natureza, por meio dos quais a imaginação e a sensibilidade se expressam em toda sua verdade: poesia, pintura de paisagem e jardim. A vocação da pintura seria a de apresentar a rica variedade de formas exteriores em consonância com as emoções do artista que a produziu (Stimmung). Ele prossegue: “a pintura de paisagem torna possível valorizar uma fisionomia [...] convidando-nos a estar em harmonia com a natureza de maneira instrutiva e prazerosa” (HUMBOLDT, 1852, p. 36).

A ideia de fisionomia humboldtiana é central nos comentários de Carus, sendo entendida como a “ciência que investiga o significado da configuração humana exterior em relação à subjetividade e vida mental, a qual, por uma questão de concisão, eu denomino simbolismo” (CARUS, 1853, p. 209). O símbolo seria a unificação entre a forma exterior com forças que estão veladas à empiria, mas que são desveladas na avaliação criteriosa das formas (CARUS, 1853, p. 164). A paisagem transmite e incentiva a configuração de um Stimmung. O diário de Carus dá a ver descrições de Stimmungslandschaften, como a imagem noturna descrita em julho de 1832: “a lua cheia de cores e ainda sombria, contra o céu, que ainda iluminava os últimos raios do sol, já ocultos” (CARUS, 1972, p. 1445) (Figura 4).

Figura 4: Mondscheinlandschaft. Pintura de Carl Gustav Carus

Fonte: retirada de SPITZER, Gerd. Carl Gustav Carus in der Dresdener Galerie. Dresden: Sandstein

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Notas

1 Este artigo é um dos resultados de um estágio de pós-doutorado realizado na Freie Universität Berlin (FUB) sob a supervisão do Prof. Dr. Michael Gamper e contou com bolsa concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP (processo nº 2018/19798-7).

2 Para o aprofundamento das amplas questões envolvendo a paisagem como representação do paraíso, recomenda-se a leitura da excelente obra de Simon Schama (1995) Paisagem e Memória, especialmente o capítulo nove da quarta parte intitulado sugestivamente de “Arcádia resignada”.

3 Para Georg Lukács (1968, p. 63), o Sturm und Drang diz respeito à sublevação do sentimento e do “instinto vital” contra a tirania do entendimento apregoado pelo Iluminismo, enfatizando o gênio criador livre de preceptivas e da racionalidade catalográfica.

4 O jardim-paisagem, também chamado de jardim pitoresco ou jardim inglês, assumiu a natureza como modelo de imitação. Surgiu inicialmente na Inglaterra, espalhando-se para os outros Estados e reinos eu-ropeus sobretudo na segunda metade do século XVIII. Contrapunha-se à arquitetura do jardim de gosto francês que primava, em termos ideológicos, a supressão da lei da natureza pela norma estrita e abstrata da geometria.

5 Para maiores informações biográficas de Carl Gustav Carus, recomenda-se a leitura do trabalho de Wolfgang Genschorek (1986).

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Imagem

Figura 1:Philipp Hackert – Ideale Landschaft, 1794.
Figura 2: Carl Gustav Carus - Tannenwald. Retirada de GROCHE, Stefan. ‘Zarten Seelen ist gar viel gegönnt‘:
Figura 3: Exemplo de Stimmunglandschaft. Hünengrad mit ruhendem Wanderer (1819-1820).
Figura 4: Mondscheinlandschaft. Pintura de Carl Gustav Carus

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