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UMA REESCRITA DA HISTÓRIA PELA FICÇÃO EM O OUTRO PÉ DA SEREIA

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Academic year: 2020

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A REWRITE THE HISTORY OF FICTION IN THE OTHER FOOT MERMAID

Maria de Fátima Castro de Oliveira Molina1 RESUMO: A relação de Mia Couto com a história da colonização da África se particulariza na obra O outro pé da Sereia (2006) por meio da recriação de cenários e da reconstrução das vozes que compõem a narrativa. Pelo viés desse diálogo, o romance se destaca devido à carga simbólica que traz na (re)construção ficcional de momentos históricos da colonização portuguesa em Moçambique. Partindo dessa premissa, propomos evidenciar uma recontagem da história por meio da encenação das personagens em diferentes tempos e espaços da

narrativa, com o objetivo de identificar representações temáticas que envolvem o diálogo da

história com a Literatura no romance. Tais temas serão analisados sob a ótica de estudiosos da produção literária de Mia Couto e autores da vertente teórica do pós-colonialismo.

PALAVRAS-CHAVE: Ficção. História. Mia Couto.

INTRODUÇÃO

As relações entre história e ficção não são recentes e têm recebido da crítica contemporânea tratamentos distintos, conforme o foco de interesse e possibilidades de análise. Embora sejam fios distintos em suas especificidades constitutivas, história e ficção se conciliam para juntas produzirem interpretações, questionamentos, revisões e resgate de personagens em nuances históricas possibilitando discussões e formas de reavaliar o passado. Suas diferenças, contudo, também foram se estabelecendo, entre outros motivos, pela acentuada discussão em torno dos limites de atuação e especificidades inerentes a cada área.

Assim, a intervenção de elementos da história na ficção põe em evidência que a possibilidade de entrelaçamento se dá com base no princípio de que tais escritos podem ser concebidos como formas de conhecimento do mundo e formas de expressá-lo, acentuando-se, sobretudo, na ficção, a expressividade da linguagem.

Dessa forma, é pelo viés do diálogo entre História e ficção, que direcionamos nosso olhar para a construção ficcional de Mia Couto, mais especificamente para a obra O outro pé da sereia. Em seu processo criativo o autor elabora uma tessitura enviesada com diferentes fios, matizados com símbolos que evocam momentos históricos da colonização portuguesa em Moçambique. Para isso, seu instrumento é a palavra, sempre intensificada de significados, gerando possibilidades para novas interpretações.

1 Professora da Universidade Federal de Rondônia/UNIR. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em

Letras, Área: Literaturas em Língua Portuguesa – DINTER: UNESP- São José do Rio Preto/UNIR. E-mail: fatima-molina@uol.com.br.

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1 O DIÁLOGO COM A HISTÓRIA NA FICÇÃO COUTIANA

Partindo do princípio de que história e ficção são formações discursivas diferenciadas, Luiz Costa Lima apresenta uma interessante analogia entre o enunciado literário e o não literário no livro história, ficção e literatura, simplificando, por meio das metas e especificidades da linguagem, as características de cada discurso. De acordo com o autor, independente da forma de linguagem, seja na comum ou na linguagem científica, “o enunciado não literário caracteriza-se por visar um objeto existente, direcionado ao mundo real, de algo extraído como seu conteúdo [...] já o enunciado literário não se subordina à direcionalidade ontológica, desviando-se da exigência de verdade” (2006, p. 345). Emerge dessa relação, o entendimento de que história e ficção aproximam-se e se distanciam por seus modos de pensar e expressar o mundo.

Tal premissa vai ao encontro das reflexões de Roger Chartier em sua abordagem sobre ficção, história e memória. Recorrendo ao conceito de “energia social” desenvolvido por Greenblatt, Chartier destaca que “Por um lado, o que a escrita literária apreende é a poderosa energia das linguagens, dos ritos e das práticas do mundo social”, por outro lado, “a energia transferida para a obra literária retorna ao mundo social através de suas apropriações” (2011, p. 96). Nessa perspectiva, a força estética das obras é definida pela capacidade da linguagem configurar experiências, podendo apoderar-se de qualquer realidade.

Nesse sentido, a ficção atua com uma maneira própria de tematizar sobre o que a história toma como verdade, preenchendo com uma linguagem estetizante as lacunas deixadas pelo registro oficial. É com essa configuração que se caracteriza a ficção coutiana. Sua narrativa faz incursões na história para recriá-la, como uma forma privilegiada de ler a mentalidade de uma época transcrita pela versão oficial dos fatos, desestabilizando as narrativas legitimadoras, porém longe da intenção de produzir outra verdade histórica.

Sobre a produção literária de Mia Couto, Ana Cláudia Silva, pesquisadora da fortuna crítica do ficcionista no Brasil, afirma que adotando uma linguagem literária própria e inovadora, entretecida com humor e recriação linguística, o autor levou a literatura de Moçambique a ultrapassar os limites de sua nação. De acordo com Silva, trata-se de uma produção que marca a história da literatura moçambicana e se sobressai pelo entrelaçamento de culturas, pela busca de identidade, pelo desejo de construção da nação moçambicana, pela reflexão sobre o passado colonial e por “ecos amargurados de um país desfeito pela colonização” (SILVA, 2010, p. 72). Nessa perspectiva, Mia Couto consegue fazer de seu

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romance um importante veículo de afirmação e expressão das literaturas africanas de língua portuguesa. Na analisa de Silva,

as culturas que subsistem na oralidade, em Moçambique, têm uma presença constante na obra do autor, que dela resgata elementos – história, mitos crenças etc. – com os quais tece enredos que transitam entre o realismo e o inusitado das situações permeados, sempre de ironia, drama e crítica social, num equilíbrio que permite a abordagem de temas complexos – tais como as guerras, a corrupção, o amor, a política e outros – de forma leve e bem humorada (2010, p. 12).

Em suas reflexões sobre o papel de sua obra ficcional em relação à história de Moçambique, Mia Couto lança o seguinte questionamento: “De onde vem a dificuldade de nos pensarmos como sujeitos da história? Vem, sobretudo, de termos legado sempre aos outros o desenho da nossa própria identidade” (COUTO, 2009, p. 31). Nesse sentido, Nazareth Fonseca e Zilda Cury (2008, p. 84), analisam que “o escritor parte de fatos históricos, de acontecimentos ‘reais’, para neles inserir vozes que a história reprimiu, para reler os acontecimentos reinventando seu contexto, envolvendo-os com uma aura de fantasia”. Essa postura estética vai ao encontro do que Fanon (2002, p. 179) defende em relação ao intelectual que escreve para sua nação. Ele “deve escrever para compor a sentença que expressa o coração do povo e para tornar-se uma peça importante para uma nova realidade. [...] Por fim, o intelectual nativo deve usar o passado com a intenção de abrir o futuro, como um convite e uma base para a esperança”.

Inerente à inclinação de construir a ficção nas lacunas deixadas pela história, está o trato diferenciado que o autor dá às palavras. É interessante ressaltar nesse processo o poder que a palavra exerce em sua escrita. Segundo Mia Couto (2011), a palavra é dotada de uma força ligada ao plano divino e que tem de lutar para não ser silêncio. A palavra, assim, detém um poder criador capaz de fundar uma nova realidade cultural tão presente em suas narrativas e nas suas relações com a história do seu povo.

Analisando o processo de escrita criativa do autor, Ana Mafalda Leite afirma que “Mia Couto, poeta, contador de estórias, retoma a herança lingüístico-literária dos mais velhos, dos diversos falares da rua, urbanos, suburbanos, do campo, e acrescenta-lhes as suas ‘imaginâncias’ pessoais [...] (1999, p. 8). A linguagem literária criada pelo autor é resultante de um trabalho inventivo e criativo que mescla a língua portuguesa, as construções lingüísticas utilizadas pelas diferentes tribos, a oralidade e provérbios populares. O conjunto de sua obra é singularmente caracterizada por essa proposta inusitada de inovar a linguagem.

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É nos eventos registrados na história oficial que o autor encontra as bases para a construção dos seus enredos. Logo, tempos, espaços e personagens que compuseram a história recebem roupagem e adquirem novos significado. É na esteira aberta por esse diálogo que Mia Couto propõe uma revisão da história do seu país pela ficção. Sua escrita propõe uma recontagem tecida com fios históricos e fios imaginários representados pelas vozes das personagens que estruturam o enredo. Trata-se de uma tessitura que também se constitui pelo viés da ironia e da crítica aos relatos elaborados pelo colonizador, gerando por meio dessa revisitação uma nova perspectiva para o registro oficial da história.

Ao percorrem as várias facetas da escrita de Mia Couto, Fonseca e Cury fornecem reflexões para a leitura do romance coutiano afirmando que a produção do autor se insere no papel da atual literatura pós-colonial. Conforme explicam as autoras:

Na África de língua portuguesa, com mais frequência a partir da segunda metade do século XX, percebe-se um movimento no interior dos textos literários, empenhado em construir histórias nacionais, reinventando fronteiras artificialmente criadas pelos portugueses. Manter tais fronteiras, só era possível nos diferentes mapas geográficos, que partilham o continente africano segundo o interesse dos europeus. Falar da nação, em época de escritos pós-coloniais, exige a ‘reinvenção’ de fronteiras que extrapolem as dos mapas europeus e uma recuperação imaginária de mitos fundadores da tradição ancestral. Trata-se, antes, de estratégia política por meio da literatura de afirmação de uma África que se quer múltipla, embora respeitando suas individualidades nacionais, tanto para africanos como para o mundo globalizado (2008, p. 104).

Compreendemos, portanto, que a possível relação da obra de Mia Couto com a vertente literatura pós-colonial se justifica pelo fato de que as concepções que emergem dessa corrente teórica trazem à cena literária, diferentes representações da experiência do sujeito pós-colonial. Nessa perspectiva, apresenta diferentes enfoques e estratégias no exame da história, literatura e outras formas de experiência cultural. Experiências de alteridade, diferença, identidade cultural, migração, diáspora, escravidão, opressão, resistência, hibridização e representação são algumas das questões debatidas pelos estudos pós-coloniais. Em consonância com tais princípios, a literatura produzida por Mia Couto assume um papel de destaque, pois intervém artisticamente na história, diluindo posições hegemônicas e fixas, abrindo espaços de negociações e trocas culturais.

A tradição que se transparece por meio das histórias, relatos e mitos na ficção coutiana é trabalhada sempre pelo viés da reinvenção, pela elaboração de uma origem ressignificada e deslocada, contrariando qualquer ideia de essencialismo e rigidez identitária. Torna-se evidente, portanto, que a relação que o autor estabelece com a história em seus romances dá visibilidade à tematização da guerra, da colonização, da tradição e do hibridismo cultural,

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temas que estão diretamente ligados a sua inserção no processo de reconstrução do seu país. Nas palavras do autor:

Eu escrevo Terra sonâmbula quando a guerra estava a acontecer; eu escrevo A varanda do frangipani com o período de transição ainda a acontecer; eu escrevo O último vôo do flamingo já olhando a guerra e o processo de pacificação. Eu acho que o fazer da história está tão presente, ele próprio é tão ficcional, nós estamos vivendo em países que se estão escrevendo eles próprios, estão se inventando, estão nascendo e nós estamos nascendo com eles e não é possível separar uma coisa da outra. E eu sou de tal maneira parte desse processo, desse parto, desse nascimento, que não me vejo existente fora dele, só ali tenho dimensão2.

A trajetória da produção literária de Mia Couto está essencialmente ligada à história de libertação do seu país. Sua atuação como jornalista durante a última fase das lutas do seu povo contra a colonização, bem como as experiências vividas durante as guerras civis no período de pós-independência e reconstrução de Moçambique possibilitaram ao autor transitar com muita propriedade entre mundos reais e imaginários. Em sua proposta de revisitação há um redimensionamento nas posições ocupadas pelos personagens que constam nos registros oficiais, associado à inserção de personagens ficcionais nos diferentes tempos que compõem a narrativa. Tal estratégia pode ser concebida como uma forma de dar visibilidade às tensões geradas pelo contato entre colonizador e colonizado.

2 A HISTÓRIA E SUAS REPRESENTAÇÕES SIMBÓLICAS NA NARRATIVA

No romance O outro pé da sereia os tempos movimentam-se numa alternância entre passado e presente. A idéia de entrelaçamento se apresenta desde o índice, na divisão dos capítulos a partir da indicação dos lugares e da marcação das datas da seguinte forma: Moçambique, Dezembro de 2002; Goa, Janeiro de 1560; Oceano Índico, Janeiro de 1560; rio Zambeze, Março de 1561.

Seguindo esse esquema de interposição, a organização feita pela oscilação de diferentes momentos históricos que fazem referência ao processo de colonização da África pelos portugueses, registra um tempo localizado no passado, no século XVI, de janeiro de 1560 a março de 1561, e um tempo presente, localizado no século XXI, situado em dezembro de 2002.

2 COUTO, Mia. Mia Couto: depoimento [14 ago. 2006]. Entrevistadores: Rita Chaves e Tânia Macedo. São

Paulo: Biblioteca Sonora, RádioUSP, 2006. Disponível em:

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O período da história, representado no presente, é emoldurado pela proteção da imagem da santa ou da deusa Kiandra que em 2002 é encontrada por Mwadia Malunga e o marido, Zero Madzero, sem um dos pés, próxima ao rio que passa no lugarejo de Antigamente:

Mwadia procurava as roupas que o rio arrastara quando soltou um grito. O pastor acorreu, esbaforido. Seus olhos se petrificaram. Entre os verdes sombrios, figurava a estátua de uma mulher branca. Era uma Nossa Senhora, mãos postas em centenária prece. As cores sobre a madeira tinham-se lavado, a madeira surgia, aqui e ali, espontânea e nua. O mais estranho, porém, é que a Santa tinha apenas um pé. O outro havia sido decepado.

- Já viu, Mwadia? Esta é a Virgem coxa! (COUTO, 2006, p. 38)

A atuação de Mwadia Malunga enriquece de significado a relação estabelecida entre os espaços e os diferentes tempos que compõem a narrativa de ficção. Suas ações, configuradas pelas múltiplas viagens, desvelam os entrecruzamentos do passado no presente de Moçambique e dão destaque à personagem que se constitui em um universo envolto em símbolos. O próprio nome já é um traço do seu destino de realizar viagens. Mwadia significa canoa na língua Si-nhungwé, falada no Noroeste de Tete, Moçambique. “[...] essa que tinha corpo de rio e nome de canoa” (COUTO, 2006, p. 16). Responsável por estabelecer um elo entre os espaços de Vila Longe e Antigamente e ao mesmo tempo ligar o passado com presente, a viagem empreendida pela personagem é o eixo que norteia a estrutura e a compreensão do romance, uma vez que são as ações desenvolvidas por Mwadia que desvelam as relações existentes entre os séculos XVI e XXI.

A viagem exterior da personagem e ao mesmo tempo a viagem íntima, introspectiva, na sua essência em busca de suas origens e compreensão, tem início no momento em que encontra a imagem da santa, próximo às margens do rio que passa no lugarejo de Antigamente. Juntamente com a imagem, é encontrado também um baú contendo documentos, relatos de viagem que pertenceram ao missionário jesuíta D. Gonçalo da Silveira, autoridade colonial, a serviço da coroa portuguesa, cuja missão foi levar a imagem da santa, de Goa ao reino de Monomotapa, em Moçambique no ano de 1560.

A ação empreendida por Mwadia Malunga é precursora para o desenlace do romance. É por sua atuação que se dá o desencadeamento de ações empreendidas tanto no passado quanto no tempo presente da narrativa. Encarregada de entrelaçar os distintos tempos, Mwadia traz à cena presente, 2002, personagens que atuaram no passado, em 1560. A atuação da personagem na narrativa consiste essencialmente em realizar o trânsito entre o passado e o presente, levando consigo a imagem da santa e o baú contendo os ossos e os documentos do missionário português.

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Nesse processo, uma viagem maior no seu interior é desencadeada, não só pelo retorno ao seu passado, mas também por revisitar o passado histórico por meio da leitura dos manuscritos de D. Gonçalo da Silveira. Nessa configuração, a viagem da personagem é concebida como um recurso simbólico para o cruzamento das temporalidades que põe em evidência a presença de elementos da história da colonização portuguesa em Moçambique na ficção literária.

A temporalidade que faz referência ao passado na narrativa é representada pela evocação da História sobre a travessia do Índico e a incursão dos missionários na África, no ano de 1560, com interesse nas riquezas do reino de Monomotapa e a conversão do imperador à fé cristã, conforme descreve o seguinte fragmento:

A nau Nossa Senhora da Ajuda acaba de sair do porto de Goa, rumo a Moçambique. Cinco semanas depois, em Fevereiro de 1560, chegará à costa africana.

Com Nossa Senhora da Ajuda seguem mais duas naus: São Jerónimo e São Marcos. Nos barcos viajam marinheiros, funcionários do reino, deportados, escravos. Mais do que todos, porém, a nau conduz D. Gonçalo da Silveira, o provincial dos jesuítas na Índia portuguesa. Homem santo, dizem. O jesuíta faz-se acompanhar pelo padre Manuel Antunes, um jovem sacerdote que se estreava nas andanças marítimas. O propósito da viagem é realizar a primeira incursão católica na corte do Império do Monomotapa. Gonçalo da Silveira prometeu a Lisboa que baptizaria esse imperador negro [...] Por fim, África inteira emergiria das trevas e os africanos caminhariam iluminados pela luz cristã.

A estátua de Nossa Senhora, benzida pelo papa, é o símbolo maior desta peregrinação (COUTO, 2006, p. 51).

Assim, utilizando os relatos de viagens, Mia Couto revisita o passado, mais precisamente o século XVI, apropriando-se de fatos históricos para escrever a ficção. Dessa forma, elementos que fizeram parte da história oficial atuam como pano de fundo na composição do romance. Além dos fatos que descrevem a incursão dos portugueses na África, a narrativa também é composta pela presença do jesuíta D. Gonçalo da Silveira, uma representação da colonização portuguesa e da imposição do cristianismo.

Sobre a existência histórica de D. Gonçalo da Silveira, Costa (2008) faz referência à obra de Paiva e Pona, intitulada Dos primeiros trabalhos dos portugueses no Monomotapa (1892). De acordo com a pesquisadora, os autores citam a figura de D. Gonçalo da Silveira como um dos primeiros portugueses a pisar o solo do Monomotapa em 1560. Apropriando-se desse fato, o jesuíta português assume uma posição de destaque na parte que registra o passado da narrativa, no ano de 1560, posteriormente, em 2002, é evocado pela personagem Mwadia passando a encenar no presente por meio da leitura dos seus escritos.

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Em entrevista, questionado sobre a origem do romance O outro pé da sereia, o autor explica:

Um dos núcleos inspiradores foi a leitura de um documento histórico que relata o encontro do missionário D. Gonçalo da Silveira e o Imperador do Monomotapa. O encontro é muito sugestivo, rico em mal-entendidos que revelam códigos culturais diversos. Essa distância continua a marcar ainda hoje aquilo que se celebra como “encontro” de culturas3.

Contudo, embora tenha recorrido a esses recursos, na mesma entrevista o autor rejeita a configuração de caráter histórico do seu romance, justificando para isso a impossibilidade de reconstrução fiel dos fatos. Para o autor, o que simplesmente ocorreu foi um diálogo, um jogo lúdico com um episódio da história.

Analisando o método de construção do romance, Fonseca e Cury observam que

trabalhando com signos da cultura africana, em momentos distanciados no tempo, mas fazendo-os dialogar, tensamente deslocando-os, rasurando-os, ficcionalizando os registros oficiais da história, a narrativa tece um “outro real”, criando uma brecha não para a volta do “já acontecido”, mas para uma possibilidade em aberto daquilo que “poderia ter sido”, assumindo a literatura um lugar de contradição e de crise dos discursos. O discurso da história, pois ficcionalizado, faz emergir os discursos de memórias que foram silenciadas, que permanecem se registro factual, mas que recebem vida e brilho no espaço da ficção (2008, p. 41).

Portanto, em O outro pé da sereia, o que antes era negligenciado assume uma posição de destaque com o papel de recuperar e repensar a cultura, valores e crenças outrora silenciados. Emergem da encenação das personagens Mwadia Malunga e do missionário D. Gonçalo da Silveira a ligação entre os tempos no espaço ficcional e o diálogo da história com a ficção, como uma forma de revisitar o passado, mostrando uma nova perspectiva para o fato histórico.

As primeiras encenações da narrativa histórica, ocorridas no espaço da Nau Portuguesa em 1560, dão visibilidade às representações que constituirão o mosaico cultural que formará a sociedade moçambicana. O navio é o espaço onde se protagonizam as tensões geradas pelo contato entre as diferentes representações culturais do colonizador e do colonizado. O hibridismo cultural resultante desse processo é alegorizado pela imagem da santa, representação mística que promove a confluência entre diferentes apropriações. Primeiramente, ela é Nossa Senhora, santa católica para os portugueses, trazida no navio pelos padres jesuítas que tinham a missão de converter os africanos à fé cristã e a imagem era

3 COUTO, Mia. Mia Couto: entrevista. [S. l.]: Portal da Literatura, 26 set. 2006. Disponível em:

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símbolo dessa missão: “A estátua de Nossa Senhora, benzida pelo papa, é o símbolo maior desta peregrinação” (COUTO, 2006, p. 51).

Contudo, ainda no navio, a imagem é concebida pelos escravos como Kianda, figura mítica, representação das divindades das águas, conforme expressa a voz do escravo Nimi Nsundi:

– Essa Senhora, eu já conheço, na minha terra chamam de Kianda (COUTO, p. 52).

Dessa forma, a imagem da santa assume outra representação, não mais a da religiosidade dos portugueses, mas símbolo das crenças africanas. Sob a ótica dos escravos, a imagem é da deusa Kianda, rainha das águas, que assume as formas de uma sereia, mas que foi transfigurada pelos portugueses ao ter a imagem talhada com dois pés.

Esse deslocamento de sentido se intensifica quando, durante a viagem, Nsundi, um escravo assimilado que na Nau exercia a função de auxiliar de marinheiro e, posteriormente iria servir de intérprete nas costas da África, diariamente prestava homenagem à imagem. Sua devoção causava estranheza nos portugueses, no entanto, para o escravo a devoção era prestada, não a nossa senhora, mas à Kianda. Sob essa tensão, ele guardava consigo a obcecada ideia de libertar sua deusa das águas, que no seu entendimento, estava aprisionada na imagem trazida pelos portugueses. Nesse intento, o escravo serra um dos pés da imagem e, por isso, foi aprisionado no porão do navio e é ameaçado de morte, conforme descreve o seguinte fragmento:

[...] na popa da nossa nau está esculpida uma outra Nossa Senhora. Deixo essa para os brancos. A minha Kianda, essa é que não pode ficar assim, amarrada aos próprios pés, tão fora do seu mundo, tão longe de sua gente. A viagem está quase terminada. Daqui a dias chegaremos a Moçambique, os barcos tombarão na praia como baleias mortas. Não tenho mais tempo. Vão-me acusar dos mais terríveis crimes. Mas o que eu fiz foi apenas libertar a deusa, afeiçoar o corpo dela à sua forma original. O meu pecado, aquele que me fará morrer, foi retirar o pé que desfigurava a Kianda. Só tive tempo de corrigir uma dessas anormais extremidades. Só peço que alguém mais, com a mesma coragem que me animou, decida decapitar o outro pé da sereia (COUTO, 2006, p. 208).

Mais adiante, prosseguindo a viagem, nas terras do Zimbabwe, a imagem mutilada da santa assume a representação de Nzuzu, deusa que habita as profundezas do rio:

- Está a falar da santa?

- Para mim, ela tem outro nome. [...]

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- Não vê que esse Silveira é filho de Nzuzu, a deusa das águas? (COUTO, 2006, 313).

Depois, atravessando os tempos, na narrativa desenvolvida no presente, em 2002, a imagem é concebida como Mama Wati, sereia que viajara com os escravos:

- Sabe que é esta? - Parece Nossa Senhora.

- Essa é Mama Wati, the Mother of Water. É assim que lhe chamam os negros da costa atlântica” (COUTO, 2006, p. 192).

Ao promover essas ressignificações, a imagem alegoriza a hibridização de culturas que perpassa todo o romance. Como representação híbrida, possibilita a confluência de significados por meio de diferentes signos culturais, não se prendendo, assim, a um sentido único e fixo, mas como uma possibilidade de diálogo, e negociação para resistir à imposição dos ideais dominantes.

A idéia da África exótica, com uma identidade pura e autêntica é um dos equívocos encenados pelas personagens no romance. Conforme esclarece Mia Couto em entrevista, “é preciso desmistificar a ideia de que África tem uma identidade completamente exótica, não é? [...] Nos sabemos que a identidade moçambicana é algo que ninguém sabe exatamente definir,

mas sabemos que todos nós temos que fazer uma viagem para chegar lá”4.

Assim, embora no romance haja a presença de elementos que buscam a restauração da cultura negligenciada pelo processo de colonização, essa busca, contudo, não é expressa de forma polarizada, como uma dicotomia ou um duelo entre colonizador e colonizado, pois também surgem elementos que dialogam ou negociam como estratégia de resistência.

Considerando essa linha de pensamento, é interessante evidenciar as concepções de Hommi Bhabha em torno da cultura no contexto da experiência pós-colonial. Por esse viés, o autor analisa as culturas híbridas marcadas por histórias de deslocamentos tratando-as pela experiência da escravidão e das diásporas migratórias. De acordo com a análise do autor, são essas histórias espaciais de deslocamentos que tornam complexa a questão de como a cultura passa a significar. Por meio de tais concepções, é possível ter uma visão de como a cultura é construída, bem como, de que forma a tradição é inventada, desestabilizando, assim, a ideia fixa de essência. Nas palavras do autor,

4 COUTO, Mia. Mia Couto: entrevista [dez. 2003]. Entrevistadora: Vera Maquêa. Maputo, Moçambique: [s. n.],

2003. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via08/Via%208%20cap13.pdf>. Acesso em: 22 set. 2012.

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a representação da diferença não deve ser lida apressadamente como reflexo de traços culturais ou éticos preestabelecidos, inscritos na lápide fixa da tradição. A articulação social da diferença da perspectiva da minoria é uma negociação complexa, em andamento, que procura conferir autoridade aos hibridismos culturais que emergem em momentos de transformação histórica (BHABHA, 1998, p. 21).

É possível perceber, portanto, que falar em negociação entre o que é estranho e o que é familiar, o desconhecido e o que é conhecido, é uma forma de dar visibilidade ao modo pelo qual os sistemas culturais se organizam e se movimentam. Esse procedimento torna compreensível a ênfase com que atualmente se discute o hibridismo cultural, uma vez que tais discussões devem corresponder, conforme pontua Abdala Júnior (2004), à necessidade de dar conta do grande processo de deslocamentos e de justaposições que rompem com as concepções fixas e sedentárias.

Sob essa ótica, o hibridismo está ligado aos movimentos demográficos que em suas rotas de transição permitem o contato entre diferentes identidades, é o que ocorre, por exemplo, na diáspora dos povos africanos por meio da escravidão. Esse processo desloca e desestabiliza a ideia de identidades originais, pois ao possibilitar o contato com diferentes culturas e ao favorecer processos de miscigenação, colocam em movimento processos de hibridização e sincretismo e cultural.

Redimensionando tais concepções para o processo de criação literária de Mia Couto, Leite (2009, p. 8) destaca que é uma constante nos livros do autor moçambicano, a configuração de “enquadramentos e ajustamentos culturais das minorias do país, os indianos, os mestiços, os brancos ou ainda, os camponeses, os velhos, os que vivem ‘muito oralmente’, esses que representam outro tempo, os sem tempo e fora dele”. Tal premissa corresponde às características que prefiguram as literaturas emergentes, com destaque para as literaturas africanas de língua portuguesa, cujos autores são caracterizados por uma escrita de resistência associada a um profundo caráter poético.

Um ponto importante dessa reflexão é também encontrado na análise de Rita Chaves, acerca da literatura produzida em territórios africanos colonizados por Portugal. Segundo a autora, trata-se de uma produção literária que “nasce sob o signo da reivindicação, trazendo para si a função de participar no esforço de construir um espaço de discussão sobre a condição colonial” (2005, p. 289). De acordo com a autora, embora considerando que se sobressai, acima de tudo, o valor estético e a preocupação com a poeticidade na literatura africana, a motivação social também se faz presente, deixando suas marcas de contestações raciais, políticas e culturais. São lacunas que podem ser encontradas na construção das personagens,

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em suas atuações nos diferentes tempos e espaços, enfim, nas encenações que evocam um novo olhar para o registro oficial da História.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Uma breve análise do romance O outro pé da sereia evidencia as estratégias de criação adotadas pelo autor para a composição do seu universo ficcional. Em seu projeto literário, Mia Couto deixa transparecer uma possível resposta à dominação cultural manifestada por meio dos elementos religiosos, culturais, e nas vozes das personagens, configurando-se numa tessitura entre a história por ele criada e a história do seu povo. É uma constante na narrativa a presença de vozes negligenciadas pelo colonialismo, mas que assumem um papel de destaque na recontagem da História.

Nessa configuração o contato entre o colonizador português e os africanos foi reconstruído artisticamente no universo ficcional do romance. Por meio da encenação das personagens, o passado histórico é marcado por uma busca de restauração de valores culturais da tradição e pela opressão do sistema colonial. O tempo presente é encenado entre trocas e diálogos culturais, revelando uma existência híbrida que se enriquece e se transforma como o outro pé da sereia que alegoriza essas movências por meio da língua, das crenças e da religiosidade, adquirindo diferentes significados no confronto gerado entre portugueses e africanos.

ABSTRACT: Mia Couto’s relationship with African history of colonization is revealed in his novel O Outro pé da sereia, The Mermaid’s Other Foot, (2006). In this work the writer recreates scenes and reconstructs the voices that make up the narrative. Through this dialogue, the novel stands out as very relevant for our studies due to the symbolic weight that it brings in the fictional (re)construction of historical moments during the Portuguese colonialism in Mozambique. From this premise, we propose to explore the retelling of History through the enactment of characters in different times and spaces of the narrative. We aim at identifying thematic representations involving dialogue between History and Literature in the novel. We examine such themes from the perspective of postcolonial studies and literary scholars who study Mia Couto’s works.

KEYWORDS: Fiction. History. Literature. Mia Couto

REFERÊNCIAS

ABDALA Jr., Benjamin (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004. 184 p.

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BHABHA, Homi. O local da cultura. Trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. 395 p.

CHARTIER, Roger. A força das representações: história e ficção. Santa Catarina: Argos, 2011. 291 p. (Grandes Temas; 13)

CHAVES, Rita. Angola e Moçambique: experiência colonial e territórios literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 2005. 302 p.

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Referências

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