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O URBANO COMO UMA COMUNIDADE ECOLÓGICA

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O URBANO COMO UMA COMUNIDADE

ECOLÓGICA

(Capítulo do Livro “Social Theory and the Urban Question”, de Peter Saunders, 1986)1

Tradução: Professor Arquiteto Frederico Flósculo Pinheiro Barreto, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília.

Em seu estudo das diversas tentativas feitas por sociólogos para desenvolver uma teoria especificamente urbana, Leonard Reissman sugeriu que a perspectiva ecológica desenvolvida entre as duas guerras mundiais por Robert Park e seus colegas na

Universidade de Chicago, permanece como "a melhor aproximação de uma teoria sistemática da cidade" (1964, pg. 93).

Com certeza a ecologia humana foi a primeira teoria social urbana realmente compreensiva, e, no caso dos EUA, pode-se dizer ter sido a primeira teoria social

compreensiva, pois foi desenvolvida em uma época em que a sociologia americana estava ganhando reconhecimento institucional como uma área disciplinar em desenvolvimento, mas não possuía um corpo teórico próprio. Como foi observado por Hawley, "a face reformista da sociologia chegava a seu final, e o seu assunto ganhava aceitação como uma disciplina respeitada no currículo das universidades americanas... a ecologia de forma oportuna acabaria por prover a teoria necessária" (1968, página 329)

Deste o princípio, portanto, a ecologia humana exibiu uma certa tensão quanto ao campo de sua aplicabilidade. Por um lado para, ela era compreendida como uma teoria da cidade, que, assim, como uma tentativa de desenvolver uma explicação dos padrões do crescimento urbano e da cultura urbana.

Nesse sentido, a ecologia humana podia ser vista como uma sub-disciplina dentro da sociologia, mas com seu próprio objeto de estudo; enquanto alguns sociólogos e estudavam a educação e outros estudavam a família, aqueles interessados na ecologia humana estudavam a cidade. Por seu lado, no entanto, a ecologia urbana declarava-se como uma disciplina de pleno direito, com seu próprio corpo de teoria distinto de outros.

Efetivamente, os ecologistas humanos comentaram que a perspectiva ecológica tinha como objetivo um problema que não era compreendido ou subentendido por nenhuma outra área de estudo, incluindo-se aí a sociologia. A biologia humana estudava o organismo

1 Saunders, Peter. Social Theory and the Urban Question. Londres: Routledge, 1986. O capítulo se chama

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individual, a psicologia humana estudava a psiquê individual, a geografia humana estudava

a organização espacial, e as várias ciências sociais estudavam os diferentes aspectos econômicos, políticos ou culturais da organização social.

Em contraste com todas essas áreas de estudo, a ecologia humana se interessa pelo problema teórico específico de como as populações urbanas se adaptaram aos seus

ambientes. Como veremos, segue-se dessa formulação que a ecologia humana seria uma ciência social básica que estabelece os fundamentos dentro dos quais os fenômenos econômicos, políticos e morais poderiam ser investigados. Como um dos estudantes de Park mais tarde sugeriria, "a ecologia humana tal como Park a concebera, não era tanto um ramo da sociologia, quanto uma perspectiva, um método, e um corpo de conhecimento essencial para o uso de estudo científico da vida social e, daí, como a psicologia social, uma disciplina em geral, básica para todas as ciências sociais” (Wirth, 1945, pg 484).

Essa tensão entre a ecologia humana como uma abordagem que surge da sociologia urbana, e a abordagem da ecologia urbana como uma distinta disciplina, básica para o campo das ciências sociais, perpassa o trabalho da escola de Chicago. Tratava-se,

essencialmente, de uma tensão entre a definição dessa perspectiva em termos de um objeto de estudo concreto, físico, visível - a comunidade -, e a sua definição em termos de um problema teórico específico: a adaptação das populações humanas aos seus ambientes.

Apesar de Park expressar sua central preocupação quanto a essas questões de cunho metodológico (embora menos do que seria desejável), ele adotou, tal como Wirth sugeriu, essa última posição (a ecologia humana como uma disciplina distinta e básica para as ciências sociais), argumentando que uma ciência era definida pelo problema teórico que ela colocava, mais que pelo objeto concreto que ela declarava estudar.

Através de seus escritos, Park enfatizou sua preocupação ecológica com a comunidade, como uma entidade visível e real. Essa confusão, que jaz no centro dos

problemas associados à ecologia humana, se reflete e é ampliada pela ambigüidade inerente ao conceito de "comunidade" formulado por Park. Esse termo é empregado para referir-se tanto à comunidade física quanto aos processos ecológicos. No primeiro caso ele se refere a um objeto empírico de análise; no segundo caso a um objeto teórico de análise.

Comunidade e sociedade

Muitas influências intelectuais distintas podem ser reconhecidas através de um exame dos escritos de Robert Park. Entre essas influências salientam-se as de Simmel, Comte, Spencer, e W. I. Thomas. No entanto, deve-se salientar a especialmente

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A influência de Durkheim pode ser encontrada, inicialmente, nas pressuposições ontológicas que Park utiliza quanto ao que seja a "natureza humana", e ao relacionamento entre o indivíduo e a sociedade. Em sua primeira e mais importante declaração acerca da perspectiva ecológica feita em 1916, Park escreveu que "de fato, é evidente que as pessoas vêm ao mundo com todas as paixões possíveis, com seus instintos e apetites incontrolados e indisciplinados. A civilização, no interesse do bem-estar comum, exige, algumas vezes, a supressão e, sempre, o controle dessas disposições naturais” (1952, página 49).

Assim como Durkheim buscou definir as condições para a estabilidade e coesão social na subordinação do indivíduo à autoridade moral da sociedade, também Park assume como seu ponto de partida a tensão entre a liberdade individual e o controle social. Assim como Durkheim, Park explica a desorganização pessoal e social em termos da erosão dos laços e pressões morais; isso porque o Homo ecologicus é uma criatura inerentemente

egoísta e anti-social, que necessita ser mantida sob controle pela sociedade para seu próprio bem - e para o bem de todos as demais pessoas.

Evidentemente, Park reconhecia que o controle social da natureza humana não era - e jamais poderia ser - total. Com efeito, do mesmo modo que Durkheim notou que a

desorganização social (dentro de certos limites) era o preço necessário a ser pago pelo progresso humano, e que o excesso de enlaces e pressões morais poderia ser tão ruim quanto a sua deficiência (dado que resultaria numa espécie de fatalismo do destino do indivíduo, e em estagnação social).

Park então define que o colapso ou as fissuras, nos controles morais tradicionais seria tanto uma causa para preocupação quanto para celebração. Por outro lado, ele reconheceu que o crescimento das cidades havia enfraquecido a coesão social até então mantida pela família, pela igreja, pela aldeia; ele denunciou a ameaça dessa multidão indulgente, "sujeita a qualquer um dos novos impulsos de propaganda, aos ventos das díspares doutrinas, sujeita a um alarme constante" (1952 página 31 ).

Por outro lado, Park compreendeu o potencial para a liberdade individual e para a auto-expressão, que a cidade representava, e notou como a desorganização social poderia ser vista tanto quanto um prelúdio para que ocorresse uma reorganização em um novo nível da organização humana, envolvendo novos modos de controle social.

A natureza humana e a disciplina moral confrontam-se constantemente. Segue-se daí que qualquer forma de organização humana é, necessariamente, uma expressão de ambas. Essa é uma declaração que, sem dúvida, se aplica às cidades. No caso das cidades norte-americanas, a sua forma geométrica regular sugere sua racionalidade, apresentam-se como quase o contrário de um "fenômeno natural". Ainda assim, Park sustentava que "a estrutura das cidades... tem sua base na natureza humana, da qual é uma expressão", e que, por causa disso, "há um limite para as modificações arbitrárias possíveis em (1) sua

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tanto uma manifestação de forças naturais e constantes, quanto é manifestação de escolhas políticas e conscientes. Disso também se conclui que é tão possível eliminar os guetos, quanto é possível programar as emoções das pessoas - ou eliminar seletivamente seus instintos.

Para Park, a sociedade humana envolve um aspecto duplo. De um lado ela é uma expressão da natureza humana, e isso se revela através da competição pela sobrevivência, na qual os relacionamentos com as outras pessoas são inteiramente utilitaristas (uma concepção que Park derivou do trabalho de Herbert Spencer). De outro lado, ela é uma expressão de consenso e de comum acordo, de comum propósito (uma concepção que ele deriva de August Comte). Num nível, a liberdade individual é suprema; em outro nível, a vontade do indivíduo é subordinada à "mente coletiva" da sociedade, como um super-organismo (que Durkheim denominou de consciênciacoletiva). Ao primeiro nível, Park

denominou comunidade; ao segundo nível, sociedade: "a palavra comunidade descreve de

modo preciso o organismo social tal como Spencer o concebeu; a concepção de Comte, por outro lado, parece se aproximar bastante daquilo que nós ordinariamente denominamos

sociedade" (1952, página 181).

Como veremos adiante, essa distinção entre a comunidade como o nível biótico da vida social, e a sociedade como o nível cultural da vida social, provou ser muito

problemática. Em particular, os escritos de Park sobre esse assunto mostram uma clara inconsistência nessa dicotomia, sobretudo quando tentar dar-lhe um status metodológico; em algumas ocasiões ele se refere à comunidade e à sociedade como categorias analíticas;

em outras ocasiões ele as trata como realidades empíricas.

A distinção é, todavia, básica para sua abordagem ecológica, pois ela permite a Park identificar os interesses peculiares da ecologia humana em relação às outras disciplinas das ciências sociais. A ecologia humana, escreve Park, "preocupa-se com comunidades mais do que com a sociedade antes, apesar de não ser fácil distinguir entre essas duas entidades" ( 1952 página 251 ). A abordagem ecológica das relações sociais, portanto, foi caracterizada por sua ênfase no aspecto biótico em oposição ao aspecto cultural das relações humanas - como a prevalência da visão de Spencer, em detrimento da visão de Comte, das relações sociais. Isso não significava que a ecologia humana negasse a relevância do consenso e da cultura no estudo da vida social; somente que ela se concentrava nos aspectos

não-conscientes e não-sociais da vida social, como sua área específica de interesse.

Buscando definir desta forma o campo de pesquisa da ecologia humana, Park preparava-se para usar a teoria de Darwin em sua plenitude, visando demonstrar como as forças que modelavam as comunidades de plantas ou de animais também desempenharam um papel significante na evolução das comunidades humanas. Em primeiro lugar, cabe considerar que é central para a tese de Darwin a noção de uma "rede da vida” (web of life),

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Esse equilíbrio natural era resultado da luta de "dentes e garras" (teeth and claw)

pela sobrevivência, que acabava por alterar o tamanho das populações das diferentes espécies que conviviam, e por distribuí-las entre os diferentes habitats, de acordo com seu

relativo ajuste. A competição pelos recursos básicos da vida desta forma de resultava na adaptação das diferentes espécies a cada uma das demais espécies e ao seu ambiente comum; a evolução de um sistema ecológico relativamente equilibrado baseava-se na “cooperação competitiva” entre organismos diferenciados e especializados. Evidentemente, tratava-se de um processo inteiramente natural e espontâneo.

Park propôs que esse mesmo processo operava na comunidade humana: "a

competição opera na comunidade humana do mesmo modo que na comunidade de plantas e animais, criando uma forma de equilíbrio, mantendo e recriando esse equilíbrio,

especialmente quando ocorre o advento de uma nova espécie intrusiva, de um novo fator que pressiona e desequilibra o sistema, desde o interior ou desde o exterior, afetando o curso normal, anterior, da vida, perturbando esse equilíbrio" (1952, página 150). A competição entre os indivíduos, como Park argumentou, é que cria as relações de cooperação competitiva através da diferenciação de funções (pela divisão do trabalho), forçando um ordenamento da distribuição espacial dessas funções naquelas áreas em que acabam por se ajustar melhor, áreas físicas onde eventualmente apresentam seu melhor desempenho, áreas físicas onde passam a exercer uma forma de domínio equilibrado - ou

seja, um domínio cujo desequilíbrio torna-se mais difícil, menos provável.

Sua análise, em outras palavras, é tanto funcional quanto espacial: "a questão principal aqui é que a comunidade concebida desta forma é simultaneamente uma unidade territorial e funcional" (1952, página 241).

Sua discussão do desenvolvimento das diferenciações funcionais e de

interdependência na comunidade humana apóia-se profundamente na análise feita por Durkheim acerca das origens da divisão do trabalho. Assim como Durkheim argumenta que a transição desde uma sociedade relativamente homogênea para uma sociedade

relativamente diferenciada é afetada por um aumento da "densidade material e moral", do mesmo modo Park sugere que um aumento no tamanho da população que habita uma determinada área, simultaneamente ao aumento das redes de comunicação e transportes, resulta numa maior especialização de funções (e, daí, em enlaces de interdependência ainda mais fortes).

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O conceito ecológico que explica a congruência entre as diferenciações espacial e econômica é o de dominância. Novamente com referência a Darwin, Park sugere que "em

cada comunidade de organismos vivos, sempre há uma ou mais espécies dominantes" (1952, página 151). Os carvalhos, por exemplo, atingiram uma certa dominância sobre seu habitat natural, no sentido em que apenas aquelas outras espécies de plantas que florescem quando os carvalhos estão sem folhas conseguem sobreviver sob suas copas. Na

comunidade humana, de forma análoga, a indústria e comércio são dominantes, pois essas duas grandes áreas de atividades podem superar praticamente todos os outros competidores por localizações estratégicas da cidade - aquelas localizações que, num dado momento da evolução urbana, lhes sejam mais vantajosos, lhes permitam os melhores desempenhos.

A pressão que existe sobre determinadas localizações espaciais - sobretudo no centro da organização urbana, de sua configuração física - pode criar uma área de elevados valores, com forte diferenciação no preço e nas formas de acesso ao controle do solo. Esse diferencial de valor, entre outros, determina o padrão de valores do solo nas demais áreas da cidade, e daí o padrão de uso do solo por diferentes grupos funcionais. Tal como Park coloca, "a competição das indústrias e das organizações comerciais pelas localizações estratégicas, conforme seus interesses, determina, em um longo prazo, as linhas gerais da organização da comunidade urbana... o princípio de dominância... tende a determinar o

padrão ecológico geral da cidade, a relação funcional de cada uma das diferentes áreas da cidade com respeito a todas as outras" (1952, páginas 151-2). As diferenças nos valores do solo são assim o mecanismo pelo qual diferentes grupos funcionais são distribuídos no espaço de uma maneira ordenada, eficiente e, ainda que não-planejada.

Segue-se, portanto, que o estado de natural da comunidade ecológica, seja ela humana ou não-humana, é de equilíbrio. As mudanças, que podem ser resultado tanto de processos de expansão interna ou de perturbações externas, são representadas, basicamente, como um processo cíclico e revolucionário envolvendo, em primeiro lugar, uma

desestabilização do equilíbrio existente; em segundo lugar, pelo início de um renovado ciclo de competição; e, finalmente, o desenvolvimento de um novo (e mais elevado) estágio de adaptação.

Há dois pressupostos básicos para esse conceito. O primeiro é que, tendo alcançado um estágio-clímax (um ponto funcionalmente ótimo, no qual o tamanho da população e sua diferenciação combinam- se do modo mais ajustado possível às condições ambientais dadas), uma comunidade permanecerá em um estado de equilíbrio até que algum novo elemento surja / incida, de forma a perturbar o status quo. O segundo é o processo de

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McKenzie ( 1967 ) argumenta que o tamanho de qualquer comunidade humana é limitado pelo que ela pode produzir e pela eficiência do seu modo de distribuição. Assim, uma comunidade que vive da produção agrícola não-industrializada tem sérias limitações ao seu crescimento - dificilmente cresceria além de uma população em torno de 5.000 pessoas; por outro lado uma cidade industrial pode crescer e dezenas de vezes desse

tamanho, mas na medida em que suas indústrias forem servidas por um sistema eficiente de distribuição das mercadorias, dos bens.

Foi a afirmativa de McKenzie no sentido de que e qualquer um tipo particular de comunidade tenderia a crescer em tamanho até que ela tivesse alcançado o seu

ponto-clímax, no qual o tamanho da população alcançará o mais perfeito ajuste à capacidade de

suporte de sua base econômica. A comunidade poderia então permanecer nesse estágio de equilíbrio até que algum novo elemento (por exemplo, um novo modo de comunicação ou uma inovação tecnológica) perturbasse esse equilíbrio, momento a partir do qual o um novo ciclo de ajuste biótico teria que acontecer, envolvendo movimentos da população,

diferenciações de funções, ou ambos. A competição, em outras palavras, novamente reordenaria, misturaria, distribuiria a população, tanto funcional quanto espacialmente, até que um novo estágio-clímax fosse alcançado.

Novamente recorrendo ao trabalho de Darwin, os ecologistas e humanos se

referiram a esse processo de mudança comunitária e estrutural como uma sucessão – “essa seqüência ordenada de mudanças através das quais uma comunidade biótica evolui no curso de seu desenvolvimento de um estágio primário, relativamente instável para um estágio-clímax relativamente permanente, estável” (Park, 1952, página 152 ).

Assim como na natureza uma espécie sucede outra com o a forma de vida

dominante em uma determinada área, também na comunidade humana o padrão de uso do solo se transforma, na medida em que as áreas da cidade - edificadas ou ainda devolutas - são invadidas por novos competidores, por grupos emergentes, por excedentes de

população, que venham a se mostrar melhor adaptados que os antigos moradores, às novas condições ambientais, ou às mudanças ambientais em curso.

Um tal processo de invasão e sucessão se reflete na comunidade humana de forma direta, através de mudanças nos valores da terra - com o resultado de que a competição por localidades urbanas desejáveis acaba por forçar para longe da organização urbana aqueles usuários que sejam economicamente e/ou politicamente fracos. Esses usuários

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São esses processos inter-relacionados de competição, dominação, sucessão que invasão que fornecem a base para que o famoso modelo de expansão de uma comunidade, proposto por Burguess (1967). Ele sugeriu que a cidade pode ser idealizada

conceitualmente como uma estrutura de cinco zonas, organizadas em um padrão de círculos concêntricos. a expansão da cidade ocorrer como um resultado da invasão de cada uma dessas zonas por parte da população da zona mais interna. A zona recém-invadida, algum tempo depois, seria a origem de uma nova onda de invasão da zona mais externa, que estaria em processo de estruturação. Nas palavras de Burguess, a área mais interna e central (o CDB - Central Business District) tende a se expandir na área circunvizinha, de transição

(Inner-City Zone of Transition), a qual, por sua vez, tende a se expandir na área

circunvizinha, de habitação da classe trabalhadora, e assim por diante. Esse processo físico de sucessão, portanto de que, resulta na segregação de diferentes grupos sociais em

diferentes partes da cidade, de acordo com seus interesses, que as oportunidades abertas pelas características únicas de cada episódio de sucessão: "na expansão da cidade, ocorrer um processo de distribuição, que mistura e realoca, redistribui e reconfigura os lugares, os espaços construídos, as pessoas e os grupos, em situações distintas de residência e de ocupação... a segregação oferece ao grupo, e, portanto, aos indivíduos que compõem o grupo, um lugar e um papel na organização total na vida da cidade (páginas 54 e 56 ).

Esse processo constante, de mudança e ajustamento, invasão e sucessão,

desorganização e reorganização, é especialmente notável na zona de transição (Inner-City

Zone of Transition). Essa pressão centrífuga iniciada no CDB acelera a a deterioração de

toda a área à sua volta, do grande círculo de Burguess, em expansão. Essa deterioração ocorrer em função do aumento do valor do solo nas áreas em expansão, ao mesmo tempo em que também se faz sentir a desvalorização de parte dos imóveis existentes; parte dos habitantes dos círculos interiores, das áreas mais antigas, pré-existentes, muda-se para os

novos imóveis. Em boa parte, é nisso que consiste a invasão. Os vazios deixados pelas

mudanças (centrífugas) dos antigos moradores são ocupados por imigrantes, por novos ocupantes da cidade, que acharão seus nichos nos imóveis decadentes. No seu devido tempo, adiante, esses migrantes também se mudarão, se morrerão para novas áreas, que também serão substituídos por recém-chegados, e assim, o processo de expansão física e de renovação social, de expansão do estoque humano e dos espaços construídos, prossegue indefinidamente. Burguess que reconhece que essa mobilidade é notável nas áreas mais internas da estrutura urbana, que estão em um estado constante de fluxo. Essa relativa de efervescência é vista por ele como um importante fator para a desorganização social (para o crime, para os vícios, para a pobreza, etc) que tende a manter-se, a ocorrer com muito maior freqüência nestas áreas internas, que as caracterizam.A mobilidade, em outras palavras, é uma fonte de mudança pedir a desorganização pessoal e social; onde e a mobilidade for mais significativa, mais forte e, também mais forte e significativa será a deficiência na coesão social - e maior será a desmoralização do espírito humano.

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vivem. Entretanto, nós observamos anteriormente que Park e seus colegas reconheceram que as populações humanas tinham certas características que não eram compartilhadas por comunidades vegetais e animais. Em especial, os seres humanos possuem volição e

recursos para padrões de mobilidade que plantas ou animais não possuem; possuímos uma capacidade imensa para conscientemente alterarmos o nosso ambiente e que não têm paralelo nos mundos vegetal e animal. Como Mackenzie observou, “a comunidade humana e difere da comunidade vegetal nas duas características dominantes, a mobilidade e o propósito na ação, ou seja, no poder de selecionar o a habitat que na habilidade de controlá-lo ou de modificá-controlá-lo” ( 1967, página 64-5 ). Os seres humanos, em outras palavras

partilham uma cultura.

De acordo com os ecologistas de Chicago, o aspecto cultural das organizações humanas, que eles associaram com o conceito de sociedade em oposição ao conceito de comunidade, desenvolveu-se a partir do ponto onde a luta biótica pela existência encontrou um equilíbrio natural. A competição leva naturalmente a uma forma de organização

humana, ao forçar a diferenciação funcional e espacial em um ritmo crescente, cumulativo que, em decorrência disso, permite a criação de laços utilitários de interdependência mútua

(ou simbiose). Uma vez distribuídos funcional e territorialmente, os membros de uma

população humana encontram-se numa posição que lhes permite desenvolver associações inovadoras, qualitativamente diferentes, baseados em objetivos, sentimentos e valores comuns, e não nas necessidades da divisão ou trabalho. Devido às suas origens na

competição natural, não planejada, e não forjada, as a organizações humanas desenvolvem uma nova base, por sua vez, de cooperação consensual e consciente; enquanto a competição traz como resultado a especialização e a individuação, o consenso envolve a comunicação que a subordinação dos instintos primordiais do indivíduo à consciência coletiva. Nesse sentido Park escreve:

"É quando, e na medida em que, a competição declina, que o tipo de ordem que nós chamamos de sociedade pode e ser considerado existente, consistente. De forma resumida,

a sociedade, do ponto de vista ecológico, e na medida em que ela também é uma unidade territorial, é essencialmente a área dentro da qual a competição biótica declinou - e onde a luta pela existência passa a assumir formas mais elaboradas, mais complexas, construídas sobre uma cultura de mudanças" (Park, 1952, páginas 150-1).

Haveria, assim, dois tipos de e a associação humana: a simbiótica, gerada pelos processos de competição, e a social, gerada pelo consenso:

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Isso não significa, contudo, que nesse nível de sociedade não haja competição ou

conflito, pois apesar de Park nunca definir o que seja consenso, parece claro que o termo

consenso, para Park, se referia mais a atitudes compartilhadas, blocos de opiniões mais ou

menos coincidentes, mais do que a objetivos claramente partilhados; por consenso ele se

referia mais a um quadro comum de referências para a ação, do que a um acordo universal sobre o que a ação social ou individual deveria ser. (Max Weber, no apêndice da obra

Economy and Society, faz uma formulação assemelhada do conceito de consenso). Assim,

Park sugere que, no nível social, a competição assume a forma de conflito ( 1952, página

152 ), o que significa que a competição torna-se consciente, coletivamente organizada ( por exemplo, através dos partidos políticos) e claramente estruturada por normas culturais: "Em contraste com as sociedades animais, na sociedade humana a competição e a liberdade do indivíduo são limitadas em todos os níveis acima daquele que chamamos biótico, pelo costume e pelo consenso" ( 1952, página 156 ). A competição é, portanto, mediada pela cultura - mas seja qual for a forma que a cultura assuma, ainda não altera de forma fundamental os processos bióticos subjacentes.

Esta distinção entre o biótico e o cultural, entre comunidade e sociedade, é fundamental para a perspectiva clássica da ecologia humana, pois como vimos

anteriormente, é a partir desta dicotomia que Park identifica a específica área de interesse, peculiar a essa abordagem.

Em algumas ocasiões, Park se refere a comunidades e sociedades como categorias

empíricas e, assim, como entidades reais que podem ser distinguidas (ainda que com uma certa dificuldade) na pesquisa empírica. Seguindo Durkheim, Park designa comunidades e sociedades como "coisas", que podem ser estudadas diretamente, com os olhos postos sobre elas, e que existem de forma independente de nossas idéias e de nossas conceituações acerca delas. As comunidades são, nesse sentido, identificadas como sistemas funcionais baseados em localidades, em territórios, irredutíveis aos elementos que as compõem ( isso é, as pessoas, aos indivíduos humanos). As comunidades são, portanto, objetos visíveis que podem ser estudados de forma inconfundível e plena: "A comunidade é um objeto visível. Nós podemos apontá-la, localizá-la, definir seus limites territoriais, nomear os elementos que a constituem, identificar sua população e suas instituições em mapas e outros registros" (1952, página 182 ).

A pesquisa empírica pode, portanto, ser iniciada com o estudo das comunidades - porque a comunidade é o fundamento a partir do qual a sociedade se desenvolve, e porque

ela é imediatamente visível, mais visível do que a sociedade, e assim bem mais adequada

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Em um outro ponto do seu trabalho, no entanto, Park trata a dicotomia comunidade e sociedade como um construto analítico. Isso decorre do seu argumento uma ciência não se distingue pelo seu objeto de estudo específico, mas pelo problema teórico que ela coloca em relação a algo aspecto de ser objeto: "As coisas que importam para qualquer ciência em especial, para sermos claros quanto a isso, são determinadas pelo ponto de vista por que são olhadas, examinadas" (1952, página 179). Isso sugere que a ecologia humana é definida não por seu interesse empírico por comunidades, mas por seu modo de conceituar

comunidade. Nesse sentido, comunidade é conceito que se refere a um aspecto específico

da organização humana que é identificado de forma teórica, como um processo não-organizado e não-consciente, através do qual as populações humanas se ajustam ao seu ambiente, através de competição praticamente irrestrita. Comunidade, nesse ponto de vista, não é a uma "coisa", mas é um processo, não é uma área visível da existência humana, mas uma perspectiva distinta da existência humana. Visto desta forma, o conceito de

comunidade não passa de uma abreviatura, de título imposto sobre o verdadeiro, subjacente trabalho das forças bióticas que operam na sociedade humana - caso em que não é possível distinguir claramente o que seja comunidade do que seja sociedade e em termos empíricos,

de forma consistente para uma pesquisa.

Dentre essas duas abordagens, a última delas parece alcançar uma maior

proeminência nos escritos de Park. Como Durkheim, ele está preocupado em analisar a complexidade da sociedade; inicia essa análise pelo traçado da mais simples e da mais básica unidade da organização humana, e assim ele depara com o conceito de comunidade.

Apenas através de uma análise exaustiva do impacto das forças bióticas sobre a sociedade humana é possível iniciar a identificação do significado dos fatores culturais. Como foi colocado por Wirth (1955), as forças naturais e a base física que estão em jogo na

sociedade humana estabelecem o fundamento e o contexto dentro do qual as pessoas agem - e a ecologia humana se torna assim um claro complemento à análise da organização social e também da psicologia social: " a ecologia humana não é um substituto para outros quadros de referência e para outros métodos de investigação social, mas é uma abordagem suplementar a teorias e métodos existentes, ou por vir" (Wirth, 1945, página 438).

Tendo estabelecido que, em primeiro lugar, a amplitude e o papel da dimensão biótica nos interesses e atividades das pessoas, Park então tentar reconstruir a complexidade social ao incluir o significado adicional da tecnologia humana e dos valores culturais. Daí ele reconhece que a dimensão biótica e a dimensão cultural estão empiricamente inter-relacionadas, ainda que sejam conceitualmente distintas, independentes.

“A ecologia humana tem que reconhecer e trabalhar com o fato de que na sociedade humana a competição é limitada pelos costumes e pela cultura. A super-estrutura cultural impõe-se como um instrumento que controla e direciona a sub-estrutura biótica. Se

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artefatos e aparatos tecnológicos. A esses três elementos ou fatores - [1] população, [2] artefatos ( cultura tecnológica), e [3] costumes e crenças ( cultura não-material) - nos quais o complexo social se resolve, poderíamos ainda, talvez, adicionar um quarto elemento ou fator: os recursos naturais do habitat. É a interação desses quatro fatores que mantém a integridade do equilíbrio biótipo e do equilíbrio social, quando e onde eles venham a existir” (Park,1952, página 158).

Após ter reduzido as dimensões biótica e cultural a seus átomos conceituais, Park passa a reuni-las no nível da realidade empírica, pois os quatro elementos que propõe como formadores do complexo social incluem os fatores ecológico e social como aspectos

inerentemente inter-relacionados.

De uma forma muito clara, Park reconhece a interdependência das dimensões bióticas e culturais no mundo social real. De fato, ele leva a sua análise ainda mais longe, ao sugerir que é possível conceituar uma hierarquia de restrições e condições incidentes sobre os indivíduos, em termos do modo de operar as ordens ecológica, econômica,

política, e moral - de um tal modo que a liberdade dos indivíduos se torna progressivamente restrita, algo que ocorre além do nível biótico: "os indivíduos são mais livres no nível econômico que no nível político; são mais livres no nível político que no nível moral (1952, página 157 ).

Uma tal formulação somente pode ser entendida em termos conceituais, como uma análise, que uma tal interpretação é reforçada em um dos últimos ensaios publicados por Park, onde ele desenvolveu um modelo de sociedade humana "assemelhada a um cone ou a um triângulo, no qual a base é a organização ecológica dos seres humanos" (1952, página 260). Além disso, nesse ensaio, ele acrescenta a importante a observação de que nesse nível ecológico básico, "a competição pela existência necessariamente prossegue, deve

prosseguir, não-observada, e relativamente sem restrições" (página 260), o que demonstra claramente a sua compreensão de que a comunidade ecológica não é um conceito qualquer, mas um aspecto teoricamente definido da organização social.

Como, então, poderia a visão da comunidade como uma categoria empírica, como um objeto observável e mensurável, ser conciliada com a visão de paralela da comunidade como um construto analítico ? Que ambas as visões estão presentes no trabalho de Park, está fora de qualquer dúvida. Todavia, é aparente que ele nunca reconheceu suas

incompatibilidades. Seus ensaios sobre a ecologia humana foram produzidos ao longo de um período de vinte e três anos, e ao longo de todo esse tempo ele aparentemente nunca se sentiu obrigado a examinar essa confusão tão óbvia, tão fundamental, que estava na base da dicotomia em que toda a sua abordagem se baseava.

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e que os fenômenos somente poderiam ser definidos a partir de suas características externas, evidentes. É por essa razão que Park enfatiza a comunidade como um objeto empírico e visível, evidente. No entanto, tanto Durkheim quanto Park estiveram

comprometidos com uma visão holística acerca do que seriam as coletividade sociais, no sentido de que eles desejaram evitar que tais coletividades fossem reduzidas ao seus componentes individuais. A comunidade (para Park) e a sociedade (para Durkheim) são, portanto, objetos sui generis de estudos. Há uma evidente tensão entre esses dois

postulados, um fenomenalista e outro holístico, pois quando nós observamos as comunidades humanas - e as sociedades - o que efetivamente vemos ? As pessoas. Em outras palavras, a própria apreensão da idéia de coletividade social como uma coisa

observável e mensurável, exige sua conceituação de forma abstrata, implica numa operação conceitual, mais que fenomenal. O compromisso com o holismo, por outro lado, contradiz a metodologia empiricista, pois tem como postulado uma realidade que está além da

experiência direta. como Keat e Urry observaram, "quando os positivistas tentaram operacionalizar sua metodologia eles acabaram se vendo como usuários de argumentos

realistas, ou criando entidades do tipo realista, sem conseguir sair dessa armadilha, sendo

levados a apresentar argumentos imperdoavelmente confusos e com graves falhas em sua sistematização" ( 1975, página 82 ).

Esse era o caso de Durkheim, em seu estudo de uma subterrânea corrente

suicidogênica, que ele via como a causa subjacente - e não-observável - da taxa social de

suicídios. Esse também era o caso com Park, em seu estudo das forças bióticas como a causa subjacente - e não-observável - da organização funcional e espacial das cidades. A maneira pela qual Durkheim contornou este problema foi a de reverter suas próprias prescrições com respeito à análise causal. Porque era, digamos, muito difícil observar as variações na corrente suicidogênica, Durkheim as inferiu, indiretamente, desde suas

supostas conseqüências nas estatísticas acerca da ocorrência de suicídios (em outras palavras, em vez de traçar o efeito dessa corrente suicidogênica diretamente na taxa social

de suicídios, ele preferiu inferir esses efeitos desde as variações na taxa social de suicídios, desenvolvendo assim com uma análise totalmente tautológica). A maneira pela qual Park tentou resolver o que era essencialmente esse mesmo problema, com respeito à ação causal das forças bióticas sobre a organização espacial e social humana, se deu pelo

embaralhamento de uma categoria empírica - a comunidade - que ele argumentava que poderia ser observada como um objeto, com uma categoria é essencialmente analítica - o nível biótico -, que não podia ser observado. Desse modo ele tentou fundir uma forma fenômenica com um conceito realista. O modo como ele fez isso se deu através do

desenvolvimento daquele que viria a ser o mais importante conceito em todo o o léxico da ecologia humana: o de "área natural".

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que diferentes grupos funcionais estão localizados em diferentes áreas de acordo com sua relativa e seletiva conveniência. Na medida em que esse equilíbrio se desenvolve - e trata-se de um tipo de equilíbrio bióticamente instável -, há também o desdobramento, o desenvolvimento e diferenciação de formas culturais distintas, correspondentes a essas diferentes áreas e grupos: " o efeito geral do contínuo processo de invasões e acomodações é o de proporcionar áreas componentes bem definidas à comunidade desenvolvida, cada uma delas apresentando suas características próprias, peculiares, seletivas, em seus aspectos culturais" ( McKenzie, 1967, página 77). Essas diferentes áreas no interior da cidade, modeladas pela competição, e caracterizadas por diferenciações tanto funcionais quanto culturais, são denominadas "áreas naturais".

O significado do conceito de "área natural" para a escola de Chicago de ecologia humana se dá em dois sentidos: em primeiro lugar, ele supera o problema empírico associado com a divisão biótico-cultural, por especificar um objeto observável (o gueto, a zona da luz vermelha, o subúrbio de classe média, entre outros), no qual esses dois aspectos da organização humana se fundiram. Uma área natural é também uma área cultural. Ela é, por um lado, uma área caracterizada pela divisão de trabalho e por uma cooperação competitiva, enquanto que, por outro lado, é uma "área moral", caracterizada por

determinadas formas de consenso e de comunicação. Uma área natural é representada pela teoria e da ecologia humana como um objeto, como uma coisa, que pode ser estudada tanto ecologicamente quanto socialmente: é uma área natural e uma unidade social. A ecologia humana se torna, a partir daí, provida de um objeto de análise - no sentido de que as áreas naturais visíveis constituem um laboratório no qual os processos bióticos de mudança de adaptação das populações podem ser estudados.

O segundo ponto é relacionado a esse, pois as áreas naturais não apenas se oferecem como um objeto concreto de estudo, mas também representam o fundamento conceitual a partir dos quais os estudos ecológicos podem ser desenvolvidos. Um dado que as áreas naturais são vistas como as manifestações das forças naturais operando em todo e qualquer assentamento, organização, centro urbano, núcleo de atividade humana permanentemente estabelecido, segue-se que as diferentes regiões de uma cidade devem ser diretamente comparáveis entre si. Categorias tais como as do gueto, ou do subúrbio de classe média ou de classe trabalhadora, são tratadas de forma genérica: a forma cultural de um gueto e deve ser assemelhada à forma cultural de qualquer outro gueto. Park escreve que:

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esquema conceitual, a esse quadro de referência ecológico - podem se tornar a base de e explicações mais gerais que, por sua vez, podem eventualmente ser reduzidos a fórmulas abstratas, e a generalizações científicas" (Park, 1952, página 198 ).

A pesquisa empírica é a assim situada dentro de um quadro que faculta o

desenvolvimento de generalizações indutivas (isto é: o que Park vê como a transição do fato concreto ao conhecimento conceitual). É porque as forças bióticas estão em

presumidamente em ação, como as causas ocultas dos fenômenos visíveis nas áreas

naturais, é que é possível desenvolver o conhecimento científico sobre elas, pelo estudo de seus efeitos em diferentes localidades, que são comparadas: "o resultado de cada nova investigação específica que se faça, deve reafirmar ou redefinir, qualificar ou estender, as hipóteses sobre as quais a investigação original foi baseada. Os resultados não irão meramente e ampliar nosso estoque de informação, mas nos capacitação para reduzir nossas observações a fórmulas gerais, a afirmações quantitativas, verdadeiras para todos casos do mesmo tipo" ( 1952, página 198 ).

Defrontado com o os mesmos problemas metodológicos que desafiaram Durkheim (ou seja: como desenvolver o conhecimento sobre as forças subterrâneas, subjacentes mas presentes numa certa visão da sociedade humana, quando o único conhecimento válido acerca disso, é aquele conhecimento da experiência concreta, dos "fatos reais "), Park recorre a um expediente muito assemelhado ( assume singelamente a existência da força subterrânea, subjacente, e parte em busca dos fenômenos que se julga serem manifestações dessa força). De um modo implícito, no entanto, Park parece reconhecer que uma tal abordagem não é exatamente consistente com sua metodologia positivista, que é por essa razão de que ele também sugere que a área natural deve ser um objeto de estudo no qual o biótico e o natural podem ser analisados diretamente.

Esta, então, é a fonte da confusão a que nos referimos anteriormente, entre a comunidade como uma categoria empírica, e como um construto analítico. Para Park, a comunidade deveria ser algo que tanto poderia ser observado diretamente, e uma força na organização humana, acerca da qual se poderia teorizar com base em tal observação. O conceito de área natural é pressionado a desempenhar essa dupla função, tanto como um objeto observável, quanto como uma manifestação de uma força e não-observável. Uma vez que nós reconhecemos essa perturbadora tensão na metodologia de Park, entre o positivismo que o realismo, a análise das comunidades, e a teorização acerca das forças bióticas que estão em ação dentro delas, é que podemos compreender como a ecologia humana a cabo por apresentar uma dupla identidade; de um lado opera um método sociológico para estudar a cidade, e do outro se apresenta como uma disciplina distinta e inconfundível, no âmbito das ciências humanas. A ecologia humana de Park foi, desde seus primeiros momentos, construída sobre duas bases. Seria apenas uma questão de tempo, até que os críticos arrebentassem com esse raciocínio.

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"Em torno de 1950, abordagem ecológica tal como desenvolvida por Park, seus colegas e estudantes na universidade de Chicago, estava virtualmente morta" (Berry e Kasarda, 1977, página 3 ).

Seu declínio foi gradual e cumulativo, acarretado por uma combinação de críticas equivocadas e, elas próprias, mal-estruturadas (que não evitaram uma severa arguição da abordagem da ecologia humana, à época), e uma outra frente de críticas inegavelmente fundamentadas.

O que eu chamo aqui de críticas equivocadas cai em em três categorias. A primeira,

que foi fortemente vocalizada por Davie (1937), aceitava as premissas básicas da ecologia humana - de que o crescimento da cidade era produto de forças automáticas envolvendo competição e seleção - mas abriram fogo sobre e a aplicação proposta por Burguess dessas idéias através da hipótese de um padrão de zonas concêntricas. em um estudo feito sobre a cidade de New Haven, Davie mostrou que os padrões de localização residencial eram, de forma ampla, uma função dos padrões de localização industrial, e que a indústria se localizava nas proximidades das linhas de comunicação, transportes - que dificilmente exibiam um padrão uniformes. Reconhecendo que o modelo de Burguess havia sido concebido como o tipo ideal, Davie, apesar disso, concluiu que "não há nada como um padrão universal [de organização urbana] e nem mesmo algo como um tipo ideal é

consistente" (página 161). Seu estudo estimulou uma série e de outros projetos de pesquisa em outras cidades do, nos quais uma variedade de autores passou a produzir mapeamentos cada vez mais elaborados, mas toda essa linha de pesquisa e de crítica e inevitavelmente e levou a um beco sem saída, pois se especializou apenas na questão descritivas da forma urbana. Os problemas teóricos da análise ecológica de tais formas físicas permaneceram sem o devido exame. Vendo todo esse caso a partir dos dias de hoje, retrospectivamente, nos parece que o famoso artigo de Burguess recebeu uma atenção realmente magnificada, desproporcional com respeito ao próprio contexto intelectual em que foi escrito, ao longo daqueles anos; isso resultou numa preocupação significativamente focalizada na questão da distribuição espacial, e da configuração física da cidade, negligenciado a questão mais básica da diferenciação funcional (uma tendência que seria, mais tarde, "corrigida" por Hawley).

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são os negros os que são analfabetos. De fato, Robinson e demonstrou que as correlações ecológicas invariavelmente super-enfatizam - e ocasionalmente revertem completamente - as correlações individuais.

O artigo de Robinson apresenta uma importante crítica das pesquisas que efetivamente pretendem deduzir relacionamentos estatísticos individuais de correlações baseadas em dados agregados (um exemplo famoso é dado pelo estudo de Durkheim sobre o suicídio). Essa não era, contudo, a intenção dos ecologistas de Chicago, pois como Menzel apontou (1950), as correlações ecológicas em sua pesquisa foram usadas para demonstrar "uma causa comum, subjacente, que não era necessariamente inerente aos indivíduos, isoladamente, mas inerente às diferenças inter-individuais, e a seus

relacionamentos - propriedades sempre associadas a esse nível super-individual" (página 674). De fato, nós vimos na sessão anterior que Park se preocupa em enfatizar a

irreducibilidade da comunidade ecológica a seus componentes individuais. Então, uma correlação, por exemplo, entre as taxas de divórcios e as taxas de criminalidade, não poderia ser usada para implicar que os divorciados são criminosos, mas como uma evidência do quanto as características de uma determinada área física (assim como comportamentos de alta mobilidade, por exemplo) poderiam gerar os altos níveis de desorganização social que acabam por se refletir, entre outras coisas, na taxa de divórcio dessa comunidade, e ainda na taxa da ocorrência de crimes, e assim por diante. A

correlação ecológica desempenhava, desse modo, a mesma função que a "variação

concomitante" proposta por Durkheim - ou a variação que se observa entre dois fenômenos, num certo número de casos, o que os faria associados por uma lei, por uma causalidade.

A terceira crítica que é basicamente equivocada é aquela desenvolvida por Alihan 1938, entre outros, que denunciavam a ver inconsistência entre os produtos teóricos empíricos da escola de Chicago. ao rever as monografias de pesquisa de que autores como Anderson ( sobre o hobo, ou sem-teto) e Zorbaugh ( sobre os slums, ou áreas de

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não pode ser realmente denominado de "crítica", pois foi exatamente a intenção de Park separar esses dois conceitos de forma analítica, e fundir esses dois conceitos de forma empírica.

Essa linha de ataque para foi, no entanto, empreendida com enorme entusiasmo pelos críticos da escola de Chicago, e ainda com mais notavelmente por Firey 1945. Ele sugeriu ter a ecologia humana explicava a atividade locacional em termos, puramente, de uma maximização econômica, e contra isso argumentava que o espaço possuía o valor simbólico, tanto quanto valor econômico, e que a atividade locacional e refletiria essa valoração simbólica, como formas de sentimento e avaliação, tanto quanto refletiria algum tipo de racionalidade econômica. Ao relatar seu estudo do uso do solo em Boston, ele mostrou como o os moradores da classe de maior renda haviam permanecido em Beacon Hill por 150 anos devido ao seu apelo sentimental àquela área, e apesar das enormes vantagens econômicas que seriam obtidas pela venda de seus imóveis e por sua mudança; também argumentou que "lugares sagrados" tais como os cemitérios dos soldados

tombados na guerra civil norte-americana foram preservados de todas as iniciativas de loteamento e expansão urbana, mesmo que esses cemitérios ocupassem as áreas mais valorizadas de toda a cidade, e causassem, comprovadamente, congestões no trânsito de veículos, economicamente perniciosas. Finalmente, continua Firey, como em um miserável bairro de população originária da Itália a primeira geração de imigrantes resistiu a

abandonar a área quando podia: estavam fortemente comprometidos por seus laços de amizade e de família, pelo respeito aos paesani, algo muito forte no âmbito do bairro - e

significativamente ameaçado fora dele. A conclusão é que os valores culturais e os significados inter-subjetivos seriam, claramente, variáveis cruciais na explicação dos padrões o uso do solo, e que a preocupação dos ecologistas humanos com as forças bióticas deveriam, portanto, ser modificadas.

Park, no entanto, jamais negou a significação empírica dos fatores culturais. De fato, como já vimos, ele incluiu tanto a tecnologia quanto fatores culturais, "não-materiais", como dois dentre quatro elementos daquilo que denominou "complexo social". Em termos da pesquisa empírica, ele e seus colegas nunca pretenderam que a comunidade poderia ser analisada de forma separada da sociedade ( como foi sugerido pela crítica de Alihan), nem que os padrões de distribuição das pessoas, das atividades, dos espaços edificados,

poderiam ser explicados somente em termos das forças ecológicas (como denunciou Firey). o máximo que se pode ir dizer acerca da discordância entre Park e Firey é que eles estão fundamentalmente interessados em questões diferentes; para Firey, a questão que interessa é como e porque Beacon Hill resistiu ao assédio da especulação imobiliária, e de sua progressiva conversão ao uso comercial e por serviços, ao longo de um século e meio; para Park, a questão seria como e porque Beacon Hill veio a ser associado com a classe de mais alta renda, antes de tudo.

A questão que o trabalho de autores como Alihan e Firey colocam, que

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ataques contra a dicotomia biótico-cultural, mas nas implicações que seus argumentos tiveram para a divisão metodológica fundamental (que subjaz a essa dicotomia), entre a comunidade como um objeto visível, e a comunidade e como um construto analítico. essas implicações foram, de fato, expostas por Alihan, que sugere, com relação aos ecologistas de Chicago, que:

"Uma de suas principais dificuldades repousa na confusão entre a abstração e realidade. Parte dessa confusão poderia ter sido evitada se a escola de Chicago tivesse alguma familiaridade com o método de investigação do tipo ideal (ideal type); o conceito

de 'comunidade' é abordado de uma maneira que nega seus atributos sociais. Em sua própria definição, torna-se, a comunidade, algo abstraído, como um aspecto não-social do comportamento humano. Ainda assim esses ecologistas se vêem motivados para, de diversas maneiras, contabilizar os fatores sociais que, na realidade, estão intrinsecamente relacionados e associados com a comunidade não-social. Se esses ecologistas tivessem persistido em lidar com o conceito de "ordem natural" como uma abstração - ou como um "tipo ideal" -, para os propósitos da pesquisa, esses fatores sociais poderiam ser tratados de forma distinta e independente do conceito de 'comunidade' - seriam como fenômenos condicionadores, concomitantes, e intrusivos, da "ordem natural". Nós poderíamos então ter diante de nós apenas o problema da validade e da utilidade científica de uma classificação particular, e o problema da ideologia filosófica particularista que está subjacente à

delimitação da categoria 'comunidade'. Mas os ecologistas não seguiram neste caminho de forma consistente; o que é, para eles, uma abstração num determinado momento, torna-se subitamente uma realidade em um outro momento" (Alihan, 1938, páginas 48-9).

Alihan, nesse texto, que resume o principal ponto em discussão. Se Park tivesse abordado de forma consistente o conceito de comunidade como uma abstração, apenas como um recurso heurístico para que empreendesse a sua análise, então sua abordagem teria sido metodológica mente válida (ainda que essa validade não se estendesse ao campo teórico). Nós poderíamos ainda pretender o questionamento da utilidade de se a abordar a sociedade humana desde uma perspectiva naturalista como a da ecologia humana, pois, diríamos, implicaria em recorrer a um injustificado e falacioso determinismo biológico (ver, por exemplo, Gettys, 1940), mas se, ainda sem não haveria um fundamento

metodológico para desafiar a distinção essencial entre o biótico e o cultural. O fato de que Park não limitou - e não poderia fazê-lo - o conceito de ecologia humana deveu-se ao seu compromisso com o postulado positivista do fenomenalismo. Em outras palavras, em sua visão, qualquer abstração deveria ter alguma forma de referência empírica direta. Para ele não seria aceitável o idealismo implícito na referência que Alihan faz aos tipos ideais assim como seria inaceitável o realismo inerente à visão alternativa das abstrações, como algo que se referiria a um nível de realidade que estaria além dos nossos sentidos. Seguindo

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social a esse denominador comum das coisas tangíveis e mensuráveis... os ecologistas e humanos tornaram ser os paladinos do 'socialmente alto-evidente'" (Alihan, 1938 página 6).

À luz dessa crítica, a ecologia humana se viu confrontada com duas opções. Ou ela reteria sua fundamentação em uma metodologia positivista de (ao mesmo tempo, esclareça-se, em que rejeitaria todas as tentativas de teorizar sobre as forças subjacentes que

determinariam os modos de organização humana), ou tentaria desenvolver e justificar o seu conceito de comunidade ecológica, como uma abstração (ao mesmo tempo, também deve ser esclarecido, que rejeitaria a a tentativa de transformar esse conceito numa referência física e observável). A ecologia humana não poderia mais "fazer o bolo e comê-lo" num único movimento, que as duas questões que Park tentou unir - relativas a forma espacial e aos processos de organização funcional - teriam que ser novamente recortadas.

Diferentes autores, colocados diante desse dilema, fizeram diferentes escolhas. Aqueles que escolheram pela fundamentação tem uma metodologia positivista continuaram a desenvolver sua pesquisa sobre as características observáveis e externas das comunidades humanas - mas agora de modos claramente divorciados da fundamentação teórica mais rigorosa, na linha de Durkheim -, que aquilo que Mills (1959) se referiu como um

"empirismo abstracionista" foi, freqüentemente, seu resultado. Basicamente, essa primeira linha de estudos se divide em duas categorias: (a) aqueles estudos voltadas para a análise estatística das populações urbanas (descrevendo padrões de migração, mapeando

fenômenos sociais, etc), e (b) aqueles estudos voltados para a descrição de formas culturais (por exemplo, a tradição dos estudos de comunidade). Nenhuma dessas categorias produziu dados de forma cumulativa e coerente, pois enquanto a primeira categoria meramente produziu estudos que processam e exaustivamente dados e tendências, a segunda categoria produziu uma longa série de estudos de casos - que mal podiam ser comparados entre si, se é que de alguma maneira teriam base para comparação, como estudos locais, marcadamente individuais, únicos. Nem uma nem outra dessas categorias pode ser consistentemente denominada "ecológica", pois enquanto a primeira categoria desintegra-se numa

demografia descritiva, a segunda categoria em pouco difere da antropologia cultural (ver, quanto a isso, Hannerz, 1980, capítulo 2 ). Nas duas categorias citadas, a especificidade teórica da questão urbana desapareceu.

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compromisso com o princípio do fenomenalismo) era, para Hawley, indicativo não de uma fundamentação genuinamente ecológica, mas de uma fundamentação geográfica. O espaço, sugeriu, era meramente um fator que deveria ser levado em consideração pela ecologia humana, mas do mesmo modo que havia sido levado em consideração por qualquer outra ciência. O que era específico à ecologia humana não era, portanto, sua preocupação com a comunidade humana em termos físicos, mas sim seu interesse em um processo particular: o processo de adaptação das populações humanas através da diferenciação funcional.

Seis anos depois que seu artigo foi publicado, Hawley lançou o livro que

estabeleceu a fundamentação teórica que passaria a guiar a pesquisa na ecologia humana desde então. Nas palavras de Berry e Kasarda, "Hawley reformulou a abordagem ecológica, e iniciou seu ressurgimento no campo da sociologia" (1977, página 3 ). Seja como for, é notável que a ecologia humana ressurgiu durante os anos 1950 como algo bem mais modesto, mas metodologicamente mais seguro do que a abordagem originalmente delineada por Robert Park, trinta e quatro anos antes.

... longa vida à ecologia humana !

Como Park, Hawley inicia seu estudo desde a posição de que uma determinada ciência deve ser distinguida por sua perspectiva, mas do que por seu o objeto de estudo: "uma ciência é delimitada por aquilo que ela opera, mais do que por uma definição a priori do seu próprio campo... pela deve trazer para o centro das atenções em um conjunto de problemas que ainda não foi incluído no escopo de outras disciplinas, nas quais as técnicas científicas podem ser, e de fato são, aplicadas" (1950, página 10). A perspectiva que seria específica à ecologia era aquela que buscaria explicar como as populações se adaptam coletivamente e inconscientemente ao seu ambiente. Esse esforço de adaptação era visto como um problema fundamental para todas as espécies, incluindo-se os seres humanos - pois apesar de os seres humanos terem desenvolvido artefatos culturais que os habilitaram a adaptar-se mais eficiente e efetivamente que as outras espécies, a diferença entre os

esforços das diferentes espécies seria mais quantitativo que qualitativo: "a diferença entre os seres humanos e os outros organismos vivos quanto à capacidade e adaptativa - apesar de ser, inegavelmente, enorme - parece ser mais uma questão de grau do que de tipo" (1950, página 32). Não haveria, portanto, razão para que os princípios da teoria ecológica, como um todo, não pudessem ser aplicados à análise da adaptação das comunidades humanas, em particular. Esse foi seu ponto de partida, de onde Hawley parte para a sua reformulação.

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inextrincavelmente envolvidos com sentimentos, sistemas de valores, e outros construtos ideais" (1950, página 73). Hawley nunca buscou negar que as motivações individuais e os valores poderiam desempenhar um importante papel no desenvolvimento das comunidades humanas, mas buscou esclarecer que isso é algo relevante para o problema da ecologia humana. O objetivo teórico da ecologia humana, diz, é "desenvolver uma descrição da morfologia ou da forma da vida coletiva sob o impacto de condições externas que variam; com seu problema estabelecido deste modo, a relevância das características psicológicas dos indivíduos torna-se auto-evidente" (1950, página 179). É porque a ecologia humana estuda como as populações humanas se adaptam coletivamente ao seu ambiente que questões relacionadas a valores e motivações individuais não têm lugar nela.

A análise que Hawley faz da adaptação desenvolve-se em torno dos quatro princípios ecológicos de: interdependência, função-chave, diferenciação, e dominância. Esses princípios são derivados e justificados desde determinadas "suposições básicas"

(cardinal assumptions), que dizem respeito às condições invariantes que as populações

humanas apresentam ( ver Hawley, 1968 ). Por exemplo, cada população humana pode ter ao seu alcance meios pelos quais seus membros podem ter acesso aos recursos do ambiente, para a sustentar sua vida; todas as populações humanas desenvolvem alguma forma de interdependência entre seus membros; e assim por diante. Desde suposições tão simples e aparentemente consensuais, Hawley desenvolveu uma teoria de enorme complexidade - e, certamente, polêmica.

(É importante observar aqui que as "suposições básicas" [cardinal assumptions] de

Hawley não são diferentes daquelas que marcas já havia identificado, pois ambos os autores enfatizam a primazia da produção material nas sociedades, além de também enfatizar em que a necessidade de um sistema de relações sociais através do qual isso deve ser

alcançado. o que é interessante acerca disso é que, enquanto ambos os escritores iniciam seus raciocínios de suposições a priori assemelhadas, acerca das condições para a

existência social, eles desenvolvem a seguir teorias muito diferentes: isso nos leva a sugerir que nem a teoria ecológica nem a teoria marxista podem ser justificadas simplesmente em termos de sua dedução lógica desde princípios gerais. Como se pode concluir da análise da teoria marxista, esse tipo de generalizações abstratas, trans-históricas, são, de fato, muito limitadas, e deve-se concluir daí que a alegação de Hawley, de que ele teria "deduzido" os princípios da organização ecológica desde essas generalizações, deve ser examinada com muito cuidado).

O primeiro dos princípios ecológicos de Hawley é a interdependência. Ele sugere que a principal diferença entre sua abordagem e aquela dos primeiros ecologistas humanos diz respeito à ênfase relativa que ele dá ao princípio de interdependência em oposição à ênfase relativa dada pelos ecologistas de Chicago à competição. Em qualquer população humana, o processo de adaptação ao ambiente envolve o desenvolvimento de formas de interdependência entre seus membros. Isso pode tomar a forma tanto de relações

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dissimilares) quanto de relações de comensalismo (isto é, pela agregação de grupos funcionalmente similares). Em ambos os casos, a combinação das unidades individuais (grupos ecológicos) aumenta sua capacidade coletiva para a ação, num raio maior do que seria possível para cada uma delas, caso tivessem permanecido isolados. Desse modo, uma união simbiótica reforça os poderes criativos dos grupos humanos ( pois habilita e

desenvolve a especialização), enquanto que uma união comensalista reforça os seus poderes defensivos ( pois amplia a sua força numérica). As uniões simbióticas são, portanto,

produtivas - enquanto as uniões comensalistas são protetoras. Hawley define que o primeiro tipo de união forma o que pode ser denominado de "grupos corporativos", enquanto o segundo tipo de união forma "grupos categóricos". Os principais grupos corporativos na sociedade moderna são do tipo familiar, associativa, e territorial, enquanto os principais grupos categóricos são aqueles baseados em trabalho, profissão, atividades, comuns (como, por exemplo, os sindicatos).

O padrão de organização ecológica para uma determinada população, dentro de um determinado território, terra, portanto, condicionado pelos dois eixos da simbiose e do comensalismo. Trata-se de padrão de grande complexidade, pois Hawley reconhece ter que os grupos corporativos (baseados em interdependência simbiótica) podem algumas vezes funcionar como unidades categóricas (por exemplo, quando reagem a alguma ameaça externa), ao mesmo tempo em que grupos categóricos ( baseados na agregação

comensalista) podem algumas vez desenvolver características corporativas ( por exemplo, quando desenvolvem lideranças, como uma instância especializada).

Além disso, as relações se entre as várias unidades podem assumir uma forma tanto comensalista quanto simbiótica, de um modo que, por exemplo, as unidades corporativas podem estabelecer combinações categóricas entre si, enquanto que as unidades categóricas podem desenvolver laços simbióticos entre si, como resultado da diferenciação entre suas funções.

Qualquer população humana, portanto, exibe um padrão complexo de

interdependência entre suas diferentes unidades componentes, mas a complexidade pode, no entanto, ser analisada através da simples dicotomia formal entre simbiose e

comensalismo.

Para Hawley, em outras palavras, a comunidade ecológica, que constitui o objeto de análise para a ecologia humana, é o sistema das relações simbióticas e comensalistas que habilitam a população humana a manter sua vida cotidiana. Como um sistema de relações interdependentes, a comunidade ecológica é, portanto, irredutível às unidades que a

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Tendo identificado deste modo a comunidade ecológica, em termos de um sistema de relacionamentos funcionais e interdependentes, Hawley estava então numa posição que o habilitava a desenvolver ainda mais princípios ecológicos. O primeiro que propôs foi o princípio da "função-chave", pelo qual ele significava que certas unidades dentro do sistema tenderiam a desempenhar uma função de maior importância no processo de adaptação da população ao seu ambiente do que outras: "Em todo sistema de relacionamento entre diversas funções, a conexão do sistema com o seu ambiente é mediada primariamente por apenas de uma ou por um número relativamente pequeno de funções" (1968 , página 332). Dado que o problema fundamental com que se defrontam às populações humanas é o de adaptar-se ao ambiente externo, segue-se que é a que elas unidades que estão mais mentalmente envolvidas neste processo devem ser as unidades funcionais "chave" no sistema. Apesar de Hawley não explorar as implicações desse argumento, parece claro desde seu trabalho que a função chave é desempenhadas, em uma sociedade capitalista, por empresas privadas, que fazem uma mediação entre a população e seu ambiente natural (através da produção material), e entre a população e seu ambiente social imediato (através do comércio, da circulação de bens).

O desempenho da função chave é crucial para os dois princípios que, em seguida, Hawley formulou. o primeiro destes é o princípio da diferenciação funcional, algo que se manifesta em direta proporção com a produtividade da função chave. Então, enquanto a baixa produtividade das sociedades primitivas de caçadores de coletores inibia o

desenvolvimento de sua própria diferenciação funcional e especialização, a alta

produtividade das sociedades organizadas em torno da função chave da indústria significa que não existe nada como um "limite superior", um teto para a extensão do

desenvolvimento da diferenciação funcional. Isso é significativo, por envolver um modo de organização social crescentemente complexo, e ser o principal caminho pelo qual as

populações humanas se adaptam ao seu ambiente. Em outras palavras, dada uma adequada produtividade da função chave, a diferenciação funcional restabelece o equilíbrio entre população e ambiente, onde esse for perturbado pela competição (algo sugerido por Park) ou por transformações ocorridas em sistemas vitais como o uso de transportes e

comunicações (algo sugerido por de Durkheim em sua discussão da "densidade moral").

O último dos princípios ecológicos propostos por Hawley - o da dominância - é também dependente da função chave, pois as posições dominantes dentro do sistema ecológico são ocupadas por aquelas unidades que mais contribuem para a função chave: "a dominância se condensa naquela unidade que controla as condições necessárias para o funcionamento das outras unidades; de forma ordinária isso significa o controle do próprio fluxo de sustentação da comunidade" (Hawley, 1950, página 221). de um modo

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"É comum que se suponha que o governo assuma a posição dominante... mesmo assim, sua dominância não ocorre sem que se qualifique para isso... o governo,

especialmente nos EUA, desempenha uma parte e passiva no fluxo de atividades que sustenta a comunidade. Com efeito o governo tanto partilha e viabiliza, quanto disputa a posição dominante compor as unidades sociais cujas funções as habilitam a exercer uma influência decisiva na criação do fluxo de sustentação da comunidade (Hawley, 1950, página 229).

O domínio funcional que o comércio e os negócios têm no sistema ecológico se expressa, portanto, através da influência dos negócios sobre a tomada de decisões: essa seria uma conclusão que Hawley reafirmaria em um estudo (1937) acerca da ação concentrada do poder dos negócios, quando da formulação dos programas de renovação urbana.

O domínio funcional dos negócios expressa-se não apenas politicamente, mas também de forma espacial e temporal. Expressa-se espacial mente e através da central de idade, pois o centro dos assentamentos humanos é o ponto no qual a interdependência funcional é integrada e administrada. As unidades dominantes que desempenham as funções-chave, portanto, ocupam lugares centrais, enquanto outras unidades que

desempenham funções menos importantes são distribuídas de acordo com suas relativas contribuições: "Em geral, as unidades que desempenham funções-chave possuem a mais elevada prioridade na demanda por espaço, pelos lugares que lhe são mais adequados; as outras unidades tendem a ser distribuídas em torno das unidades que desempenham as funções-chave, suas distâncias relativas correspondem aproximadamente ao número de graus (ou de níveis) em que suas próprias funções se articulam, servem, desenvolvem-se, ou vão ao encontro das funções-chave" (Hawley, 1968, página 333). A hierarquia funcional é, assim, expressa na forma de um gradiente espacial, e apesar de Hawley observar que a distribuição espacial das diferentes unidades funcionais poder ser afetada por fatores tais como a topografia e as rotas de transporte, sua análise resulta, ainda assim, numa conclusão bastante familiar: "Uma tendência facilmente observável, que deixa evidente que cada classe de uso do solo torna-se segregada em distintas zonas situadas a distâncias

apropriadas do centro. A série resultante de zonas concêntricas mais ou menos simétricas representa um esquema geral, um padrão universal de comunidade" (Hawley, 1950, página 264). Assim, a famosa descrição das zonas concêntricas, feita por Burgess acerca do padrão de uso do solo associado ao crescimento do organismo urbano, é reafirmada por Hawley - mas a sua análise não é reafirmada, pois Hawley explica que esse padrão de resulta da dominância funcional, de uma série de eventos que tende a se associar, mais do que de uma dominância central, estrutural, de per se. Caso os negócios e serviços desempenhem a

Imagem

Foto de Rui Faquini, 1999.

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