DOSSIÊ
GRAMSCI
GRAMSCI: SUAS OBRAS E SEUS LEITORES
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E
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stes m eus dois úl~ im os
anos de pesquisa e decência sobre o E stado
m oderno e sobre sociologia
política, na U niversidade
F ederal do C eará (U F C ),
foram enriquecidos com um a releitura dos
Cadernos
-.,'11'- ,
B S H -U F ~
p'E:RiÓLiCOS
ciência da política e do
E stado M oderno que, pelo
que se pode observar na
literatura corrente de socio-logia política, ainda não
foram incorporados à
lin-guagem e ao pensam ento
das ciências sociais contem
-porâneas, ou, pior ainda,
foram incorporados de form a superficial, e, por
vezes, até contrária, às concepções do autor.
O s cientistas políticos
da segunda m etade do
século X X tiveram um a
estranha resistência para assim ilar as _novas
pers-pectivas teorizadas por
G ram sci e, em geral, se
m antiveram no horizonte
clássico do século X IX ,
entendendo por E stado M oderno exclusivam ente a
m oderna sociedade política
representativa, burocratizada e institucionalizada.
G rarnsci, no entanto, descobriu, desde os anos
vinte e trinta do século anterior, o horizonte da totalidade social e da fundam entação histórica
do pensam ento social, posto por M arx ,
esquecido pelos m arxistas, tanto pelos
econom icistas quanto pelos voluntaristas e, ele, a partir daí, desenvolveu as noções de sociedade
civil e hegem onia civil, com o com ponentes centrais
dum a 'concepção am pliada' do E stado M oderno
do século X X , que abre vias para um a superação da profunda crise da política na contem poraneidade . LU C IO O U V E R C O STILLA *
R ESU M O
N este artigo, Lucio C ostilla fala da publicação de um a nova edição dosCadernos do Cárcere, no ano 2000, no Brasil, ressaltando a im portância do pensam ento de G ram sci, com o referência teórica, na interpretação de aspectos da política e do Estado latino-am ericanos, na atualidade. N esta pers-pectiva, explica tam bém as razões que o levaram a coor-denar a publicação deste núm ero especial desta revista, por ocasião da sua perm anência no Program a de Pós-G raduação em Sociologia da U FC (2002-2004), com o pro-fessor visitante.
do
Cárcere (]929-J
935),do pensador com unista
italiano,
Antonio
Gramsci
(1891-1937).
Interessado em
pro-curar entender as novas
tendências sócio políticas
do processo de globalização
em curso, assentado na tr a nsn a c io na liz açã o do ..
capital, enveredei pelo
estudo de G ram sci, um
autor de sum a atualidade.
N o trabalho docente na
pós-graduação de S ociologia da
U F C , junto com a professora
A lba P inho de C arvalho e
um grupo particularm ente interessado de
estudantes, descobrim os a pertinência do
pensam ento político de G ram sci. para entender os dilem as da nova realidade do século X X I. N a
procura dos textos, encontram os a edição brasileira do ano 2000, dos
Cadernos do Cárcere,
reorganizada pelo pesquisador e político italiano
Q .éculo X X , V alentino G uerratana, em seis um es, e editada por C arlos N elson C outinho.
P essoalm ente, reli com atenção e interesse
m aterial de G ram sci, enum erado, com pleto
ad o , e conclui que contém elem entos de ABSTR AC T
In this article, Lucio C ostilla w rites on the publication of the new edition of the Prison N otes, in 2000, in Brazil, em phasizing the im portance of G rarnscis thought, as a theoretical reference, in the interpretation of politics and the current Latin-Am erican state. In that perspective, he explains also the reasons that led him - during his presence as a visiting professor in the G raduate Program in Sociology at U FC (2002-2004) - to coordinate a special them atic issue of the R evista de C iências Sociais (The Journal of Social Sciences).
'D outor em S ociologia, professor titular da U niversidade
A utônom a do M éxico (U N A M ) e P rofessor V isitante, no
D epartam ento de C iências S ociais IP rogram a de P ós-G raduação em S ociologia da U niversidade Federal do C eará (2002-2004).
C O S TILLA , LU C IO O U V E R
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E sta constatação m e levou a desenhar um projeto
de re-a p rop r ia ção e re-a pre se ntaçà o do
pensam ento do cárcere de G ram sci para o
público da R evista de C iências S ociais da U F C .
A ssim , coordenei a elaboração de um conjunto
de artigos sobre as diversas teses dos
Cadernos
do Cárcere,
textos que com partilham o m esm ointeresse, além de incluir tam bém um breve dossiê
de escritos im ediatam ente anteriores à estadia
de G rarnsci no cárcere, textos que contribuem
para entendê-Io m elhor.
-M as, com o refletir e expor, hoje, os
elem entos esquecidos, m enosprezados e até
tergiversados sobre o E stado e a política m odernos,
que estão contidos nos extensos volum es dos
Cadernos do Cárcere,
especialm ente novolume
III, que contém textos sobre M aquiavel e as notas
sobre o E stado e a política, tanto no caderno 13,
especial, com o nos· inúm eros cadernos m iscelâneos?
C om o ler escritos que A ntonio G ram sci produziu
de m aneira fragm entada, dispersa, sob a vigilância.
do censor no cárcere fascista de M ussolini, sob o
desinteresse e até a hostilidade dos partidos
com unistas da T erceira Internacional e sob o
esquecim ento dos colegas do P artido na Itália?
C om o relacionar esses textos com os debates da
sociologia e da ciência política de hoje?
N a A m érica L atina, existem diversas leituras
do pensam ento de G ram sci. A prim eira, nos
finais dos anos 60 do século passado, apresentava
as idéias do pensador e, em geral, procurava se
situar "a favor" dele, no debate com os partidos
com unistas ortodoxos stalinistas, além de ser um a
novidade fecunda no pensam ento crítico das
sociedades de capitalism o desenvolvim entista do
pós-guerra. E ram leituras que tentavam 'tornar
legíveis' os conceitos de G ram sci para o grande
público e que alim entavam a crítica do
capitalism o de E stado e o desenvolvim ento da
organização autônom a das sociedades civis.
N estes term os, situavam -se coletâneas diversas
das notas do cárcere, agrupadas por tem as
específicos, tom adas de cadernos incom pletos
e isolados, de G rarnsci, todavia, não classificadas,
e som ente agrupadas por afinidade tem ática, sem
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R EVISTA D E C IÊN C IAS SO C IAIS V.35 N.2
integração entre si. N a época, apareceram , quase
no final da década de 1970, tam bém , livros de
autores europeus, entre os quais estão os que
foram especialm ente bem recebidos na A m érica
L atina. já clássicos na R egião: O
conceito
de
begemonia
em Gramsci,
de L uciano G ruppi;Gramsci e
oEstado,
de C ristine B uci-G lucksm ane A faoor
de Gramsci,
de M aria A ntoniettaM acchiochi, e, no B rasil, os textos sobre G ram sci
de C arlos N elson C outinho. E ste últim o
continuou, em períodos posteriores,
desenvol-vendo pesquisas e coletâneas, ao lado de outros
estudiosos.
N os anos 1980, se desenvolveu na E uropa
um a leitura ideológica-culturalista da noção de
hegem onia de G ram sci, na tentativa de um
reposicionam ento político dos partidos
com unistas europeus e de alguns intelectuais
(tornou-se bem conhecido o trabalho de E rnesto
L aclau e C hantal M ouffe, editado em 1985). E ssa
leitura da luta pela hegem onia com o procura
exclusiva do 'consenso', deixando fora as bases
de classe da luta política, foi assim ilada na
A m érica L atina, em época posterior às ditaduras
m ilitares no B rasil, na A rgentina e no C hile, e
tam bém após a eclosão da crise do partido de
E stado no M éxico.
P or outro lado, no contexto de em ergência
dum a sociedade civil em luta contra o velho E stado
autoritário ou ditatorial, houve tam bém um
im portante desenvolvim ento de conceitos
"aparentados" com G ram sci. N o B rasil,
apare-ceram novas publicações de revisão de G ram sci,
de C arlos N elson C outinho, E dm undo F ernandes
D ias e E m ir S ader. E , junto com eles, e em
oposição e eles, apareceu toda um a literatura
favorável à sociedade civil, que a entendia, com
m aior ou m enor virtude, com o o oposto do E stado
(P edro D em o, B resser P ereira, por exem plo).
N os anos 1990 e no início deste século, se
publicam textos que m ostram um a virtuosa e
m adura 'apropriação de G ram sci', no B rasil, para
a análise dos problem as de um a em ergente
sociedade civil e da criação de um novo espaço
público. E ntre eles, pode se destacar o livro de
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E velina D agnino,
Sociedade
civil e Espaços
públicos
no Brasil,
que coordena e recuperacriticam ente experiências diversas, de atuação
conjunta do E stado e da sociedade civil, no B rasil
e em outros países da A m érica L atina.
C om o aparecim ento, no ano 2000, da nova edição dos
Cadernos
do Cárcere,
em seisvolum es, com os cadernos e as notas
classi-ficadas, datadas e agrupadas rigorosam ente segundo tem as, datas e cadernos, se viabiliza e
se im põe um a re-Ieitura diferente, de G rarnsci,
apropriada para o século X X I. A questão já
não é ré-apresentar o autor com unista para estar
"a favor dele" num debate político ideológico
contra os ortodoxos econom icistas. H oje, trata-se de refletir "com ele" e, "a partir dele", sobre
novos fatos da política e do E stado atuais: de encontrar G ram sci para nos explicar o
deteriorado universo da política de inícios do
século X X I; a burocratizacão extrem a das sociedades políticas; a crescente despolitização
da cidadania, assim com o para entender os
m ovim entos críticos dessas tendências que
procuram por um a cidadania ativa e novos
espaços públicos dem ocráticos. T rata-se de
pensar, com G ram sci, acerca das m udanças do.
E stado neoliberal de com petição dos países
centrais, assim com o sobre a crise do E stado gerencial financeiro, liberal social, de
dem ocracia delegativa, dos países periféricos.
P rocura-se G ram sci, na crítica do dilem a de
fundam entar, separadam ente, os defeitos da
sociedade política ou os logros da sociedade
civil; para m ostrar um pensador que fala da busca de um a unidade de luta em arnbas as
esferas. A ssim , tam bém é im portante analisar,
com G rarnsci, a m oderna sociedade capitalista
pós-G rande Indústria, a realidade da m undializada
indústria inteligente de cooperação com plexa e do trabalhador coletivo com binado (T eixeira,
2004), que integra, num todo, o "Inundo
globalizado e dom inado pelo capital financeiro;
que articula as econom ias centrais com as
econom ias locais dos países pobres, dependentes e periféricos. T rata-se de pensar, com G ram sci,
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sobre o aparecim ento de um a nova unidade m undial de produção e acum ulação que funde
as distintas expressões do capital num todo, e
transform a os trabalhadores em operários
pós-fordistas, assim com o prolonga a vida e até faz renascer os precarizados trabalhadores das
m ontadoras, m aquilas, pequenos produtores
independentes, trabalhadores inform ais e
desem pregados estruturais.
D ado que G ram sci, inclusive com a nova
edição dos
Cadernos do Cárcere,
é um autor decadernos e notas fragm entadas e incom preensíveis
num a prim eira leitura, com o então fazer a
re-apropriação e re-apresentação de G ram sci, sem seguir o m étodo de enum erar frases inteligentes,
descontextualízadas, parciais e inúm eras, sem
usá-Ias com o critério de verdade?
A inda não parece possível, pelo m enos a
partir da A m érica L atina, um a desejável releitura,
'nota" a 'nota', dos 29 cadernos do cárcere publicados, e das 2.059 notas, para torná-Ias
com preensíveis, um a a um a, desglosar as
colocações aí vertidas, desentranhá-Ias e am
pliá-Ias com os desenvolvim entos faltantes. O que é
possível, por agora, é considerar o contexto
histórico-político e ideológico de G ram sci,
m ergulhar em algum as teses das notas e dos cadernos, para m ostrar Q m étõdo de análise, o
eixo teórico m etodológico das m esm as e,
cham ando a atenção para a coerência que une a reflexão de diferentes notas. P or que G ram sci diz
tal coisa? Q ual raciocínio está por trás do que ele
diz? C om o se explica tal idéia? Isto é, não m ais
um a apresentação a favor do que ele diz, e sim
um a reflexão sobre "porque ele diz o que diz" e
o que tem a ver conosco. N esse sentido, ficará claro que G ram sci não separa teoria e política,
nem história e análise: é a própria história que
gera as preocupações e o terreno no qual se
desenvolvem as alternativas de vontade e ação.
A gora, deixem os falar os autores dos textos incluídos neste dossiê para satisfação dos leitores
interessados.
F ortaleza, junho de 2004.
C O STILLA , tucio O U V E R