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SAÚDE E TRABALHO: QUANDO SE VAI ALÉM DO LIMITE

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Academic year: 2021

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VI CONGRESSO INTERNACIONAL DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL XII CONGRESSO BRASILEIRO DE PSICOPATOLOGIA FUNDAMENTAL

SAÚDE E TRABALHO: QUANDO SE VAI ALÉM DO LIMITE

Jaqueline Brito Vidal Batista

Saúde é quando ter esperança é permitido.

(Dejours)

Meu trabalho é muito estressante, muito estressante. Meu sofrimento é o meu trabalho. Essa frase me foi dita por uma professora do ensino fundamental ao tentar relatar o que o trabalho representava para ela, durante a realização de um estudo que investigava o estresse da categoria docente. Com uma inquietação patente e uma angústia insistente no olhar, essa professora com quarenta e dois anos de idade, afirmava ter no trabalho sua principal causa de sofrimento. Um sofrimento que, segundo ela, era mais que físico, doía além do próprio corpo: o sofrimento da alma, que extrapolava os limites e causava uma exaustão dilacerante, fazendo com que cada dia, ao acordar, precisasse de um esforço mais que humano (são suas essas palavras) para se levantar da cama e enfrentar um dia de trabalho. Dizia que gostava da profissão, que não se via em outro lugar a não ser o de professora, mas que, mesmo assim, apesar de gostar muito, ser professora estava lhe custando mais do que podia pagar. Ela também se dizia doente, sempre voltava do trabalho para casa sentindo dores pelo corpo, frequentemente tinha enxaqueca. Só se sentia melhor nos dias que não precisava trabalhar na escola. Afirmava que sua saúde havia sido consumida pelo trabalho.

Esse relato me remeteu ao sofrimento psíquico que cada um de nós está sujeito e ao estresse como consequência da vida cotidiana inerente ao mundo civilizado. No entanto, a professora relaciona claramente seu sofrimento ao trabalho, mais que isso, ela afirma categoricamente que seu sofrimento é o trabalho, incluindo um imperativo que fecha qualquer outra possibilidade de diluí-lo em outros aspectos de sua vida pessoal.

Trata-se de um sintoma representado através do sofrimento psíquico, carregado, como todo sintoma psíquico, de um significado e de uma trajetória, e que aparece através de uma queixa específica e pessoal. O que posso dizer do sofrimento que é trabalho ou do

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trabalho que é sofrimento? Mais: o que posso dizer do trabalho que se apresenta como destruidor da saúde e da identidade do indivíduo?

Na busca de respostas e de uma compreensão dos fenômenos psíquicos que envolvem essas questões, a Psicanálise apareceu como algo que dá sentido ao sofrimento psíquico e encontra no inconsciente representações pessoais e intransferíveis do que cada sujeito quer (ou deseja) ao construir seus sintomas. Dessa forma, o que a Psicanálise teria a dizer das relações de trabalho? Christophe Dejours defende que a Psicanálise não tem ponto de vista sobre o trabalho, nem sobre o trabalhador, no entanto, tem a dizer sobre o destino dos homens e de seus desejos no trabalho. E, a partir da questão No trabalho contemporâneo, qual o lugar do Desejo e qual o lugar do Sujeito? ele construiu uma clínica do Homem no trabalho, a qual deu o nome de Psicopatologia do Trabalho, que investiga o que, no Trabalho, está dialeticamente oposto ao desejo. Seria uma maneira de pensar o sofrimento psíquico como resultado desse conflito que é consequência direta do funcionamento do que Dejours chamou de Organização do Trabalho (DEJOURS ET AL, 1994).

Dejours (1999) identifica o trabalho como uma via de acesso privilegiada de identidade no campo social, através do qual o sujeito procura fazer-se reconhecido pelo outro através do Fazer, e não apenas pelo Ter e pelo Ser - ele espera gratidão e reconhecimento no que faz, em troca do sofrimento, do esforço e da engenhosidade no trabalho. O trabalho também pode ser fonte de prazer, favorecendo ao equilíbrio mental e a saúde do corpo. Quando o sofrimento no trabalho não é resignificado e transformado em prazer, o trabalhador utiliza estratégias variadas de defesa (individuais e coletivas) para manter sua integridade social e psíquica. Para Dejours, as defesas trazem na sua constituição uma contradição. Se por um lado elas funcionam como proteção para os trabalhadores contra o sofrimento e suas consequências na saúde mental (ignorando o sofrimento, negando suas causas e se libertando do mal-estar causado pelo trabalho), por outro, leva o trabalhador a criar um obstáculo à capacidade de pensar sobre o seu trabalho, de agir e de lutar contra os efeitos destruidores da organização do trabalho sobre sua subjetividade e sua saúde (DEJOURS, 2000).

Considerando a somatização (física e psíquica) como uma possibilidade de escape para o sofrimento causado pelo trabalho, é comum identificar uma série de saídas para o sofrimento observável. Esse sofrimento resulta da energia pulsional1 que

1Referente à pulsão, que diz respeito ao processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética, fator de motricidade) que faz tender o organismo para um alvo. Segundo Freud, uma pulsão tem sua fonte numa

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não acha descarga no exercício do trabalho, se acumulando no aparelho psíquico e ocasionando um sentimento de desprazer e tensão. Se nenhuma interrupção do trabalho suspender a evolução do processo de sofrimento e nenhuma modificação da organização do trabalho intervier, o sofrimento provavelmente desencadeará a patologia (MENDES, 2007).

A partir de uma avaliação mais precisa e dos depoimentos realizados, constatei que o sofrimento/trabalho descrito pela professora evoluiu para uma patologia que tem, não só nome, mas também faz parte, desde 1999, da lista de Doenças Profissionais e Relacionadas ao Trabalho do Ministério da Previdência e Assistência Social (DOU 12.05.1999 – nº 89), que contém um conjunto de doze categorias diagnósticas de transtornos mentais. Essas categorias se incluem no que foi chamado de Transtornos Mentais e do Comportamento Relacionados ao Trabalho, que podem ser determinados pelos lugares, pelo tempo e pelas ações do trabalho. Trata-se da Síndrome de Esgotamento Profissional ou Síndrome de Burnout. Essa síndrome é cumulativa e corresponde ao estresse consequente de atividades laborais de sujeitos que mantêm uma relação constante e direta com outras pessoas: médicos, professores, psicólogos, enfermeiros, policias, entre outros. Aparece como uma espécie de saída para o sofrimento causado pela organização do trabalho (CARLOTTO, 2002).

O burnout possui três dimensões que estão relacionadas entre si, são independentes, devendo ser consideradas sequencialmente, de acordo com o modelo processual, para caracterizar a síndrome (MASLACH; JACKSON, 1981). A primeira é a Exaustão Emocional, que se caracteriza pela falta de energia, entusiasmo e sentimento de esgotamento de recursos. A segunda dimensão é a Despersonalização: ocorre quando o profissional passa a tratar os clientes, pacientes, alunos, colegas e a organização de forma distante e impessoal, quando o vínculo afetivo é substituído por um racional. A terceira e última dimensão é a Baixa Realização no Trabalho. Acontece quando o trabalhador tende a se auto avaliar de forma negativa, torna-se insatisfeito com seu desenvolvimento profissional e experimenta um declínio no sentimento de competência e êxito (BATISTA ET AL, 2010).

A principal característica da Síndrome de Burnout, o que basicamente a diferencia do estresse laboral já conhecido, é o fato dessa síndrome só acometer sujeitos que têm no outro seu principal objeto de trabalho: o fator principal de adoecimento

excitação corporal (estado de tensão); o seu alvo é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir o seu alvo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p.506).

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consiste na relação com o outro e suas consequentes implicações. É possível observar, portanto, que essa característica se aproxima de alguma forma, do conceito psicanalítico de Transferência, uma vez que, toda relação é passível de transferência, inclusive as relações de trabalho.

Isso remete à possibilidade, evidenciando a professora que afirmava meu sofrimento é o meu trabalho, de pensar numa relação com os alunos que extrapola os limites subjetivos da sala de aula. O aluno não é somente aquele que está ali para aprender; ele aparece como algo que provoca, irrita, ameaça e conduz a professora a sentimentos e conflitos recalcados, a vivências passadas de sua história e a registros inconscientes que pareciam diluídos pelo tempo. O contato com tudo isso e a dificuldade que se apresenta, demanda um trabalho psíquico que transforma a exigência pulsional, provocando o adoecimento. Como afirma Dejours, o sujeito precisa defender- se de alguma forma do seu sofrimento (DEJOURS, 2000).

A Transferência pode ser definida como o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles (LAPLANCHE; PONTALIS, 1986, p.668). Quando se trata da Síndrome de Burnout, essa atualização dos desejos inconscientes sobre o objeto pode ter como consequência, o adoecimento e a impossibilidade de lidar com o trabalho de uma maneira saudável.

Em um artigo em que trata do tema, Luís Claudio Figueiredo (2003, p.59), referindo-se a Ferenczi, afirma que o estabelecimento de relações transferenciais faz parte do psiquismo humano em sua universalidade, sugerindo que também seja universal e básica a disposição humana de servir como suporte para as transferências alheias, como destinatário e depositário de seus afetos e como coadjuvante de suas encenações. É possível pensar, então, que essa disposição universal e básica, vivenciada através de funções como as dos sujeitos que têm no outro seu objeto de trabalho, falham de alguma maneira, desembocando no adoecimento.

Em uma discussão no LABORE – Laboratório de Psicopatologia Fundamental do EPSI, João Pessoa2, surgiu a ideia de que o burnout pode ser causado pela não complementaridade da transferência: o trabalhador não recebe do outro aquilo que espera, deixando que esse outro falhe como depositário de seus afetos.

2 Comentário feito por Ronaldo Monte de Almeida, na reunião do dia 09 de maio de 2014.

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Outro aspecto que não posso deixar de considerar é o fato de que, quando se trata de uma relação transferencial consequente de uma relação de trabalho entre duas (ou mais) pessoas, que ocupam lugares com significados e representações diferentes, existe a possibilidade da contratransferência (Figueiredo, 2003). Ou seja, o lugar do médico, da enfermeira, do professor, do psicólogo... também é espaço de transferência para pacientes, alunos, clientes... Voltando a professora do sofrimento/trabalho ou trabalho/sofrimento, considero possível, tanto a transferência dela para com os alunos (como possibilidade de atualização de seus desejos inconscientes), quanto uma resposta dela às transferências dos alunos para com ela – a contratransferência.

Obviamente existe a necessidade de um maior aprofundamento dessa questão.

No entanto abro uma vertente no sentido, não só de compreender o burnout através da Psicanálise, mas também da possibilidade de construir nova maneira de lidar com o problema.

A partir do momento que considero a Psicanálise como um lugar de fala e consequentemente de escuta, que trata o resíduo psíquico que leva ao adoecimento, elejo uma nova possibilidade de tratamento para o burnout, como também uma nova maneira de compreender a doença. Isso é importante porque, apesar de ser um agravo do trabalho, considerado uma epidemia em vários países, o burnout ainda se apresenta como uma patologia de difícil diagnóstico e de pouco conhecimento em meio à categoria médica, como também entre os trabalhadores que fazem parte do grupo de risco.

Estudos têm mostrado a dificuldade de identificação dessa síndrome decorrente do desconhecimento dos médicos peritos, principais responsáveis pelo diagnóstico e pelo afastamento das atividades laborais por parte do trabalhador para tratamento de saúde (BATISTA ET AL, 2011). Há sempre uma confusão em relação a esse diagnóstico e aos sintomas apresentados, atribuídos, na maioria das vezes, a outras patologias. Se há inadequação e erros com relação ao diagnóstico, há também inadequação e erros no que se refere ao tratamento. Nesse contexto, a compreensão do burnout vinda através da Psicanálise, pode se tornar uma parceira, não só com relação ao diagnóstico especificamente, mas também no lidar e no tratar a patologia.

Estar com a Síndrome de Burnout é estar no limite, é defender-se do sofrimento psíquico pela doença, é falar de uma não aguentar mais através de um investimento negativo naquilo que aparece como última saída. Entender as implicações dessa patologia que está acometendo cada vez mais profissionais que tem como função laboral

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o cuidar do outro, é, na verdade, mostrar que trabalhar com gente também adoece, e que é preciso que esses profissionais olhem para si buscando, não só reconhecer seus próprios limites, mas também investigar a representação que esse outro tem em sua vida, podendo assim, evitar que o trabalho seja sofrimento, deixando que o trabalho também seja prazer.

Referências Bibliográficas:

BATISTA, J.B.V.; CARLOTTO, M.S.; COUTINHO, A.S.; AUGUSTO, L.G.S.

Prevalência da Síndrome de Burnout e fatores sociodemográficos e laborais em professores de escolas municipais da cidade de João Pessoa, PB. Revista Brasileira de Epidemiologia, v.13, n.3, p.502-512, 2010.

BATISTA, J.B.V.; CARLOTTO, M.S.; COUTINHO, A.S.; AUGUSTO, L.G.S.

Síndrome de Burnout: Confronto entre o conhecimento médico e a realidade das fichas médicas. Psicologia em Estudo, v.16, n.3, p.429-435, 2011.

CARLOTTO, M. S. A Síndrome de Burnout e o trabalho docente. Revista Psicologia em Estudo, v.4, n.7, p. 21-29, 2002.

DEJOURS, Christophe. Conferências Brasileiras – Identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. São Paulo: Fundap, 1999.

DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C. Psicodinâmica do Trabalho. São Paulo: Atlas, 1994.

DEJOURS, Christophe. La méthodologie em psychopathologie du travail. Plaisir et souffrance dans le travail, 1987. In DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET, C.

Psicodinâmica do Trabalho. São Paulo: Editora Atlas, 1994.

DEJOURS, Christophe. Travail, souffrance et subjectivité. Sociologie du Travail, 42, 313-340, 2000. In MENDES, A. M. (org.). Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

FIGUEIREDO, L.C. Transferências, contratransferências e outras coisinhas mais ou Esquizoidia e narcisismo na clínica psicanalítica contemporânea ou A chamada pulsão de morte. Pulsional – Revista Psicanalítica; 16 (168): 58-81, 2003.

LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes Editora, 1986.

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MASLACH C, JACKSON SE. The measurement of experience burnout. Journal of occupation Behavior ;2:99-113, 1981.

MENDES, A. M. (org.). Psicodinâmica do Trabalho: teoria, método e pesquisas.

São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.

MINISTÉRIO DA SAÚDE. DOU nº 89. Decreto 3048 de 06/05/1999.

Referências

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