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Dalcídio Jurandir. //////////////// Chove nos campos. de Cachoeira. Chove nos campos de Cachoeira - miolo 7L grafica.indd 3 22/06/ :39:31

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Academic year: 2021

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Texto

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Dalcídio Jurandir

////////////////

Chove nos Campos

(2)

i

a noite vem

dos campos queimados

voltara muito cansado. os campos o levaram longe, com o caroço de tucumã na mão escolhido entre muitos no tanque embaixo do chalé. voltava já bem tarde.

a tarde sem chuva em Cachoeira lhe dava um desejo de se embrulhar na rede e ficar sossegado como quem está feliz por esperar a morte. os campos não voltavam com ele nem as nuvens nem os passarinhos, e os desejos de alfredo caíam pelo capim como borboletas mortas. mais para longe já era o queimado, a terra preta do fogo, os gaviões caçavam no ar os aritauás tontos. e a tarde diluída num sossego humilde sobre os campos queimados como se os consolasse.

indagava por que os campos de Cachoeira não eram cheios de flores, como aqueles de uma fotografia de revista que seu pai guardava. ouvia o major alberto dizer à d. amélia: campos da holanda. Chama-se a isso prados.

Cansado, mais cansado ainda talvez porque perdeu o caroço de tucumã: na moita? na terroada? ali podia ter uma cobra. saltara da mão, sumiu como um bichinho. mas por que voltava mais fatigado, como que trazendo nos ombros a própria noite para o chalé? ia ver a janela iluminada da casa de Lucíola e a Lucíola cantando como se aquela modinha o chamasse. voltar para o chalé era, muitas vezes, ter de olhar na saleta o vulto de eutanázio sozinho com aquela cara amarrada. era tentar compreender por que motivo a mãe não lhe explicava a doença de eutanázio, misteriosa moléstia essa que parecia invadir todo o chalé. era encontrar o pai folheando os catálogos como se folheasse os próprios sonhos e recuperasse todos os projetos per-didos depois que imprimia as páginas do Guia do inventariante e descobria

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para d. amélia uma receita para fazer manteiga. era voltar às feridas, que, apesar de saradas, lhe deixaram marcas nas pernas, no pescoço e dentro do peito. não mais menino de perna limpa como Tales, Jamilo e outros meninos felizes. agora com a marca das feridas o seu corpo era feio, corpo também moído pela febre. Que vergonha, quando a mãe ia lavar-lhe as feridas, e por mais que as mãos fossem leves e pacientes sentia que aquelas feridas nunca lhe deixariam de doer naquele desejo muito seu de partir daqueles campos, de parecer menino diferente do que era.

– menino feridento, dizia d. amélia brincando.

a calma de sua mãe, lavando e curando, talvez viesse daquele instante do poço onde alfredo caiu. D. amélia lavava umas camisas, e alfredo que brincava tentando fazer figurinhas de barro, junto à tina de roupa, escorre-gou para dentro do poço. acontecera isso em araquiçaua. D. amélia não deu um grito. saltou, e foi buscar alfredo no fundo do poço que era raso. salvara o filho, e daí em diante parecia mais dela saindo não somente da sua carne como do seu ressentimento, que sempre guardava consigo mesma a respeito do outro filho que morrera afogado. silenciosamente salva o filho, podia-se dizer até que o salvou como se já soubesse que havia de cair no poço, certa de que o salvaria. alfredo voltava de novo para os braços dela, como se fosse o outro também que voltasse.

– não quero que diga nada a ninguém. não conte nem pro seu alberto, ouviu bem? estou lhe dizendo.

– Com que tranquilidade o salvara! – refletiu, admirada de si mesma. D. amélia resolvera silenciar porque podiam pensar – nesse ponto não tão bem claro seu pensamento – podiam pensar que era destino dela ser mãe de meninos afogados. Lucíola saberia. no meio disso, era um segredo que ela queria guardar e o achava tão precioso e tão sagrado porque reabilitava-se a si mesma. podia ficar dentro do poço, com os puraqués no poço. Ficou como que dominada pelo pressentimento de que todos os filhos podiam morrer afogados e que estava condenada a isso. subiu o poço raso sem a ajuda de ninguém. Fez alfredo subir devagarinho. a subida era fácil, sim, a água podia afogá-lo, e ela pensou que se não pudesse salvar o filho, já não seriam apenas dois filhos mortos mas a mãe também no fundo do poço. alfredo podia cair outra vez, cair no rio, podia acontecer que morresse nas águas que as grandes chuvas trazem para Cachoeira em março. Lucíola perdera uma ocasião para justificar aquele direito de maternidade que pretende obter sobre alfredo. Com aquele segredo, d. amélia podia rir íntima e

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sossegada-mente de Lucíola. nem isso porém era capaz de abafar a revolta que sofria com as pretensões de Lucíola. imagine se fosse Lucíola...

alfredo pensa que as feridas do corpo podem voltar e pensa também no caroço que se perdeu nos campos queimados. menino feridento. Tanto mole-que sujo, em Cachoeira, mole-que tinha a perna limpa e bonita e morava na sujeira, nas barracas de chão. alfredo por isso queria sair daquele chalé onde o vento vem bater nas janelas, sacudir as redes, bulir com os catálogos do pai.

Quando as chuvas voltavam, então era que d. amélia sentia mais desejos de levar alfredo para Belém. Já está crescido, ele, mas tudo pode acontecer com aquelas águas que iam e vinham, mornas e silenciosas. os jijus vinham na enchente e para alfredo não pareciam peixes, pareciam filhos de sapo e de cobra. no chalé não se comia daquele peixe porque era como se comesse lama. mas alfredo gostava das grandes chuvas. podia ter medo mas era enorme a sensação de ouvir, uma noite, o ronco dum jacaré debaixo da casa. as montarias andavam pelos campos. Didico ia com o seu pequeno barco pegar porfia com o barco do roldão, na lagoa atrás da casa do Dr. adalberto. aqui, deste lado de Cachoeira, não se andava mais a pé, se navegava.

alfredo sentou-se na escada. o caroço nos campos, perdido. agora tem que ir ao tanque escolher outro que fale, lhe mostre os prados da holanda, o arranque destes escampados mormacentos.

a vila caía num sono como uma menina doente. por que sua mãe não resolvia logo o caso do colégio? alfredo não sabia que voltava com a escura solidão dos campos queimados, estava mole, com um indefinido esmoreci-mento. ouve sempre major alberto dizer a d. amélia:

– Uma gente que não se corrige. não se convencem que não devem quei-mar os campos. por que... ouviste? psiu. – major puxa pela manga da blusa de d. amélia. – por que... esteriliza... ouviste? – major explica, e alfredo ouve a explicação, meio sonolento. Quando está em sua rede, à noite, sempre ouve os dois conversarem, e a conversa toma um ar misterioso, um ar de histórias que eles contassem para o adormecer. D. amélia pouco fala. a voz dela vai para o quarto naquele mesmo tom com que pediu a ele que não con-tasse a queda no poço. e naquela noite, última noite em que major alberto falou dos campos comidos pelo fogo, lá fora, o clarão era grande e alfredo sonhou que o fogo também queimava o chalé e via as mãos de sua mãe como carvões. alfredo tem um sono como aqueles campos ardendo, como aquela noite queimada. e quando o vento cresce sobre o chalé ouve-se gemer a terra e a noite que o fogo queimou.

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olha de novo as marcas de feridas. em janeiro as grandes chuvas lavam a marca do fogo. Fica verde e dentro d’água os morurés que florescem entre os peixes. Quando a mãe aparecia com a cuia e o algodão para lavar as feri-das, alfredo se amolecia na rede num quase desejo de morrer, morrer deva-garinho com o braço dela sob a cabeça. aquilo era também da febre? mas de súbito um ímpeto de chorar alto, gritar para espantar aquele desejo sem forma. vontade de bater o pé para a mãe, embrulhar-se na rede, repelindo o curativo, que as feridas tomassem conta dele, o corpo inteiro. a mãe tinha nascido com aquelas mãos para tratar feridas. e agora alfredo sabe que nem essas mãos nem as grandes chuvas em março apagam as cicatrizes dele.

os passarinhos revoam em torno do chalé. o caroço de tucumã já ima-ginou que os passarinhos moravam no chalé. Ficavam livres do gavião, do fogo dos campos e da baladeira dos moleques. não, não gostava dos mole-ques que matavam os passarinhos à baladeira. Um moleque valia um passa-rinho? ainda ontem viu henrique balar um que caiu na calçada do Coronel Bernardo. henrique riu, apanhou o pobre morto, disse:

– vou te comê de espeto.

– se come então um passarinho desse?

– se come. e no espeto. não sabe o que é bom. pra que tenho mea bala-dêra? Tu não gosta?

– eu não.

– o que tu perde. És um branco...

– Tua boca é doce pra dizer isso... que sou um branco. Tu não vês minha cor?

alfredo não queria ser moreno mas se ofendia quando o chamavam de branco.

– mas tu não é? – Tu és moleque...

– Que tem com isso? sei balá um passarinho. Tu não bala. vamo um dia no campo, tu arruma uma liga velha ou então me dá um cruzado. Tira do teu pai. Tira escondido. não te incomoda que tu não come o passarinho que tu bala. eu como.

alfredo não disse mais nada. se pudesse dava logo um tabefe naquele amarelo, naquele empambado do henrique. henrique era amarelo, empam-bado mas brigador. alfredo sem atrever-se a cuspir, como queria, na cara de henrique. no entanto, henrique não estava caçoando. para ele era tão natural que alfredo parecesse branco. não morava num chalé de madeira,

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assoalhado e alto? era filho de major alberto, tinha sapatos. alfredo não comia passarinho balado. Quanta vez henrique não matou a fome com um passarinho de espeto?

alfredo queria que todos os passarinhos viessem morar no chalé. mariinha brincaria com eles – passarinho beliscando no braço de mariinha e mariinha arrancando pena de passarinho, – d. amélia tinha de vir para ralhar. Quanto ao branco e preto, alfredo achava esquisito opai branco e a mãe preta. envergonhava-se por ter de achar esquisito. mas podia a vila toda caçoar deles dois se saíssem juntos. Causava-lhe vergonha, vexames, não sabia que mistura de sentimentos e faz-de-conta. por que a mãe não nas-ceuzinhomais clara? e logo sentia remorso de ter feito a si mesmo tal per-gunta. eram pretas as mãos que sararam as feridas, pretos os seios, e aquele sinal pretinho que a mãe tinha no pescoço lhe dava um vagaroso desejo de o acariciar, beijando-lhe também os cabelos, se esquecer do caroço, do colégio, das feridas, da febre, dos campos queimados, estes avançando para a vila dentro da noite no galope do vento. Ficar assim como se pela primeira vez, de repente, compreendesse que tinha mãe, a primeira e real sensação de que era filho, de que brotara, de súbito, daquela carne acolhedora.

Correu e foi buscar um caroço de tucumã. Começou a ver todos os pas-sarinhos no chalé dançando uma dança esturdia com mariinha no soalho. a mãe resolveria explicar a doença de eutanázio.

e distraído, com o caroço pulando na mão, começou a falar bem baixi-nho, quando tão de repente aquela mão lhe tocou muito de leve no ombro.

– Falando só, hem?

o caroço deslizou pelo braço e rolou para debaixo da escada como se compreendesse o susto e a vergonha do menino que ficou frio e teve um desejo de morder a mão de d. Gemi, quebrar-lhe a cabeça.

– Tua mãe está?

sem responder, foi logo chamando a mãe. procurou espiar o que se tinha passado entre a d. Gemi e o eutanázio e ficou, de novo, quase assus-tado quando deu com ela voltando da saleta escura. subiu-lhe a lembrança daquele sapo que o espiava atrásdo chalé, uma tarde, como se o sapo visse e compreendesse o que era que estava acontecendo dentro do caroço de tucumã pulando na mão do menino.

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