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A DOR DO NÃO CABER: UMA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO NA VIDA GORDA

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Academic year: 2021

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A DOR DO NÃO CABER: UMA EXPERIÊNCIA DE IMERSÃO NA VIDA GORDA

Isaura de Bortoli Rossatto 1 Ruth do Prado Cabral 2 Resumo: Este relato se propõe a apresentar a experiência da intervenção cultural A Dor do Não Caber, que ocorreu como parte da programação de um congresso na área da Psicologia em Palmas, Tocantins. A experiência teve como objetivo a imersão do público, composto sobretudo de universitários, à vida das mulheres gordas, sob a alegoria de uma moradia. Os participantes foram convidados a adentrar em cômodos, em uma metáfora casa-mente, e foram expostos a experiências gordofóbicas cotidianas para pessoas gordas. Entre os temas expostos estavam: a exclusão das pessoas gordas dos espaços manifestada pela impossibilidade de caber ou transitar, pressão e medicalização para o emagrecimento, relato femininos coletados sobre vivências de gordofobia explicita e implícita e casos de violência retirados das mídias. Ao final, os participantes foram convidados a uma roda de conversa sobre os principais sentimentos que emergiram da experiência.

Os principais resultados observados foram a prévia incapacidade dos participantes em dimensionar o sofrimento de mulheres gordas advindo dos atos de gordofobia diários, bem como, o até então, não reconhecimento das diversas possibilidades de exclusão de pessoas gordas, maximizadas pelo recorte de gênero. Ademais, pôde-se observar que a maioria do público desconhecia a distinção entre pressão estética e gordofobia, assim como, foram expressos diversos relatos de sofrimento intenso vivido em função da gordura corporal e discursos supostamente voltados a saúde.

Palavras-chave: Gordofobia. Mulher Gorda. Psicologia. Vivência de Imersão.

Introdução

A intervenção cultural “A Dor do Não Caber” resultou do trabalho de uma equipe de acadêmicos em conjunto com as autoras deste relato (duas mulheres gordas, ativistas, inseridas em no ambiente acadêmico de um curso de Psicologia) em torno da imersão em experiências gordofóbicas cotidianas para mulheres gordas. O evento aconteceu como parte da programação do congresso acadêmico do curso de Psicologia do Centro Universitário Luterano de Palmas (Tocantins), tendo como público alvo acadêmicos inscritos no congresso, estudantes de outros cursos da instituição e a comunidade em geral.

O objetivo da atividade foi provocar nos participantes, compostos majoritariamente de estudantes de Psicologia e Educação Física, a sensibilização para a gordofobia cotidiana enquanto violência. Os visitantes, ao adentrarem no ambiente, que simulava uma moradia, sob alegoria da

1 Psicóloga, pós-graduanda em Gestão de Solução de Situação-Problema com a

Metodologia de Atendimento Sistêmico. Centro Universitário Luterano de Palmas, Palmas-TO, Brasil. E-mail:

isauradb.rossatto@gmail.com.

2 Professora no curso de Psicologia no Ceulp/Ulbra, Mestra em Direitos Humanos. Centro Universitário Luterano de

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mente e lembranças de uma mulher gorda, puderam observar a simulação de diversas violências contra os corpos gordos femininos.

O recorte voltado às vivências gordas femininas se deu por duas razões. Devido ao lugar de fala das autoras, e também, em razão da crença de que a articulação social patriarcal na atualidade promove uma maior pressão em relação ao peso para as mulheres, por serem mulheres; tornando, portanto, a gordura feminina uma questão política (WOLF, 2019). O intuito deste relato não é utilizar- se de uma base bibliográfica densa em torno da experiência, mas relatar os sentimentos e resultados obtidos a partir da vivência de ativismo em uma instituição de ensino superior, com um público composto em maioria por pessoas não-gordas.

Imersão na dor

A sequência do circuito seu na ordem que segue o relato. Em um dos “quartos” foi transmitido um vídeo com depoimentos de pessoas gordas extraídos da internet, prints de comentários e posts gordofóbicos em redes sociais. Em seguida, os visitantes poderiam ir até a “sala de estar” e “sala de jantar”, onde deparavam-se com uma mesa com revistas ilustradas com corpos magros, diversas pílulas de fármacos, bonecas “Barbie” e uma fita métrica. Ao chão, uma balança com a pergunta “será que me aguenta? ”. Na penteadeira, havia um espelho com uma silhueta de uma mulher magra desenhada com batom, no qual as participantes poderiam ver o próprio corpo refletido.

Ainda no mesmo recinto, na cômoda, uma televisão transmitia relatos anônimos fornecidos voluntariamente por mulheres gordas, descrevendo suas experiências com a gordofobia; e logo abaixo, pilhas de roupas de tamanho pequeno. Na mesa posta de jantar, fotos de corpos magros de modelos preenchiam os pratos. Ao lado de uma cadeira de plástico de tamanho comum foi posicionada uma equivalente, de tamanho infantil, com um convite apregoado para que os visitantes se sentassem. O objetivo era a oportunidade de dimensionar a nítida impossibilidade de caber em um objeto minúsculo em comparação ao tamanho de seus corpos.

Ao fim do trajeto, os visitantes eram conduzidos ao último cômodo, onde observavam um varal com várias camisetas manchadas de vermelho em alusão a sangue, com falas gordofóbicas comuns estampadas, como: “bonita de rosto”, “baleia assassina”, “acima do peso ideal”, “gordo fazendo gordice”, “tem que ter onde apertar” e “não pode usar biquíni”. Nesse recinto, os participantes foram convidados a uma roda de conversa com as autoras sobre os principais sentimentos que emergiram da experiência. Na ocasião, foi possível contemplar os impactos da intervenção nos

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visitantes, etapa de grande importância pelo compromisso de acolhimento característico da ética em psicologia, visto os impactos emocionais da experiência, especialmente para as participantes gordas.

A possibilidade de falar foi oferecida a todos os visitantes. No entanto, é importante destacar a diferença entre as reações nos diferentes públicos. A reação comum nas poucas participantes gordas foi nitidamente diferente dos demais. O choro foi a reação mais comum, e apesar da nítida dor, as visitantes que decidiram falar destacaram a importância da ação para que as pessoas compreendessem suas vivências, bem como, compartilharam algumas de suas experiências próprias com a gordofobia.

Os principais resultados observados nos visitantes magros foi a prévia incapacidade em dimensionar o sofrimento de mulheres gordas advindo dos atos de gordofobia diários, bem como, o até então, não reconhecimento das diversas possibilidades de exclusão maximizadas pelo recorte de gênero. Muitos participantes reconheceram-se também como praticantes de atitudes gordofóbicas e declararam-se arrependidos e ignorantes quanto aos impactos desses atos.

Ademais, pôde-se observar que a maioria do público desconhecia a distinção entre pressão estética, enquanto mecanismo de coerção para o encaixe de todas as pessoas no padrão corporal imposto pela mídia e sociedade; e gordofobia, caracterizada pelo estigma e perda massiva de direitos das pessoas gordas (JIMENEZ, 2020). Os participantes expressaram diversos relatos de sofrimento vividos em função da pressão exercida por familiares e pessoas próximas sobre a possibilidade de engordar, sobre o ganho de peso e até mesmo felicitações após o emagrecimento em razão de doenças.

Observou-se que a maioria dos discursos relatados como intrusivos voltam-se para a justificativa da preocupação com saúde. Fenômeno que ocorre em consonância e por influência do modelo biomédico, que se ocupa da rotulação de pessoas gordas como portadoras da obesidade, enquanto doença crônica (PAIM; KOVALESKI, 2020).

Para elucidar os sentimentos experimentados pelas autoras, nos apropriaremos do termo

“revitimização”, amplamente utilizado nos constructos científicos acerca de outras violências contra a mulher, como a sexual e doméstica. A revitimização costuma ocorrer quando há falhas ou ausência na prestação de acolhimento qualificado pela rede de saúde e assistência social em situações de violência; provocando a repetição da violência em mesmo grau ou de forma diferente no contato com os próprios profissionais ou com outras pessoas no ambiente social no qual a vítima está inserida (NARVAZ; KOLLER, 2006; SILVA et al, 2019).

As questões sociais, estruturais e institucionais de negligência e estigma com as pessoas gordas (JIMENEZ, 2020) implicam diretamente na ausência de dimensão e tato acerca do seu sofrimento, mesmo em públicos bem-intencionados (como era o caso dos visitantes da intervenção).

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Nesse sentido, a disposição de ativistas gordas em demonstrar suas experiências de vida e acolher as demandas de quem não comporta essas estruturas se torna, em metáfora, um salto no escuro. Consiste na exposição das feridas mais doloridas das histórias de diversas vidas, sem a capacidade de prever ou controlar como será a reação de quem as observa. Nesse âmbito, com a vivência da gordofobia social perene, a previsão do que pode estar no “escuro” tende a se assimilar com culpabilização, nojo, desprezo, acusação e exclusão. Assim, para as autoras, a experiência foi também de revitimização.

No entanto, constatou-se no processo, a existência de uma ferramenta potente para a mudança:

a abertura para escuta da realidade conforme se dá para o outro. Quando ocorre a formação de um sistema em torno de um problema baseando-se na aceitação, compreendendo o outro como legítimo (assimilando sua perspectiva, mesmo sem necessariamente desejar todos os seus comportamentos);

permite-se a criação de uma rede de conversações mais aberta para a convivência e menos marcada pelas relações de poder, de submissão e acusação (AUN, 2010; MATURANA; et al, 2014).

Mesmo não compartilhando das mesmas estruturas, ou mesmo, não desejando-as, o acolhimento mútuo entre as autoras e os visitantes permitiu a compreensão de como se deram as formações estruturais coletivas, bem como a flexibilização das premissas individuais. Um processo potente de abertura, um “afetar” coletivo. Por esse ângulo, o “salto no escuro” foi também o encontro de um abraço, diversos abraços. Ao final da roda de conversa, os participantes foram liberados e puderam se retirar levando o tempo que fosse necessário. Antes, poderiam escrever um bilhete contando seus sentimentos. Diversas palavras de aceitação, agradecimentos e relatos de mudanças foram escritos.

Não é difícil hipotetizar a pré-disposição do público visitante para uma abertura à escuta, especialmente os acadêmicos de psicologia. Porém, a maioria das trocas conversacionais com os mais de 160 participantes indicaram o abalo de premissas, um grande passo para a mudança. Quantificar o grau ou a natureza desse abalo não é o objetivo desse relato. A hipótese levantada pelas autoras de que mesmo após a imersão, discursos de ódio poderiam emergir dos visitantes não se confirmou, mas foi considerada o maior risco da intervenção.

A natureza didática da experiência, especialmente no momento da roda de conversa (principalmente nos aspectos de diferenciação entre gordofobia e pressão estética) é considerada aqui, como uma consequência das diferentes constituições da realidade entre os seres humanos e suas experiências. O encontro humano e o linguajar que provocam a emersão de uma nova realidade conjunta, podem tornar necessário nesse tipo de ocasião, que a militância enquanto ocupante de uma posição de saber, ocupe também um espaço educativo. Nesse sentido, considera-se o didatismo como

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produto de determinados tipos de ações, quando se espera a aprendizagem como resultado. No entanto, a crença que postula a didática como condição da militância parece perigosa, dada a natureza cortante desse tipo de abertura para o não saber e para a rigidez do outro.

Nas palavras de Guimarães Rosa: “Viver é um rasgar-se e remendar-se”. Para nós, a abertura de memórias, das dores, mutilações e do sentido do não-caber foi um rasgar-se dolorido. Por outro lado, o acolhimento, as histórias de vida compartilhadas, as palavras de apoio e os relatos de mudança foram um remendar-se. Um remendar-se que já não era mais nosso, era de todos.

Referências

AUN, Juliana G. A distinção do problema no lugar do diagnóstico. In. AUN, Juliana G.; COELHO, Sônia V.; VASCONCELLOS, Maria. J. E. Atendimento sistêmico de famílias e redes sociais. Vol II.

O Processo de Atendimento Sistêmico. Tomo I. Ophicina de Arte e Prosa: 2010, p. 188-206.

JIMENEZ, Malu. Lute como uma gorda. Rio de Janeiro: Casa Philos, 2020.

MATURANA, Humberto R; MAGRO, Cristina; GRACIANO, Miriam; VAZ, Nelson (org). A ontologia da realidade. 2 ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2014.

NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Mulheres vítimas de violência doméstica:

compreendendo subjetividades assujeitadas. Psico, v. 37, n. 1, p. 8-19, 2006.

PAIM, Marina Bastos; KOVALESKI, Douglas Francisco. Análise das diretrizes brasileiras de obesidade: patologização do corpo gordo, abordagem focada na perda de peso e gordofobia. Saúde e Sociedade, v. 29, p. 190-227, 2020.

SILVA, Juliana Guimarães et al. Direitos sexuais e reprodutivos de mulheres em situação de violência sexual: o que dizem gestores, profissionais e usuárias dos serviços de referência? Saúde e Sociedade, v. 28, n. 1, p. 187-200, 2019.

WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra mulheres. Tradução Waldéa Barcellos. 6 ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2019.

The Pain of Not Fit: an immersion experience in fat life

Abstract: This report presents a cultural intervention experience, The Pain of Not Fit, which occurred as part of the program of a Psychology Congress in Palmas, Tocantins. The experiment aimed an immersion experience for the public, composed mainly by university students, in the lives of fat women, under “home” allegory. Participants were invited to rooms, in a metaphor of the house-mind, and were exposed to everyday fatphobic experiences for fat people. Among the themes exposed were:

exclusion of fat people from spaces manifested by the inability to fit or transit, pressure and medicine for weight loss, female reports collected from experiences of explicit and implicit fatphobia, and cases of violence among the media. At the end, participants were invited to a conversation about the main feelings that emerged from the experience. The main results observed were the previous participants inability to measure the suffering of fat women, effects of being exposure to daily fatphobia, as well

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as the, until then, not recognizing the many different possibilities of exclusion of fat people, maximized by gender. Moreover, it can be observed that most people did not distinguish between aesthetic pressure and fatphobia, as well as several reports of intense suffering in fat body functions and supposedly health-related discourses.

Keywords: Fatphobia. Fat Woman. Immersion Experience. Psychology.

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