• Nenhum resultado encontrado

2. Processo e contexto: a declaração universal dos direitos humanos, o neoliberalismo e a guerra ao terror.

N/A
N/A
Protected

Academic year: 2021

Share "2. Processo e contexto: a declaração universal dos direitos humanos, o neoliberalismo e a guerra ao terror."

Copied!
12
0
0

Texto

(1)

Mas que humanos? Uma reflexão sobre a agenda de direitos humanos através das migrações internacionais no México e no Brasil.

SPG11. Direitos humanos em xeque: retrocessos e potencialidades.

Relação com a temática do SPG: descreve-se o que parece uma contradição no que diz respeito à linguagem dos direitos humanos, reconhecendo a possibilidade que tal léxico gerou a uma serie de atores sociais, fomentando reivindicações. A reflexão tem como atores sociais as mulheres e homens imigrantes que se deslocam de forma vulnerabilizada pela América Latina e que buscam, a partir de seus deslocamentos, questionar as formas e marcos da gestão migratória na região, algo que é possível a partir de uma série de estratégias mais ou menos organizadas e ações orientadas para mudanças político-institucionais e o fazem em diálogo com o vocabulário e possibilidades abertas pela suposta adoção dos marcos dos direitos humanos na gestão dos deslocamentos de pessoas – como se afirma numa série de tratados internacionais, ademais de serem os paradigmas das leis migratórias vigentes em México e no Brasil.

Sendo assim, trata-se de um trabalho que expressa o próprio título do SPG, a partir da temática da migração internacional.

Questão central: compondo a pesquisa do doutorado que vem sendo realizada entre o México e o Brasil desde 2020, a reflexão busca entender dois “polos opostos” que se formam nas migrações internacionais contemporâneas: pessoas em mobilidade e a rede articulada por/para elas; Estados-nações com suas políticas e legislações migratórias, articulados à organismos burocráticos internacionais. A análise se constrói a partir da localização das imigrações numa perspectiva global e local, jogos de poder e interesses econômicos e políticos que passam pelos territórios, fronteiras e pessoas. Entendendo o atentado terrorista do 11 de setembro de 2001 como um marco para o tema, procuro a partir de estudo de caso específico, a fronteira entre México e Estados Unidos e a fronteira entre Brasil, Peru e Venezuela, questionar a ideia amplamente ventilada no século XXI de direitos humanos, buscando entender como funciona esse princípio na prática da gestão de pessoas que se encontram ou se encontraram nessas fronteiras.

Métodos e técnicas: Na pesquisa se faz uso de uma série de metodologias qualitativas:

revisão bibliográfica a partir do recorte temporal das duas ultimas décadas, ademais do produzido com relação à historia da imigração, nos dois países estudados: Brasil e México; revisão de protocolos, convenções, acordos e leis (a nível nacional) que dizem respeito às imigrações e adotados pelos dois países; revisão das decisões judiciais e decisões governamentais em matéria de imigração (como portarias e resoluções) procurando entender se se encaixam ou não nos paradigmas imigratórios e dos direitos humanos anunciados em ambos os territórios – para isso também procurou-se, nesse trabalho específico, rastrear as notícias e formas de difusão das informações de matéria migratória. Por fim, também foram realizadas até aqui 9 entrevistas com ativistas e/ou imigrantes em ambos os países.

Conclusões parciais ou totais: A literatura consultada até aqui demonstra que existe uma série de formas de “violação de direitos humanos” praticadas sistematicamente com relação a alguns fluxos migratórios específicos. Quando ampliamos nossa lupa para outras regiões de intensa migração, Europa em suas fronteiras com Ásia e África, percebemos que tendências de monitoramento, controle e opressão parecem se consolidar cada vez mais com investimentos, alimentando a “crise migratória” sem fim.

Muitas populações humanas têm protagonizado emigrações constantes, motivados por

(2)

violações de direitos e inabilidade (ou falta de vontade) dos Estados nacionais, inscritos no modo de produção capitalista, que seguem cumprindo papel importante nas dinâmicas migratórias. Esse sistema econômico é base de uma serie de desigualdades que geram violações, a determinados grupos de pessoas no mundo, daquilo que se acordou chamar direitos humanos – e tal conceito, na prática, parece na verdade selecionar quem são os humanos e quem não são.

1. Introdução:

O contexto migratório atual na América Latina e América do Norte expressa-se de forma trágicas. De fato, essa afirmação parece algo impactante, mas a realidade da maior parte dos deslocamentos no continente americano se da de forma vulnerabilizada e crítica. São milhares de homens e mulheres, entre eles muitas crianças, migrando por razoes que podemos chamar de crise humanitária.

Crise humanitária no sentido de que se produzem dentro de contextos de desastres ambientais, violações de direito nos países de origem, trânsito e destino, desigualdade social e problemas econômicos e políticos profundos que vem se expressando nos últimos anos de forma latente. Assim se expressam então as migrações que ocorrem na fronteira norte do Brasil – com países como Peru e Venezuela – ou na fronteira norte do México com os Estados Unidos.

Essa realidade de intensa vulnerabilidade se agudizou com a realidade da pandemia da covid-19 e as medidas de fechamento de fronteira, que vieram acompanhadas de um reforço da militarização e de medidas de criminalização da imigração e das pessoas imigrantes.

Dentro do contexto de uma pesquisa mais ampla que envolve um estudo comparativo e qualitativo entre as imigrações em México e Brasil, o presente artigo busca analisar alguns contextos migratórios específicos, principalmente através do contexto do fechamento das fronteiras ou do aumento das barreiras em relação aos deslocamentos internacionais no continente americano.

Como recurso, por se tratar de uma analise crítica que busca questionar as formas de gestão da imigração adotadas pelos Estados nacionais, se adotará como um recurso de “suspensão” ou mais bem “desnaturalização” de ideias e narrativas, o uso de aspas em alguns conceitos que parecem ter-se plasmado na forma como se representa as imigrações, bem como que produz políticas de governança de/para as pessoas imigrantes.

Dessa forma, o artigo estrutura-se em uma primeira parte de recuperação do pano de fundo das discussões atuais da gestão da imigração, que ao menos nos discursos

(3)

supõem-se pautar os direitos humanos, recuperando um pouco da discussão em torno dessa ideia hoje amplamente difundida. Em seguida, apresenta-se uma discussão sobre a ideia de racismo e suas reinvenções no contexto do século XXI, com ênfase nos últimos dois anos. Por fim, procura-se desenvolver algumas considerações finais a partir de hipóteses de pesquisa, todavia em andamento e analise. Ressalta-se que todo o texto vem permeado por analise de casos pontuais através de noticias e reportes de organizações não governamentais e ativistas em torno da migração bem como da experiencia de campo, através de trabalho voluntario por meio virtual, da pesquisadora.

2. Processo e contexto: a declaração universal dos direitos humanos, o neoliberalismo e a guerra ao terror.

Em 10 de dezembro de 1948, após dois anos de sua inicial elaboração e no contexto do fim da Segunda Guerra Mundial, foi aprovada em uma reunião em Paris um documento conhecido pelo mundo todo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Essa reunião se deu entre os então 58 países que compunham a recém criada Organização das Nações Unidas (ONU). Desses, 48 votaram em uma terceira reunião a favor por unanimidade o documento que já foi traduzido para mais de 500 idiomas1.

É um documento que utiliza inicialmente as ideias de “direitos fundamentais do ser humano” e “valor da pessoa humana” – mas que em nenhum momento define exatamente o que considera “humano”. De fato, à primeira vista esse questionamento pode parecer absurdo, pois sentimos que trazemos muito implícito em nós o significado (natural) de humano.

Em 2002 Eduardo Galeano, escritor uruguaio, escreveu um artigo em revista equatoriana sobre a declaração universal dos direitos humanos. Já naquele tempo, o autor brilhantemente questionava o conteúdo da Declaração e seu caráter, afinal, excludente. Ironicamente o autor apontava um dos artigos mais contraditórios naquela época e que segue sendo bastante polêmico, relacionado diretamente à migração:

“Todos tenemos derecho a transitar libremente", afirma el artículo 13.

Entrar, es otra cosa. Las puertas de los países ricos se cierran en las narices de los millones de fugitivos que peregrinan del sur al norte, y del este al oeste, huyendo de los cultivos aniquilados, los ríos envenenados, los bosques arrasados, los precios arruinados, los salarios enanizados. Unos cuantos mueren en el intento, pero otros consiguen colarse por debajo de la puerta. Una vez adentro, en el paraíso

1 Para maiores informacoes sobre a Declaracao também consultar: https://www.geledes.org.br/hoje-na- historia-declaracao-dos-direitos-humanos-faz-70-

anos/?gclid=Cj0KCQjw1dGJBhD4ARIsANb6Odl0yGJIuCgEvuPFhy2egwXJhU8MIM3CbVQeNzYEKf s06hyI695XYWMaAr6vEALw_wcB

(4)

prometido, ellos son los menos libres y los menos iguales (Eduardo Galeano, 2002, p. 14).

A atualidade da reflexao de Galeano é insuperavel. Esse mesmo texto poderia ter sido escrito em 2002 ou 2021 e traria básicamente as mesmas reflexoes e denuncias com relacao a gestao capitalista e neoliberal do nosso mundo, com enfase especifica na mobilidade humana, cujo controle se exerce a partir de interesses políticos e economicos que as pessoas migrantes nao podem sequer controlar.

Anterior a isso, no entanto, é o curioso fato de haver sido preciso – com certa dificuldade no ambiente e contexto dos Estados nacionais que elaboraram a Declaração – definir-se por um documento internacional o que deveria ser considerado “direito humano”. Assim, não deve soar tão absurdo começar essa reflexão a partir da brecha que a não definição do que é humano na declaração é uma ótima maneira de garantir que se possa jogar com essa interpretação elementar e significar, como se queira, o que é o ser humano que tem direitos – ou quem é e, dessa maneira, também quem não é.

O documento fala em não discriminação por motivos de raça, por exemplo, o que só demonstra que ele parte do pressuposto de que existam raças humanas, ideia muito ventilada a partir de pensamentos racistas e eugenistas. De todos os modos, expande-se essa questão da não discriminação para uma serie de outros determinantes de “identidades” diferentes entre seres humanos: religião, sexo, língua, cor, origem nacional ou social, riqueza, nascimento.

As pessoas imigrantes dentro dos dois contextos refletidos, no entanto, demonstram a existência da discriminação de forma explicita, principalmente porque estamos falando de migrações vulnerabilizadas de grupos de nacionalidades específicas, como o caso da imigração venezuelana ao Brasil, a emigração haitiana de saída do Brasil rumo aos Estados Unidos e a imigração centro-americana e haitiana contida na fronteira entre México e Estados Unidos. É evidente, assim, o caráter racializado dessas imigrações, por se tratar de populações indígenas, mestiças, afrodescendentes e negras.

La declaración proclama, la realidad traiciona. "Nadie podrá suprimir ninguno de estos derechos", asegura el artículo 30, pero hay alguien que bien podría comentar: "¿No ve que puedo?". Alguien, o sea: el sistema universal de poder, siempre acompañado por el miedo que difunde y la resignación que impone (Galeano, 2002, p. 15).

O agravamento da violação de direitos é histórico, e se da num contexto de transformações políticas do capitalismo como com a reestruturação produtiva e o

(5)

advento do neoliberalismo. A década de 1970 representou um grande desafio ao modelo capitalista, principalmente nos Países Capitalistas Centrais (PCCs), e com grandes influências nos Países Capitalistas Periféricos (PCPs), como é o caso do Brasil, do México, da Venezuela, do Haiti e de tantos outros envueltos nos deslocamentos migratórios da regiao.

Nessa época as grandes corporações, principalmente as norte-americanas (tendo em vista a consolidação dos Estados Unidos como hegemônico dentro do bloco capitalista) começaram a expandir seus mercados para a Europa e também para a América Latina, facilitando o escoamento de seu excedente e expandindo as possibilidades de lucro.

Esse movimento, evidentemente, gerou processos desiguais de desenvolvimento dentro do sistema capitalista (HARVEY, 2005), a necessidade de integrar todos os países num mercado global e também mudanças no pensamento e nas formas políticas das sociedades, marcando o (res)surgimento do agora neoliberalismo.

Ademais de envolver uma ampla reestruturacao produtiva, o neoliberalismo também redesenha as políticas de identidade, de acesso a direitos e nas formas mesmo de se combater a desigualdade social. Os países periféricos dentro do sistema capitalista também sofrerao consequencias específicas dentro de essa geopolítica economica mundial, tendo a peculiaridade de que o “subdesenvolvimento se estabelecia não como negação do desenvolvimento, mas como o desenvolvimento de uma trajetória subordinada dentro da economia mundial” (Martins, E., 2011, p. 230). Assim, o subdesenvolvimento da regiao é produto direto do desenvolvimento dos países ditos

“desenvolvidos”.

O autor Achile Mbembe (2016) define neoliberalismo como

“(…) una fase de la historia de la humanidad dominada por las industrias del silicio y las tecnologías digitales (…) la era durante la cual el corto plazo está a punto de ser transformado en una fuerza procreativa de la forma-dinero (…) el neoliberalismo descansa en la visión de que <todos los eventos y todas las situaciones del mundo de la vida [pueden] estar dotados de un valor en el mercado>” (p. 24).

É o período de produção da indiferença, da racionalização e codificação ilimitada da vida social em normas, categorias e cifras, num processo de racionalização do mundo a partir de lógicas empresariais. O capital é fundamentalmente financeiro, por isso percebido como ilimitado, irrestrito nos seus fins e meios. Nessa lógica não existem mais trabalhadores tais quais (aqueles preocupados sobre serem explorados pelo capital), mas sim “nômades do trabalho” – a partir da produção de uma “humanidade

(6)

supérflua” agora totalmente prescindível para o funcionamento do capital. A era do

“sujeito humano novo”, o “empresário de si mesmo” (Mbembe, 2016, p. 25). Essas características, agudizadas pelos contextos de diversos tipos de crises, também estão presentes entre as pessoas imigrantes que, ainda que em condições de refúgio, por exemplo, no fundo estão se arriscando a migrar para ter vidas melhores, trabalhar e sustentar-se a si mesmos e a seus filhos e filhas e poder viver em condições mais dignas.

Ademais do advento do neoliberalismo, outro marco importante para a gestão migratória na região vem como consequencia do atentado terrorista protagonizado em 11 de setembro de 2001 no território estadunidense e reivindicado pelo ativista Osama Bin Laden e sua organização política e militar. Como resposta a esse atentado é possível dizer que uma serie de medidas de restrição foram tomadas com relação á mobilidade humana na região, havendo um recrudescimento das medidas de vigilância, militarização e impossibilidade de ingresso no país – uma política migratória agressiva, que criminaliza as pessoas e destoa em muitas formas da agenda dos direitos humanos.

Com a justificativa de proteger-se de um inimigo abstrato, “terrorista”, diversas pessoas foram postas sob suspeita, reativando-se assim o medo ao estrangeiro, ao desconhecido, ao que vem “de fora”, porque esse é potencialmente um terrorista ou criminoso, reforçando-se ainda a ideia de uma comunidade nacional que de fato não existe dessa forma homogênea em que se planteia. As consequências, nesse sentido, serão sentidas na fronteira com os Estados Unidos pelas pessoas imigrantes que tentam chegar ao país, como também nas políticas migratórias de outros países que vão sendo influenciados e pressionados pela nova agenda migratória.

É possível perceber que as duas leis de imigração, de Brasil e Mexico, carregam em suas palavras, em parte delas, o discurso dos direitos humanos. Ainda assim, existem nelas muitos dispositivos que deixam em aberto as diferentes formas de se criminalizar os deslocamentos de pessoas pelos territórios – as brechas das leis, por assim dizer, as palavras ditas e não ditas, as ambiguidades. É nesse sentido que o racismo, a discriminação e a criminalização não precisam estar explicitamente anunciadas. Em jogos de palavras, em novos conceitos e em elementos não ditos é que residem as violações aos direitos que as próprias leis permitem que se façam na prática.

3. Século XXI: racismos reinventados, desumanização e violação de direitos sistêmica

(7)

A compreensão, desde o pensamento europeu, da “identidade” sempre foi concebê- la como antes de tudo “em seu próprio ser ou em seu próprio espelho” algo como uma

“relação entre seres idênticos” no lugar de compreendê-la em termos de pertença mútua a um mesmo mundo (a ideia da co-pertença). Nessa chave de interpretação, caracterizada como “auto ficcional, autocontemplativa e de clausura, coloca o negro e a raça como continuamente reduzidos a um mesmo significado no imaginário das sociedades europeias (MBEMBE, 2016)

O discurso sobre “o homem” e sobre “o humanismo” “a humanidade” incorporam de alguma maneira essa percepção racial europeia também. Desde o século 18: “negro”

e “raça” se constituíram como o “subsolo (...) do qual se despregou o projeto moderno de conhecimento e de governo” (MBEMBE, 2016, p. 23), em outras palavras sustentou a base do que o autor chama de “delírio que produziu a modernidade”.

A reflexão de Mbembe é completamente pertinente ao contexto analisado, pois trata de recuperar não apenas a base epistemológica e histórica da construção de identidades racializadas, entre elas pessoas indígenas e pessoas negras, e consequentemente nos permite ver que tipo de pensamento alimenta a ideia de humanismo ou, mais contemporâneo, de direitos humanos – o tal conteúdo que define a humanidade.

Nessa espécie de delírio, pensamento cristalizado e naturalizado, diz Mbembe que

“o negro” é aquele “que se vê quando não se vê nada, quando não se compreende nada e, sobretudo, quando não se busca compreender nada” – o negro é o que libera

“dinâmicas passionais” e de alguma maneira desafia o sistema da razão.

A raça é uma categoria, uma ideia que se consolidou dentro de um processo histórico do qual a Europa é uma das protagonistas, e uma categoria que reduz o corpo e o ser vivo a questões de aparência, de pele e de cor, cujo status da criação do conceito é de uma ficção de raiz biológica. Essa construção conceitual e todo o pensamento desenvolvido baseado nela fizeram do negro e da raça figuras de uma “loucura codificada” (Mbembe, 2016).

Para Mbembe (2016), o neoliberalismo é a fusão entre capitalismo e animismo, e gera consequências para a compreensão futura sobre raça e racismo. Marca também o surgimento de práticas imperiais inéditas, baseadas em diversas lógicas distintas:

escravista de captura e depredação; coloniais de ocupação e extração e ainda de guerras

(8)

civis (guerra de ocupação e/ou contra insurgente: não só aniquilar os inimigos, mas implementar uma fragmentação do tempo e uma atomização do espaço) (p. 27).

Dita fusão, defende o autor, gerou a possibilidade inédita para a humanidade de que os seres humanos sejam transformados em coisas animadas, dados digitais e códigos – e nesse aspecto, a palavra “negro” agora não se remete mais apenas às pessoas de origem africana (o autor menciona que uma das consequências do neoliberalismo é que o sofrimento, a desposessão, a deterioração da vida das pessoas negras no primeiro capitalismo agora se expande a todas as populações subalternas do mundo). Há uma nova característica nesse “negro”, uma solubilidade e institucionalização como forma de existência, se propagando ao resto do planeta no que o autor chama de “el devenir- negro del mundo” (Mbembe, 2016, p. 28).

É nesse sentido que é possível pensar a gestão racista das fronteiras e políticas migratórias e a desumanização das pessoas imigrantes nos dois contextos analisados.

Agora, baixo outras tipologias identitárias, o racismo opera através de conceitos como

“migrantes em trânsito”, “refugiados”, “migrantes indocumentados”, “centro- americanos” de forma generalizada ou mesmo “haitianos”. “negro” e “raça”, afirma o autor, nunca constituíram noções fixas, são um encadeamento de coisas em si mesmas inacabadas. Sua significação sempre foi existencial. Negro é substantivo. Marcou uma série de experiencias históricas desgarradoras, uma realidade de vida vazia, um pesado – a transformação das pessoas, presas às redes de dominação de raça, em espectadoras de algo que era e não era sua própria existência (Mbembe, 2016, p. 29).

Podemos utilizar ainda, para pensar a gestão dos territórios em específico para determinadas identidades em o que Mbembe (2016) chamou de “práticas de zonificação”, que envolvem uma cumplicidade entre o econômico e o biológico e se traduzem, materialmente em, por exemplo, militarização das fronteiras, parcelamento/segmentação de territórios e criação (nos limites dos Estados existentes) de espaços mais ou menos autônomos (as vezes sem qualquer tipo de soberania nacional incidente) (p. 27).

De Genova (2017) em entrevista a também pesquisadora Soledad Velasco, afirma que as fronteiras são produzidas: “as fronteiras são determinações sempre contingentes das relações de luta indeterminadas que ocorrem pelo processo aberto de objetivar continuamente as fronteiras (...)” (p. 157). Sua criação tem uma história, que por sua vez

(9)

envolve a luta social desde a autonomia e a subjetividade da mobilidade humana e que produz intervenções mais ou menos deliberadas a depender do contexto dessas lutas e econômico e político da geografia capitalista mundial.

De fato, como bem argumenta De Genova, “se não existissem fronteiras, não haveria migração como tal (...) É por ser submetida a esses processos de controle e vigilância fronteiriça que a migração e os e as imigrantes emergem como tais” (DE GENOVA, 2017, p. 158). Assim, a própria produção da tipologia imigrante pode ser pensada, dentro do contexto da desigualdade capitalista, neoliberal e racista, como uma forma de discriminação e desumanização de certas populações que ficam de fora dessa

“economia de legalidade e ilegalidade para oferta de direitos” que marca o discurso dos direitos humanos.

4. Algumas considerações finais: atuação em campo e a realidade vista de dentro.

Na entrevista supracitada, De Genova conclui então que não existe nada de natural sobre a ilegalidade que marca a discussão sobre a imigração contemporânea. A condição de ilegalidade ou de indocumentação, por exemplo, não é algo nato ou genérico aos seres humanos que estão migrando por aqui. É produção, consequência direta das formas de conceber e gerir a migração desde as políticas oficias dos Estados nacionais e dos acordos internacionais mediados por instituições neoliberais e capitalistas – como a Organizacao Internacional para Imigracao a ONU e a ACNUR, por exemplo.

De fato, De Genova chama de “produção legal de ilegalidade”. Quando, desde o ponto de vista da existência de um estatuto jurídico de ordenamento e significação da migração internacional, se produz a ideia de uma migração ordenada e regular, também se gera de forma automática aquela migração que será tipificada como irregular – termo que também já foi aplicado, assim como o ilegal, que em nome mesmo dos tais “direitos humanos” foi criticado e quase completamente abandonado, ou mais bem travestido de outros termos. É uma verdadeira ilegalização das migrações e, consequentemente, das pessoas imigrantes.

A organizacao Al Otro Lado é uma organizacao binacional que trabalha principalmente com apoio jurídico a pessoas imigrantes que querem e/ou ingressam nos EUA a partir da condicao de refugiado/solicitante de refúgio (asylum seekers). Durante a pandemia e depois das decisoes dos Estados Unidos com relacao tanto ao MPP quanto

(10)

ao Title 42, dispositivo usado para nao permitir o ingresso e solicitacao de refugio bem como promover a expulsao imediata das pessoas que ingressarem de forma “irregular”

no país, a organizacao comecou um trabalho de aplicacao de um questionario principalmente feito as pessoas que estavam varadas nas fronteras mexicanas con os EUA, especialmente Tijuana.

Os questionarios, o “encuestas de riesgo” foram respondidos por mais de 20.000 pessoas, o que representa apenar uma parte do total de pessoas que seguem vivendo suas vidas nas ciudades fronteiricas con os Estados Unidos da América. Foi desenvolvido para que a organizacao pudesse analizar o perfil das pessoas e elaborar uma melhor atencao a quem mais necessitava, tendo em vista que os EUA ainda permitia que as pessoas entrassem no país “por razoes humanitarias”, os Emergency Parole. Entre agosto e setembro os EUA “fecharam” suas fronteras também para os casos humanitarios, o que fez com que o trabalho da organizacao parasse.

A partir da realizacao de um trabalho voluntario, me incorporei ao processo de revisao, depuracao e sistematizacao das respostas dos questionarios, num primeiro momento de todos e todas que respondiam, por ordem de data de resposta, logo por casos prioritarios a partir da aplicacao de filtros de “vulnerabilidade” como, por exemplo, pessoas sequestradas, ameacadas de morte e com casos de assassinatos nas suas familias, pessoas trans ou da comunidade LGBTTQI, mulheres grávidas de sete meses em diante, casos de saude e doenca graves.

As encuestas eran preenchidas em sua absoluta maioria por pessoas do México, El Salvador, Honduras, Guatemala e Haiti. Uma das perguntas, que todavia nao era usada como um fator de vulnerabilidade, perguntava se a pessoa se considerava indígena. Nao é possível quantificar quantas pessoas responderam que sim, ainda que dentro da percepcao do trabalho feito, a maioria dizia que nao. É interesante pensar o efeito das lógicas de miscigenacao que foram construidas na América Latina como forma de compreender como tantas pessoas nao se consideram indígenas. De todo modo, aquí de forma mais abrangente podemos falar de indígenas e descendentes, o que amplia a possibilidade de entender que identidades nacionais como as citadas, representam também povos racializados.

Se desse lado da tela o trabalho voluntario consistia em organizar suas informacoes, inclusive através da leitura de diversos relatos de violacao de direitos nos países de origem, transito e na política migratoria do país de destino, do lado de quem preencheu o questionário trata-se de sua vida. Era muito comum ler no final de relatos pedidos de

(11)

ajuda: por favor, me ajude, tenho medo, alguns dizem. Por favor, me ajude, aquí é horrível.

O exercício reflexivo como pesquisadora e ativista me fazia pensar em que condicoes de vida estao vivendo esas pessoas – despossuídas de sua identidade humana e carregando a condicao da “irregularidade” e da “indocumentação”. Como no Brasil, por exemplo, em que as pessoas imigrantes foram impedidas de passar, no caso pelo Peru, e se viram obrigadas a habitar a frontera, literalmente, e a única resposta que consiguiram do país foi uma ordem de reintegracao de posse. Mesmo tendo ficado menos de dois meses ali, me coloco a imaginar o que foi viver essa incerteza de nao poder regresar para de onde se foi, nao poder avancar para onde se quer e ainda imaginar que estando territorialmente na fronteira entre Brasil e Peru, ainda havia muito caminho a percorrer até os Estados Unidos, país mais procurado como destino.

Também refleti que muito possivelmente as pessoas que lograssem passar seriam as próximas a potencialmente preencher o questionário, vendo-se presas em uma nova fronteira. Esses lugares vao convertendo-se pouco a pouco como territórios de redefinicao de identidades e subjetividades, servem como forma de despojar mais uma vez um pouco da humanidade das pessoas que, nas lógicas do fechamento das políticas migratórias, sao criminalizadas e tem seus direitos negados.

A Declaracao Universal dos Direitos Humanos parece simplesmente um monte de palabras sem fundamente, diante dos acampamentos improvisados, albergues lotados, corpos perdidos e abandonados nas selvas, mares e rios dos territorios percorridos.

Ainda assim, existe esperanca, já que a imigracao humana segue. Nao obstante, fica evidente o sentido excludente intrinseco a declaracao, que vai se renovando nos diferentes contextos, servindo a diferentes interesses enquanto as populacoes latino- americanas e caribenha sobrevivem e resistem dentro da resiliencia de auto afirmar-se como pessoas. Nao simplesmente “pessoas com direitos humanos”, mas pessoas, humanos, antes de imigrantes, antes de suas nacionalidades.

Referências bibliográficas:

BRASIL, Janine e GADELHA, Alcinete. Impedidos de deixar Brasil, imigrantes vivem angústia na fronteira do AC com Peru: “Deus nunca deixa um filho sozinho”. G1 Globo. Publicado em: 09 de marco de 2021. Disponível em:

https://g1.globo.com/ac/acre/noticia/2021/03/09/impedidos-de-deixar-brasil-imigrantes- vivem-angustia-na-fronteira-do-ac-com-peru-deus-nunca-deixa-um-filho-sozinho.ghtml.

(12)

DE GENOVA, Nicolas. Movimientos migratorios contemporáneos: entre el control fronterizo y la producción de su ilegalidad. Entrevista de Soledad Álvarez Velasco Revista Íconos, n. 58, pp. 153-164, 2017.

GALEANO, Eduardo. Ni derechos, ni humanos. Revista Chasqui, n. 79, 2002, p. 12-15, Quito, Equador. Disponível em: https://www.redalyc.org/pdf/160/16007903.pdf

HARVEY, David. O neoliberalismo. Histórias e implicações. Editora Loyola. São Paulo, 2005.

MBEMBE, Achile. A ideia de um mundo sem fronteiras. Disponível online em::

https://www.revistaserrote.com.br/2019/05/a-ideia-de-um-mundo-sem-fronteiras-por- achille-mbembe/.

LAZZERI, Thais. Exército cria canto dos maus-tratos em RR para indígenas venezuelanos alcoolizados. Folha UOL. Publicado em: 6 de agosto de 2021. Disponível online em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/08/exercito-cria-canto-dos- maus-tratos-em-rr-para-indigenas-venezuelanos-alcoolizados.shtml.

MARTINS, Carlos Eduardo. Globalização, dependência e neoliberalismo na América Latina. São Paulo, Boitempo, 2011.

SASSEN, SASKIA. Expulsões. Brutalidade e complexidade na economia global. São Paulo, Paz e Terra, 2016.

Leyes federales y del Distrito Federal, Ley de Migración, 25 de mayo de 2012, online:

http://www2.scjn.gob.mx/red/leyes/

Lei federal de Migração do Brasil, Lei de Migração, 24 de maio de 2017, online:

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm

Referências

Documentos relacionados

2 - OBJETIVOS O objetivo geral deste trabalho é avaliar o tratamento biológico anaeróbio de substrato sintético contendo feno!, sob condições mesofilicas, em um Reator

Este trabalho buscou, através de pesquisa de campo, estudar o efeito de diferentes alternativas de adubações de cobertura, quanto ao tipo de adubo e época de

Neste estudo foram estipulados os seguintes objec- tivos: (a) identifi car as dimensões do desenvolvimento vocacional (convicção vocacional, cooperação vocacio- nal,

Considerando que, no Brasil, o teste de FC é realizado com antígenos importados c.c.pro - Alemanha e USDA - USA e que recentemente foi desenvolvido um antígeno nacional

By interpreting equations of Table 1, it is possible to see that the EM radiation process involves a periodic chain reaction where originally a time variant conduction

O desenvolvimento desta pesquisa está alicerçado ao método Dialético Crítico fundamentado no Materialismo Histórico, que segundo Triviños (1987)permite que se aproxime de

Assim procedemos a fim de clarear certas reflexões e buscar possíveis respostas ou, quem sabe, novas pistas que poderão configurar outros objetos de estudo, a exemplo de: *

de lôbo-guará (Chrysocyon brachyurus), a partir do cérebro e da glândula submaxilar em face das ino- culações em camundongos, cobaios e coelho e, também, pela presença