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Matadores de gente: trajetória da pistolagem

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(1)

-M ATADO RES DE G ENTE:

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

,

TRAJETO RIA DA PISTO LAG EM

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A

pistolagempráticas homicidas maisé uma das arcaicas da história do

Brasil e especificamente do

Nordeste brasileiro. Ela vem

se transformando ao longo

dos tempos: podemos

encontrá-Ia nos jornais, nas

ruas das cidades, nos

ser-tões, na memória coletiva

e individual dos sujeitos da

nossa sociedade, nas

estru-turas, nas relações de

po-der e no campo da defesa

da honra. Não seria demais dizer que a

pistolagem faz parte da cultura, da organização

da sociedade brasileira e é um traço de um

com-plexo cultural. Ela tem um movimento próprio,

que na cultura da violência se expressa com

gran-de força simbólica, produzindo imaginários e

subjetividades que nos constituem.

Quem não ouviu ou já disse as seguintes

frases?

sentidos, marcando a histó-ria cotidiana dos sertões

nor-destinos, no que tange a

crime por pistolagem, honra, valentia, medo, produzindo

um corpo das capilaridades

de práticas de uma econo-mia que traduz as mortes de

pistolagem. Essas questões

me fizeram mergulhar em

tramas subjetivas, pois nasci em Quixadá, cidade

locali-zada no sertão central do

Estado do Ceará, palco de

uma realidade que me fez conviver com a

pistolagem. Senti uma grande vontade de

desven-dar histórias soterradas, diálogos endurecidos

so-bre um assunto que sempre passava ao meu lado,

fazendo vizinhança nas minhas lembranças e

vivências, aterrorizando-me e deslumbrando-me

ao mesmo tempo. Tratava-se das sagas e

trajetóri-as de homens que desempenhavam o papel do

que chamam no sertão de:

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" m a t a d o r e s d e g e n t e " .

Como diz Guimarães Rosa em sua imortal

obra Grande Sertão: Veredas,

Peregrina Fátim a Capelo Cavalcante*

R E S U M O

E s te a rtig o a p re s e n ta a tra je tó ria d e u m a p e s q u is a d e c a m p o s o b re a p rá tic a d a p is to la g e m n a R e g iã o J a g u a rib a n a , lo c a liz a d a n o s e rtã o d o E s ta d o d o C e a rá .

O p ro c e s s o h is tó ric o c e a re n s e éa p re s e n ta d o c o m o p a n o d e fu n d o , d e s ta c a n d o a to re s q u e s e m o v e m n u m c e n á -rio re p le to d e re p re s e n ta ç õ e s s ó c ia s , g ra m á tic a s

d is c u rs iv a s , p e rfa z e n d o a s s im , a c a rto g ra fia d o s tip o s d e p is to la g e m e p is to le iro s e n c o n tra d o s n a a tiv id a d e in v e s tig a tiv a d a e la b o ra ç ã o e tn o g rá fic a .

* D o u to ra e m S o c io lo g ia e p ro fe s s o ra d o D e p a rta m e n to

d e C iê n c ia s S o c ia is d a U F C .

F u l a n o d e t a l m o r r e u d e m o r t e m a t a d a ;

M a t a r d e e m b o s c a d a é c o v a r d i a ;

Op i s t o l a e s t á a c o i t a d o n a fa z e n d a d e fu l a n o d e t a l ;

S e e u p u d e s s e , e u m a t a v a ;

P e l a l e i n ã o t e m j e i t o d e s e c o n s e r t a r e s s a h i s

-t ó r i a , s ó m a n d a n d o m a t a r ;

T o d o m u n d o s a b e q u e m m a t o u e q u e m m a n

-d o u m a t a r , s ó q u e n i n g u é m m e x e ;

Ov e r e a d o r e s t á t r a i n d o og r u p o p o l í t i c o a q u e p e r t e n c e , q u a l q u e r d i a v a i p a r a a t e r r a d o s

p é s j u n t o s .

Percebi que essas frases funcionam como

estímulo hermenêutico, gerando um mundo de

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R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS V.

33

N.2

S e r t ã o é o n d e m a n d a q u e m é fo r t e , c o m a s a s

-t ú c i a s . D e u s m e s m o , q u a n d o v i e r , q u e v e

-n h a a r m a d o ! " . " O g r a n d e s e r t ã o é a fo r t e a r m a .

D e u s é u m g a t i l h o ? " ; " S e r t ã o é d e n t r o d a g e n

-t e " ; "Os e r t ã o n ã o t e m j a n e l a s , n e m p o r t a s . E a r e g r a é a s s i m : o u os e n h o r b e n d i t o g o v e r n a o

s e r t ã o o u s e r t ã o m a l d i t o n o s g o v e r n a " ; " L u g a r

s e r t ã o é o n d e c r i m i n o s o v i v e s e u c r i s t o - j e s u s ,

a r r e d a d o d o a r r o c h o d a a u t o r i d a d e .

Com o objetivo de compreender o

"som-brio mundo da pistolagem" não por uma

(2)

-

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

BCd-U;: -:

P E R /O O JC O S

tente policial, mas sim, sociológica,

antropoló-gica, histórica, desenvolvi uma pesquisa por um

período de quatro anos em várias localidades

dos sertões nordestinos, (Ceará, Maranhão, Piauí,

Paraíba e Rio Grande do Norte). Este trabalho

resultou na dissertação da minha Tese de

Dou-torado em Sociologia defendida no programa

de Doutoramento em Sociologia do

Departamen-to de Ciências Sociais e Filosofia da UFC.

Iniciei a minha pesquisa de campo, antes

mesmo de formalizá-Ia com projeto de Tese de

Doutorado. Através dos jornais, de conversas

in-formais, fui desenvolvendo trilhas que, em

pou-co tempo colocaram-me em um universo mais

complexo. As questões iniciais que nortearam o

meu interesse pelo assunto foram: o que é a

pistolagem?, porque existe pistolagem?, como se

faz um pistoleiro?, de onde ele vem?, a pistolagem

é ainda uma realidade?, é possível traçar a sua

cartografia? A pesquisa de campo seguiu os

prin-cípios metodológicos de uma observação

partici-pante. Durante esse período, pude gravar,

entrevistar, anotar, observar e conviver com

fa-tos, acumulando um precioso material que serviu

de base para este trabalho. Foram noventa e três

horas de gravações, três cadernos de diário de

campo, visitas a muitos lugares, além de muitas

horas de conversas, com os mais diferentes tipos

de pessoas. Muitas amizades foram feitas, muitas

confidências reveladas, muitas lágrimas rolaram

como desabafos dos medos, dos pavores que

emergem do tema dessas histórias, onde a morte

se faz anunciada. Lembrava-me constantemente

da grande escritora Clarisse Lispector que, em uma de suas entrevistas, disse: "morro de pena de meus

personagens, se eu pudesse, AH! Se eu pudesse,

como facilitaria a vida deles, como lhes daria mais

anos. Mas nada posso fazer, se não lhes dar

espe-ranças, e leves empurrões para a frente. Só há

um livro meu em que o personagem morre no

fim. A todos os outros eu deixo o caminho

aber-to: é só ter força ou querer passar. É com piedade

e resignação que os deixo sofrer: que

assombro-sa coragem a minha: são filhos meus e no

entan-to abaixo a cabeça as suas dores. Por isso adio

tanto em escrever um livro. Já sei como vou ser

torturada e castigada, e como muitas vezes me

sentirei impotente. Mas nada posso fazer: tudo o

que vive sofre!!!".

A região Jaguaribana

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

1 foi escolhida por

mim para centrar a problemática a ser estudada,

o seu passado histórico apontava uma grande

importância, nessa região processaram-se as

pri-meiras ocupações do sertão Cearense. A criação

de gado foi a responsável pela entrada de um

volume populacional significante oriundo

prin-cipalmente dos Estados do Rio Grande do

Nor-te, Pernambuco, Piauí e Bahia. Foi na ribeira

deste grande rio (Iaguaribe), que aconteceram

as guerras centenárias entre famílias de

potenta-dos. Atualmente esta região é costumeiramente

associada à prática da pistolagem.

O primeiro município visitado da região foi

o de São João do Jaguaribe. Hospedei-me na

resi-dência de uma velha moradora do lugar. No

perí-odo de minha permanência, tive sensações muito

arcaicas, que foram registradas no meu diário de

campo. Elas me faziam sentir como se o meu

cor-po estivesse se desmembrando em dois: um que

ficou no passado e um outro que estava comigo.

Nesta idéia de eterno retorno, pensava sempre:

"um dia tive que sair do mato mas o mato não saiu

de dentro de mim". O eterno retorno é o retorno

das intensidades, é a repetição de diferenciações,

de devires que vibram em estado de virtualidade

trazendo consigo, não o passado empírico enquan-to tal, mas aquilo que vibrou em intensidades,

sem-pre desiguais a si. É vida tremulando.

As pessoas assim como a superfície da terra

têm suas geografias, topografias e cartografias.

Esta imagem estiliza as sensações que carregava

dentro de mim ao "entrar em cena", a realidade

dos lugares, suas práticas e atores. Pouco a

pou-co fui percebendo uma vida que pulsava em

suas multiplicidades, vistas por um olhar que

ensaiava os primeiros passos de uma cartografia

da história local, das pessoas, dos afetos, dos

sentimentos, dos acontecimentos. Na

antropo-logia, a pesquisa depende entre outras coisas da

biografia do pesquisador, das opções teóricas,

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-

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

da disciplina em determinado momento, do

con-texto histórico mais amplo e, não menos, das

imprevisíveis situações que se configuram no dia

a dia local da pesquisa.

A observação etnográfica como recurso

metodológico indica que o pesquisador deverá

fazer uma imersão na realidade por ele

pesquisada, usando das estratégias de conviver,

sentir e observar as ações dos atores de seu

tra-balho. O etnólogo está próximo do romancista,

que tenta restituir a intuição de uma totalidade

cultural através de suas práticas. Geertz-' advoga

que a etnografia é uma descrição densa. Para ele

"fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido

de "construir uma leitura de") um manuscrito

es-tranho, desbotado, cheio de elipses,

incoerênci-as, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,

escrito, não como os sinais convencionais do som,

mas com exemplos transitórios de comportamento

modelado". Dar significado ao que parece

des-botado é uma das tarefas da descrição densa,

enquanto teoria interpretativa da cultura. O que

faz o etnógrafo? Na interpretação de Geertz-", ele

não deverá só observar e registrar, mas sim,

prin-cipalmente interpretar. "A análise cultural é (ou

deveria ser) uma adivinhação de significados, uma

avaliação de conjecturas, um traçar de

conclu-sões explanatórias, a partir das melhores

conjecturas, e não a descoberta do Continente

dos significados4" O papel da etnografia,

segun-do o autor, é fornecer um vocabulário no qual

possa ser expresso o que o ato simbólico tem a

dizer sobre ele mesmo - "isto é, sobre o papel da cultura na vida humana". O objetivo da etnografia,

com as características da descrição densa, "é tirar

grandes conclusões a partir de fatos pequenos,

mas densamente entrelaçados, apoiar amplas

afir-mativas sobre o papel da cultura na construção

da vida coletiva-' ". Baseada nestas contribuições

de Geertz, procurei, durante a pesquisa de

cam-po, mapear as manifestações microscópicas da

pistolagem, os fragmentos, as diversidades e

sin-gularidades, compondo assim o que chamo de

"cultura da pistolagem". Foquei três grandes

reta-lhos de uma mesma realidade, o mundo da

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ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS V.

33

N .2

pistolagem como um gigantesco

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

p a t c h w o k é uma

colcha de retalhos de constituição infinita, de

jun-tura múltipla, formada de pedaços que têm uma

relação com o todo. As instituições políticas,

eco-nômicas, religiosas, familiares, imaginárias,

peda-gógicas ete. são partes de um todo em conexão.

Sem entender estes acasalamentos de pequenos

e grandes mundos em ligações múltiplas, seria

difícil entender o mundo da pistolagem. Para isso

reconstituí a história da ocupação territorial, o que

chamo de V i o l ê n c i a fu n d a n t e , referindo-me ao

genocídio e ao etnocídio indígena, para "limpar"

estes sertões, dando lugar às fazendas de criatório

de gado. Constituem-se nesse momento

verda-deiros e x é r c i t o s p r i v a d o s para execução sumária

do indígena da região Jaguaribana, em nome da

decretação da "Guerra Justa", prática assassina

le-gitimada pela Coroa Portuguesa em defesa dos

sesmeiros que iriam produzir riqueza aos cofres

imperiais. Localiza-se aí o momento embrionário

do que hoje chamamos de pistolagem. Cada

po-tentado, cada sesmeiro e depois os grandes

fa-zendeiros coronéis mantiveram como dispositivo

indispensável os seus "cabras, capangas,

pistoleiros" para defesa de suas propriedades,

honra e interesse político. Uma "máquina de

guer-ra" constitui-se em defesa de uma elite agrária,

que tinha como proposta o uso da força, seja lá

qual for, que no nosso caso é a força do bacamarte,

lembrando Joryvar Macêdo" no seu clássico livro

Império do Bacamarte.

Rasteando as vozes da comunidade pude

constituir uma amostra heterogênea de atores

sociais, tais como: juizes, promotores, padres,

agricultores, jurados de morte, professores,

co-merciantes, prefeitos, donas de casa,

fazendei-ros, viúvas de pistoleifazendei-ros, vítimas de pistolagem

etc. Cada um desses fizeram parte de uma dobra

do tecido social, tendo como alvo a relação

co-munidade e pistolagem. As mulheres tiveram uma

importância fundamental no processo da

pesqui-sa, o olhar feminino sobre a família, a região, a

pistolagem possibilitou-me enxergar outros

ân-gulos, principalmente no que se refere à

intimi-dade das coisas, às vivências cotidianas. Certa vez,

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-

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

em uma pequena cidade da Região ]aguaribana,

conversei com um casal sobre as experiências de

suas vidas. O homem, ao se referir a sua mulher,

falou: "eu sou o pescoço e ela é a cabeça". Essa

declaração reflete a importância desta mulher na

estrutura da família, ela (a declaração) fala de

como as mulheres exercem um comando que, na

maioria das vezes, é silencioso e escondido.

Pas-sar pela família é indispensável para

compreen-der a estrutura e as subjetividades dos sertões;

parece ser um grande Egito, onde grandes

"di-nastias" familiares orquestram os macros e micros

poderes. Como por exemplo: com quem as

pes-soas devem se casar para manter a unidade

fami-liar, em quem devem votar para manter a unidade

política, tudo isso construindo uma grande rede

de trocas de uma economia simbólica 7, do

eco-nômico e do não econõmico.

O

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" O u t r o " e o " M e s m o " ,indicam a maneira

como os atores da comunidade mesmo não

sen-do pistoleiros incorporam uma visão de mundo

que, ao falar do pistoleiro parece falarem de si

próprio, dizendo muitas vezes assim: "se algo

acontecer comigo a família se vinga"; "só tenho

uma palavra, comeu não leu o pau comeu";

"ando sempre armado para não perder tempo".

Essas questões nos mostram como são tecidas

artesanalmente as falas dos atores da

comunida-de no que tange à pistolagem, ao pistoleiro e a

elas mesmas. Os atores dessa comunidade

pro-duzem uma cartografia dos sentimentos,

mos-trando como eles retratam as suas "noções de

mundo" e, ao falarem do outro (pistoleiro e

pistolagern), utilizando-se de suas experiências

históricas e de suas memórias, estão falando de

si mesmos. A prática da pistolagem é percebida

nessas falas como uma rede de significados que

produz e reproduz não só a ela mesma, mas

também os próprios valores da comunidade. As

minhas indagações no campo de pesquisa não

tinham como objetivo obter respostas precisas,

Frias, mas uma qualidade discursiva, através da

reconstrução dos fatos, que me possibilitasse

observar outros espaços dos estilos e modos de

vida dos atores desta pesquisa. Na convivência

com a V e l h a F a m í l i a , c o m osT e r r i t ó r i o s d a H o n r a

e j u r a d o s d e M o r t e , foi possível perceber como

os atores comiam, habitavam, trabalhavam,

fala-vam de suas angústias e sonhos, de seus valores

etc. Penso que pesquisar dessa forma é objetivar

o objeto e objetivar-se, impedindo que se

cons-trua um fosso entre o objeto pesquisado e o

pesquisador. Procurei não me esquecer de

ins-crever, nas minhas análises, o lado lúdico do

cotidiano que mostra como realmente as

pesso-as vivem, e como a pistolagem faz parte desta

cotidianidade. As descrições recorrentes sobre o

que é o pistoleiro, encontradas na pesquisa de

campo, foram trabalhadas com a intenção de

construir um t i p o i d e a i s , seguindo uma

orienta-ção weberiana desse conceito. Para fazê-lo, foi

necessário selecionar as características

significa-tivas nas realidades e combiná-Ias num quadro

mental homogêneo. Pistoleiro: homem temido;

violento; covarde; frio e calculista; corajoso; mata

de tocaia; devoto; fervoroso; apaixonado;

ma-cho; mulherengo; fiel; tem código de honra, mata

por dinheiro e por vingança; rouba; inconfiável.

Essa seleção tem um significado epistemológico

mais amplo, pois foi encontrado em todas as

fases da pesquisa, principalmente quando,

fren-te a uma massa de dados, tive que colocar de

lado alguns deles como sendo de importância

secundária, ou insignificantes, e guardando os

que pareciam importantes ou essenciais.

Segun-do Weber, o tipo ideal é precisamente uma

des-sas descrições mentais que permitem, nas

ciências, a mais rigorosa abordagem possível da

realidade, mas é sempre limitada a um, ou a uns

poucos aspectos dessa realidade. Sua definição

de tipo ideal não deixa dúvida sobre a questão,

na medida em que ele a vê como imagem

men-tal pura, ou uma utopia. A construção do tipo

ideal é um facilitador metodológico, através dele

é possível aproximar ou distanciar as questões

de uma determinada realidade social.

Destaco aqui os principais discursos que

dão o roteiro da trajetória a ser seguida pelo

pistoleiro e pela pistolagem, como facilitadores

para a construção de outros tipos ideais:

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

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-

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

A m p a r a d o s p o r p o d e r o s o s m a n d a n t e s d e c r i

-m e s , s u r g e -m

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o sp i s t o l e i r o s p r o fi s s i o n a i s . E r a m a n t e s c o n h e c i d o s p o r " c a b r a s " , " c a p a n

-g a s " o u -g u a r d a - c o s t a s .

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

Op i s t o l e i r o a t u a n a s c i d a d e s e n a s fa z e n d a s .

É u m i n d i v í d u o q u e m a t a p a r a g a n h a r d i n h e i r o . N ã o éh o m e m d e l u t a r , p e i t o a p e i t o , n e m p a r a t i r o t e i o s .

Ép e r i g o s o , t r a i ç o e i r o , a s t u t o , c o v a r d e . A t u a d e t o c a i a e c o n s e g u e e v a d i r s e c o m fa c i

-l i d a d e .

P r e m e d i t a oc r i m e , e s c o l h e n d o ol o c a l . C o m b i n a c o m om a n d a n t e , e s c o l h e m a m b o s a h o r a e o m e l h o r l o c a l : o r e t o r n o d e u m a fe s t a ,

o r e g r e s s o d o t r a b a l h o , a c a s a . U s a a u t o m ó v e l , j i p e o u m o t o .

I n g r e s s a n o p r o fi s s i o n a l i s m o d o c r i m e a i n d a

j o v e m .

À s v e z e s , o i n g r e s s o s e d á a p ó s oc u m p r i m e n t o d e p e n a n a s c a d e i a s .

Op i s t o l e i r o o c u l t a - s e n a s fa z e n d a s , à e s p e r a d e u m s e r v i ç o .

M a t a o i n i m i g o d o s e u p r o t e t o r .

É j o g u e t e n a s m ã o s d o s m a n d a n t e s o u i n t e r -m e d i á r i o s d o c r i m e .

É c a p a z d e a r r i s c a r a v i d a p e l o p a t r ã o . A i m p u n i d a d e éa r e s p o n s á v e l p e l a p e r m a n ê n -c i a d a p i s t o l a g e m .

É d e t e r m i n a d o n o s e r v i ç o , q u a n d o s a i p a r a m a t a r , m a t a m e s m o .

o

mandante chamava o pistoleiro para

ma-tar; este nem sequer conhecia a vítima.

Surgia o diálogo:

- V o c ê v a i a p a g a r F u l a n o h o j e , s e m fa l t a . D o u

-l h e t a n t o . F a ç a os e r v i ç o b e m fe i t o .

Op i s t o l e i r o r e s p o n d i a :

- Sóe m os e n h o r d i z e r q u e e l e p r e c i s a s e r a p a -n h a d o , j á e s t o u c o m r a i v a d e l e .

A fa l t a d e m e d i d a s e n é r g i c a s t o m a d a s p e l o s

d i r i g e n t e s e p e l a j u s t i ç a d o n o s s o p a í s , a a ç ã o

d o s m a n d a n t e s d o s c r i m e s d e p i s t o l a g e m s e p e r

-p e t u a , c a d a v e z m a i s o r g a n i z a d a p o r i n t e r e s

-s e -s p o l í t i c o -s , e c o n ô m i c o -s e p e l a h o n r a .

C e r c a d e t r ê s , q u a t r o p e s s o a s c a í r a m m o r t a s

e m t i r o t e i o s p o r o c a s i ã o d a s e l e i ç õ e s e m e m

-b o s c a d a s e m p l e n a v i a p ú b l i c a . Oc h e fe p o l í t i c o

éa p o n t a d o . C o m e n t a - s e o a s s u n t o . E n c e r r a - s e

o c a s o .

88

R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS v .3 3 N.

2

Op i s t o l e i r o d e h o n r a , o m a i s t r a d i c i o n a l , e s t á a c a b a n d o .

A p i s t o l a g e m n ã o d e s a p a r e c e u , m a s m u d o u

b a s t a n t e . Op i s t o l e i r o t r a d i c i o n a l j á e s t á a c a -b a n d o , h o j e e x i s t e m v á r i o s t i p o s d e m a t a d o r e s

d e g e n t e .

Observa-se que, na lógica interna das

no-meações, encontram-se adjetivações conflituosas,

como por exemplo: covarde e corajoso; fiel e

trai-çoeiro; frio e apaixonado; religioso e assassino;

etc. Esses discursos falam dos caminhos e

cruza-mentos os quais o pistoleiro e a pistolagem

per-correm e onde se encontram. O pistoleiro faz

parte da categoria dos "matadores de gente", como

também o cabra, o capanga. Aprodução e a

trans-formação dos elementos dessa categoria é aqui

percebida pelo movimento da organização social

da qual eles fazem parte. E a percepção desse

movimento possibilita acompanhar a

metamor-fose constante à qual o pistoleiro, como matador

de gente, está submetido.

É afl e c h a d o t e m p o , o "jogo das

ternpora-lidades" que indicam o movimento e não a

con-tinuidade fria, como diz Balandier? . Na percepção

do autor, deve-se apreender a sociedade em seu

movimento, sua abundância e sua turbulência.

Balandier inspira a pergunta: É o pistoleiro uma

cômoda perturbação? É o pistoleiro uma amálgama

das rupturas e permanências de uma sociedade?

O tipo ideal e as falas definidoras do pistoleiro

parecem inspiradas nessas indagações. Isso faz

lembrar que "tais figuras são instrumentos de

or-dem ao mesmo tempo que agentes potenciais da

desordem". Percebi várias vezes que as

narrati-vas continham a indicação de um sentido que

qualificava o pistoleiro como "um mal

necessá-rio", ou "uma cômoda perturbação".

No decorrer da pesquisa de campo,

per-cebi a existência e a permanência de três tipos

de pistoleiros. O pistoleiro tradicional, o

pistoleiro avulso e o pistoleiro bandido. Eles são

a derivação do tipo ideal de pistoleiro.

Perma-nece em todos eles um traço comum, matam

por vingança e por dinheiro. Explicarei agora as

características de cada um deles.

(6)

-

vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

o

PISTOLEIRO TRADICIONAL

Ser do tipo pistoleiro tradicional significa

estar ligado a "um dono", a "um patrão", não

ten-do autonomia de praticar crimes de pistolagem

sem a ordem do patrão. Esse tipo permanece

li-gado ao patrão por laços de fidelidade, existindo

entre eles uma troca de favores, e um rígido

có-digo de honra, justificando assim quaisquer

"ser-viços arbitrários". Esse pistoleiro jamais se ausenta

dos limites geográficos determinados pelo patrão,

permanecendo cativo a esse espaço, que, na

maioria das vezes, é a fazenda.

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

É interessante

observar que esse tipo, segundo os meus

infor-mantes, encontra-se em extinção, devido à

mo-dernização das estruturas dos poderes locais.

O PISTOLEIRO AVULSO

Esse tipo se caracteriza por sua autonomia,

funcionando como um prestador de serviço, não

estando ligado a nenhuma hierarquia de mando.

É dono de sua força de trabalho e é seu próprio

patrão. Encara a prática da pistolagem como uma

profissão. Seu código de honra está circunscrito ao que ele chama de "fazer o serviço bem feito",

não existindo laços de fidelidade com um patrão

ou dono .. Seu corpo é um corpo móvel e

nôma-de, deslocando-se constantemente, não se

fixan-do assim num só lugar. A sua trajetória espacial é

determinada pela procura de seus serviços.

Sur-ge na vida desse pistoleiro um outro aSur-gente - o

intermediário, será através dele que o pistoleiro

armará a sua teia de relações e trabalho.

O PISTOLEIRO BANDIDO

Esse tipo de pistoleiro possui atividades múl-tiplas: mata, rouba, assalta, seqüestra, estupra. Ele

é um agente de práticas marginais múltiplas, não se define só como matador. O roubo, prática

mar-ginalizada pelo pistoleiro tradicional, é integrada

ao comportamento do pistoleiro bandido. A

no-ção de honra que o pistoleiro adota e o grupo

em que ele atua são efêmeros, fazendo-se e

des-fazendo-se na velocidade do dia, no jogo das

temporalidades e dos movimentos transitórios. Ele

é também chamado de

ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA

" e l e m e n t o " , " m a r g i n a l ' :

" s e m - v e r g o n h a " , " c a b r a r u i m " . " p e r v e r t i d o " .

" c r â p u l a ' , Faz parte das cenas das sociedades ru-rais e urbanas. Esse tipo de pistoleiro envolve-se

constantemente com a rendosa "profissão" de

as-saltante de bancos e de cargas de caminhão.

O pistoleiro tradicional, o avulso e o bandido operam em ordens que parecem distintas, apesar

disso, existe uma profunda ligadura de permanên-cias, mesmo observando as sucessivas

metamorfo-ses. Não serão eles uma incômoda permanência ou, na maioria das vezes, agentes da manutenção

de urna ordem social que insiste em permanecer?

NO TAS

1 É a região cearense cortada pelo Rio Jaguaribe, que tem um curso de 506 km, cuja nascente loca-liza-se na Serra da Joaninha e sua foz localiza-se a 15 km da cidade do Aracati, litoral sul do Estado do Ceará. Esta região divide-se em três

sub-regi-ões: Alto, Médio e Baixo Jaguaribe.

2 GEERTZ, Clifford: Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1989.

3 GEERTZ, Clifford: 1989.

4 GEERTZ, Clifford: 1989.

5 GEERTZ, Clifford: 1989.

6 MACEDO, Joaryvar: Império do Bacamarta, (uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri Cearense), Fortaleza, Casa José de Alencar, 1990.

7 BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas

Sim-bólicas, São Paulo, Perspectiva, 1982.

8 WEBER, Max: M etodologia das Ciências Sócias, parte 1, São Paulo, Ed. Cortez, 1992.

9 BALANDIER, Georges: A Desordem: elogio do

movimento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.

REFERÊNCIAS BIBLIO G RÁFICAS

BALANDIER, Georges. A Desordem: elogio do mo-vimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Sim-bólicas, São Paulo: Perspectiva, 1982.

GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.

LISPECTOR, Clarice. EntrevistaJornal do Brasil, 13 de Maio, 1972.

MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte, (uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri Cearense), Fortaleza: Casa José de Alencar, 1990.

Referências

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