-M ATADO RES DE G ENTE:
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,
TRAJETO RIA DA PISTO LAG EM
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A
pistolagempráticas homicidas maisé uma das arcaicas da história doBrasil e especificamente do
Nordeste brasileiro. Ela vem
se transformando ao longo
dos tempos: podemos
encontrá-Ia nos jornais, nas
ruas das cidades, nos
ser-tões, na memória coletiva
e individual dos sujeitos da
nossa sociedade, nas
estru-turas, nas relações de
po-der e no campo da defesa
da honra. Não seria demais dizer que a
pistolagem faz parte da cultura, da organização
da sociedade brasileira e é um traço de um
com-plexo cultural. Ela tem um movimento próprio,
que na cultura da violência se expressa com
gran-de força simbólica, produzindo imaginários e
subjetividades que nos constituem.
Quem não ouviu ou já disse as seguintes
frases?
sentidos, marcando a histó-ria cotidiana dos sertões
nor-destinos, no que tange a
crime por pistolagem, honra, valentia, medo, produzindo
um corpo das capilaridades
de práticas de uma econo-mia que traduz as mortes de
pistolagem. Essas questões
me fizeram mergulhar em
tramas subjetivas, pois nasci em Quixadá, cidade
locali-zada no sertão central do
Estado do Ceará, palco de
uma realidade que me fez conviver com a
pistolagem. Senti uma grande vontade de
desven-dar histórias soterradas, diálogos endurecidos
so-bre um assunto que sempre passava ao meu lado,
fazendo vizinhança nas minhas lembranças e
vivências, aterrorizando-me e deslumbrando-me
ao mesmo tempo. Tratava-se das sagas e
trajetóri-as de homens que desempenhavam o papel do
que chamam no sertão de:
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" m a t a d o r e s d e g e n t e " .Como diz Guimarães Rosa em sua imortal
obra Grande Sertão: Veredas,
Peregrina Fátim a Capelo Cavalcante*
R E S U M O
E s te a rtig o a p re s e n ta a tra je tó ria d e u m a p e s q u is a d e c a m p o s o b re a p rá tic a d a p is to la g e m n a R e g iã o J a g u a rib a n a , lo c a liz a d a n o s e rtã o d o E s ta d o d o C e a rá .
O p ro c e s s o h is tó ric o c e a re n s e éa p re s e n ta d o c o m o p a n o d e fu n d o , d e s ta c a n d o a to re s q u e s e m o v e m n u m c e n á -rio re p le to d e re p re s e n ta ç õ e s s ó c ia s , g ra m á tic a s
d is c u rs iv a s , p e rfa z e n d o a s s im , a c a rto g ra fia d o s tip o s d e p is to la g e m e p is to le iro s e n c o n tra d o s n a a tiv id a d e in v e s tig a tiv a d a e la b o ra ç ã o e tn o g rá fic a .
* D o u to ra e m S o c io lo g ia e p ro fe s s o ra d o D e p a rta m e n to
d e C iê n c ia s S o c ia is d a U F C .
F u l a n o d e t a l m o r r e u d e m o r t e m a t a d a ;
M a t a r d e e m b o s c a d a é c o v a r d i a ;
Op i s t o l a e s t á a c o i t a d o n a fa z e n d a d e fu l a n o d e t a l ;
S e e u p u d e s s e , e u m a t a v a ;
P e l a l e i n ã o t e m j e i t o d e s e c o n s e r t a r e s s a h i s
-t ó r i a , s ó m a n d a n d o m a t a r ;
T o d o m u n d o s a b e q u e m m a t o u e q u e m m a n
-d o u m a t a r , s ó q u e n i n g u é m m e x e ;
Ov e r e a d o r e s t á t r a i n d o og r u p o p o l í t i c o a q u e p e r t e n c e , q u a l q u e r d i a v a i p a r a a t e r r a d o s
p é s j u n t o s .
Percebi que essas frases funcionam como
estímulo hermenêutico, gerando um mundo de
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R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS V.33
N.2S e r t ã o é o n d e m a n d a q u e m é fo r t e , c o m a s a s
-t ú c i a s . D e u s m e s m o , q u a n d o v i e r , q u e v e
-n h a a r m a d o ! " . " O g r a n d e s e r t ã o é a fo r t e a r m a .
D e u s é u m g a t i l h o ? " ; " S e r t ã o é d e n t r o d a g e n
-t e " ; "Os e r t ã o n ã o t e m j a n e l a s , n e m p o r t a s . E a r e g r a é a s s i m : o u os e n h o r b e n d i t o g o v e r n a o
s e r t ã o o u s e r t ã o m a l d i t o n o s g o v e r n a " ; " L u g a r
s e r t ã o é o n d e c r i m i n o s o v i v e s e u c r i s t o - j e s u s ,
a r r e d a d o d o a r r o c h o d a a u t o r i d a d e .
Com o objetivo de compreender o
"som-brio mundo da pistolagem" não por uma
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vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
BCd-U;: -:
P E R /O O JC O S
tente policial, mas sim, sociológica,
antropoló-gica, histórica, desenvolvi uma pesquisa por um
período de quatro anos em várias localidades
dos sertões nordestinos, (Ceará, Maranhão, Piauí,
Paraíba e Rio Grande do Norte). Este trabalho
resultou na dissertação da minha Tese de
Dou-torado em Sociologia defendida no programa
de Doutoramento em Sociologia do
Departamen-to de Ciências Sociais e Filosofia da UFC.
Iniciei a minha pesquisa de campo, antes
mesmo de formalizá-Ia com projeto de Tese de
Doutorado. Através dos jornais, de conversas
in-formais, fui desenvolvendo trilhas que, em
pou-co tempo colocaram-me em um universo mais
complexo. As questões iniciais que nortearam o
meu interesse pelo assunto foram: o que é a
pistolagem?, porque existe pistolagem?, como se
faz um pistoleiro?, de onde ele vem?, a pistolagem
é ainda uma realidade?, é possível traçar a sua
cartografia? A pesquisa de campo seguiu os
prin-cípios metodológicos de uma observação
partici-pante. Durante esse período, pude gravar,
entrevistar, anotar, observar e conviver com
fa-tos, acumulando um precioso material que serviu
de base para este trabalho. Foram noventa e três
horas de gravações, três cadernos de diário de
campo, visitas a muitos lugares, além de muitas
horas de conversas, com os mais diferentes tipos
de pessoas. Muitas amizades foram feitas, muitas
confidências reveladas, muitas lágrimas rolaram
como desabafos dos medos, dos pavores que
emergem do tema dessas histórias, onde a morte
se faz anunciada. Lembrava-me constantemente
da grande escritora Clarisse Lispector que, em uma de suas entrevistas, disse: "morro de pena de meus
personagens, se eu pudesse, AH! Se eu pudesse,
como facilitaria a vida deles, como lhes daria mais
anos. Mas nada posso fazer, se não lhes dar
espe-ranças, e leves empurrões para a frente. Só há
um livro meu em que o personagem morre no
fim. A todos os outros eu deixo o caminho
aber-to: é só ter força ou querer passar. É com piedade
e resignação que os deixo sofrer: que
assombro-sa coragem a minha: são filhos meus e no
entan-to abaixo a cabeça as suas dores. Por isso adio
tanto em escrever um livro. Já sei como vou ser
torturada e castigada, e como muitas vezes me
sentirei impotente. Mas nada posso fazer: tudo o
que vive sofre!!!".
A região Jaguaribana
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1 foi escolhida pormim para centrar a problemática a ser estudada,
o seu passado histórico apontava uma grande
importância, nessa região processaram-se as
pri-meiras ocupações do sertão Cearense. A criação
de gado foi a responsável pela entrada de um
volume populacional significante oriundo
prin-cipalmente dos Estados do Rio Grande do
Nor-te, Pernambuco, Piauí e Bahia. Foi na ribeira
deste grande rio (Iaguaribe), que aconteceram
as guerras centenárias entre famílias de
potenta-dos. Atualmente esta região é costumeiramente
associada à prática da pistolagem.
O primeiro município visitado da região foi
o de São João do Jaguaribe. Hospedei-me na
resi-dência de uma velha moradora do lugar. No
perí-odo de minha permanência, tive sensações muito
arcaicas, que foram registradas no meu diário de
campo. Elas me faziam sentir como se o meu
cor-po estivesse se desmembrando em dois: um que
ficou no passado e um outro que estava comigo.
Nesta idéia de eterno retorno, pensava sempre:
"um dia tive que sair do mato mas o mato não saiu
de dentro de mim". O eterno retorno é o retorno
das intensidades, é a repetição de diferenciações,
de devires que vibram em estado de virtualidade
trazendo consigo, não o passado empírico enquan-to tal, mas aquilo que vibrou em intensidades,
sem-pre desiguais a si. É vida tremulando.
As pessoas assim como a superfície da terra
têm suas geografias, topografias e cartografias.
Esta imagem estiliza as sensações que carregava
dentro de mim ao "entrar em cena", a realidade
dos lugares, suas práticas e atores. Pouco a
pou-co fui percebendo uma vida que pulsava em
suas multiplicidades, vistas por um olhar que
ensaiava os primeiros passos de uma cartografia
da história local, das pessoas, dos afetos, dos
sentimentos, dos acontecimentos. Na
antropo-logia, a pesquisa depende entre outras coisas da
biografia do pesquisador, das opções teóricas,
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da disciplina em determinado momento, do
con-texto histórico mais amplo e, não menos, das
imprevisíveis situações que se configuram no dia
a dia local da pesquisa.
A observação etnográfica como recurso
metodológico indica que o pesquisador deverá
fazer uma imersão na realidade por ele
pesquisada, usando das estratégias de conviver,
sentir e observar as ações dos atores de seu
tra-balho. O etnólogo está próximo do romancista,
que tenta restituir a intuição de uma totalidade
cultural através de suas práticas. Geertz-' advoga
que a etnografia é uma descrição densa. Para ele
"fazer a etnografia é como tentar ler (no sentido
de "construir uma leitura de") um manuscrito
es-tranho, desbotado, cheio de elipses,
incoerênci-as, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,
escrito, não como os sinais convencionais do som,
mas com exemplos transitórios de comportamento
modelado". Dar significado ao que parece
des-botado é uma das tarefas da descrição densa,
enquanto teoria interpretativa da cultura. O que
faz o etnógrafo? Na interpretação de Geertz-", ele
não deverá só observar e registrar, mas sim,
prin-cipalmente interpretar. "A análise cultural é (ou
deveria ser) uma adivinhação de significados, uma
avaliação de conjecturas, um traçar de
conclu-sões explanatórias, a partir das melhores
conjecturas, e não a descoberta do Continente
dos significados4" O papel da etnografia,
segun-do o autor, é fornecer um vocabulário no qual
possa ser expresso o que o ato simbólico tem a
dizer sobre ele mesmo - "isto é, sobre o papel da cultura na vida humana". O objetivo da etnografia,
com as características da descrição densa, "é tirar
grandes conclusões a partir de fatos pequenos,
mas densamente entrelaçados, apoiar amplas
afir-mativas sobre o papel da cultura na construção
da vida coletiva-' ". Baseada nestas contribuições
de Geertz, procurei, durante a pesquisa de
cam-po, mapear as manifestações microscópicas da
pistolagem, os fragmentos, as diversidades e
sin-gularidades, compondo assim o que chamo de
"cultura da pistolagem". Foquei três grandes
reta-lhos de uma mesma realidade, o mundo da
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R E V IS T A D E C IÊ N C IA S S O C IA IS V.33
N .2pistolagem como um gigantesco
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p a t c h w o k é umacolcha de retalhos de constituição infinita, de
jun-tura múltipla, formada de pedaços que têm uma
relação com o todo. As instituições políticas,
eco-nômicas, religiosas, familiares, imaginárias,
peda-gógicas ete. são partes de um todo em conexão.
Sem entender estes acasalamentos de pequenos
e grandes mundos em ligações múltiplas, seria
difícil entender o mundo da pistolagem. Para isso
reconstituí a história da ocupação territorial, o que
chamo de V i o l ê n c i a fu n d a n t e , referindo-me ao
genocídio e ao etnocídio indígena, para "limpar"
estes sertões, dando lugar às fazendas de criatório
de gado. Constituem-se nesse momento
verda-deiros e x é r c i t o s p r i v a d o s para execução sumária
do indígena da região Jaguaribana, em nome da
decretação da "Guerra Justa", prática assassina
le-gitimada pela Coroa Portuguesa em defesa dos
sesmeiros que iriam produzir riqueza aos cofres
imperiais. Localiza-se aí o momento embrionário
do que hoje chamamos de pistolagem. Cada
po-tentado, cada sesmeiro e depois os grandes
fa-zendeiros coronéis mantiveram como dispositivo
indispensável os seus "cabras, capangas,
pistoleiros" para defesa de suas propriedades,
honra e interesse político. Uma "máquina de
guer-ra" constitui-se em defesa de uma elite agrária,
que tinha como proposta o uso da força, seja lá
qual for, que no nosso caso é a força do bacamarte,
lembrando Joryvar Macêdo" no seu clássico livro
Império do Bacamarte.
Rasteando as vozes da comunidade pude
constituir uma amostra heterogênea de atores
sociais, tais como: juizes, promotores, padres,
agricultores, jurados de morte, professores,
co-merciantes, prefeitos, donas de casa,
fazendei-ros, viúvas de pistoleifazendei-ros, vítimas de pistolagem
etc. Cada um desses fizeram parte de uma dobra
do tecido social, tendo como alvo a relação
co-munidade e pistolagem. As mulheres tiveram uma
importância fundamental no processo da
pesqui-sa, o olhar feminino sobre a família, a região, a
pistolagem possibilitou-me enxergar outros
ân-gulos, principalmente no que se refere à
intimi-dade das coisas, às vivências cotidianas. Certa vez,
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vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
em uma pequena cidade da Região ]aguaribana,
conversei com um casal sobre as experiências de
suas vidas. O homem, ao se referir a sua mulher,
falou: "eu sou o pescoço e ela é a cabeça". Essa
declaração reflete a importância desta mulher na
estrutura da família, ela (a declaração) fala de
como as mulheres exercem um comando que, na
maioria das vezes, é silencioso e escondido.
Pas-sar pela família é indispensável para
compreen-der a estrutura e as subjetividades dos sertões;
parece ser um grande Egito, onde grandes
"di-nastias" familiares orquestram os macros e micros
poderes. Como por exemplo: com quem as
pes-soas devem se casar para manter a unidade
fami-liar, em quem devem votar para manter a unidade
política, tudo isso construindo uma grande rede
de trocas de uma economia simbólica 7, do
eco-nômico e do não econõmico.
O
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" O u t r o " e o " M e s m o " ,indicam a maneiracomo os atores da comunidade mesmo não
sen-do pistoleiros incorporam uma visão de mundo
que, ao falar do pistoleiro parece falarem de si
próprio, dizendo muitas vezes assim: "se algo
acontecer comigo a família se vinga"; "só tenho
uma palavra, comeu não leu o pau comeu";
"ando sempre armado para não perder tempo".
Essas questões nos mostram como são tecidas
artesanalmente as falas dos atores da
comunida-de no que tange à pistolagem, ao pistoleiro e a
elas mesmas. Os atores dessa comunidade
pro-duzem uma cartografia dos sentimentos,
mos-trando como eles retratam as suas "noções de
mundo" e, ao falarem do outro (pistoleiro e
pistolagern), utilizando-se de suas experiências
históricas e de suas memórias, estão falando de
si mesmos. A prática da pistolagem é percebida
nessas falas como uma rede de significados que
produz e reproduz não só a ela mesma, mas
também os próprios valores da comunidade. As
minhas indagações no campo de pesquisa não
tinham como objetivo obter respostas precisas,
Frias, mas uma qualidade discursiva, através da
reconstrução dos fatos, que me possibilitasse
observar outros espaços dos estilos e modos de
vida dos atores desta pesquisa. Na convivência
com a V e l h a F a m í l i a , c o m osT e r r i t ó r i o s d a H o n r a
e j u r a d o s d e M o r t e , foi possível perceber como
os atores comiam, habitavam, trabalhavam,
fala-vam de suas angústias e sonhos, de seus valores
etc. Penso que pesquisar dessa forma é objetivar
o objeto e objetivar-se, impedindo que se
cons-trua um fosso entre o objeto pesquisado e o
pesquisador. Procurei não me esquecer de
ins-crever, nas minhas análises, o lado lúdico do
cotidiano que mostra como realmente as
pesso-as vivem, e como a pistolagem faz parte desta
cotidianidade. As descrições recorrentes sobre o
que é o pistoleiro, encontradas na pesquisa de
campo, foram trabalhadas com a intenção de
construir um t i p o i d e a i s , seguindo uma
orienta-ção weberiana desse conceito. Para fazê-lo, foi
necessário selecionar as características
significa-tivas nas realidades e combiná-Ias num quadro
mental homogêneo. Pistoleiro: homem temido;
violento; covarde; frio e calculista; corajoso; mata
de tocaia; devoto; fervoroso; apaixonado;
ma-cho; mulherengo; fiel; tem código de honra, mata
por dinheiro e por vingança; rouba; inconfiável.
Essa seleção tem um significado epistemológico
mais amplo, pois foi encontrado em todas as
fases da pesquisa, principalmente quando,
fren-te a uma massa de dados, tive que colocar de
lado alguns deles como sendo de importância
secundária, ou insignificantes, e guardando os
que pareciam importantes ou essenciais.
Segun-do Weber, o tipo ideal é precisamente uma
des-sas descrições mentais que permitem, nas
ciências, a mais rigorosa abordagem possível da
realidade, mas é sempre limitada a um, ou a uns
poucos aspectos dessa realidade. Sua definição
de tipo ideal não deixa dúvida sobre a questão,
na medida em que ele a vê como imagem
men-tal pura, ou uma utopia. A construção do tipo
ideal é um facilitador metodológico, através dele
é possível aproximar ou distanciar as questões
de uma determinada realidade social.
Destaco aqui os principais discursos que
dão o roteiro da trajetória a ser seguida pelo
pistoleiro e pela pistolagem, como facilitadores
para a construção de outros tipos ideais:
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ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
A m p a r a d o s p o r p o d e r o s o s m a n d a n t e s d e c r i
-m e s , s u r g e -m
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
o sp i s t o l e i r o s p r o fi s s i o n a i s . E r a m a n t e s c o n h e c i d o s p o r " c a b r a s " , " c a p a n-g a s " o u -g u a r d a - c o s t a s .
vutsrqponmlkjihgfedcbaZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
Op i s t o l e i r o a t u a n a s c i d a d e s e n a s fa z e n d a s .
É u m i n d i v í d u o q u e m a t a p a r a g a n h a r d i n h e i r o . N ã o éh o m e m d e l u t a r , p e i t o a p e i t o , n e m p a r a t i r o t e i o s .
Ép e r i g o s o , t r a i ç o e i r o , a s t u t o , c o v a r d e . A t u a d e t o c a i a e c o n s e g u e e v a d i r s e c o m fa c i
-l i d a d e .
P r e m e d i t a oc r i m e , e s c o l h e n d o ol o c a l . C o m b i n a c o m om a n d a n t e , e s c o l h e m a m b o s a h o r a e o m e l h o r l o c a l : o r e t o r n o d e u m a fe s t a ,
o r e g r e s s o d o t r a b a l h o , a c a s a . U s a a u t o m ó v e l , j i p e o u m o t o .
I n g r e s s a n o p r o fi s s i o n a l i s m o d o c r i m e a i n d a
j o v e m .
À s v e z e s , o i n g r e s s o s e d á a p ó s oc u m p r i m e n t o d e p e n a n a s c a d e i a s .
Op i s t o l e i r o o c u l t a - s e n a s fa z e n d a s , à e s p e r a d e u m s e r v i ç o .
M a t a o i n i m i g o d o s e u p r o t e t o r .
É j o g u e t e n a s m ã o s d o s m a n d a n t e s o u i n t e r -m e d i á r i o s d o c r i m e .
É c a p a z d e a r r i s c a r a v i d a p e l o p a t r ã o . A i m p u n i d a d e éa r e s p o n s á v e l p e l a p e r m a n ê n -c i a d a p i s t o l a g e m .
É d e t e r m i n a d o n o s e r v i ç o , q u a n d o s a i p a r a m a t a r , m a t a m e s m o .
o
mandante chamava o pistoleiro parama-tar; este nem sequer conhecia a vítima.
Surgia o diálogo:
- V o c ê v a i a p a g a r F u l a n o h o j e , s e m fa l t a . D o u
-l h e t a n t o . F a ç a os e r v i ç o b e m fe i t o .
Op i s t o l e i r o r e s p o n d i a :
- Sóe m os e n h o r d i z e r q u e e l e p r e c i s a s e r a p a -n h a d o , j á e s t o u c o m r a i v a d e l e .
A fa l t a d e m e d i d a s e n é r g i c a s t o m a d a s p e l o s
d i r i g e n t e s e p e l a j u s t i ç a d o n o s s o p a í s , a a ç ã o
d o s m a n d a n t e s d o s c r i m e s d e p i s t o l a g e m s e p e r
-p e t u a , c a d a v e z m a i s o r g a n i z a d a p o r i n t e r e s
-s e -s p o l í t i c o -s , e c o n ô m i c o -s e p e l a h o n r a .
C e r c a d e t r ê s , q u a t r o p e s s o a s c a í r a m m o r t a s
e m t i r o t e i o s p o r o c a s i ã o d a s e l e i ç õ e s e m e m
-b o s c a d a s e m p l e n a v i a p ú b l i c a . Oc h e fe p o l í t i c o
éa p o n t a d o . C o m e n t a - s e o a s s u n t o . E n c e r r a - s e
o c a s o .
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R E V IS T A D E C ltN C IA S S O C IA IS v .3 3 N.2
Op i s t o l e i r o d e h o n r a , o m a i s t r a d i c i o n a l , e s t á a c a b a n d o .
A p i s t o l a g e m n ã o d e s a p a r e c e u , m a s m u d o u
b a s t a n t e . Op i s t o l e i r o t r a d i c i o n a l j á e s t á a c a -b a n d o , h o j e e x i s t e m v á r i o s t i p o s d e m a t a d o r e s
d e g e n t e .
Observa-se que, na lógica interna das
no-meações, encontram-se adjetivações conflituosas,
como por exemplo: covarde e corajoso; fiel e
trai-çoeiro; frio e apaixonado; religioso e assassino;
etc. Esses discursos falam dos caminhos e
cruza-mentos os quais o pistoleiro e a pistolagem
per-correm e onde se encontram. O pistoleiro faz
parte da categoria dos "matadores de gente", como
também o cabra, o capanga. Aprodução e a
trans-formação dos elementos dessa categoria é aqui
percebida pelo movimento da organização social
da qual eles fazem parte. E a percepção desse
movimento possibilita acompanhar a
metamor-fose constante à qual o pistoleiro, como matador
de gente, está submetido.
É afl e c h a d o t e m p o , o "jogo das
ternpora-lidades" que indicam o movimento e não a
con-tinuidade fria, como diz Balandier? . Na percepção
do autor, deve-se apreender a sociedade em seu
movimento, sua abundância e sua turbulência.
Balandier inspira a pergunta: É o pistoleiro uma
cômoda perturbação? É o pistoleiro uma amálgama
das rupturas e permanências de uma sociedade?
O tipo ideal e as falas definidoras do pistoleiro
parecem inspiradas nessas indagações. Isso faz
lembrar que "tais figuras são instrumentos de
or-dem ao mesmo tempo que agentes potenciais da
desordem". Percebi várias vezes que as
narrati-vas continham a indicação de um sentido que
qualificava o pistoleiro como "um mal
necessá-rio", ou "uma cômoda perturbação".
No decorrer da pesquisa de campo,
per-cebi a existência e a permanência de três tipos
de pistoleiros. O pistoleiro tradicional, o
pistoleiro avulso e o pistoleiro bandido. Eles são
a derivação do tipo ideal de pistoleiro.
Perma-nece em todos eles um traço comum, matam
por vingança e por dinheiro. Explicarei agora as
características de cada um deles.
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o
PISTOLEIRO TRADICIONALSer do tipo pistoleiro tradicional significa
estar ligado a "um dono", a "um patrão", não
ten-do autonomia de praticar crimes de pistolagem
sem a ordem do patrão. Esse tipo permanece
li-gado ao patrão por laços de fidelidade, existindo
entre eles uma troca de favores, e um rígido
có-digo de honra, justificando assim quaisquer
"ser-viços arbitrários". Esse pistoleiro jamais se ausenta
dos limites geográficos determinados pelo patrão,
permanecendo cativo a esse espaço, que, na
maioria das vezes, é a fazenda.
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
É interessanteobservar que esse tipo, segundo os meus
infor-mantes, encontra-se em extinção, devido à
mo-dernização das estruturas dos poderes locais.
O PISTOLEIRO AVULSO
Esse tipo se caracteriza por sua autonomia,
funcionando como um prestador de serviço, não
estando ligado a nenhuma hierarquia de mando.
É dono de sua força de trabalho e é seu próprio
patrão. Encara a prática da pistolagem como uma
profissão. Seu código de honra está circunscrito ao que ele chama de "fazer o serviço bem feito",
não existindo laços de fidelidade com um patrão
ou dono .. Seu corpo é um corpo móvel e
nôma-de, deslocando-se constantemente, não se
fixan-do assim num só lugar. A sua trajetória espacial é
determinada pela procura de seus serviços.
Sur-ge na vida desse pistoleiro um outro aSur-gente - o
intermediário, será através dele que o pistoleiro
armará a sua teia de relações e trabalho.
O PISTOLEIRO BANDIDO
Esse tipo de pistoleiro possui atividades múl-tiplas: mata, rouba, assalta, seqüestra, estupra. Ele
é um agente de práticas marginais múltiplas, não se define só como matador. O roubo, prática
mar-ginalizada pelo pistoleiro tradicional, é integrada
ao comportamento do pistoleiro bandido. A
no-ção de honra que o pistoleiro adota e o grupo
em que ele atua são efêmeros, fazendo-se e
des-fazendo-se na velocidade do dia, no jogo das
temporalidades e dos movimentos transitórios. Ele
é também chamado de
ZYXWVUTSRQPONMLKJIHGFEDCBA
" e l e m e n t o " , " m a r g i n a l ' :" s e m - v e r g o n h a " , " c a b r a r u i m " . " p e r v e r t i d o " .
" c r â p u l a ' , Faz parte das cenas das sociedades ru-rais e urbanas. Esse tipo de pistoleiro envolve-se
constantemente com a rendosa "profissão" de
as-saltante de bancos e de cargas de caminhão.
O pistoleiro tradicional, o avulso e o bandido operam em ordens que parecem distintas, apesar
disso, existe uma profunda ligadura de permanên-cias, mesmo observando as sucessivas
metamorfo-ses. Não serão eles uma incômoda permanência ou, na maioria das vezes, agentes da manutenção
de urna ordem social que insiste em permanecer?
NO TAS
1 É a região cearense cortada pelo Rio Jaguaribe, que tem um curso de 506 km, cuja nascente loca-liza-se na Serra da Joaninha e sua foz localiza-se a 15 km da cidade do Aracati, litoral sul do Estado do Ceará. Esta região divide-se em três
sub-regi-ões: Alto, Médio e Baixo Jaguaribe.
2 GEERTZ, Clifford: Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro, Ed. Guanabara, 1989.
3 GEERTZ, Clifford: 1989.
4 GEERTZ, Clifford: 1989.
5 GEERTZ, Clifford: 1989.
6 MACEDO, Joaryvar: Império do Bacamarta, (uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri Cearense), Fortaleza, Casa José de Alencar, 1990.
7 BOURDIEU, Pierre: A Economia das Trocas
Sim-bólicas, São Paulo, Perspectiva, 1982.
8 WEBER, Max: M etodologia das Ciências Sócias, parte 1, São Paulo, Ed. Cortez, 1992.
9 BALANDIER, Georges: A Desordem: elogio do
movimento. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1997.
REFERÊNCIAS BIBLIO G RÁFICAS
BALANDIER, Georges. A Desordem: elogio do mo-vimento. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997. BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Sim-bólicas, São Paulo: Perspectiva, 1982.
GEERTZ, Clifford. Interpretação das Culturas, Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1989.
LISPECTOR, Clarice. EntrevistaJornal do Brasil, 13 de Maio, 1972.
MACEDO, Joaryvar. Império do Bacamarte, (uma abordagem sobre o coronelismo no Cariri Cearense), Fortaleza: Casa José de Alencar, 1990.