PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
ROSANA SILVA PORTELA
A MICROPOLÍTICA DO DESEJO NO CINEMA DE
PEDRO ALMODÓVAR
ANÁLISE DA PRIMEIRA FASE DA OBRA DO CINEASTA ESPANHOL
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
ROSANA SILVA PORTELA
A MICROPOLÍTICA DO DESEJO NO CINEMA DE
PEDRO ALMODÓVAR
ANÁLISE DA PRIMEIRA FASE DA OBRA DO CINEASTA ESPANHOL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor Rogério da Costa.
eletrônicos.
Assinatura_________________________________________________
Data: 12/12/2011
e-mail. rosana.portela@uol.com.br
P843
Portela, Rosana Silva.
A micropolítica do desejo no cinema de Pedro Almodóvar: análise da primeira fase da obra do cineasta espanhol / Rosana Silva Portela. - São Paulo: s.n., 2011.
121 p.; il. color; 30 cm.
Referências: 103-110
Orientador: Prof. Dr. Rogério da Costa. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós- Graduação em Comunicação e Semiótica, 2011.
1. Almodóvar, Pedro -- 1951- -- Crítica e interpretação. 2. Almodóvar, Pedro -- 1951- -- Contribuições em micropolítica. 3. Cinema espanhol. I. Costa, Rogério da. II. Título
CDD 791.430946
Banca Examinadora
____________________________________________
Prof. Dr. Rogério da Costa – PUC-SP
____________________________________________ Prof. Dr. Amálio Pinheiro – PUC-SP
____________________________________________ Prof. Dr. João Eduardo Hidalgo - UNESP
Na voz de uma mulher sagrada
Vaca profana, põe teus cornos
Pra fora e acima da manada
Êê dona das divinas tetas
Derrama o leite bom na minha cara
E o leite mau na cara dos caretas
Segue a Movida Madrileña
Também te mata Barcelona
Napoli, Pino, Pi, Pau, punks Picassos movem‐se por Londres
Bahia onipresentemente
Rio e belíssimo horizonte
Quero que pinte um amor Bethânia
Steve Wonder, andaluz
Como o que tive em Tel Aviv
Perto do mar, longe da cruz
Mas em composição cubista
Meu mundo Thelonius Monk’s blues
Sou tímido e espalhafatoso
Torre traçada por Gaudi
São Paulo é como o mundo todo
No mundo um grande amor perdi
Caretas de Paris, New York
Sem mágoas estamos aí
Mas eu também sei ser careta
De perto ninguém é normal
Às vezes segue em linha reta A vida, que é meu bem, meu mal No mais as ramblas do planeta
Orchata de chufa si us plau
Êê deusa de assombrosas tetas
Gota de leite bom na minha cara
Chuva do mesmo bom sobre os caretas
(VACA PROFANA ‐ CAETANO VELOSO)
Dedico este trabalho ao meu pai, minha mãe, meu irmão, à
Agradeço a Deus, pois só Ele e eu sabemos tudo o que tive de passar, mudar e acreditar para chegar até aqui. Valeu a pena e a cada dia continuo acreditando que é possível concretizar muitos sonhos!
À Luz Divina e ao meu querido Pai João que sempre me acalmam!
Ao meu orientador Rogério da Costa pela orientação e pelas inspiradoras aulas.
Ao João Eduardo Hidalgo pelos cursos sobre Almodóvar e pela atenção, carinho e competência dedicados a essa pesquisa.
Aos professores Amálio Pinheiro e Arlindo Machado pelas valiosas contribuições na qualificação e por acreditarem na concretização dessa pesquisa.
Aos professores do Programa de Comunicação e Semiótica, Ana Cláudia Mei, Lúcia Santaella e Norval Baitello, pelas brilhantes aulas.
À Cida Bueno, secretaria do Programa de Comunicação e Semiótica, obrigada por tudo!
À bibliotecária Carmen Prates Valls pela amizade, por me ensinar tanto todos os dias e principalmente, por contribuir de forma direta com essa pesquisa, com seus valiosos e sábios comentários.
À bibliotecária Marlene Aparecida de Souza Cardoso. Obrigada pela amizade, pela ajuda de todos os dias e pelas sugestões e contribuições a esse trabalho. Muito obrigada!
À bibliotecária Ana Maria Rapassi, pela amizade e força que sempre me deu!
À bibliotecária Lúcia Pereira por sempre me incentivar!
Ao bibliotecário Maurício Alves Rodrigues pelas conversas almodovarianas.
Ao bibliotecário Roberto Gava por me ouvir falar de Almodóvar todos os dias na hora do almoço. Obrigada pela paciência!
Agradeço a todos os meus amigos da Biblioteca Nadir Gouvêa Kfouri, minha segunda família!
À minha amiga, anjo da guarda e principal intercessora deste trabalho Luciana de Cássia Vasconcelos, obrigada por tudo, sempre!
À Rosangela Ponce por nuestras charlas! Gracias
Ao Blas González Belmonte por la ayuda y por las sugerencias! Gracias
À Pary e Leonardo pela edição dos filmes!
À Synthia, Helen, Sylvio, Luciana Maria, Giuliana, Camila e Rose, obrigada pela amizade e pelo incentivo!
Ao Delzimar Pereira (em itálico, negrito e letras maiúsculas)
Aos amigos que fiz ao longo desse curso: Pedro, Silvia, Cecília, Giovani, Adalberto, Gustavo e Ideílson. Obrigada!
Ao meu amigo Fernando que certamente, onde estiver, tenho certeza de que está vibrando com esse trabalho.
Agradeço ao meu pai, que já salvou minha vida, à minha mãe pelo carinho e sabedoria com que sempre apontou meu lápis, ao meu irmão a quem admiro tanto, à Patinha que sempre me deu força e ao Lucas e à Érica a quem amo tanto! Obrigada.
Agradeço à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que me proporcionou a realização deste sonho! Obrigada!
análise da primeira fase da obra do cineasta espanhol. 2011. 121 p. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
RESUMO
O objetivo dessa pesquisa é observar de que maneira o cineasta espanhol Pedro Almodóvar utiliza, em suas primeiras produções, estruturas micropolíticas no plano da forma e do conteúdo, como uma diferente maneira de leitura da realidade, no sentido de romper com a herança deixada pelo general Francisco Franco que tinha como base a tríade Família-Estado-Igreja. Para analisar a hipótese estabelecida se de fato Almodóvar é apolítico, ou se as estruturas micropolíticas utilizadas em seus filmes nos dizem o contrário, pretendemos desenvolver uma leitura de alguns de seus trabalhos nos quais se destacam a maneira como ele entende não apenas a política e a moral dominantes de seu tempo, mas também como consegue nos mostrar a atividade frenética dos inúmeros sentimentos subterrâneos da subjetividade do povo espanhol e, por que não, de toda a nossa cultura. A análise da hipótese nos leva ao estudo do conceito de micropolítica, assim como a leitura que o cineasta processa dos movimentos afetivos dessa cultura que constitui sua micropolítica, ou seja, a maneira como Almodóvar consegue “ler” esses movimentos afetivos, que promovem incessantemente o questionamento dos valores pré-determinados e, por isso, muitas vezes, reprimidos. Podemos observar essa dinâmica principalmente em seus primeiros filmes, como Laberinto de Pasiones (1982) e Qué He hecho yo para merecer esto (1984). Para subsidiar as análises dos filmes, utilizaremos os conceitos de produção de subjetividade e de micropolítica, elucidados por Gilles Deleuze, Félix Guatarri e Suely Rolnik. A metodologia empregada na pesquisa foi elaborada com o levantamento de bibliografia sobre o cineasta. Dentre os autores, estão María Antonia García de León, Teresa Maldonado, Frederic Strauss, Jordi Puigdomenech e outros, além de obras que se referem aos conceitos utilizados e obras que entrecruzam as leituras propostas.
Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
ABSTRACT
This research’s objective is to observe in what ways the Spanish moviemaker Pedro Almodóvar uses – in his early productions – micropolitics’ structures on the expression and content plans as a different form for reading reality – in the sense of breaking up with the legacy left by the general Francisco Franco that had as a basis the triad Family-State-Church. In order to analyze the established hypothesis of Almodóvar being – as a matter of fact apolitical, or if the micropolitical structures used in his movies tell us the opposite – we intend to develop a reading of some of his works in which is outlined the manner as he understands not only politics and ethics that ruled his time, but also how he can show us the frenetic activity of countless underground feelings of the Spanish people’s subjectivity and – why not – from our entire culture. The hypothesis’ analysis leads us to the study of micropolitics concept as well as the reading that the moviemaker conducts about the affective movements of this culture that builds his micropolitics – that is – the way that Almodóvar makes himself able to “read” these affective movements that unceasingly promote the questioning of actual values – and therefore – oppressed ones. We can observe this dynamic mainly in his first movies like Laberinto de Pasiones (1982) and Qué He hecho yo para merecer esto (1984). In oder to subsidize the movie’s analysis we will use the concepts of subjectivity production and micropolitics elucidated by Gilles Deleuze, Félix Guatarri and Suely Rolnik. The methodology applied to the research was elaborated through the bibliographic study about the moviemaker – among them - María Antonia García de León, Teresa Maldonado, Frederic Strauss, Jordi Puigdomenech and others, besides other works that refer to the concepts used and works that intercross the proposed readings.
em Comunicação e Semiótica) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2011.
RESUMEN
El objetivo de esta investigación es observar de qué modo el director de cine español Pedro Almodóvar utiliza, en sus primeras producciones, estructuras micropolíticas en el plano de la expresión y del contenido, como una manera diferente de lectura de la realidad, al romper con la herencia dejada por el general Francisco Franco que tenía como base la tríada Familia-Estado-Iglesia. Para analizar la hipótesis de que si de hecho Almodóvar es apolítico, o si las estructuras micropolíticas utilizadas en sus películas nos dicen lo contrario, pretendemos desarrollar una lectura de algunos de sus trabajos en los cuales se destacan el modo como él entiende no solo la política y la moral dominantes de su tiempo, sino también como logra mostrarnos la actividad frenética de los innumerables sentimientos subterráneos de la subjetividad del pueblo español y, por qué no decirlo, de toda nuestra cultura. El análisis de la hipótesis nos conduce al estudio del concepto de micropolítica, así como las lecturas que el cineasta procesa de los movimientos afectivos de esa cultura que constituye su micropolítica, o sea, el modo como Almodóvar consigue “leer” esos movimientos afectivos que promueven incesantemente el cuestionamiento de los valores predeterminados y por eso, muchas veces, reprimidos. Podemos observar esa dinámica principalmente en sus primeras películas, como Laberinto de Pasiones (1982) y ¿Qué he hecho yo para merecer esto? (1984). Para subsidiar los análisis de las películas, utilizaremos los conceptos de producción de subjetividad y de micropolítica elucidados por Gilles Deleuze, Félix Guatarri y Suely Rolnik. La metodología empleada en la investigación fue elaborada con el levantamiento de la bibliografía sobre el cineasta, entre otros en los trabajos de María Antonia García de León, Teresa Maldonado, Frederic Strauss, Jordi Puigdomenech y otros, además de obras que se refieren a los conceptos utilizados y de otras que entrecruzan las lecturas propuestas.
CONSIDERAÇÕES INICIAIS... 14
CAPITULO I - CINEMA ESPANHOL... 18
1 O ESTADO DA ARTE... 18
2 O CINEMA NO REGIME DE FRANCISCO FRANCO... 25
3 TRANSIÇÃO ESPANHOLA... 36
4 PEDRO ALMODÓVAR – BREVE BIOGRAFIA... 45
CAPITULO II - CONTEXTO E INTERCESSORES... 53
1 MOVIDA MADRILEÑA... 53
2 OS INTERCESSORES DE ALMODÓVAR... 61
3 O CINEMA COMO INTERCESSOR DIRETO... 67
CAPITULO III – MICROPOLÍTICA... 75
1 A MICROPOLÍTICA EM ALMODÓVAR... 75
2 A REVOLUÇÃO DO DESEJO: ANÁLISE DE FILMES... 83
2.1 PEPI, LUCI, BOM E OTRAS CHICAS DEL MONTÓN……….………… 83
2.2 LABERINTO DE PASIONES……… 87
2.3 ENTRE TINIEBLAS……… 91
2.4 QUE HE HECHO YO PARA MERECER ESO……….……… 95
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 101
REFERÊNCIAS... 103
FILMOGRAFIA... 111
ANEXO 1 FILMOGRAFIA DE PEDRO ALMODÓVAR... 115
ANEXO 2 CARTAZES DOS FILMES... 117
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O cinema é um meio audiovisual de comunicação de massa que tem como uma de
suas finalidades a discussão, reflexão e representação da existência humana em determinada
época e espaço. De acordo com Jean-Luc Godard é a verdade 24 quadros por segundo. Já para
Deleuze in Vasconcelos (2006, 49) “a verdade do cinema não está na história de seus filmes,
mas na riqueza criativa de seus criadores, inventores de signos e imagens”. O fato é que o
cinema nos proporciona muitas experiências, desde a diversão, emoção até o conhecimento de
sociedades e culturas. Ao procurar entender e conhecer um pouco mais sobre a Espanha
pensamos que o cinema seria a forma que mais contemplaria esse desejo e o diretor
cinematográfico escolhido para essa empresa foi Pedro Almodóvar Caballero, com seu
cinema colorido, exagerado, esperpêntico e barroco. Muitos estudos evidenciam a fase mais
madura do cineasta, principalmente a partir do filme Mulheres à beira de um ataque de
nervos. A partir dessa produção o cineasta já havia alcançado certo prestígio, talvez porque
houvesse aprimorado mais a sua técnica ou porque, com a indicação de prêmios, a crítica
local começasse a prestar um pouco mais de atenção ao seu cinema. Decidimos então,
investigar o que ele produziu no começo de sua carreira por se tratar de um período que
coincidia com o fim do franquismo, protagonizado pelo general Francisco Franco por quase
quarenta anos. Os primeiros filmes do diretor foram alvos de crítica e ele foi chamado de
apolítico porque aparentemente em nenhum deles combatia o regime do ditador. Para verificar
a hipótese levantada de que ele não era apolítico, analisamos as quatro primeiras produções do
cineasta: Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón (1980); Laberinto de Pasiones (1982);
Entre tinieblas (1983) e ¿Qué he hecho yo para merecer esto? (1984).
O cineasta é objeto de vários estudos em várias partes do mundo. Depois de uma
micropolítica empregada pelo cineasta considerando que esse campo foi pouco explorado
pelos seus estudiosos. Dessa forma, pensamos como poderíamos dar continuidade aos estudos
sobre o cineasta lançando um olhar sobre sua obra no sentido de desvendar como o cineasta
entende não apenas a política, a moral e a cultura dominantes de seu tempo, mas como
consegue nos mostrar a atividade pulsante dos sentimentos subterrâneos da subjetividade do
povo espanhol, constituindo assim a sua micropolítica.
Nesse sentido, nos parece que o que se entende por política, alude somente às
estruturas macropolíticas, nesse caso, a leitura da realidade através do viés político do regime
ditatorial de Francisco Franco, herdado pelos espanhóis durante a transição democrática.
Durante esse último período, a passagem do regime ditatorial para a transição
democrática, o que se via, primordialmente no cinema, era o reflexo social e político dos anos
em que Franco esteve no poder. A política e o sexo era um dos elementos mais abordados
durante o período da transição. Alguns cineastas como Pedro Almodóvar também
desconsideravam as estruturas macropolíticas, como o cineasta Mariano Ozores com o filme
El apolítico (1977), entretanto o que diferenciava Almodóvar dos outros cineastas era a
incessante forma de questionamentos da realidade, que exigiu coragem, criatividade e
principalmente sensibilidade durante as suas primeiras produções. Muitas vezes nos
esquecemos que a micropolitica reativa, como forma de conservação de valores está instituída
até hoje em nossas ações cotidianas, como exemplo disso podemos citar as questões homo
fóbicas, a questão dos imigrantes, a questão do racismo e outras que estão desvinculadas de
sistemas organizados macro politicamente, mas que estão cada vez mais presentes em muitas
sociedades. Parece-nos aqui, que fatores de longa data estão impressos em nossos corpos e
mentes de maneira a atuar como se estivéssemos vivendo de fato regimes macropolíticos que
Com essa pesquisa, pretendemos observar de que maneira o cineasta Pedro Almodóvar
se desvencilha da macropolítica reacionária, nesse caso, o fascismo promovido por Francisco
Franco e utiliza em seus filmes estruturas micropoliticas ativas (ou do desejo) no plano da
forma e do conteúdo no sentido de um rompimento com a forma vigente de se fazer cinema
que na época da transição democrática, basicamente, era a recorrência a temas que aludiam ao
fascismo, ainda que contestando o regime.
Uma linha do cinema espanhol da época era o reflexo da situação política e social
vivida na época da transição democrática com fortes alusões ao regime de Franco. Havia
também outro segmento, de menor expressão, que tentava se afastar da continuidade de
representação do que ocorreu durante o fascismo. O pano de fundo para as primeiras
produções do cineasta foi a Movida Madrileña, um movimento contracultural e de renovação
das artes, que revelou uma nova geração de artistas e que foi representado por vários
segmentos artísticos: música, literatura, teatro, moda, fotografia, artes plásticas, quadrinhos,
cinema e outros. O maior expoente cinematográfico deste movimento foi o cineasta Pedro
Almodóvar que através de uma linguagem irreverente, criou outros padrões estéticos no
cinema espanhol, ou seja, reinventou a maneira de fazer cinema e percebeu a realidade
espanhola de forma diferente.
Esse movimento significou o renascimento da cultura espanhola dentro de uma
sociedade que até então era marcada por escassas manifestações artísticas e por uma
linguagem cinematográfica metaforizada, embora nesse segmento, muito bem representado
por cineastas como Luís Buñuel e Carlos Saura.
Apesar da inauguração de uma nova estética, agora muito mais livre, muitos críticos
do afirmam que Pedro Almodóvar é um cineasta apolítico e que em seus filmes nada é dito ou
O regime autoritário imposto por Franco durante os anos de poder queria esconder a
cultura e os valores artísticos do país e queria que saltasse aos olhos valores morais, familiares
e religiosos. Mesmo com a morte do general nos parece que um segmento da sociedade queria
resguardar alguns valores morais da época prejulgando todo o movimento da Movida
Madrileña e acusando o mesmo de vazio e sem conteúdo algum. Contraditoriamente, outro
segmento da sociedade que não estava de acordo com o regime franquista também acusava a
Movida Madrileña e principalmente no que nos diz respeito a essa pesquisa, acusava o cinema
de Pedro Almodóvar, de um cinema apolítico, vazio de conteúdo e alheio à quase quarenta
anos de ditadura.
A principal hipótese dessa pesquisa é analisar se, de fato, o cineasta Pedro Almodóvar
é apolítico, como insiste um segmento da crítica cinematográfica espanhola ou se a
observação micropolítica ativa e reativa retratada em seus filmes revela o contrário. A
dissertação está organizada em três capítulos. O primeiro compõe as pesquisas compiladas
sobre o diretor e refere-se ao cinema praticado na época do franquismo e da Transição
Espanhola. Além de uma pequena biografia sobre o diretor. O segundo capítulo menciona o
contexto em que o cineasta despontou intitulado Movida Madrileña e os intercessores
cinematográficos utilizados pelo diretor como forma de rompimento do discurso identitário. O
terceiro capítulo discorre sobre o conceito de micropolítica e analisa as obras propostas para
CAPITULO I - CINEMA ESPANHOL
1 O ESTADO DA ARTE
Muitos são os estudos realizados sobre o cineasta espanhol Pedro Almodóvar em todo
o mundo. São inúmeros os livros publicados pela crítica especializada espanhola, francesa,
americana, italiana, dentre outras. Alguns desses livros, contrários ao cinema de Almodóvar,
principalmente os publicados por um segmento da crítica local no começo de sua carreira,
afirmam que ele é um cineasta apolítico, ou seja, não teve comprometimento depois de a
Espanha enfrentar quase quarenta anos de ditadura. Conforme afirma o professor da
Universidade de Barcelona e membro da Academia de las Artes y la Ciencia Cinematográica
de España – Goya, José Maria Caparrós1:
Para ele não interessa o político. Mas é até melhor que não fale de política porque não sabe. Os outros cineastas consagrados fizeram política. Almodóvar nunca entrou nesse tema. Sempre esteve no seu mundo e no intimismo. A esquerda não o perdoa por não ter tomado posição frente ao sistema ditatorial de Franco e dizer que sua vingança a Franco é não falar de política, é uma falta de compromisso, como Pilatos. Para os comprometidos isso soa como covardia, uma desculpa. (SANTANA, 2007, p. 280).
Entretanto, nem toda a crítica espanhola condena o cineasta e afirma esse apolitismo.
Seminários, artigos em revistas especializadas, entrevistas, artigos de jornais, teses de
doutorado, dissertações de mestrado são frequentemente escritos sobre o diretor e, se a crítica
é a favor ou contra, o fato é que ele não passa despercebido do cenário cinematográfico
mundial.
1 CAPARRÓS, José Maria. Depoimento sobre Pedro Almodóvar concedido ao entrevistador Gilmar Santana em
Nuria Vidal, jornalista, integrante do Festival de Cinema de San Sebastián (um dos
mais importantes festivais de cinema da Espanha) e colaboradora da Revista Cinematográfica
Fotograma, foi uma das primeiras pessoas a escrever sobre Almodóvar. Um dos primeiros
livros dedicados a ele foi El cine de Pedro Almodóvar, publicado em Madri em 1988 pelo
Instituto de la Cinematografía y Artes Audiovisuales, livro este que compôs um dos volumes
da coleção de cineastas contemporâneos da Espanha. Em entrevista a Gilmar Santana, a
jornalista declarou os principais motivos que a levou a estudar Almodóvar:
Interessei-me em escrever sobre Almodóvar primeiro porque me divertia muito seu cinema e segundo porque a crítica na Espanha sobre ele era muito negativa. No resto do mundo quase não o conheciam, talvez só Entre Tinieblas y Qué he hecho yo para merecer esto. Falava da realidade espanhola de uma maneira muito engraçada. Não era um diretor muito considerado. A crítica ortodoxa não tinha e não tem demasiado carinho por ele em razão de suas abordagens. Pedro fala da cotidianidade e nela está a droga, a homossexualidade, isso faz parte da cultura espanhola de maneira mais explícita ou oculta e Pedro falava na transição, quando tudo estava em ritmo de liberdade. (SANTANA, 2007, p. 283)
Outra importante obra foi Pedro Almodóvar : la otra España cañi, publicação de 1989
de autoria de María Antonia García de León e Teresa Maldonado. O livro foi escrito em duas
partes: na primeira foi realizada uma análise sociológica e na segunda, uma crítica
cinematográfica. Esse livro aborda as produções do diretor, principalmente através das críticas
publicadas sobre ele, seja nos meios impressos ou eletrônicos. Por meio de uma seleção de
publicações, traça um perfil do cineasta desde a sua infância até as suas últimas produções,
compreendias até o ano de 1989, época em que o livro foi escrito.
O Primeiro Congresso Internacional sobre Almodóvar foi realizado de 26 a 29 de
novembro de 2003, em Cuenca – Espanha, e foi dividido em quatro painéis. Nesse congresso,
especialistas em cinema e teoria da comunicação discutiram a influência que o cineasta teve
principalmente na estética cinematográfica. Francisco Zurian, professor de Comunicação
audiovisuais e no cinema de Almodóvar, presidiu o evento. Frederic Strauss, na época redator
chefe da revista Cahiers du Cinema, dirigiu o painel El Universo Cinematográfico de Pedro
Almodóvar; o professor da Universidade Autónoma de Barcelona, Roman Gubern, foi o
responsável pelo painel Historia y cine : Almodóvar y el cine español; Paul Smith, professor
da Universidade de Cambridge, coordenou o painel Ética y estética del cine en la obra de
Pedro Almodóvar e Marsha Kinder, professora da Universidade Southern da California,
dirigiu o painel Sociedad, cultura y género en Pedro Almodóvar. O diretor do Congresso
afirmou em entrevista concedida ao jornal El País de 14.03.2003 que:
Se han hecho muchas tesis sobre Almodóvar y muchas más se van a leer. Interesa desde Nueva York a Cambridge pasando por Florencia. Es curioso que un cine que parece tan localista sea tan universal. Este primer congreso es una puesta al día. Es como un travelín con la cámara desde su primera película hasta ahora. Algo muy general para luego, dentro de uno o dos anos, concretar más.
De acordo com Jean-Claude Seguin (SANTANA, 2007 p. 270), a participação
espanhola nesse congresso foi pequena: houve a presença de um único espanhol. Participaram
italianos, franceses e representantes de outros países. Depois do evento, as atas foram
publicados num total de 530 páginas e nelas estão todas as discussões, palestras e estudos
apresentados.
Almodóvar foi nomeado doutor honoris causa pela Universidade de Castilha-La
Mancha em 2000, instituição esta, sede do Congresso juntamente com a produtora El Deseo
do próprio diretor.
No Brasil, foram realizados estudos sobre desenvolvidos em dissertações de mestrado
e teses de doutorado em importantes universidades brasileiras, além de artigos, resenhas e
entrevistas também em conceituadas revistas especializadas em cinema, comunicação e
Uma das primeiras dissertações brasileiras sobre o cinema do espanhol foi “O
espetáculo do grotesco nos filmes de Pedro Almodóvar”, defendida em 1997 por Gabriela
Borges da Silva Martins, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, no
curso de Comunicação e Semiótica. Esse estudo pretendeu observar a obra do cineasta sob
dois aspectos: o uso da metalinguagem e a intersemioticidade de outras linguagens na
cinematografia do diretor.
Os elementos abordados nos estudos sobre Almodóvar são de ordem estética,
filosófica, psicológica, sociológica, política, entre outros e, dada a riqueza de suas obras,
oferecem inúmeros elementos para diversas análises.
Não é tarefa fácil catalogar todos os estudos referentes a este importante cineasta da
cultura espanhola e do cinema em geral. No entanto, acreditamos que seja essencial citar esses
primeiros trabalhos para afirmar a importância de um cineasta que continua a produzir filmes,
talvez mantendo o conteúdo, mas sempre inovando na forma de produzi-los. Seu último filme,
La piel que habito (2011), deverá estrear no Brasil em novembro do corrente ano.
Um dos capítulos da tese de doutorado de Gilmar Santana (2007), defendida na USP,
Departamento de Sociologia, nos despertou a atenção sobre o que a crítica espanhola pensava
a respeito desse cineasta que inquieta e agrada a pessoas de todo o mundo, principalmente aos
franceses, e como poderíamos dar continuidade aos estudos sobre ele. Dessa maneira, nos
propusemos a lançar um olhar sobre a micropolítica realizada pelo diretor como outra forma
de leitura da realidade na sociedade pós-franquista – onde a presença de diferentes formas de
vida se fazia necessária – tanto no eixo do conteúdo como da forma.
Compilando o material para o desenvolvimento do estudo em questão, percebemos
que vários aspectos são estudados em sua obra. A imagem do feminino, a temática da
construção estética através das cores, dos elementos culturais, as outras mídias presentes em
seus filmes, enfim, muitos elementos importantes e carentes de análises, mas que de certa
maneira, não evidenciam a construção de sua subjetividade para a produção de seu cinema,
além de não desenvolverem uma leitura de como o cineasta rompeu com a tradição
cinematográfica vigente, desenvolvida na época do ditador espanhol Francisco Franco, onde,
mesmo na transição espanhola, o que ainda imperava era o cinema de cunho político,
considerado um cinema culturalmente aceito.
A maior parte dos estudos dedicados ao cineasta faz referências posteriores ao início
de suas produções. Pensamos que isso ocorra porque essas produções eram filmadas com
baixo orçamento e não tinham uma linguagem cinematográfica desenvolvida. Do nosso ponto
de vista, também contribui o fato de que essas obras escancaravam uma sociedade que muitas
vezes parecia não ter importância e, como tal, não era digna de ser mostrada nas telas. Eram
as minorias que se pronunciavam nos filmes. Além disso, os códigos utilizados em seu
cinema, não estavam ligados a uma predominância cultural. Para muitos especialistas no
assunto, o diretor tinha a obrigação de citar estruturas de ordem macropolítica, mencionar o
Estado, falar do regime ditatorial de Franco, criticando o mesmo. Para uma parte da
sociedade, não é possível falar de política, sem citar as macroestruturas e nesse caso, a
ditadura franquista. As primeiras produções do cineasta eram marcadas pela comédia e pelo
riso, entretanto mostravam que algo sério ocorria na sociedade. Como se relacionar com uma
nova sociedade, onde as minorias foram sufocadas durante tanto tempo pelo regime fascista?
O filme ¿Qué he hecho yo para merecer eso? (Qué he hecho...) (1984) é um bom exemplo de
que algo sério pode ser mostrado através do humor. Os problemas econômicos do
pós-franquismo e o fascismo encarnado no chefe de família são alguns elementos que o cineasta
aborda neste filme. Embora, nessa obra, ele utilizasse a estética do neorrealismo, o humor
Foucault, em um artigo apresentado nos Cadernos de Subjetividade e referindo-se ao livro Anti-Édipo de Deleuze, como uma introdução à vida não fascista, concorda que:
[...] só há humor e jogo ali onde entrando algo de essencial se passa, algo que é da maior seriedade: o banimento de todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos envolvem e nos esmagam, até as formas miúdas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas. (FOUCAULT, 1996, p. 200)
Pepi, Luci, Boom y otras chicas del montón (Pepi…) (1980), sua primeira produção, e
Laberinto de Pasiones (1982), seu próximo longa-metragem, foram concebidos dentro de um
período que surgiu após a morte de Franco, e consequentemente, dentro da transição
espanhola. Essas produções foram criadas, mais precisamente dentro de um movimento
denominado Movida Madrileña, movimento este em que a liberdade de expressão estava
presente não só na arte cinematográfica, como em todos os outros segmentos artísticos.
O período da transição, como observaremos no primeiro capítulo, era marcado por
filmes de conteúdo político e de conteúdo erótico, também conhecido como El destape. Os
primeiros predominavam como algo realmente importante para esse período, conforme
observações de alguns críticos.
Maria Antonia García de León (SANTANA, 2007 p. 275), divide a produção
cinematográfica do cineasta em fases, ela o classifica em quatro Almodóvares e compreende a
primeira fase desde Pepi... (1980) até o filme Qué he hecho… (1984).
De todas as formas, pensamos que essa primeira fase seja um material importante para
a análise de nosso objeto de estudo – a micropolítica nos filmes de Almodóvar, porque a
prática cinematográfica vigente até então era totalmente diferente da época de Franco.
Convém recordar que antes de Pedro Almodóvar, cineastas como Vicente Aranda, com o
filme Cambio de Sexo (1977) e Eloy de la Iglesia, com o filme El diputado (1978), já
sociedade que saiam de um regime fascista de quase quarenta anos tinham a tácita obrigação
de fazer arte sempre com menção à oposição ao franquismo (curiosamente, alguns faziam
menção a favor). Neste contexto, eram poucos os cineastas que escapavam dessa linearidade
cinematográfica. Souza e Beldarráin, no artigo intitulado El discurso sobre el cine de
Almodóvar en la España de los años ochenta, enfatizam que:
La estética cinematográfica de Almodóvar inicial podría ser definida como un esfuerzo de innovación a partir del enfoque de universos subjetivos minoritarios, tales como personajes extravagantes, mujeres en emancipación, homosexuales asumidos, inmigrantes rurales inadaptados. Dichos personajes fueron presentados como protagonistas de historias en las cuales el deseo y sus incontrolables consecuencias chocaban con universos mayoritarios. (SOUZA; BELDARRÁIN, 2006, p. 209)
Nesse sentido, essas primeiras produções eram vistas como atípicas para o período.
Movimentos culturais como a Movida Madrileña, que contextualizavam essas primeiras
produções, escapavam a um pensamento binário de reprodução. Para Deleuze e Guatarri:
[...] os profundos movimentos que agitam uma sociedade se apresentam, assim, ainda que seja necessariamente, “representados” como um afrontamento de segmentos molares. [...] do ponto de vista da micropolítica, uma sociedade se define por linhas de fuga, que são moleculares. Sempre vaza ou foge alguma coisa, que escapa às organizações binárias, ao aparelho de ressonância, à máquina de sobrecodificação. Aquilo que se atribui a uma evolução dos costumes. (DELEUZE; GUATARRI, 1996, p. 94)
Dando continuidade aos estudos sobre o cineasta, pretendemos evidenciar de que
maneira ele utiliza, em seus primeiros filmes, estruturas micropolíticas, no plano da forma e
do conteúdo, como uma diferente forma de leitura da realidade no sentido de romper com a
herança deixada por Franco. No próximo capítulo, buscaremos ilustrar de que maneira se
produzia cinema na era franquista para, posteriormente, evidenciar as diferenças realizadas
2 O CINEMA NO REGIME DE FRANCISCO FRANCO
O cineasta espanhol Pedro Almodóvar Caballero produziu ao longo de sua carreira
mais de vinte filmes, dentre eles os curtas-metragens realizados com sua câmera super-8,
principalmente nas cidades de Madri e Barcelona. Nesta pesquisa, não consideraremos esses
curtas e tampouco o seu primeiro longa Folle...Folle...Fólleme... Tim (1977-1978), que não
estreou no Brasil.
Almodóvar chegou a Madri no ano de 1968, época em que o ditador Francisco Franco
exercia o poder na Espanha. O regime de Franco foi instalado em 1939 e neste ano, com o fim
da Guerra Civil Espanhola, o general passou a ser chefe de Estado e se autoproclamou
Caudilho de Espanha. As bases do regime franquista estavam alicerçadas na tríade
Família-Estado-Igreja e toda a regência do país estava sob a batuta do ditador. Com as artes,
principalmente a arte cinematográfica, não poderia ser diferente. O general, durante quase
quarenta anos de poder, controlou tudo dentro do país e, percebendo que o cinema exercia
uma forte influencia na propagação do pensamento, criou uma série de leis para que este não
escapasse ao seu controle. Em novembro de 1939, promulgou uma lei de censura que
declarava: “Dado que el cinematógrafo ejerce una innegable y enorme influencia sobre la
difusión del pensamiento y sobre la educación de las masas, es indispensable que el Estado
vigile siempre que haya algún riesgo que pueda apartarle de su misión”. A missão a que
Franco se referia era propagar o regime de base nacionalista estabelecido por ele e controlar
tudo dentro dessa arte.
Além dessa lei, foi fundado em 1947, o Instituto de Investigaciones y Experiencias
Cinematográficas. A Igreja e o Exército eram os órgãos encarregados da censura e com a
produção cinematográfica desde o roteiro, passando pelos títulos, cartazes promocionais, até a
produção final do filme.
No dia 23 de abril de 1941, uma nova lei entrava em vigor, e esta obrigava que todo
filme estrangeiro que entrasse no país fosse dublado. Órgãos de censura tinham carta branca
para manipulá-lo em todos os sentidos: interferiam no título, nos diálogos e, inclusive, na
argumentação do mesmo. Puigdomenech (2007, p. 13), lembra que “um caso célebre foi o
caso de Mogambo (1953) de John Ford”. Esse filme, que tinha como história central o
adultério, quase se transformou em incesto por causa das dublagens.
De dezembro de 1942 até o ano de 1976 o gênero documentário passou a ser
exclusividade do Estado, pois Franco havia percebido a importância desse tipo de cinema para
difundir ideologias. Por isso o controle desse gênero era de suma importância para a sua
política ditatorial e o NO-DO (Noticiarios e Documentarios de España), criado nesse mesmo
ano e amparado pela lei de exclusividade dos documentários do Estado, era o principal
veículo de política do regime até a era da televisão. Em estudo sobre cinema espanhol,
Hidalgo afirma que:
O NO-DO foi apresentado em 4 de janeiro de 1943 e teria uma longa vida desaparecendo somente em 1981. Era um instrumento do Estado para divulgar sua ideologia, fazer apologia dos heróis por ele criado e louvar as obras e empreendimentos do grande caudilho Francisco Franco. Filmando-se com todas as trucagens disponíveis, os raquíticos espanhóis eram transformados em exemplo de força e vitalidade, bem ao gosto da ideologia das raças puras: Franco criou a imagem do corajoso guerreiro espanhol, tão ariano quanto os exemplos teutônicos. (HIDALGO, 2007, p.20)
Depois que o general percebeu o “perigo” do cinema, tentou de várias maneiras
controlar totalmente o que se referia à sétima arte, inclusive, subsidiando até 40% dos valores
para a produção dos filmes, desde que os mesmos estivessem estritamente em consonância
O filme Raza (1941), dirigido por José Luiz Sáenz Heredia, franquista comprometido
que tinha como argumentista Jaime de Andrade, pseudônimo do próprio general Franco,
sintetiza o ideal de comportamento espanhol através da perspectiva do general e é um bom
exemplo da percepção que Franco tinha do cinema como instrumento para atingir às massas.
Essa produção narra a história de três irmãos e suas instabilidades durante a Guerra Civil
Espanhola. O filme, além do título “Raza”, que já sintetiza o caráter identitário do regime,
queria mostrar os “sacrifícios que alguns fazem, e que todos deveriam fazer”, sufocando suas
vontades e de seus desejos, para alcançarem um “bem maior” nesse caso o comprometimento
com o Estado, a Igreja e a Família. Franco, ese hombre (1964), foi um documentário
produzido pelo mesmo diretor de Raza com o intuito de comemorar os 20 anos do fim da
Guerra Civil Espanhola; o gênero documentário foi escolhido porque os realizadores já havia
percebido o seu poder para difundir ideologias (fenômeno notado anteriormente ao regime de
Franco, já na Guerra Civil). O cinema passou de mero entretenimento para um instrumento de
propaganda política e foram os republicanos que primeiro ressaltaram esse domínio, chegando
a produzir 220 documentários até o final de 1939. Durante este período, os nacionalistas
rodaram apenas 32.
O filme Marcelino, pan y vino (1954), de Ladislao Vajda, embora tendo êxito de
público e crítica, também é um importante marco na filmografia espanhola do período do
ditador Franco. Narra a história de um bebê que é deixado na porta de um convento e é criado
pelos frades, tornando-se o protagonista de um milagre ocorrido no vilarejo onde foi criado.
Dentro do regime franquista, havia um culto aos filmes religiosos para afirmar os ideais da
igreja que exercia forte influência no país.
Apesar de um segmento do cinema espanhol, nessa época, sustentar o regime de
Franco – não simplesmente por ordens ditatoriais, mas também porque alguns simpatizavam
filmes eram produzidos, como forma de contestação da situação vigente no país. Além da
paródia e da metáfora, outra estética era utilizada como uma forma de mostrar o que acontecia
na época: o esperpento. O propagador dessa estética foi Ramón del Valle, mas sua origem está
nas pinturas de Francisco de Goya:
[...] o esperpento superaria a proposta de vanguarda ultraísta e significaria o resgate de uma tradição cujas origens remontam a uma parte da obra do pintor espanhol Francisco de Goya y Lucientes: mais precisamente àquela que evidencia preocupações com a denuncia social, como a série de gravuras intituladas ‘Caprichos’, realizada pelo pintor entre os anos de 1792 e 1808. Goya cria um mundo absurdo, cheio de reveses e contradições que acabam revelando as hipocrisias da sociedade de sua época. Os protagonistas de Goya são caricaturas que desnudam uma realidade que, no dia-a-dia, a sociedade oculta e preferimos não enxergar. (SILVA, 1999, p. 28)
Dessa forma, tendo-se como ponto de partida a série de gravuras do pintor espanhol
Goya, apoiada no esperpento como forma de deformação da realidade para fazer com que
personagens de uma sociedade pudessem circular livremente, podemos perceber uma relação
desta com o cinema de Pedro Almodóvar, onde muitas personagens que não tinham voz na
época de Franco puderam ser enxergadas. Personagens como homossexuais, adictos, gente da
área rural com suas difíceis adaptações, enfim, personagens que podiam expressar seu desejo
contido por muito tempo.
Foram muitos os filmes realizados na época de Franco que, com estéticas apropriadas,
representaram o cinema de oposição ao regime de Franco. Dois diretores se destacaram nesse
panorama: Luis Garcia Berlanga e Juan Antonio Bardem. Filmes como Bienvenido Mr.
Marshall (1952), Muerte de un ciclista (1955), Calle Mayor (1956) e El Verdugo (1963),
demonstram a eficaz utilização de estéticas que driblariam a censura de Franco, colocando nas
telas a realidade da política, da economia, dos modos de vida espanhol estilhaçados por tantos
anos de poder de um ditador. Somente a título de ilustração o filme Bienvenido Mr. Marshall
aludia ao recebimento de dinheiro dos Estados Unidos com o Plano Marshall americano, que
chegou a receber. Para Almodóvar, “Bienvenido Mr. Marshall es una comedia, pero ninguna
película de esa época se atrevia a decir las cosas que allí se decían y del modo en que se
decían. Creo que cualquier género es bueno para contar una historia. (GARCÍA DE LEÓN;
MALDONADO, 1989, p. 150).
Os filmes citados acima servem como ilustração, dentre muitos outros produzidos, do
regime que o general tentava impor através de seu controle. Além da criação das leis de
censura, obrigou a dublagem de todos os filmes estrangeiros, exilou cineastas e tentou impedir
a manifestação cultural de um povo, façanha esta praticamente impossível de ser alcançada,
por mais houvesse o domínio de uma ditadura.
Nesse sentido, alguns representantes da sétima arte tentavam burlar esse regime e
timidamente, era possível observar alguns movimentos a fim de se tentar escapar das duras
leis impostas pelo franquismo. No final dos anos cinquenta, com o fim do isolamento político
na Espanha, houve em Madri uma pequena abertura cultural, ocasião em que ocorreu a
Primeira Semana do Cinema Italiano. Esses filmes italianos apresentados no festival foram
fonte de inspiração para cineastas espanhóis e uma das produções importantes foi Surcos
(1951), de José Antonio Nieves Conde, que abordava o problema do êxodo do campo para a
cidade, especificamente narrando a história de uma família andaluza que tinha de sair da área
rural em direção para escapar da miséria. Como esse filme foi considerado um atentado contra
o governo de Franco, antes que começasse de fato a abertura cultural, esta já havia chegado ao
fim.
De 14 a 29 de maio de 1955, aconteciam as “Conversas de Salamanca”, organizadas
pelo Cine Clube da Cidade Universitária. Juan Antonio Bardem e Basilio Martin Patino, dois
personagens comunistas desse evento, escreveram um texto de teor expressivo para a época:
essencial missão de testemunho, o cinema espanhol continua cultivando tópicos conhecidos (PUIGDOMENECH, 2007, p. 15)
Bardem ousou ir mais fundo e proclamou nas “Conversas de Salamanca” outro texto:
“O cinema espanhol atual é politicamente ineficaz, socialmente falso, intelectualmente
ínfimo, esteticamente nulo e industrialmente raquítico”. (PUIGDOMENECH, 2007, p. 15)
Esse evento entrou para a história como a primeira reflexão realizada sobre o cinema
espanhol pelos próprios profissionais do meio cinematográfico.
Nos anos sessenta, com Franco ainda no poder, começava uma nova tentativa de abertura cultural na Espanha. Carlos Saura e Pere Portabella, importantes cineastas espanhóis, conseguiram constituir um clima favorável para o retorno de Luís Buñuel, que havia sido exilado.
Hidalgo, ao escrever sobre o cineasta, observa que:
Luis Buñuel (1900-1983) é uma figura emblemática. Buñuel que viveu na Residencia Estudantil de Madrid, junto com Federico Garcia Lorca e Salvador Dalí, aderiu ao movimento surrealista de André Breton e realizou, em 1928, na França, seus primeiros filmes: Un chien andalou, em colaboração com Dalí, e em 1930, L’age D’or. Na Espanha rodou em 1932, Las hurdes, tierras sin pan, com recursos próprios, tendo montado o filme na mesa da cozinha de sua casa. Com a subida de Franco ao poder, Buñuel exilou-se no México e posteriormente na França, da obra mexicana destaca-se El Angel exterminador, de 1962, Abismos de pasión, de 1963, e Ensayo de um crimen, de 1955. Da fase francesa, pode-se destacar Belle de Jour, de 1966. Le journal d’une femme de chambre, 1963, Le charme discret de la Bourgeosie de 1972 e Cet obscur objet du désir, de 1977. […] (HIDALGO, 2007, p. 7)
alimenta todos os mendigos da região. Porém, os mesmos não se comportam da maneira que ela esperava. Nesse filme há uma das cenas mais famosas do cinema: a Santa Ceia dos mendigos, uma paródia da pintura de Leonardo da Vinci.
Com o escândalo de Viridiana, o meio de produção cinematográfico espanhol tinha claro o que significava aventurar-se em qualquer meio de abertura no que dizia respeito à liberdade de expressão, e depois desse fato, Garcia Escudero foi nomeado diretor da cinematografia espanhola e assumiu a responsabilidade de modernizar, dentro do possível, as suas precárias estruturas cinematográficas. Paradoxalmente, foi criado o Código de Censura que, de certa maneira, estabelecia o que era e o que não era permitido. Anteriormente às Conversas de Salamanca, todo o meio cinematográfico não sabia a que tipo de censura responder. Nesse sentido, a censura estava padronizada.
A Escola Oficial de Cinema de Madri foi fechada em 1962, época em que foi
inaugurado o movimento denominado Novo Cinema Espanhol. La tia Tula, adaptação do
romance de Miguel de Unamuno, dirigido por Miguel Picazo, conseguiu, como recorda Jordi
Puigdomenech (2007), “levar às telas um dos relatos com maior carga erótica da história da
literatura, sem mostrar nem sequer uma pequena parte da anatomia feminina proibida naquela
época”
Todos os eventos citados acima tiveram lugar principalmente na capital do país,
Madri, mas em Barcelona também ocorreu um Movimento conhecido como Escola de
Barcelona e alguns de seus expoentes, como Pere Portabella e Carlos Durán, também
pertenciam a um movimento denominado gauche divine, definido por Jordi como:
“movimento contracultural nascido no seio da burguesia catalã que tinha seu habitual lugar de
reunião na sala de festas Bocaccio de La Ciudad Condal”
Frequentavam esse movimento, além de cineastas, vários segmentos da sociedade
como, escritores, filósofos, artistas, futebolistas e seguidores do movimento underground
No começo da década de 70, o regime de Franco dava sinais de que enfraqueceria e o
grupo terrorista ETA, mais precisamente em 20 de dezembro de 1973, aparentemente deu fim
à vida do almirante Carrero Blanco, presidente do Governo e homem de confiança do general.
Esses anos foram marcados por descontentamentos de todas as ordens: política, social,
artística e econômica. Entretanto, no que concerne ao cinema, alguns produtores, com o
consentimento dos órgãos competentes, podiam produzir até duas versões de um mesmo
filme, uma para exportação, sem censura, e outra para consumo interno. Franco, nesse
sentido, queria a modernização da Espanha somente para o restante da Europa, o que não
ocorria dentro do país. Com a produção de duas versões de filmes, o general vendia a imagem
de um país que não existia.
Mesmo que a censura fosse algo predominante na Espanha, curiosamente muitos
habitantes da região da Catalunha e Pais Vasco realizavam verdadeiros êxodos em direção às
localidades de fronteira da França para assistirem a filmes, principalmente de caráter erótico,
como As mil e uma noites (1974), de Pier Paolo Pasolini e O império dos sentidos (1976), de
Nagisa Oshima, impensáveis de serem vistos na Espanha. Dessa maneira, obteve-se recordes
de público em cidades francesas que faziam fronteira com o norte do país. Foi filmado,
inclusive, um filme que satirizava todo esse acontecimento: Lo verde empieza en los Pirineos
(1973), de Vicente Escrivá, que retratava o que os espanhóis não podiam ver em seu país.
Essa é mais uma prova de que não se pode controlar a expressão de um povo.
Inseridos em um regime fascista, produtores cinematográficos e população não foram
impedidos totalmente de criar e assistir a outros tipos de produções que não as impostas pelo
regime do ditador.
O recurso metafórico, a paródia e o esperpento como, praticamente, únicas formas de
em produções como Cria cuervos (1975) e o exílio de cineastas como Luis Buñuel, que
produziu cinema em outros países, começavam a dar indícios de que esses não seriam os
únicos recursos que um cineasta teria para desenvolver seu trabalho.
Outro cineasta importante na época do regime franquista foi o espanhol Victor Erice,
cineasta que produziu uma quantidade relativamente pequena de filmes, mas que soube como
ninguém utilizar-se de uma estética que driblasse o regime ditatorial de Franco. Em 1973,
realizou o filme El espíritu de la colmena. O longa-metragem se passa na Espanha, no ano de
1940 e se refere ao final da Guerra Civil Espanhola. Uma possível leitura desse filme é a
paródia da personagem Frankenstein com o general Franco, já que os espanhóis da cidade em
que a obra foi filmada iriam assistir à projeção do filme Frankenstein de James Whale. No
artigo escrito sobre a importância de Victor Erice, o jornalista Zanin destaca que:
A referência ao franquismo é importante, pois sem ser obra política de maneira explícita, O espírito da colméia faz sutil referência às condições da Espanha logo após a Guerra Civil (1936-1939). Tudo se passa num povoado de Castela, em 1940, isto é, na fase de consolidação do governo fascista que derrotara os republicanos e iria reinar durante quase 40 anos sobre a Espanha. Há um acontecimento importante que movimenta a cidadezinha logo nas primeiras cenas – a chegada de um cinema itinerante, que trará grande atração aos moradores: a projeção de Frankenstein, o clássico do terror de James Whale, filme de 1931. O espírito da colméia é um tratado sobre o medo, a casa grande é uma colméia, a Espanha toda é uma colméia, disciplinada, hierarquizada, com papéis bem definidos de forma rígida. (ZANIN, 2010)
Posteriormente, o cineasta dirigiu El Sur (1983) e El sol del membrillo (1992). Almodóvar no
Press-book do filme La flor de mi secreto, relata:
Desde a Guerra Civil Espanhola e, talvez, mesmo antes, o cinema, que é um meio de
comunicação das massas, contrariou o sentido que possuía inicialmente, o de entretenimento,
e na Espanha foi utilizado para persuadir e para contestar. Evidente que, dentro de um regime
como o fascismo, essas práticas cinematográficas não poderiam ser difundidas se não
estivessem em conformidade com as normas impostas pelo poder. Nessa perspectiva,
criadores como Luis Buñuel, Carlos Saura e Victor Erice souberam brilhantemente como
mostrar a outra face do regime de Franco, com estéticas que exigiam o máximo de suas
inventividades.
Com a herança desse cinema, marcado fortemente pela censura e por leis que
acirravam a produção artística e demarcavam um cinema extremamente político, seria
presumível que qualquer leitura diferente da realidade fizesse menção à política. Parece-nos
que a emergência de outras formas de vida (e não da dicotomia política versus não política,
principalmente na esfera da macropolítica) talvez não fosse importante para alguns críticos de
cinema e para um segmento da sociedade espanhola.
Dessa forma, o cineasta Pedro Almodóvar rompe com as práticas vigentes de se fazer
cinema até então. Rompe, inclusive, com as estéticas reinantes na época. A sua condição de
autodidata, principalmente pela falta de recursos e também pelo fechamento da Escola de
Cinema de Madri, fez com que em seus primeiros filmes não dominasse bem a arte da
filmagem. Em seus primeiros longas, cabeças eram cortadas, os diálogos eram dublados na
hora e não existia uma preocupação real com a estética. Passados alguns anos, o próprio
Almodóvar diz que o seu despreparo, depois de um tempo, para a crítica, virou estilo. O
cineasta, desde o tempo das produções do super-8, estava preocupado em contar uma história,
entretanto, pode-se contar uma história rompendo com laços de causa e consequência, ou seja,
evidenciando a emergência de outras práticas de vida e tipos de cinema e dessa forma,
Com esse tópico do primeiro capítulo, pretendemos demonstrar de que maneira o
cinema era contemplado na época de Franco, de um lado, pelos produtores do poder e de
outro, pelos que, magnificamente, através de suas estéticas, conseguiram driblar esse poder.
As considerações sobre o cinema e sua abertura e as leis criadas por Franco, também nos
parece importante, na medida em que reafirmam a dicotomia de duas práticas.
No próximo tópico do capítulo, pretendemos traçar algumas considerações a respeito
da transição democrática espanhola considerada por muitos estudiosos como uma transição
“perfeita” e exemplo para outros países. É nesse contexto que, depois da morte de Franco,
Pedro Almodóvar está inserido e começa a realizar suas primeiras produções contemplando
outra leitura da realidade, privilegiando o desejo. Consideramos importante também, traçar
alguns comentários sobre a biografia do cineasta, na medida em que sua origem humilde e sua
falta de recursos para o estudo da arte cinematográfica, de certa forma, fizeram com que
muitos críticos não dessem o devido valor à sua produção. Porque outra vez não estava
inserido nos cânones preestabelecidos para realizações cinematográficas e nem no que se
costuma nomear como cultura.
3 TRANSIÇÃO ESPANHOLA
Com a morte do general Francisco Franco em 1975, houve na Espanha um período
conhecido como Transição espanhola e em 15 de junho de 1977 aconteceram as primeiras
eleições democráticas. O ditador espanhol já havia estabelecido como seu sucessor Juan
Carlos e este foi proclamado rei, logo após a sua morte. O rei, parecendo querer seguir os
ensinamentos do ditador, nomeou Arias de Navarro para ocupar o cargo de primeiro ministro
do governo, cargo este já ocupado por ele na ditadura de Franco desde 1973. As bases desse
primeiro ministro, sob as ordens do rei Juan Carlos eram “a exclusão radical do comunismo, a
afirmação da unidade nacional e o reconhecimento da monarquia” (SILVA, 1999, p. 61),
evidenciando, nesse sentido, uma continuidade do regime de Franco, apesar da abertura e da
democracia. Arias de Navarro foi substituído por Adolfo Suarez, que na época de sua
nomeação ocupava o cargo de Diretor Geral de Televisão e, que, mais tarde participaria de
vários tipos de censura com relação às obras cinematográficas. Entretanto, outras forças
políticas se agitavam, não se conformando com essas nomeações e tipos de políticas que
tinham como pano de fundo o resquício do regime de Franco, e vários partidos de oposição
foram criados, dentre eles, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE), que buscava
confrontar a política vigente da época.
O cinema, então, “era um reflexo da situação de efervescência política e social que se
vivia naqueles tempos” (PUIGDOMENECH, 2007, p. 21). Com a chegada da transição
democrática, onde a liberdade de expressão podia ser exercida pelo menos de forma mais
livre, ainda existia resistência de grupos com relação à experimentação dessa nova liberdade.
Algumas das leituras da realidade da prática vigente pareciam de certa maneira estar em
consonância com o que foi produzido cinematograficamente na época de Franco, pelo menos
no que diz respeito a um cinema político e de contestação. Foi realizado um documentário
Esse documentário era intitulado Raza, el espíritu de Franco (1977), realizado por Gonzalo
Herralde e com fragmentos do primeiro longa. Com esse filme e outros de mesmo cunho,
parecia haver uma nostalgia com relação à política da época do fascismo. Entretanto, como
representação de outro segmento, havia obras que postulavam filmes de cunho não político.
Um exemplo desse tipo de produção é o filme El apolítico (1977), de Mariano Ozores, que
trata de um chefe administrativo de uma empresa, homem alheio à política, que nunca pensou
em expressar a sua opinião, e que na ocasião vivia um momento de decisão, por causa das
circunstâncias.
Na época da transição, existiam os filmes que, de certo modo, demonstravam querer a
continuidade do regime. Filmes como Y al tercer año resucitó (1979) e De camisa vieja a
chaqueta nueva (1982), ambos de Rafael Gil, tinham seu espaço nas telas de cinema. Havia,
também, outra corrente que tentava recuperar o tempo perdido, depois de muito cerceamento
artístico. Para esse segmento, o sexo e a política que denunciava as atrocidades franquistas
eram temas recorrentes de abordagem. O filme Asignatura pendiente (1977) de Jose Luis
Garci “era o filme que melhor refletia o sentimento daqueles cidadãos que naquele período
histórico apresentavam certa ansiedade em recuperar o tempo perdido”
(PUIGDOMOENECH, 2007, p. 22). No filme La escopeta nacional (1977), de Luis G.
Berlanga, o cineasta estabelece uma metáfora referindo-se a um segmento da sociedade que
tentava viver à margem dos acontecimentos da época. Termina o filme com esta frase: “Y ni
fueron felices, ni comieron perdices porque allí donde haya ministros un final feliz es
imposible”. Siete dias de enero (1978), uma produção de Juan Antonio Bardem, conta a
história da matança em um escritório na calle Atocha de sete advogados trabalhistas, um
estudante de direito e um escriturário, ocorrida no dia 24 de janeiro de 1977.
principalmente com relação à nudez no cinema, desde que houvesse uma prévia exigência do
roteiro, deu origem a um novo subgênero, el destape. O filme Furia española (1974), de
Francesc Betriu, teve vinte cortes, para poder estrear. Entretanto, o filme La trastienda
(1975), dirigido por Jorge Grau, entrou para a história por mostrar a primeira cena de nudez
do cinema espanhol. No que se referia a filmes de conteúdo político, a censura ainda era
muito mais acirrada. As novas medidas de supressão da censura, depois da morte do general
Franco, não garantiam a estreia dos filmes, ou seja, eles eram produzidos, mas não havia
nenhuma garantia de que estreassem, o que abalava muito aos produtores que investiam
dinheiro em novos filmes. O filme La ciutat cremada (1976), de Antoni Ribas, que fazia
menção à trágica semana de atentados, repressão e violência vivida em 1909 em Barcelona,
passou por essa censura. A produção retrata a intervenção dos anarquistas e socialistas que
eram contrários ao embarque de reservistas espanhóis para o Marrocos para defender
empresas espanholas atacadas por tribos.
Em abril de 1977 foi legalizado o Partido Comunista, e nesse mesmo dia foi
autorizada a estreia do filme Viridiana (1961), de Luis Buñuel. O Noticiário Cinematográfico
Espanhol (NO-DO), criado em 1942, foi extinto nesse período e houve com a Lei de
Associação Sindical, mais um declínio da censura, alterando as fixas estruturas do cinema
espanhol.
Depois da morte de Franco, o fim da censura cinematográfica ocorreu de uma maneira
gradativa. A Junta de Censura e Apreciação de Películas desaparecia de forma oficial em
1977, através de um decreto. Com essa medida, filmes estrangeiros que não podiam ser
estreados na época do ditador como O encouraçado Potenquim (1925), de Eisenstein, O rito
(1969), de Bergman e O grande ditador (1940), de Charles Chaplin puderam ser estreados no
Esse período, marcado pela invasão de filmes estrangeiros, inibiu a produção cinematográfica
espanhola, salvo os filmes de cunho erótico.
O fim “oficial” da censura parecia não ser tão oficial assim. No Ministério da Cultura,
o responsável pela cinematografia era trocado frequentemente. Em 1978, foi criada uma nova
classificação para os filmes de “conteúdo erótico e violento”: sob o domínio de Garcia
Moreno, e com a iniciativa de não “ferir a sensibilidade do espectador”, entrava em vigor a
letra “S” (pornô soft). O filme Emmanuelle (1973), de Just Jaeckin, foi rotulado com essa
classificação. Vários filmes espanhóis receberam essa letra, dentre eles, Bilbao (1978), de
Bigas Luna. No que diz respeito ao cinema político, algumas produções impensáveis de serem
realizadas nessa época, começaram a ser vistas nas telas de cinema espanholas, como El
proceso de Burgos (1979), de Imanol Uribe, que retratava o grupo terrorista ETA. Todavia,
não foi simples a realização das estreias: os dissidentes do franquismo boicotavam o dinheiro
reservado para as produções nacionais, além de promover atentados nas salas de cinema. Os
dois tipos de cinema, o erótico e o político, prevaleciam na Espanha na época da transição
espanhola, entretanto, começou a surgir outro tipo de cinema: a “comedia madrileña”. Muitos
críticos afirmam que foi essa a inspiração de Pedro Almodóvar. As primeiras produções
advindas desse subgênero foram Tigres de papel (1977), de Fernando Colomo e Colorín
Colorado (1976), de José Luis García Sánchez. Essas obras eram marcadas por “referências
cinéfilas e certo toque intelectual” (PUIGDOMENECH, 2007, p. 30). Era um cinema
divertido e produzido com baixo orçamento. Outro filme dessa época foi Ópera prima (1980),
de Fernando Trueba, uma comédia que mostrava uma geração que queria viver em liberdade.
Com a massiva invasão de filmes estrangeiros na Espanha, “as cotas de exibição”
também foram motivo de renovação e em 1980, com a implantação de um novo decreto, a
principalmente no mercado espanhol, vigora até os dias atuais. Pedro Almodóvar, em
entrevista a um programa brasileiro intitulado Roda Viva (1995), mostra-se contrariado com
este domínio, alegando que a prática inibe as produções nacionais.
Em 1977, ocorreram as primeiras “elecciones generales”, depois destas serem
aprovadas pela Constituição. Esse fato chamou particularmente a nossa atenção porque o
primeiro filme de Pedro Almodóvar Pepi... foi inspirado na fotonovela escrita para a revista
El víbora sob o título de erecciones generales. Nesse sentido, há um jogo de palavras que
denota uma alusão às eleições espanholas.
Os socialistas elegeram Tierno Galván e Narcís Serra prefeitos das principais cidades
da Espanha: Madri e Barcelona. Com essa vitória, os espanhóis tinham esperanças de uma
renovação política mais profunda no país, não vista ainda desde a morte de Franco. No que
diz respeito ao cinema, essas reformas também não demonstravam muita evolução e uma vez
mais com Luis Escobar de la Serra, nomeado diretor geral de cinematografia, tentando elevar
a produção cinematográfica promoveu um concurso para que se produzissem adaptações
cinematográficas de grandes obras espanholas literárias com o intuito de que essas produções
fossem estreadas na televisão. Uma boa parte do orçamento da RTVE era destinada para essas
produções com o objetivo de melhorar as relações entre cinema e televisão.
Outra classificação foi criada para diferenciar os filmes considerados de conteúdo
pornográfico: a estes era atribuída a letra “X”. Além dessa classificação, Adolfo Suarez
também criou um último decreto onde as produções de “especial qualidade” passaram a ser
nomeadas produções de “alto nível”, sendo estas desenvolvidas com um orçamento sempre
muito alto.
Em 1980, foi proibida a estreia do filme El crimen de Cuenca, de Pilar Miró, que
a ira de algumas cabeças mais conservadoras da Espanha, apesar de o fato mostrado ter
acontecido cerca de sessenta e cinco anos. A censura, dessa maneira, foi posta em xeque e,
nesse sentido, podia-se constatar que havia um segmento político que se encontrava
diretamente ligado ao regime de Franco. Com relação aos filmes de conteúdo pornográfico,
estes recebiam as suas classificações e eram estreados, ao passo que os filmes de conteúdo
político, principalmente os que retratavam as barbáries ocorridas no regime do ditador,
sofriam violentas formas de censura. O cinema, nesse sentido, teve papel fundamental ao
detectar as forças que imperavam no momento. Franco havia morrido, a democracia estava
aparentemente estabelecida e, consequentemente o cinema poderia ter liberdade de expressão.
Entretanto, isso não ocorria.
No dia 23 de fevereiro de 1981, depois da demissão de Adolfo Suarez, houve uma
tentativa de golpe de Estado que reafirmava o descontentamento de forças políticas de direita.
O golpe foi mal sucedido e contraditoriamente reafirmou a opção democrática. Depois da
morte de Franco em 1975 e, através de filmes censurados retratando, principalmente, a severa
realidade franquista, podemos inferir que o processo de democratização não foi algo fácil de
ser estabelecido. Já havia se passado seis anos da morte do general e ainda assim ocorreu a
tentativa de golpe de estado. Forças políticas conservadoras e um segmento da sociedade
ainda estavam de acordo com o regime ditatorial e queria que ele perdurasse. Superado o
incidente do golpe, o filme El crimen de Cuenca foi estreado em 14 de agosto de 1980.
Em julho de 1981, foi aprovada a lei de divórcio e esta deu origem a varias
representações nas telas, como os filmes El divorcio que viene (1980), de Pedro Masó, El
primer divorcio (1981) e Qué gozada de divorcio (1981), ambos de Mariano Ozores.
O filme Las verdes praderas (1979), de José Luis Garci, fazia uma ferrenha crítica a