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A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE ENRIQUE DOMINGO DUSSEL

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LUIZ MEIRELLES

A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE

ENRIQUE DOMINGO DUSSEL

Dissertação apresentada à

Banca Examinadora da

Pontifícia Universidade

Católica de São Paulo, como

exigência parcial para

obtenção do título de

MESTRE em FILOSOFIA,

sob a orientação do Prof.

Doutor Benedito Eliseu Leite

Cintra.

FILOSOFIA

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

(2)

2

LUIZ MEIRELLES

A IDÉIA DE JUSTIÇA NA OBRA DE

ENRIQUE DOMINGO DUSSEL

Banca Examinadora:

(3)

3

DEDICATÓRIA

Dedico este trabalho ao meu pai, Antonio

Meirelles

(in memoriam)

e à minha mãe,

(4)

4

AGRADECIMENTOS

Ao Prof. Doutor Benedito Eliseu Leite

Cintra, pela orientação segura e decisiva

para a realização deste trabalho.

Aos amigos pelo constante incentivo.

A todos os professores e professoras que

têm me conduzido pelo mundo fascinante

do conhecimento.

(5)

5

RESUMO

A presente dissertação apresenta a idéia de Justiça na obra de Enrique Dusel, destacando seu método analético de destruição da história da Ética, o qual parte do resgate dos conteúdos de eticidade existentes nas altas-culturas, anteriores ao mundo helenístico, atinge a Grécia Antiga, o medievo, o mito da Modernidade e a contemporaneidade, sempre tendo em vista a responsabilidade diante do Outro, fundamento da Ética da Libertação e da Justiça. Na parte final apresenta sua proposta para uma sociedade fundada no amor-de-justiça, a partir das categorias humanas fundamentais, Erótica, Pedagógica e Política, ressaltando os desvios que essas categorias têm sofrido ao longo dos séculos, a necessidade de reestruturação e os caminhos possíveis para alcançar esse fim.

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6

ABSTRACT

This dissertation presents the idea of Justice at the Enrique Dussel’s work , by highlighting your own analectic method of destruction of the history of the Ethic, which begins from the recuperation of the ethics content existing at the high-cultures, previous to the Hellenistic world, reaches the Classical Greece, the medieval period, the myth of the Modernity and the Contemporary world, always in view of the responsibility for the Other, which is the basis of the Ethics of the Liberation and of the Justice. In the final part it presents Dussel’s proposal for a association founded at the love-of-justice from the basal categories humans, Erotic, Pedagogical and Political, the deflections than those categories have suffered throughout the centuries, the need of their restructuration and the possible ways for ranging that aim.

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7

EPÍGRAFE

“Justiça é o hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-serviçalmente ao Outro o que lhe corresponde, não pela lei do Todo, mas enquanto Tal - enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável, enquanto origem de todo direito positivo. Justiça é disponibilidade diante dos entes, não fetichismo nem absolutização das possibilidades do pro-jeto de Totalidade, é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente. Justiça é desapego à liberdade, é ‘pobreza’ como atitude libertadora, que permite entregar ao Outro o que é seu.”

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ...12

1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA

AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU PERIFÉRICA...19

1.1 - UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA ... 20

1.2 - ARGENTINA: BREVES CONSIDERAÇÕES ... 21

1.3 - ENRIQUE DUSSEL: DA ARGENTINA PARA O MUNDO ... 25

1.4 - EMMANUEL LÉVINAS: FONTE DE INSPIRAÇÃO PARA ENRIQUE DUSSEL ... 28

1.4.1 - DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO ... 30

1.4.2 - RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO... 32

1.4.3 - O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA JUSTIÇA ... 35

1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA: SENTIDO E MÉTODO...38

1.5.1 - O MÉTODO ANA-DIA-LÉTICO... 43

2 – O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O MITO DA

MODERNIDADE ...45

2.1 - O ESTÁGIO I: EGÍPCIO MESOPOTÂMICO...47

2.2 - O ESTÁGIO II: INDO-EUROPEU ...49

2.3 - O ESTÁGIO III: ASIÁTICO-AFRO-MEDITERRÂNEO ...53

2.4 - ESTÁGIO IV: O SISTEMA MUNDO ...57

2.4.1 - INVENÇÃO E DESCOBRIMENTO: PRIMEIRO PASSO CONSTITUTIVO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA ... 58

2.4.2 - DA CONQUISTA À COLONIZAÇÃO: SEDIMENTAÇÃO DA INJUSTIÇA NA AMÉRICA LATINA... 59

3 –

DE-STRUIÇÃO

DA ÉTICA OCIDENTAL...61

3.1 – GRÉCIA ANTIGA: O DESVIO ORIGINÁRIO ...62

(9)

9

3.3 – O PERÍODO MODERNO ...67 3.3.1 - RENÉ DESCARTES E A MODERNIDADE: DO “EGO CONQUIRO”

AO “EGO COGITO” ... 68 3.3.2 - A SEPARAÇÃO ENTRE FORMAL E MATERIAL EM KANT E SUAS

CONSEQUÊNCIAS ... 70 3.3.3 - HEGEL: O FIM DA ALTERIDADE ... 71 3.4 – O FIM DO HOMEM: UMA DISTINÇÃO RADICAL ENTRE

HEIDEGGER E DUSSEL...73 3.5 – A CRISE DA MODERNIDADE E O PROBLEMA DAS ÉTICAS

CONTEMPORÂNEAS ...80 3.5.1 - TAYLOR E O PROBLEMA DA JUSTIÇA... 82 3.5.2 - COMO A NEGAÇÃO DA RAZÃO EM RORTY LEVA À

PERPETUAÇÃO DA INJUSTIÇA ... 84 3.5.3 - A IMPOSSIBILIDADE DO CONTRADISCURSO DA PERIFERIA NA

TEORIA DE HABERMAS ... 86 3.5.4 - O ENSEJO À INJUSTIÇA N A TESE DE KARL-OTTO APEL ... 89

4 – PROPOSTA DE UMA ÉTICA MUNDIAL: FUNDAMENTO

PARA JUSTIÇA...92

4.1 – O HOMEM COMO FUNDAMENTO DA ÉTICA E DA JUSTIÇA ...92 4.1.2 - AS POSSIBILIDADES ÔNTICAS: ABERTURA PARA REALIZAÇÃO

HUMANA NA JUSTIÇA ... 95 4.2 – DA DE-STRUIÇÃO DA ERÓTICA VIGENTE À RELAÇÃO DE AMOR

-DE-JUSTIÇA...97 4.2.1 – A IDÉIA DE JUSTIÇA NA ERÓTICA DA LIBERTAÇÃO... 101 4.2.2 – CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS EM RELAÇÃO À ERÓTICA

DUSSELIANA ... 105 4.3 – PEDAGÓGICA: INSTRUMENTO PARA REALIZAÇÃO DE JUSTIÇA ...107 4.3.1 – A LEITURA DUSSELIANA DA REALIDADE PEDAGÓGICA

VIGENTE ... 107 4.3.2 – A DE-STRUIÇÃO DAS PEDAGÓGICAS ONTOLÓGICAS DESDE A

(10)

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4.3.4 - CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS ACERCA DA PEDAGÓGICA

PROPOSTA POR ENRIQUE DUSSEL... 115

4.4 – A POLÍTICA COMO LIBERTAÇÃO E JUSTIÇA ...117

4.4.1 - A POLÍTICA NA LEITURA DUSSELIANA ... 117

4.4.2 - A CRÍTICA AOS SISTEMAS POLÍTICOS TOTALITÁRIOS... 121

4.4.3 - PROPOSTA PARA UMA POLÍTICA DE LIBERTAÇÃO ... 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS ...128

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LEGENDA

CIE = Dussel, Enrique. Filosofia da Libertação: Crítica à ideologia de Exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.

DHE = DUSSEL, Enrique. Para una de-strucción de la História de la

Ética. Buenos Aires, Ser y Tiempo, 1972.

ELL = DUSSEL, Enrique. Para uma ética da libertação

latino-americana. São Paulo, Piracicaba, Loyola, UNIMEP, sd., 5 volumes.

EL = DUSSEL, Enrique. Ética da Libertação, na idade da globalização e

da exclusão. Petrópolis, Vozes, 2000.

FL = Dussel, Enrique. Filosofia da libertação. São Paulo: Loyola, 1977.

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INTRODUÇÃO

O mundo de hoje está cada dia mais violento. Em todos os lugares o desrespeito ao outro se faz cada vez mais grave. Até pouco tempo, essa guerra se fazia com maior evidência nos países mais pobres, mas hoje a situação é diferente. O isolamento do homem o está levando ao extremo da violência e mesmo à loucura, e até nos países ricos vêm-se ampliando focos de violência, considerados às vezes mais absurdos do que nos demais, pois na periferia a violência sempre foi mais aceita em razão dos vários fatores sócio-econômicos.

Em todos os setores sociais o desequilíbrio se faz presente. A família é um dos núcleos que vêm sendo agredido de modo contumaz. A relação entre marido e mulher se faz mais e mais tênue e quase já não há laço que a segure. Entre pais e filhos a situação não é diferente. Cada vez mais cedo os filhos alçam vôo em direção à liberdade1, e, paradoxalmente, estatelam-se no chão

duro da vida. Os vizinhos já não são conhecidos, e, mesmo no trabalho, as relações são apenas profissionais...

Pense-se na situação de um trabalhador ou trabalhadora que sai de casa às 4 horas da manhã, viaja cerca de 04 horas, em várias conduções, para chegar ao trabalho e dali sair somente quando a noite cai. Então são mais quatro ou cinco horas de volta para casa... Ali encontra, se tanto, alguns de sua família em frente a um aparelho de televisão. Não lhe resta alternativa, soma-se ao grupo, pois do contrário soma-será dele excluído. E logo vem o sono, incompleto, interrompido pela necessidade do trabalho. Assim a humanidade vai-se destruindo aos poucos, transformando homens em autômatos. Essa é apenas uma dentre as várias situações em que vivemos, direta ou indiretamente.

O problema existe e todos reconhecem, uns mais outros menos. Mas, por onde começar a solucioná-lo?

Preliminarmente, é preciso ressaltar a imperiosidade de se atacar a questão em seu fundamento. Não se pode querer tratar uma doença

1 “Liberdade”, aqui, entenda-se como abandono da proteção paterna e materna em nome de

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eliminando seus sintomas, é preciso extinguir a sua causa. Mas, um problema social de revestimento mundial é de difícil enfrentamento. Tem sido mais fácil àqueles que conduzem as nações adotarem paliativos, até porque atacar a origem implica atingir as colunas de sustentação do poder estabelecido.

Nesse contexto de desestabilidade social, de esvaziamento do ser humano, encontra-se o filósofo, aquele que ainda resiste ao sufocamento produzido pelos instrumentos do poder, aquele que ainda insiste em pensar livremente, que teima em propor uma sociedade justa, equilibrada, onde ninguém tenha tanto a ponto de obrigar muitos a nada terem, e onde todos possam ser humanos, livres, conscientes. Mas, posicionar-se dessa forma exige renúncia e, sobretudo, coragem e firmeza, pois a máquina do progresso busca, em cada recanto, esses focos de resistência com intuito de extingui-los, não pela força física, demasiadamente visível e ultrapassada, mas pela sedução, que embebe os incautos e os arrebata para a ciranda consumista, privando-os de condições para reflexão.

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Evidentemente, esse caminho começou bem anteriormente, talvez mesmo inconscientemente. O questionamento do sistema2 vigente é muito

comum entre os adolescentes, mas poucos levam consigo o sonho de ver um mundo melhor e raros decidem estabelecer um projeto de vida contemplando esse fim. Desde os tempos do curso de Direito, na “Casa Amarela”, em Santos, mais acentuadamente a partir do segundo ano, um pequeno grupo de companheiros de turma ficou marcado pela afinidade especial quanto à irresignação frente ao sistema competitivo em que estávamos inseridos. As questões que mais inquietavam eram as de fundamento, e o grupo 3, pequeno,

composto de pessoas e diversas classes sócio-econômicas e faixas etárias, destoante da maioria, sempre se interessava muito mais pelas discussões filosóficas do Direito do que propriamente pela sua técnica. Nesse sentido, a tônica foi o constante questionamento dos métodos utilizados e da validade dos conteúdos apresentados pelos professores, sobretudo com a preocupação de conhecer o sistema jurídico desde a prática processual até os últimos fundamentos, quais sejam, os fundamentos filosóficos do Direito. No curso de Letras, o laço com a Filosofia se estreitou, e muitas vezes trabalhei com a Filosofia em aulas Literatura, o que se, para muitos era e é até óbvio, para outros, causa estranheza. É que algo havia que me causava insatisfação, talvez a idade ou mesmo a pouca experiência de vida não me permitia ver com menos obscuridade a importância da Filosofia em minha vida. Mas, um dia, ainda concluindo o curso de Letras, um amigo bateu à porta e disse: – Vamos fazer Filosofia? A resposta não demorou e parti para um novo desafio: compreender o mundo do ponto de vista filosófico.

2 “Sistema” aqui e em toda a dissertação deve ser entendido como a totalidade

sócio-econômico-política em que o homem se insere.

3 Importante lembrar que desse grupo, firmamos uma amizade fundamental com o Ricardo e a

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Foi durante a Licenciatura em Filosofia, com a oportunidade de conhecer mais propriamente o pensamento filosófico ocidental, que, apesar das magistrais e numerosas aulas sobre os pilares da filosofia ocidental encontrei no pensamento de Enrique Dussel eco para os meus questionamentos, apesar das poucas aulas. Daí começaram a surgir o trabalho de conclusão do curso de licenciatura e a indicação para a pesquisa de mestrado. Isso porque sua filosofia está fortemente vinculada à práxis, sobretudo à práxis latino-americana, numa luta contra a elitização do conhecimento, em que mostra com propriedade, ao meu ver, a necessidade de se estabelecer uma filosofia autenticamente latino-americana, livre do pensamento totalizador e dominador europeu e norte-americano. Da leitura de suas obras, depreende-se facilmente que o filósofo já não pode mais ficar enredado numa elite, servindo aos dominantes e deles se servindo. Ao contrário, diante da massificação imposta por europeus e norte-americanos, que exclui o pobre – e isso vale para toda a América Latina e outras regiões periféricas –, cabe ao filósofo o papel de trabalhar para que as pessoas possam ter uma consciência crítica mais sedimentada e, por conseguinte, possam atuar de forma mais eficaz diante da realidade de que fazem parte. O filósofo deve, pois exercer o papel de pedagogo da cidadania.

A presente dissertação tem por fim apresentar a idéia de Justiça constante na obra de Enrique Domingo Dussel, bem como sua proposta para uma sociedade mais justa a partir da restruturação das categorias fundamentais, Erótica, Pedagógica e Política.

No primeiro capítulo serão dedicadas algumas páginas para tratar de aspectos que são sumamente importantes para uma compreensão mais abrangente do trabalho. Serão tratadas as questões indicativas do tema propriamente dito, além de uma breve apresentação da estrutura desta dissertação.

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ainda, alguns pontos demonstradores da necessidade de se trazer à tona essa discussão.

Considerando a importância do contexto social argentino em que o pensamento de Enrique Dussel floresceu, serão expostas também breves considerações acerca da formação Argentina até 2ª Guerra Mundial, para, então, ser apresentada, já contextualizada, uma biografia incompleta de Dussel, a fim de que possam ser delineados, então, os sempre presentes cruzamentos entre a vida e a filosofia do autor escolhido.

A parte final do primeiro capítulo tratará das duas chaves principais para o entendimento da filosofia dusseliana, o sentido de de-struição empregado pelo autor e o método por ele empregado, qual seja a ana-dia-lética,

demonstrando a intrínseca e necessária relação com a Justiça, dedicando-se, ainda, um item especialmente a Emmanuel Lévinas, filósofo fundamental para a libertação filosófica de Enrique Dussel.

O trabalho de Enrique Dussel envolve uma nova proposta de sociedade livre, justa e solidária, e propostas com esses objetivos sempre estiveram presentes na história da humanidade. Entretanto, a coragem de Dussel não se limita a apresentar uma alternativa ao sistema vigente. Ele pretende, de fato, uma sociedade estruturada em novos fundamentos. E isso significa falar em

de-struição da história da Ética, cujo sentido será explicado mais adiante, ainda no capítulo inicial, por ser o caminho que constitui o eixo central de todo o pensamento dusseliano.

Os temas abordados por ele envolvem vários aspectos da sociedade, mas, fundamentalmente, a Ética é o principio norteador de seus estudos, como será visto ao longo do trabalho. Sua busca de um sistema social justo tem em pauta sempre a necessidade de o homem ser sujeito em condições iguais a todos, independentemente de sua cor, raça, sexo, religião, história ou geografia.

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É imperioso demonstrar como e porquê Dussel procede à de-struição

da Ética Ocidental, e, por conseqüência, os fundamentos da nova Ética de Libertação proposta por ele, em que o Outro assume papel fundamental, e constitui o ponto de partida e de chegada de todas as demais reflexões.

Não se pode pensar a filosofia sem pensar a história. Com esse marco, será delineada no segundo capítulo do trabalho a releitura crítica da história da filosofia4 segundo Dussel, o qual vai muito além da Grécia Antiga, buscando

conteúdos filosóficos nas civilizações anteriores que contribuíram para a formação do pensamento filosófico e da cultura ocidental, e vem até o momento contemporâneo, com a globalização.

No terceiro capítulo será abordado o processo de-struição e, considerando que a intenção de Dussel não é apenas uma proposta superficial, calcada nos mesmos princípios que sustentam o sistema vigente, mas a de-struição da Ética no sentido filosófico do termo, isso implica na busca do desvio originário, que, segundo o filósofo, está na Grécia Antiga. Nesse sentido, aliás, ele compara o ethos helênico e o ethos judaico, a fim de apontar o que se pode denominar como origem da implantação da injustiça na sociedade ocidental. Uma vez estabelecida a de-struição inicial, será apresentada sua crítica às principais teorias que ensejaram os fundamentos dos sistemas que conduziram o homem ao longo de sua história, demonstrando a influência do desvio originário e o distanciamento do homem dos princípios de justiça, incluindo uma reflexão acerca da história da América Latina, principalmente sobre a forma pela qual se deu a descoberta e a colonização, do ponto de vista filosófico, o que é de fundamental importância, posto que marca a expansão dos fundamentos europeus de exploração do outro, e diz respeito intimamente à nossa realidade atual.

Em função das peculiaridades do período contemporâneo, bem com de sua complexidade, o último tópico da terceira parte contemplará o diálogo estabelecido entre Dussel e as principais correntes filosóficas atuais, sempre tendo em vista aclarar a importância da reflexão sobre a Ética e a Justiça.

4 Para Dussel, tratar de Filosofia significa tratar de Ética e tratar de Ética significa tratar de

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O quarto capítulo mostrará, enfim, as propostas da Ética de Libertação, as quais indicam a necessidade de reestruturação da sociedade mundial a partir das relações humanas fundamentais, bem como a correlação necessária com a idéia de Justiça. Para isso, a proposta de resgate da alteridade e de re-construção das relações humanas, a partir das categorias fundamentais, a Erótica, a Pedagógica e a Política, por serem os pilares para a realização da justiça.

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1 – DA NECESSIDADE DE UMA FILOSOFIA

AUTENTICAMENTE LATINO-AMERICANA OU

PERIFÉRICA

O primeiro ponto que chama a atenção é a luta de Enrique Dussel contra a exploração do pobre, a sua luta pela afirmação de uma filosofia autenticamente latino-americana. Esse trabalho é sumamente dificultado em razão de a América Latina constituir um objeto de dominação dos povos do hemisfério norte, mais precisamente dos europeus desde 1492 e, depois da 2ª

Guerra, também dos E.U.A. Mesmo assim, é preciso se propor a pensar e estabelecer uma filosofica autêntica. Mas, para isso, não se pode ficar limitado a estudar os pensamentos europeu e norte-americano, pois estão fundamentalmente vinculados às suas realidades. É necessário ir além, ultrapassar os limites do pensamento dominante e informar um novo pensamento, intrinsecamente ligado à realidade Latino-Americana, e, portanto, erigir a fundação de uma nova Filosofia — Filosofia Latino-Americana, ou Filosofia da Periferia —, que atenda às expectativas das imensas maiorias vitimadas pelo sistema vigente.

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realidade desde o período de sua formação. Por isso a necessidade, a partir da imersão total no mundo filosófico existente, de se começar a emergir, buscar a superfície e lançar-se ao movimento livre de um novo pensamento.

1.1 – UMA NOVA IDÉIA DE JUSTIÇA

Dentro da obra dusseliana, um dos temas mais importantes é a sua idéia de Justiça. É que todas as batalhas travadas por Enrique Dussel buscam estabelecer um estado de justiça desde uma atitude ética entre os seres humanos, sem privilégios. E mais, ao defender que aquele que tem mais deve servir àquele que tem menos, Dussel expressa aí a premissa fundamental da justiça, a qual define como

o hábito que dispõe e tende a dar efetiva e ôntico-serviçalmente ao Outro o que lhe corresponde, não pela lei do Todo, mas enquanto Tal - enquanto Outro, enquanto pessoa inalienável, enquanto origem de todo direito positivo. Justiça é disponibilidade diante dos entes, não fetichismo nem absolutização das possibilidades do pro-jeto de Totalidade, é um colocar à disposição do Outro os entes que podem saciar sua fome, mediar sua libertação cultural e humana integralmente. Justiça é desapego à liberdade, é ‘pobreza’ como atitude libertadora, que permite entregar ao Outro o que é seu. (ELL II 149-150)

Para se chegar à compreensão dessa idéia de justiça, faz-se necessário todo um trabalho de pesquisa no sentido de sua fundamentação. O pensamento de Dussel é de fato muito valoroso, porquanto vai buscar as raízes do pensamento ocidental que disseminou a idéia de dominação e, a partir daí, apontar um caminho distinto para a ética mundial, mostrando que, para se fundar a justiça, é preciso reconstruir o paradigma ético vigente.

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1.2 ARGENTINA: BREVES CONSIDERAÇÕES

Segundo Enrique Dussel, para fazer Filosofia, é preciso começar pela história, posto não haver como separar o homem do mundo em que está inserido. Assim, antes de ingressar no foco central do trabalho, faz-se importante expor alguns aspectos históricos que envolveram a Argentina, seu berço originário. Dussel nasceu em plena crise econômica mundial resultante da superprodução norte-americana e européia. Naquela época, a Inglaterra exercia forte influência política sobre a Argentina, enquanto os EUA controlavam o comércio local.

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Durante o governo de Roca (1880 - 1886), foram feitos ajustes para possibilitar o desenvolvimento comercial do país, voltado para a exportação. Foi a entrada do “sertão” argentino no ciclo produtivo. Veja-se, a propósito, que em 1879, ocorrera a Guerra do Deserto, que eliminou as aldeias indígenas e preparou a colonização pelos imigrantes.

Com o capital estrangeiro5, a Argentina aumentou a rede ferroviária de

1.000 Km, em 1871, para 12.000 Km, até a 1ª Guerra Mundial, direcionada sempre para os portos, com o objetivo de exportação.

De 1885 a 1889 foram mais de 700.000 imigrantes, fluxo esse que perdurou até a 1ª Guerra. Córdoba, por exemplo, foi um centro recebedor de imigrantes, em sua maioria com conhecimentos técnicos mais avançados do que os argentinos, o que colaborou decisivamente para que aquela região tenha se tornado grande produtora de trigo, um dos importantes produtos do país. Todavia, os imigrantes eram instalados como meeiros no processo produtivo e não tinham propriedades, e diante dessas discriminações, consequentemente tinham poucos direitos e nenhum poder político.

O interesse da classe dominante, no entanto, não se fez inteiramente bem sucedido, pois 70 por cento dos imigrantes preferiram ocupar os centros urbanos e não os rurais. Isso provocou uma autêntica invasão estrangeira, sobretudo espanhola e italiana, das cidades argentinas, posto que a população nata estava equilibrada entre a área rural e a cidade, o que significava aproximadamente 1.500.000 habitantes em cada setor , ao passo que os estrangeiros, que naquele período - 1900 a 1930 - eram em número semelhante ao dos argentinos - aproximadamente 3.000.000, dividiam-se em cerca de 2.100.000 nas cidades e apenas 900.000 na área rural.

Essa preponderância de estrangeiros em Buenos Aires e regiões vizinhas provocou grandes transformações socioculturais na sociedade local. A produção artesanal entrou num processo de extinção em face do surgimento dos operários industriais estrangeiros, que dominaram amplamente aquela atividade econômica, vez que tanto o setor econômico secundário quanto o

5 Todos os dados estatísticos referentes à Argentina foram extraídos das obras dos autores

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terciário foram tomados por eles, vindos da Europa, onde já haviam obtido esses conhecimentos.

A partir de 1918, com o fim da primeira Guerra Mundial, a Inglaterra começou a perder importância em face dos EUA; a indústria frigorífica, o transporte automotor e as primeiras indústrias químicas, propulsores do mercado nacional, assim como os empréstimos governamentais e as instalações de bancos, entre outros, já foram frutos do investimento norte-americano. Nesse período, os grupos empresariais procuraram se concentrar em Buenos Aires e Rosário, na tentativa de influenciar o governo, mas pouco conseguiram porque não conseguiram estabelecer fortes ligações com o Partido Radical, da elite política, governante no interregno de 1916 a 1930 e que não discriminava os imigrantes industriais.

Esse quadro de predomínio norte-americano prosseguiu até 1930, quando assumiu a presidência da Argentina o General Agustín Justo, que promoveu mudanças na estrutura jurídico-econômica conforme os interesse ingleses, que passaram a controlar as ações políticas na tentativa de retomar o poder econômico, que continuava, entretanto, com os EUA.

No período da 2a Guerra (1943/1945), a Inglaterra perdeu seu poder para os EUA e também para a Alemanha. Nesse período, o mercado internacional praticamente estagnou, propiciando aos países em formação, inclusive a Argentina, o desenvolvimento da economia própria, sempre com a ajuda dos EUA.

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Havia, nesse período, início do século, quatro grandes grupos políticos razoavelmente estáveis: Unión Cívica Radical; Democratas Progressistas; conservadores e Socialistas.

A Unión Cívica Radical era um grupo popular, que tinha o apoio das massas e buscava, assim, a liberdade eleitoral. Com esse pensamento, liderou a Revolução de 1905, fracassada quanto aos objetivos de poder, mas detonadora do processo concluído em 1912, com a aprovação da lei Sáenz Peña, que estabeleceu o voto universal, secreto e compulsório, fato que ampliou consideravelmente a base eleitoral de 20%, em 1910, para 60%, em 1916. É de fundamental importância destacar que, mesmo formado pelas altas classes econômico-sociais ligadas à agropecuária, oligarquias e famílias tradicionais, os radicais tinham o apoio popular.

O Partido Conservador, por sua vez, nada apresentava de conservadorismo nacional, como seria de se supor, mas era sim, subserviente aos interesses europeus, e suas decisões políticas baseavam-se em acordos dos grupos dominantes. Esse grupo permaneceu no poder por 30 anos, e foi marcado como progressista, reformador, centralista e aristocrático, opondo-se aos radicais. Isso se evidenciou nas eleições de 1916, quando houve a coligação entre o Partido Conservador, de Buenos Aires, a Liga der Sur (Liga Sulina) e demais partidos conservadores, formando o Partido Democrata Progressista.

O Partido Socialista, criado em 1894 por refugiados socialistas franceses, alemães e italianos, com base na capital federal, ligado também a bases populares trabalhistas, conseguiu melhores resultados a partir de 1916. Sua ideologia programática era trazida do centro europeu, habilitando-o, assim, naturalmente, a liderar o contingente imigrante, razão pela qual era defensor da naturalização dos estrangeiros. Apesar dos movimentos anti-estrangeiros, nas eleições nacionais de 1914, os Socialistas obtiveram vitória na Câmara dos Deputados.

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grande discussão travada entre o Partido Socialista, o Conservador e o

Radical, a classe industrial Argentina, que surgira com o século XX não tinha defensores, posto que os protecionistas pensavam na agropecuária e não na indústria, formada por estrangeiros.

A partir de 1945, os EUA passaram a ter influência decisiva no comportamento político-econômico da Argentina, afastando o domínio inglês definitivamente. Começou, então, a preocupação do bloco capitalista, liderado pelos norte-americanos, em preservar o sistema vigente e impedir quaisquer ameaças, sumamente advindas do bloco comunista, liderado pela URSS.

As “marchas” “contra-marchas” da política e da economia argentinas seguem até os dias de hoje, como toda a América Latina, sofrendo as ingerências estrangeiras. O ponto que culminou com o exílio de Dussel no México foi o retorno de Perón em 1973, conforme se verá adiante.

1.3 – ENRIQUE DUSSEL: DA ARGENTINA PARA O

MUNDO

Enrique Domingo Dussel Ambrosini nasceu numa pequena aldeia chamada La Paz, a 150 Km de Mendoza, Argentina, no dia 24 de dezembro de 1934, dentro de um contexto de exploração e vitimação dos argentinos6, os

quais eram desprezados em nome de um mercado de exportação. Durante sua infância acompanhou frequentemente seu pai pelas montanhas em visitas médicas a vilarejos pobres e desprovidos. De 1953 a 1957 cursou Licenciatura em Filosofia na Universidade de Cuyo, Mendoza, tendo sido aprovado com a monografia La problemática del bien común en el piensar grego hasta Aristóteles. Em seguida viajou para a Europa, onde permaneceu de 1957 a

6 Dussel ressalta sempre a triste lembrança que tem dos rostos enrugados e sofridos, de

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1967, quando conheceu, então, os principais países pesquisando as origens dos povos latino-americanos.7

Nos primeiros dois anos de Europa, estudou em Madrid, tendo-se doutorado na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Central (Complutense) com a tese El bien común. Su inconsistência teórica, sob a orientação de A. Millan Puelles

Depois foi para Israel, onde morou em Nazaret, com Paul Gauthier, tendo trabalhado como carpinteiro na construção civil. Foi naqueles dois anos em Israel (1959-1961) que Dussel despertou para a situação de opressão que o pobre vive. Conforme ressalta Mariano Moreno Villa, in Obras Completas de Enrique Dussel, CD-ROM 2004, “desde então o pobre será o principal paradigma hermenêutico de suas reflexões filosófica, histórica e teológica”.

Ainda em 1961 viajou para França, onde trabalhou como bibliotecário e estudou Teologia e História na Sorbonne.

Em 1963 foi para a Alemanha, onde começou seus estudos para o doutoramento em história da Igreja. Depois, de 1964 a 1966, esteve na Espanha, estudando os Arquivos das Índias de Sevilha. Doutorou-se na Sorbonne em 1967 em História.

De volta para a América Latina, Dussel foi para o México, graças a uma bolsa, para estudar com Leopoldo Zea. Em 1968 retornou à Argentina para ser professor de Antropologia e de Ética na Universidad Nacional Resistencia

(Chaco), tendo assumido também o cargo de professor de Ética na Universidad Nacional de Cuyo (Mendoza). A Argentina sob a ditadura de Ongania, apoiado por Dussel no seu discurso de resistência à dominação estrangeira. Naquele momento, Dussel despertou para a necessidade de uma Filosofia da Libertação Latino-Americana e passou a trabalhar com tal objetivo.

Ricoeur, Husserl e Heidegger exerceram grande influência em seu pensamento naquela primeira fase. Em 1970 publicou Lições de Ética Ontológica e em 1972, Para uma de-strucción de la historia da la ética. Emmanuel Levinas, mais tarde, proporcionou os indicadores para Dussel

7 Sua viagem à Europa deu-se principalmente porque os centros de pesquisas mais completos

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encontrar a superação da primeira fase – de interiorização – para expandir rumo à exteriorização e encontro do outro.

Na década de 70, conseguiu sedimentar sua teoria e publicar sua grande obra "Para uma ética da libertação latino-americana", em 5 volumes, os dois primeiros editados pela Siglo XXI, o terceiro pela Edicol e os dois últimos pela Universidade de Sto. Tomás de Aquino.

Naquela obra, além de estruturar toda a sua filosofia, demonstra uma preocupação histórico-filosófica fundamental com a América Latina.

Diante da volta do peronismo, em 1973, Dussel passou a ser perseguido tanto pela direita peronista, que via nele um perigo aos seus ideais de poder populista, quanto pela esquerda oposicionista, que exigia o seu engajamento na luta ideológica. O filósofo, contudo, manteve-se fiel aos seus ideais filosóficos8, atuando tanto nas universidades como nas ruas. Por isso acabou

por sofrer um atentado a bomba, lançado pela extrema direita através dos membros do sindicato metalúrgico e do Comando Ruci, na noite de 2 para 3 de outubro de 1973, que destruiu praticamente metade de sua casa. Sob as acusações de “marxista” e “corruptor da juventude” as ameaças de morte e a repressão contra suas ações prosseguiram até 1975, tendo sido, inclusive, expulso na Universidade de Cuyo. Em 15 de agosto daquele ano partiu, forçado, para o México, onde estudou com pensadores como Leopoldo Zea, A. Villejas, León Portilla e outros, que lhe somaram novos pensamentos e contribuíram para a superação dos pressupostos peronistas e fundamentação de sua Filosofia inovadora.

Percebeu, definitivamente, a imanente conexão entre a teoria e a realidade, da qual não poderia o filósofo se afastar, sob pena de prejuízo irreparável à sua formação.

Ainda em 1975 assumiu o cargo de professor no Departamento de Filosofia da Universidad Autônoma Metropolitana-Iztapalapa (México) e em 1976, na Universidad Nacional Autônoma de México (Unam).

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os “Grundrisse”, “Hacia um Marx desconocido”, comentário sobre os manuscritos de 61-63, “El último Marx(1863-1882) y la liberación latinoamericana” e “Las metáforas teológicas de Marx”.

Dentre as suas várias obras, merece destaque ainda “Filosofia da Libertação” (1977), escrita de memória, logo após seu exílio no México; “História Geral da Igreja na América Latina” (1983); “Ética Comunitária” (1986); “1492: o encobrimento do Outro” (1992) e “Ética da Libertação na Idade da Globalização e da Exclusão”(2000), sua mais recente obra.

Continuando seus estudos, no momento exerce diversas atividades de cunho filosófico. É um dos coordenadores de projetos do CEHILA – Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina, do qual foi um dos fundadores e presidente; membro fundador da Association of third World theologians (AETWOT) e do Comitê Ejecutivo de la International Association of the Mission Studies (IAMS); fundador e Coordenador Geral da Associação de Filosofia e Libertação (AFYL); membro fundador da Revista de Filosofia Latinoamericana (Buenos Aires); tem proferido cursos e conferências em vários países, tanto nas Américas como na Europa, além de África e Ásia.

No tocante ao Brasil, é membro do conselho editorial da revista

Lbertação-Liberación (CEFIL, Campo Grande/MS) e além de várias palestras em universidades, tem participado ativamente dos Fóruns Sociais Mundiais realizados no Brasil, em Porto Alegre/RS.

1.4 – EMMANUEL LÉVINAS: FONTE DE INSPIRAÇÃO

PARA ENRIQUE DUSSEL

Antes de se abordar propriamente o tema do trabalho sobre o pensamento dusseliano, qual seja, a idéia de justiça, mister se faz uma breve exposição do pensamento de Emmanuel Lévinas, sobretudo no tocante à sua concepção de metafísica, a qual culminará com a elevação da ética à condição de filosofia primeira, fator fundamental para compreensão também do pensamento de Dussel.

8 Zimmermman ressalta que enquanto a direita preferia a categoria “nação” e a esquerda a

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No prefácio de Totalidade e Infinito encontra-se uma exposição clara da leitura que Emmanuel Lévinas faz da realidade e a sua fundamentação da defesa da ética como filosofia primeira, a qual será demonstrada ao longo da obra. Aqui, serão abordados apenas alguns aspectos essenciais.

Inicialmente, é importante trazer à tona que, para Lévinas, a sociedade, ao longo da história, tem estado sempre em estado de guerra. Os conflitos constantemente vêm dominando as relações sociais:

A lucidez – abertura de espírito ao verdadeiro – não consiste em entrever a possibilidade permanente de guerra? (Lévinas 1980 9).

Em conseqüência, a paz que se mostra é apenas aparente, vez que está fundada na força da violência; e uma paz verdadeira, legítima, não pode estar sustentada pela força da espada. De fato, pode-se ver facilmente que os poucos momentos de paz que se consegue neste planeta fundam-se no poderio bélico das grandes potências, que buscam cada vez mais aumentá-lo para garantir a não-guerra. E mesmo já tendo passado, se é que passou, o período nefasto da Guerra Fria.

De fundamental importância para o aclaramento da questão também é a afirmação a que Lévinas chega a respeito da política. Para ele, o que sustenta esse estado de tensão social é a própria política. É por meio da política que o homem e os Estados mostram seus argumentos que, no fim, sustentam-se pela força bélica. A política, afirma Lévinas, é “a arte de prever e de ganhar por todos os meios a guerra”. (Lévinas 1980 9).

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Lévinas pretende um caminho que leve ao encontro da identidade perdida na guerra e na pseudopaz que permeia a sociedade, como assevera:

A paz dos impérios saídos da guerra assenta-se na guerra e não devolve aos seres alienados a sua identidade perdida. (Lévinas 1980 10).

É preciso resgatar a identidade do ser humano para que ele possa deixar de ser um mero joguete nas mãos daqueles que defendem a Totalidade e fazem a história. O homem precisa tomar consciência de sua importância e de sua responsabilidade diante da história e, para isso, deve assumir sua própria identidade, o que só é possível por meio de uma “relação originária e original com o ser”. (Lévinas 1980 10).

Essa relação, enquanto originária, consiste no estabelecimento de uma relação ética, respeitando a identidade e a alteridade, e assim promotora da Justiça. Enquanto original, significa dizer uma relação única, individual, em que o Eu é chamado à responsabilidade diante do Outro e dos Outros.

1.4.1 – DESEJO E MOVIMENTO METAFÍSICO

’A verdadeira vida está ausente’. Mas nós estamos no mundo. A metafísica surge e mantém-se neste álibi. Está voltada para ‘outro lado’, para o ‘doutro modo’, para o ‘Outro’. (Lévinas 1980 21).

Com a afirmação supra começa Lévinas o capítulo “Metafísica e Transcendência” em Totalidade e Infinito. Sua concepção de metafísica tem uma abordagem muito particular, posto pensá-la inserida no mundo, fundada no homem e não em um Deus perfeito ou alguma transcendência inexplicável, como se encontra comumente em outros pensadores.

Deparando-se o Eu diante do estranho, do Outro, segundo Lévinas surgem duas opções: dominar o Outro, fazê-lo representado no mundo egoísta ou preservá-lo, mantendo a distância9, o afastamento. No primeiro caso

ter-se-á fundado uma totalidade, anulando completamente a alteridade. No segundo caso, ter-se-á uma relação estabelecida no face-a-face e sustentada pelo discurso, o qual mantém a distância e preserva tanto o Mesmo quanto o Outro.

9 A distância é fundamental para que o Outro não seja tido como objeto e absorvido pela

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É nessa segunda alternativa, na relação entre o Eu e o Outro, que a metafísica levinasiana encontra sustentação. É o movimento da interioridade para a exterioridade, do familiar para o estranho.

Todo movimento é provocado por uma força. Para Lévinas, o que impulsiona o movimento metafísico é o desejo, mas não um desejo que leve à mera satisfação de uma necessidade, porquanto se assim o fosse, levaria à absorção do Outro pelo Eu, como no “alimentar-me”, e permaneceria na totalidade do Mesmo.

Lévinas entende que se trata de um desejo que preserva a alteridade do Outro, sem qualquer expectativa por parte do desejante de reciprocidade. É o desejo que não pretende aproximação ou posse; ao contrário, supõe o afastamento, a alteridade. É o Desejo metafísico:

O desejo metafísico tem uma outra intenção – deseja o que está para além de tudo o que pode simplesmente completá-lo. É como a bondade – o desejado não o cumula, antes lhe abre o apetite. (Lévinas 1980 22).

O Desejo metafísico só pode ser, pois, o desejo do outro “absolutamente outro” e, portanto, do invisível, como explica o autor:

O desejo é absoluto se o ser que deseja é mortal e o Desejado, invisível. A invisibilidade não indica uma ausência de relações; implica relações com o que não é dado e do qual não temos idéia. A visão é uma adequação entre a idéia e a coisa: compreensão que engloba. A inadequação não designa uma simples negação ou uma obscuridade da idéia, mas fora da luz e do escuro, fora do conhecimento que mede seres, a desmedida do Desejo. O Desejo é desejo do absolutamente Outro. (Lévinas 1980 22-23).

Assim, o Desejo do Invisível provoca um movimento do Eu em direção à exterioridade do absolutamente Outro e promove uma ruptura da totalidade, caracterizando esse movimento como transcendente e, ainda, uma separação absoluta:

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outro – constitui o seu conteúdo, de modo que o metafísico e o Outro não se totalizam; o metafísico está absolutamente separado. (Lévinas 1980 23).

1.4.2 – RELAÇÃO METAFÍSICA E IDÉIA DO INFINITO

Diante de uma relação do Mesmo com o Outro em que não há absorção, preservação da alteridade significa dizer uma relação em que o Eu sai de sua interioridade em direção à exterioridade manifesta pelo Outro, num movimento transcendente e, pois, metafísico.

O Mesmo, na visão de Lévinas, não se reduz à mera tautologia “Eu sou Eu”, mas principalmente se refere à relação de posse estabelecida entre o Eu e o mundo em que está, ou seja, ao domínio egoísta do Eu sobre o mundo. “A possibilidade de possuir, isto é, de suspender a própria alteridade daquilo que só é outro à primeira vista e outro em relação a mim é a maneira do mesmo.” (Lévinas 1980 25).

Considerando, então, que nessa relação o Outro não é compreendido – do latim comprehendere, significa conter em si; constar de; abranger – pelo Eu e não faz parte do Mesmo, fica evidente que o movimento do Eu desejante do Outro invisível, ao romper a totalidade enseja uma relação de natureza transcendente, isto é, metafísica.

Para além da fome que se satisfaz, da sede que se mata e dos sentidos que se apaziguam, a metafísica deseja Outro para além das satisfações... Desejo sem satisfação que, precisamente, entende o afastamento, a alteridade e a exterioridade do Outro. Para o Desejo, a alteridade, inadequada à idéia, tem um sentido... Morrer pelo invisível – eis a metafísica. (Lévinas 1980 22-23).

Mas não é só. Essa relação não é unicamente um ato mental. A fala, o diálogo deve ser estabelecido entre o Eu e o Outro como único meio de contato em tal afastamento e sustentação dessa relação.

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fatalmente totalizante e sinótico, se o pensamento se encontrar em face de um Outro, refratário à categoria. Em vez de constituir com ele, como com um objeto, um total, o pensamento consiste em falar. (Lévinas 1980 27-28).

O diálogo é o fio tênue que mantém essa relação sem que haja união total entre o Mesmo e o Outro e, ao mesmo tempo, sem deixar que ela se desfaça. É a manutenção da ligação entre o finito e o infinito.

A relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da relação corte os laços que uma relação implica, mas sem que esses laços unam num Todo o Mesmo e o Outro, está de fato fixada na situação descrita por Descartes em que o ‘eu penso’ mantém com o Infinito, que ele não pode de modo nenhum conter e de que está separado, uma relação chamada ‘idéia do infinito’... (Lévinas 1980 35-36).

Lévinas credita a Descartes essa forma de compreender a idéia de infinito, cujo esquema encontramos em seu pensamento, tal como nas Meditações:

Não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira idéia, mas somente pela negação do que é finito, do mesmo modo que compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz: pois, ao contrário, vejo manifestamente que há mais realidade na substância infinita do que na substância finita e, portanto, que, de alguma maneira, tenho em mim a noção do infinito anteriormente à do finito, isto é, de Deus antes que de mim mesmo. Pois, como seria possível que pudesse conhecer que duvido e que desejo, isto é, que me falta algo e que não sou inteiramente perfeito, se não tivesse em mim nenhuma idéia de um ser mais perfeito que o meu, em comparação ao qual eu conheceria as carências de minha natureza?... E isto não deixa de ser verdadeiro, ainda que eu não compreenda o infinito... pois é da natureza do infinito que minha natureza, que é finita e limitada, não possa compreendê-lo. (Descartes 1973).

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Mas, Lévinas estabelece um outro entendimento para a origem da

idéia do infinito, diferentemente de Descartes, atribuindo-a à própria relação metafísica do Mesmo com o absolutamente Outro, exterior ao mundo do Eu, irredutível à representação e do qual só se pode ter a idéia de Infinito, posto que o conteúdo do infinito transborda os limites de toda compreensão.

Mas a idéia do infinito tem de excepcional o fato de o seu ideatum

ultrapassar a sua idéia...O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é o absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode haver uma idéia em nós: está infinitamente afastado da sua idéia – quer dizer, exterior – porque é infinito. (Lévinas 1980 36).

Discordando, pois, de Descartes quanto à origem da idéia de Infinito, qual seja, Deus, vez que estaria fadado a admitir uma totalidade fundada em Deus e, por conseqüência, uma superioridade mística ou mesmo a morte como via de acesso à verdade absoluta, também não aceita a intencionalidade husserliana para relação com o Outro, tendo em vista que isso levaria à exclusão da alteridade, ensejando a absorção do Outro pelo Eu, o que consistiria também numa Totalidade. Desse modo, Lévinas pretende uma filosofia que respeite a alteridade e, sobretudo, estabeleça uma relação ética e justa entre os homens. Qualquer outra via que não privilegie essa relação levará à injustiça.

Entre uma filosofia da transcendência que situa alhures a verdadeira vida à qal o homem teria acesso, evadindo-se daqui, nos momentos privilegiados da elevação litúrgica, mística, ou ao morrer – e uma filosofia da imanência em que captaríamos verdadeiramente o ser quando inteiramente ‘outro’ (causa de guerra), englobado pelo mesmo, se desvaneceria no termo da história, propomo-nos descrever, no desenrolar da existência terrestre, da existência econômica como a denominamos, uma relação com o Outro, que não desemboca numa totalidade divina ou humana, uma relação que não é uma totalização da história, mas a idéia do infinito. (Lévinas 1980 39).

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experiência do face-a-face, que é a própria experiência da transcendência e da separação, impedindo dessa forma a formação de uma Totalidade (absorção do Outro pelo Mesmo). É o Infinito que sustenta a alteridade, pois entre o Eu e o Outro haverá sempre uma distância insuperável.

As nossas análises são dirigidas por uma estrutura formal: a idéia do Infinito em nós. Para ter a idéia do Infinito, é preciso existir como separado. Esta separação não pode produzir-se como fazendo apenas eco à transcendência do Infinito. Senão, a separação manter-se-ia numa correlação que restauraria a totalidade e tornaria ilusória a transcendência. Ora, a idéia do Infinito é a própria transcendência, o transbordamento de uma idéia adequada. Se a totalidade não pode constituir-se é porque o Infinito não se deixa integrar. Não é a insuficiência do Eu que impede a totalização, mas o Infinito de Outrem. (Lévinas 1980 66).

Lévinas defende, portanto, que idéia de infinito está no homem como uma estrutura formal, posto que o homem existe sempre separado do Outro. Mas tal separação não pode ser meramente espacial ou temporal. A separação de que fala Lévinas é transcendental, é o transbordamento constante do Outro, que não é adequado jamais ao meu pensamento. Se não fosse a capacidade de o Outro transbordar toda e qualquer representação que se faça dele, a alteridade estaria fadada se exaurir, pois o Eu se completaria do Outro.

1.4.3 – O MANDAMENTO ÉTICO COMO FONTE DA

JUSTIÇA

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Verifica-se, portanto, que toda relação com o Outro é uma relação ética, razão pela qual a Ética é a Filosofia Primeira, visto que, sendo a Ética o pressuposto da relação metafísica, também ela tem esse caráter.

Destaca-se, por conseguinte, a distinção fundamental operada por Lévinas em relação à grande maioria dos pensadores ocidentais, pois enquanto os pensadores ontológicos buscam sempre a unidade do discurso, a Totalidade e a compreensão do Outro pelo Eu, fundados na unidade da Razão, Lévinas pretende preservar a interioridade e a exterioridade, rompendo com a visão totalitária de unidade e, enfim, antes da ontologia supõe a metafísica como única forma de se pretender a Justiça.

O esforço deste livro vai no sentido de captar no discurso uma relação não alérgica com a alteridade, descobrir nele o Desejo – onde o poder, por essência assassino do Outro, se torna, em face do Outro e ‘contra todo o bom senso’, impossibilidade do assassínio, consideração do Outro ou justiça. (Lévinas1980 34).

A preocupação com o não assassinato do Outro, com a preservação da alteridade é, de fato, a preocupação maior, tanto de Dussel quanto de Lévinas. Somente assim poder-se-á alcançar a tão desejada JUSTIÇA.

A Justiça, ante o expendido, caracteriza-se intrinsecamente ligada à Ética. Na relação ontológica, o Eu tem a liberdade absoluta para usar de sua inteligência com o fim de conhecer o objeto, seja ele qual for. Na Metafísica, por outro lado, a liberdade do Eu é questionada diante do Outro, a espontaneidade é chamada à responsabilidade e o Mesmo não se assenhora do Outro; ao contrário, diante da estranheza de Outrem, o Mesmo o acolhe, preservando sua alteridade e, numa atitude discipular, dispõe-se a aprender com o Mestre ao invés de impor a ele sua palavra. É a superação da ontologia pela metafísica.

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Nesse sentido, a responsabilidade pelo Outro é anterior à liberdade do Eu. O processo de conhecimento deve, então, estar condicionado à responsabilidade pelo Outro, o que significa dizer que conhecer não é apenas constatar, mas sobretudo responder ao Outro enquanto acolhimento e não redução.

Assim, a verdade, embora não separada da inteligibilidade, tem como ponto fundamental o acolhimento do Outro:

A verdade não se separa, de fato, da inteligibilidade. Conhecer não é simplesmente constatar, mas sempre compreender. Diz-se também, conhecer é justificar, fazendo intervir, por análoga com a ordem moral, a noção de justiça. (Lévinas 1980 69)

A justificação do fato põe sob crivo a espontaneidade, questionando a liberdade de todos os atos. A liberdade deve se pautar pela crítica dos próprios atos. Somente assim a liberdade será justa, isto é, repugnando a indignidade que reveste a espontaneidade acrítica. A moral se funda, portanto, no instante que se instaura a vergonha da espontaneidade, isto é, quando a liberdade absoluta, arbitrária e violenta, deixa de se fundar em si mesma e passa a ter o Outro como referência da sua justificação.

A consciência moral acolhe Outrem. É a revelação de uma resistência aos meus poderes que, como força maior, não os põe em xeque, mas que põe em questão o direito singelo dos meus poderes, a minha gloriosa espontaneidade de ser vivo. A moral começa quando a liberdade, em vez de se justificar por si própria, se sente arbitrária e violenta. A procura do inteligível, mas também a manifestação da essência crítica do saber, a subida de um ser aquém da sua condição, começa ao mesmo tempo. (Lévinas 1980 71)

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origina o mandamento “não matarás” e, assim, supera toda idéia que dele se possa ter.

A relação com Outrem não se transmuda, como o conhecimento, fruição e posse, em liberdade. Outrem se impõe como exigência que domina essa liberdade e, portanto, como mais original do que tudo o que se passa em mim. Outrem, cuja presença excepcional se inscreve na impossibilidade ética em que estou de o matar, indica o fim dos poderes. Se já não posso ter poder sobre é porque ele ultrapassa absolutamente toda a idéia que dele posso ter. (Lévinas 1980 74)

Para Lévinas, a ontologia está para a injustiça assim como a metafísica está para a justiça. A ontologia não põe, definitivamente, em questão o Mesmo e permite o domínio do Outro, encetando-o numa totalidade, constituindo uma injustiça. Já a metafísica estabelece como princípio fundamental, anterior a qualquer manifestação do Eu, o respeito ao Outro e o questionamento do mesmo, buscando assim uma relação justa em que sejam preservadas as características essenciais tanto do Eu como do Outro.

Enfim, escreve Lévinas:

A essência da razão não consiste em assegurar ao homem um fundamento e poderes, mas em pô-lo em questão e em convidá-lo à justiça. (Lévinas 1980 75).

1.5 - DE-STRUIÇÃO DA HISTÓRIA DA ÉTICA:

SENTIDO E MÉTODO

Enrique Dussel, ao escrever Para una de-strucción de la história de la ética10, pretendia estabelecer uma ética universal ontológica. Embora tenha

renunciado posteriormente ao projeto ontológico, pela sua própria impossibilidade lógica, manteve o intento de alcançar uma ética universal, sem abandonar a forma de-strutiva de sua análise, como se evidencia em seu último livro Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão11.

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É necessária uma precisa compreensão do termo de-struição, empregado por Enrique Dussel, para definir a natureza de sua crítica à filosofia tradicional, assim como do método por ele adotado.

O sentido do termo de-struição foi inspirado notadamente nas palavras de Martin Heidegger, o qual é citado por Dussel:

De-struição não significa aniquilar, mas desarticular, separar e pôr de lado... De-struição quer dizer: abrir nosso ouvido, libertá-lo para aquilo que na tradição se nos coloca como ser do ente. (DHE 6).

O termo de-struição carrega a idéia de uma análise rigorosa de seu objeto, a Ética em sua História, com a liberdade de não se restringir às significações já estabelecidas tradicionalmente. Não é intenção, por conseguinte, arruinar, desprezar, aniquilar os sistemas éticos conhecidos ao longo história: “A de-struição significa um desarmar o dito pelos filósofos a partir de seus pressupostos não pensados, e por isso mesmo não ditos.” (DHE 170).

Verifica-se assim o sentido preciso do termo de-struição, de desmontar os argumentos filosóficos tradicionais mediante a indicação de fundamentos anteriormente não explicitados pelos filósofos que pensaram a ética. A intenção é historiográfica, mas de cunho filosófico. Pode-se também afirmar que a Filosofia da Libertação exige, por conseguinte, de antemão a libertação da Filosofia.

Etimologicamente o termo vem do latim struere, o qual significa “edificar, fabricar, preparar, aparelhar, ordenar, arranjar, traçar, idear, dispor, acrescentar, aumentar, tecer etc”, acrescido do prefixo de, o qual possui o propósito de negação ou privação. Destarte, de-struir significa fazer, atar, des-montar, visando à re-construção da Ética, como Filosofia, desde sua História, tendo em vista uma Ética de conteúdo material universal, que vá além dos limites espaço-temporais estabelecidos pela história.

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é uma das primeiras des-articulações, uma releitura do papel cabente ao homem na história.

Quando Dussel propõe a de-struição da História da Ética, na verdade, está pretendendo a de-struição da própria Ética, sempre histórica, visto que o homem é um ser pela história e não apenas um ser na história. O homem faz a história e se faz pela história. A história verifica-se verdadeiramente no ser do homem. A historicidade é condição do homem, sua temporalidade. Essa indicação é importante, vez que muito comumente se fala da história como algo exterior ao homem, algo de que o homem faz parte. Em verdade, “não é que o homem seja histórico porque está na história. O homem é histórico, porque a historicidade não é senão um modo de viver a temporalidade inerente à essência do homem.” (DHE 7).

Para realizar um trabalho autêntico, é preciso libertar-se dos sistemas construídos ao longo do tempo porque somente assim o filósofo terá condições de ter uma visão liberta das verdades preestabelecidas e estará apto para, então, estabelecer livre e historicamente o homem em seu papel fundamental: ser ético.

“Des-atar os nós” da história da ética é mais do que simplesmente analisar os sistemas passados ou presentes. Assim, Dussel faz divisão da história da Ética analisando de-strutivamente cada um dos sistemas estabelecidos desde a Grécia antiga, ao apontar os limites histórico-concretos que pautaram o pensamento de autores como Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant e Hegel, entre outros.

Por outro lado, a de-struição da história da ética não é apenas uma análise do passado, mas, a partir do passado, liberto de seus dogmas, é, sobretudo, uma busca do ser presente livre:

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Dussel propõe construir a Ética da Libertação a partir do modelo passado destruído. Antes, “esses homens eram-no-mundo” (“os grandes gênios culturais do passado”). Agora, a Ética “somente começa quando alguém des-cobre que seu acontecer é histórico, porque livre, e deixa manifestar-se às coisas”.

Fica claro, portanto, que a História da Ética para Dussel deve ser entendida como a manifestação da própria ética. Mas qual a sua acepção de Ética?

A Ética não deve ser vista apenas como conjunto de normas morais vigentes em algum tempo ou espaço. Muitas discussões existem ainda, na filosofia, sobre o conceito de Ética e de Moral. Muitos afirmam mesmo não haver diferenças ou confundem um com o outro. Para Dussel, contudo, é imperioso notar a distinção, vez que propõe uma Ética Perennis, isto é, uma ética duradoura e imutável ao longo do tempo e do espaço. Logo, não pode estar se referindo à moral, a qual é vigente em função de determinados grupos e determinadas épocas.

O termo “ethos” é transliteração dos dois vocábulos gregos: êthos (com

éta inicial) e éthos (com épsilon inicial). E, conforme explica também Dussel, o primeiro vocábulo refere-se à morada habitual, enquanto o segundo refere-se ao agir habitual. Em ambos os sentidos, entretanto, não se compreende o sentido dusseliano de ética, qual seja, o momento temático ou explícito daquilo que já foi vivido no aspecto do éthos. É o princípio que norteia o comportamento humano e não se refere ao hábito particular nem ao coletivo. É o oráculo que em Delfos foi proferido pela sacerdotisa a Sócrates: “Conhece-te a ti mesmo”.

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A ética pretendida por Dussel é a ética destrutiva das éticas filosóficas. É o pensar crítico dos sistemas estabelecidos.

As éticas grega, cristã ou moderna sempre foram críticas, é verdade, mas nunca se libertaram dos aspectos contingentes que as sustentaram. Evidentemente, Aristóteles, por exemplo, e muitos outros filósofos, por certo pretenderam estabelecer uma ética universal. Incorreram, entretanto, no equívoco intransponível de se pautarem apenas pelo mundo que os cercava. Somente no século XX, depois de ter passado por vários sistemas, em plena globalização, o homem alcançou a condição suficiente para estabelecer uma Ética Universal, mediante radicalização suficientemente crítica e ampla. Essa é a tarefa do filósofo da libertação: De-struir a História da ética ocidental e, concomitantemente, con-struir uma ética Universal, descobrindo, para isso, os fundamentos das éticas filosóficas passadas e despojando-se do que há de particular em cada uma delas. Apenas mediante esse processo poder-se-á estabelecer a ethica perennis, aproveitando-se o que há de bom ao longo da história, inclusive na modernidade, e assim con-struir a ética ontológica.

Nossa tarefa é descobrir o fundamento e os grandes temas da ética ontológica entre os muitos mais numerosos temas acerca dos quais tratam as éticas filosóficas tradicionais... É necessário deixar o grego das éticas gregas, o cristão das éticas cristãs, o moderno das éticas modernas, e ante nossos olhos aparecerá uma antiga e sempre fundante

ethica perennis a qual é necessário hoje descobrir, pensar, expor. (DHE 10).

Ao filósofo da libertação concerne, pois, conhecer, des-montar, analisar, excluir o particular, reunir o que é comum a todos os sistemas e então fazer uma reflexão crítica com o intuito de encontrar uma Ética de validade universal.

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impossibilidade da “ética universal, ethica perennis ou ética ontológica fundamental”.

A solução encontrada por Dussel surgiu pouco tempo depois de ter escrito “Para una de-strucción de la historia de la ética”. Foi a partir seu encontro com Emmanuel Lévinas, cujo pensamento ganhou fundamental importância na sua obra, que o segundo tomo prometido naquela obra deu lugar à grande obra filosófica, “Para uma ética da libertação latino-americana”, editada em cinco volumes. E naquele texto, Dussel reconhece, ainda que implicitamente, a existência do referido paradoxo:

O segundo momento, em verdade o terceiro (já que o primeiro é ôntico-ontológico dialético; o segundo, ontológico-ôntico dedutivo), é o salto meta-físico ao Outro. Este método meta-físico nos permitirá expor uma filosofia latino-americana ... Este método parte de Lévinas, embora vá além e o escrevemos depois de uma nova estada na Europa em 1972... (ELL II 155)

Assim fica creditado ao filósofo judeu-lituano-francês o momento

epifano-filosófico, de amadurecimento do pensamento filosófico de Enrique Dussel. Acolhendo a tese levinasiana, exposta principalmente em “Totalidade e Infinito”, Dussel reformulou o paradigma sobre ética e, sem abandonar a idéia de estabelecer uma ética de validade universal, libertou-se da ontologia heideggeriana e voltou-se para a ética metafísica da alteridade, com fundamento no pensamento de Lévinas, o qual foi ainda a grande indicação teórico-filosófica para os ideais dusselianos.

Destarte, fundado ultimamente em Lévinas, ainda que com algumas divergências, Dussel firmou-se em sua reflexão filosófica, estabelecendo, de início, o método para a de-struição da ética ocidental, o método para a Filosofia da Libertação.

1.5.1 - O MÉTODO

ANA-DIA-LÉTICO

Em face da nova proposta filosófica de Lévinas, Dussel conseguiu desvencilhar-se do paradoxo em que se encontrava e estabeleceu o método

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fundamental a ser pensado, e o método dia-lético, restrito à totalidade hermética, em que o outro faz parte do mesmo mundo do Eu, não satisfaz à necessidade da razão humana. Isso porque a dialética consiste no raciocínio argumentativo que vai dos entes ao fundamento e do fundamento aos entes, encerrando-se numa totalidade em que a dis-tinção do outro é esquecida.

Lévinas mostrou bem que o outro não faz parte do meu mundo e, logo, não faz parte dessa totalidade dialética, concluindo que se exige a consideração do outro como fundamental para a realização da justiça.

Dussel, atento à questão, estabeleceu o que denominou o método Ana-dia-lético, isto é, o método que vai além da dialética, ou precisamente, o método que parte do outro comofundamento.

O método do qual queremos falar é Ana-lético, vai mais além, acima, vem de um nível mais alto (ana-) que o do mero método dia-lético ... Agora se trata de um método (ou do explícito domínio das condições de possibilidade) que parte do Outro como livre, com um além do sistema da Totalidade; que parte então de sua palavra, da Revelação do Outro e que confiando em sua palavra age, trabalha, serve, cria. (ELL II 200)

Por isso, tratando-se de um método que parte do outro, considerando-o como além da Totalidade, não reduzido à compreensão do Eu, e, portanto, livre e distinto, o método analético é intrinsecamente ético e não apenas teórico ou ôntico ou ontológico.

E essa característica indica que o filósofo deve ser, desde o início ético, o que implica em ser um servidor do Outro, ou mais precisamente, um servidor da liberdade do Outro.

O método ana-lético inclui então uma opção prática histórica prévia. O filósofo, aquele que quer pensar metodicamente, deve já ser um “servidor” comprometido na libertação. (ELL II 203)

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2 - O NASCIMENTO DA FILOSOFIA E O

MITO DA MODERNIDADE

Ao longo dos últimos séculos, a teoria predominante é a de que a modernidade começou com os avanços ocorridos na Europa a partir do século XV, os quais determinaram sua superioridade diante das demais nações, e justificaram, portanto, a mundialização de sua cultura. Dussel destaca a teoria de Max Weber, como uma das sustentações desse paradigma, diante da pergunta delimitadora da questão:

Que encadeamento de circunstâncias conduziu a que, precisamente no solo do Ocidente e só aqui, se produzissem fenômenos culturais que - pelo menos tal como nós costumamos representá-los para nós - estavam numa direção evolutiva de significação e validade universais? (EL 51).

A pergunta de Weber parte do pressuposto de que os fatos culturais ocorridos na Europa naquele período tiveram validade universal. Contudo, uma análise mais detida da história mostra que outras regiões eram mais avançadas do que a Europa, a qual se caracterizava como periferia, fechada em si mesma, de fora para dentro, tentando uma via de acesso ao centro comercial.

A Filosofia dusseliana da Libertação consiste numa releitura crítica da história, do ponto de vista filosófico, divergindo da perspectiva universalista de cultura, estabelecendo um novo parâmetro para a Modernidade, evidenciando mais claramente, em face desse novo paradigma, os problemas do pensamento ontológico europeu sustentador do sistema de exclusão da periferia.

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homem a libertar-se da opressão exercida pelos centros do sistema12, de

forma a possibilitar relações as mais justas possíveis.

A exposição da Histórica de Dussel, uma análise que faz história, é imprescindível para a compreensão do ponto constitutivo da injustiça na América Latina, e, por extensão, de todas as periferias: a Modernidade 13.

Segundo Dussel, a primeira libertação deve se referir à própria filosofia, O filósofo deve primeiro libertar-se do pensamento ontológico tradicional para então proceder a uma filosofia da libertação. Destarte, o primeiro passo é libertar-se das visões helenocêntrica e eurocêntrica; somente assim o filósofo poderá pensar livremente e, diante de uma visão mundial, buscar mais amplamente a origem da eticidade ocidental. Com essa liberdade, Dussel encontra o nascedouro da filosofia não apenas na Grécia, como é cediço, mas desde as civilizações mais antigas, como a egípcia e a mesopotâmica, vez que os textos gregos considerados precursores do pensamento filosófico são, segundo o autor, tão míticos quanto os dessas outras civilizações. O que deve ser chamado de filosófico naquele momento histórico, nos textos gregos, é o “método filosófico formal”, ao passo que o seu conteúdo ético, tradicionalmente colocados como filosófico, possui as mesmas características míticas dos textos egípcios também de conteúdo ético. Conclui Dussel: “podemos abordar aqui filosoficamente textos míticos de todas as culturas da história da humanidade, de grande importância para interpretar os conteúdos éticos da eticidade atual” [EL 19].

Fica, desta feita, operada a primeira grande de-struição necessária - a do mito do nascimento da filosofia na Grécia antiga. Agora, conseqüentemente, torna-se impendente a inclusão dos sistemas anteriores ao grego para o estudo

12 Para Dussel, a sociedade ocidental se estabelece com o centro vitimário e a periferia

vitimada. Desde meados do século XX o centro está articulado entre Europa Ocidental e EUA, restando às demais nações a situação periférica, onde a estrutura “centro-periferia” se repete e as elites locais praticam a vitimação das periferias em benefício dos centros maiores.

13 O terceiro volume de Para uma Ética da Libertação Latino-Americana abre-se com “A

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