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O amor revisitado num poema de Herberto Helder

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Academic year: 2022

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O amor revisitado num poema de Herberto Helder Autor(es): Seabra, José Augusto

Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras URL

persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23860 Accessed : 22-Oct-2022 07:52:23

digitalis.uc.pt impactum.uc.pt

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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA

FACULDADE DE LETRAS

VISE 7

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MÁTHESIS 1997 183-191

o AMOR REVISITADO NUM POEMA DE HERBERTO HELDER

JOSÉ AUGUSTO SEABRA

A intimidade das relações entre o amor e a literatura, que na poe- sia atinge a sua culminância, é sem dúvida uma das constantes mais significativas da nossa civilização. Num livro fascinante, A Chama Dupla, consagrado ao amor e ao erotismo, Octavio Paz, embora defendendo a "universalidade do sentimento amoroso" - no que se afasta da célebre tese de Denis de Rougemont, que o identificava com a civilização ocidental, a partir do "amor cortês" do século XII -, observa que a sua preponderância como tema das obras literárias da nossa tradição cultural atesta que "o amor constitui uma paixão fundamental para os homens e para as mulheres do Ocidente"1. Ele distingue, mais precisamente, esse sentimento das ideias e das formas em que se expri- me, as quais variam de civilização para civilização. Assim, se a filosofia e a religião marcaram profundamente a concepção do amor no Ocidente europeu - veja-se a confluência, mas também a tensão, entre o plato- nismo e o cristianismo no amor occitânico -, a poesia deu-lhe a figuração incandescente da sua linguagem, em que ardem tanto Eros como Psique, na dupla chama de que fala Paz; a da união carnal dos corpos e a da união mística - a "chama de amor viva" de São João da Cruz.

Na literatura portuguesa a presença do amor na poesia lírica é avassaladora, para além dos demais géneros em que se refracta. Desde os Cancioneiros primitivos, com as suas cantigas de amigo e de amor matriciais, ele atravessa, como filão inexaurível, todos os estratos de uma sensibilidade pensante e de uma língua que se ajustam ao longo dos

I Octavio Paz, La Flamme Double - Amour et Erotisme, Paris, 1993 págs. 34 e segs.

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séculos em modulações múltiplas, de geração em geração e de poeta em poeta. Um traço recorrente, apesar da diferença de experiências e de linguagens: a irradiação permanente da dualidade da chama origi- nária, que irrompe por vezes no mesmo poeta e até no mesmo poema, com a violência das suas contradições ou com a doçura das suas coin- cidências.

Podemos verificá-lo em todos os momentos altos da história da nossa poesia: sempre o lirismo amoroso se desdobrou nas duas vertentes que Georges Battaille designou como o "erotismo dos corpos" e o

"erotismo dos corações", atingindo por vezes aqueloutro que a ambos engloba e transcende: o "erotismo sagrado". Veja-se, para dar o exemplo maior, como em Camões se confrontam um neoplatonismo de cepa petrarquista e um antiplatonismo visceral, que lateja no fogo ardente de muitos dos seus poemas - maxime nas estrofes da "Ilha dos Amores"

-, o que não o impede de ascender dos "cantares de amor profano" aos místicos "versos de amor divino". Mas em muitos outros dos nossos poetas onde a dupla chama amorosa se alteia, de Bernardim a Garrett, de João de Deus a Antero, de Nobre a Pascoaes - entre os tantos mais que poderíamos aqui convocar - surpreenderemos o mesmo apelo, atra- vés dela, ao "erotismo sagrado", emanando do que é humano, demasiado humano. Releia-se, por exemplo, do autor de Vida Etérea, "Elegia do amor", que Pessoa considerava ter atingido, como "poema metafísico", uma "espiritualidade indomada"2.

Com o Modernismo, essas constantes de uma traditio amorosa e erótica retornaram, através da revolutio das linguagens poéticas que emergiram entretanto na cena textual, com os seus discursos trans- gressores dos códigos éticos, religiosos, sociais e ideológicos até aí dominantes, atingindo muitas vezes uma radicalidade própria da expe- riência dos limites, em que o amor sob todas as suas formas, até ou sobretudo as mais perversas, se afirma como signo de uma liberdade total. Sem dúvida que o fenómeno da progressiva libertação da mulher, bem como o da reabilitação ou tolerância da homossexualidade, que já na civilização grega fazia parte integrante da mundividência pagã, contribuíram para uma nova "moral erótica", que não podia deixar de repercutir-se na literatura. Mas, nesta, não era propriamente por aí que se estava perante um fenómeno inédito: desde o "amor cortês" provençal a mulher ganhara uma dignidade que o cristianismo, enquanto pessoa,

2 Páginas de Estética, Teoria e Crítica Literárias, Lisboa, s.d., pág. 354.

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o AMOR REVISITADO NUM POEMA DE HERBERTO HELDER 185 lhe tinha concedido, diferentemente da sociedade pagã. E não era a própria mulher o sujeito enunciador das nossas "cantigas de amigo", numa civilização rural e cristã como a do Portugal medievo?

A questão essencial das relações entre a poesia, o amor e o erotismo põe-se, sim, antes de mais no plano do imaginário e da linguagem. E foi a esses dois níveis que as vanguardas modernistas abriram o ca- minho a uma nova poética amorosa, apesar e através das sobrevi- vências românticas, para aquém da sensibilidade, do "frisson nouveau"

decadentista e simbolista "fin-de-siêcle". Não dizia ainda Álvaro de Campos, o mais ousadamente erótico dos heterónimos portugueses de Pessoa, que "românticos somos nós todos", enquanto o ortónimo optou por escrever e publicar em inglês os poemas do seu "ciclo amoroso", cujos acentos quase obscenos transgrediram flagrante- mente o puritanismo vitoriano?

o

que é certo é que a poesia órfica e futurista, com as suas conti- nuidades e as suas rupturas, operou uma translação nos discursos do imaginário amoroso e erótico, que deixaria um rasto indelével: desde a expressão da impossibilidade da posse do outro - fosse ele homem ou mulher - que intersticialmente se desgarra na sensualidade estésica de Mário de Sá-Carneiro, até à violência transgressora de todos os códigos de Almada Negreiros, passando pelo misticismo erótico do paracletiano Raul Leal ou pelo pan-hedonismo de Mário Saa.

o

chamado Segundo Modernismo, o da presença, acolheria aliás, sob o signo da "literatura viva", estas e outras vozes de um imaginário desviante, o qual encontra eco nas contradições íntimas do erotismo introspectivo, raiado de misticismo, de José Régio, ou em certas inflexões de rude sensualidade da poesia de Adolfo Casais Monteiro. Se o neo- -realismo recalcou ou passou de largo - et pour cause - sobre a pro- blemática amorosa e erótica, que no entanto está latente ou presente em muitos dos seus poetas, como Carlos de Oliveira, seria nas gerações subsequentes que a reivindicação 40 amor como experiência fundadora do imaginário poético e da liberdade poética se tomou fulcral. "Quem não me deu amor não me deu nada", proclama um poeta dos Cadernos de Poesia, Rui Cinatti. E um dos seus coriféus poéticos e críticos, Jorge de Sena, que escreveu alguns dos mais frementes e fundos poemas de amor do nosso tempo, não deixou de afirmar, acerca da vivência e da expressão do amor pela poesia do nosso meio-século, que ele antologizou na 3a série de Líricas Portuguesas: "É patente nela, através de um

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desassombro por vezes rude da linguagem, o desmoronamento, perante uma exigência ética mais existencial, dos convencionalismos morais e sociais que dominaram, em qualquer recesso da consciência, as épocas anteriores. Mesmo nos mais pudicos representantes dela há erotismo e sensualidade (quase diria sexualidade) de uma franqueza que vai de par com as aspirações quase místicas de elevação espiritual"3. Juízo justo, que sintetiza bem a nova reverberação da "chama dupla" do amor e do erotismo, ao sopro das correntes poéticas emergentes no contexto conturbado da Grande Guerra em eclosão.

Mas seria com o surto posterior do surrealismo, entre nós algo retardado, já na ressaca do após-guerra, que irromperia a vaga alta do

"amor louco", a que André Breton dera uma expressão fulgurante e que Benjamin Péret assumira com "sublime" - um e outro, de resto, na esteira do "amor absoluto" do precursor Alfred Jarry. A subversão eró- tica, homóloga da moral e política, e reclamando-se da psicanálise freudiana, era no entanto nos poetas surrealistas, como observa Octavio Paz, uma reincarnação da tradição central do amor no Ocidente, iniciada por Dante e Petrarca, que em Breton segundo ele encontraria a pleni- tude de realização. No surrealismo português, mesmo epigonal, essa vaga conheceria alguns momentos de grande intensidade e limpidez, nos poemas de funda convulsão interior de António Maria Lisboa, talvez o mais autêntico dos seus apologetas, ao lado de Mário Cesariny de Vasconcelos, para lá de grupos organizados e de dissidêcias polémicas, com a sua voz de timbre original, que dá ao automatismo verbal um tom profético e uma intencionalidade visionária:

"AMOR - nunca como agora o amor foi tão significativo tão único baluarte da realidade real

da negação negada, da perca total que procuro", eis um fragmento desse extraordinário "Isso Ontem Único", que se pode considerar emblemático da entrega abissal ao amor como fundamento de uma realidade outra, misteriosamente imersa na linguagem poética:

por isso ele é cantado como "amor mágico, amor esotérico", ganhando uma significação gnóstica, para lá da sua imanência sensível.

É deste veio afluente noutros poetas, surrealistas ou não, mas afins dessa busca desejante de um "amor que nos devolve tudo o que

3 Jorge de Sena, Líricas Portuguesas -3" série, Lisboa, 1958, pág. 65.

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o AMOR REVISITADO NUM POEMA DE HERBERTO HELDER 187 perdêssemos" - na formulação-síntese de Mário Cesariny - que vai manar, desbordando num fluxo torrencial, uma nova vaga culmi- nante da nossa poesia amorosa e erótica, de que Herberto Helder é, indubitavelmente, uma das mais fascinantes e arrebatadas vozes reveladas na década de 50, na sequência de outras que já então, noutras tonalidades líricas, de Sophia de Mello Breyner a Eugénio de Andrade, de Raul de Carvalho a David Mourão-Ferreira, de José Terra e António Ramos Rosa, alimentavam o fogo persistente da "chama dupla", que a urgência dos tempos avivava, pois os poetas tinham uma consciência cada vez mais aguda de que não podiam - como escreveu num verso emblemático o último citado, um dos mais empenhados na assunção rimbaldiana da poesia como "liberdade livre" - continuar a "adiar o amor para outro século".

Quando, em 1958, nas Edições Contraponto, dirigidas por esse infatigável e notável agitador surrealista, votado à libertação da sub- versão poética e erótica de todas as censuras, que era Luís Pacheco, foi publicado por Herberto Helder a "plaquette" intitulada O Amor em Visita, logo essa voz se repercutiu com as suas modulações encanta- tórias, que o incipit feliz, irradiando, deixou a pairar como uma espécie de halo mágico:

"Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra e seu arbusto de sangue. Com ela

encantarei a noite.

Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher".4

E O canto expandia-se, nas volutas circulares e circulantes de um poema de largo fôlego rítmico, onde da recorrência anafórica, esprai- ando-se em encavalgamentos ora suaves ora abruptos, emergia um flúmen metafórico e metonímico de figuras do desejo incadescente, num clímax poético que culminava num êxtase místico em que o amor e a morte, a "mors-amor", se consumam no cântico infindável:

"Cantar? Longamente cantar,

Uma mulher com quem beber e morrer."

4 O Amor em Visita, Edições Contraponto, Lisboa, 1958. Desta "plaquette"

fizemos, num texto ainda juvenil, uma recensão crítica na Gazeta Literária, Porto, Novembro de 1959.

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E a mulher, primeiro invocada no poema como "quase incriada", toma-se ao longo dele um sujeito, uma segunda pessoa, um "tu"

dialogando com o próprio canto, que com o do poeta se confunde, no prolongado espasmo final:

" ... Tua voz canta

o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com o lento desejo do teu corpo.

Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo eu morrerei contigo".

No corpo mesmo do poema, como no da mulher, se vai escrevendo a poética amorosa e erótica de Herberto Helder, que nesse texto inicial e depois ao longo da sua Poesia Toda, de livro em livro, insaciavelmente se reitera, feita da confluência permanente do Eros e de Tánatos, nas suas pulsões contraditórias mas convergentes no momento extático da união dos corpos. Mas este é para o poeta também o que ele chama "um minuto sobrenatural", em que o corpo da amada se volve, numa metáfora luminosa, uma "carne de vinho roçada pelo espírito de Deus". A "chama dupla" do amor e do erotismo é pois, outrossim, aqueloutra "chama de amor viva" a que o místico tenta poeticamente dar forma, como diz São João da Cruz, através de "figuras, comparações e metáforas" : os "ditos de amor" do falar de Deus e a Deus. E se aqui citamos o poeta de "Noche Oscura" é porque este comparece intertextualmente nessa visitação de amor de Herberto Helder, cuja poesia ressoa - para usar uma das suas muitas imagens de conotação mística - como uma "música nocturna": a da "noite dos sentidos" e a da "noite do espírito".

o

"erotismo sagrado" subsume em si, na verdade, tanto o "ero- tismo dos corpos" como o "erotismo dos corações", em Herberto Helder. O poema faz-se nele por vezes celebração, rito, liturgia, em que a linguagem poética, nas suas figurações corporais e espirituais da mulher, se toma consagração e invocação sacrificial:

"- Oh cabra no vento e na urze, mulher nua sob

as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito, mulher de pés no branco, transportadora

da morte e da alegria."

Esta "exaltante alegria da morte", anaforicamente reiterada, não é senão, por obra e graça do poema, enquanto mors-amor que como vimos se dá, uma glorificação religiosa da vida, nos seus elementos matriciais, que a mulher maternalmente encarna:

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o AMOR REVISITADO NUM POEMA DE HERBERTO HELDER 189

"Plantas, bichos, águas cresceram como religião sobre a vida - e eu nisso demorei

meu frágil instante. Porém

teu silêncio de fogo e leite repõe a força maternal, e tudo circula entre teu sopro e teu amor."

Se, como diz Bataille, o erotismo é "a aprovação da vida mesmo na morte", em O Amor em Visita o enlace de Eros e de Tánatos é um leitmotiv obsessivo, que percorre todo o poema, no seu movimento pendular de diástoles e de sístoles, num vaivém constante, de estrofe em estrofe e de verso em verso, onde as figuras da vida e da morte capilarmente circulam, num fluxo interminável e osmótico:

"As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso jovem da carne aspiram longamente

a nossa vida. As sombras que rodeiam

o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto seu bárbaro fulgor, o rosto divino

impresso no lodo, a casa morta, a montanha inspirada, o mar, os centauros

do crepúsculo

- aspiram longamente a nossa vida."

Por isso é que estamos morrendo na boca um do outro."

Assim se escande este canto de morte e amor: um "amor mais terrível do que a vida" pois é o da morte a dois, em cada espasmo com- sumada, para que a vida seja sempre a recomeçar, como tempo, em cada instante sagrado:

"Começa o tempo onde a mulher começa, é sua carne que do minuto obscuro e morto se devolve à luz",

canta ainda o poeta, recomeçando também sem fim o seu canto. É que ele bem sabe, como escreveu René Char, que "o poema é o amor realizado do desejo que permanece desejo" E do desejo se alimenta a

"chama dupla" do amor e do erotismo, que na poesia de Herberto Helder arde alta, até ao êxtase.

Ao revisitarmos O Amor em Visita é como se o espaço de medi- tação do texto poético se nos oferecesse à leitura como um corpo a desnudar-se. Parafraseando Roland Barthes, trata-se para nós, numa

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palavra, de surpreender "o modo de manifestação do corpo erótico no perfil do texto"5. Será seguindo este perfil, minuciosamente delineado, que se tomará possível empreender um estudo da poética de Herberto Helder, a partir do seu poema liminar.

Referir essa poética à esteira do surrealismo, de que sem dúvida soube mobilizar todos os recursos de libertação da linguagem como na célebre "escrita automática", ou apontar nela as marcas da "poesia experimental", é evidentemente importante. O próprio título do poema revisitado, que foi retomado do livro de Alfred Jarry, L'Amour en Visites, de 1898, é nesse sentido uma pista a explorar, por tratar-se de um precursor do surrealismo.

Mas importa não esquecer que, tal como os surrealistas incorporam, transformando-a, a tradição petrarquista, Herberto Helder o mesmo fez pela via camoniana, como mostra um poema anteposto a O Amor em Visita, no livro A Colher na Boca, de 1961, em que o republicou. O soneto intertextual e paratextualmente reescrito - o célebre "Trans- forma-se o amador na cousa amada ... " - insere-se na verdade numa temática petrarquizante, que já tinha tido entre nós uma afloração, antes de Camões, no Cancioneiro Geral. As transformações a partir dele operadas por Herberto Helder são significativas do seu trabalho poiético de mutação das formas:

"Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.

E a coisa amada é uma baía estanque.

É o espaço de um castiçal, a coluna vertebral e o espírito das mulheres sentadas".

Como Camões, Herberto Helder poderia escrever:

"E o vivo e puro amor de que sou feito, Como a matéria simples busca a forma."

É uma forma poética nova que a matéria do amor e do erotismo, de desejo em desejo, sempre busca, numa língua outra, que de metamor- fose em metamorfose o poeta reinventa. Talvez seja num metapoema de A Colher na Boca que ele melhor fala do seu "Ofício Cantante":

5 Sobre a concepção barthesiana do texto como "corpo erótico", cf. o nosso ensaio Poiética de Barthes, Porto, 1980, pág.73 e segs.

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"Ocupo-me dos símbolos, e gostaria que meu coração

entontecesse lentamente, que meu coração caísse numa espécie de extática e sagrada loucura"

Loucura da linguagem: loucura simbólica, loucura mística. Mas antes de mais loucura do Amor, que é a do próprio poeta em busca da Palavra das palavras:

"Penso que deve existir para cada um

uma s6 palavra que a inspiração dos povos deixasse virgem de sentido [ ... ].

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez de um instrumento antigo, um nome ligado à morte - veneno, punhal, rio

bárbaro onde

os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes luas impassíveis.

Um abstracto nome de mulher ou pássaro.

Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida palavra Amor."

A desconhecida palavra Amor. É essa a que havemos de infini- tamente procurar - porque escrita lá está - ao revisitar, como se não o conhecêssemos, conhecendo-o, O Amor em Visita.

Referências

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