6º CONGRESSO INTERNACIONAL DO DIREITO DA LUSOFONIA
Universidade de Fortaleza21 a 24 de maio de 2019
A integração social através da contratação pública: que abordagem no
Código dos Contratos Públicos português?
Social inclusion through public procurement: which approach in the
Portuguese Public Procurement Code?
Isabel Celeste Monteiro da Fonseca1(PQ); João Amadeu Araújo da Silva2(PQ). 1Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho
2Mestre em Direito Administrativo pela Escola de Direito da Universidade do Minho isabel.uminho@gmail.com
joaoamadeuaraujosilva@gmail.com
Resumo
A contratação pública pode traduzir-se num instrumento apto a promover a integração do indivíduo na sociedade, tendo a revisão do Código dos Contratos Públicos português cuidado de soluções num tal sentido, em decorrência transpositiva das diretivas de 2014 da União Europeia em matéria de contratação pública.
Assim sendo, existe um conjunto de sedes estratégicas que as entidades adjudicantes podem utilizar para a prossecução de objetivos de natureza social na contratação, as quais são, por excelência, o planeamento contratual e a decisão de contratar, as especificações técnicas, a qualificação e a exclusão dos operadores económicos, os contratos reservados, o critério de adjudicação e as condições de execução contratual.
O aproveitamento de um tal potencial assume-se com crescente premência no cerne de um modelo contratual-público que se pretende ativo no combate à exclusão social e logrador de um compromisso duradouro de sustentabilidade.
Palavras-chave: Contratação pública socialmente responsável; inclusão social; dignidade
humana.
Public contracts can be an effective tool as regards the promotion of social inclusion. Therefore, the Portuguese Public Procurement Code, which transposes the 2014 Directives on public procurement, addresses those matters.
Procurement planning and the definition of the subject matter of the contract, technical specifications, exclusion grounds, selection criteria, reserved contracts, award criteria and performance clauses represent the most strategic mechanisms concerning the implementation of social considerations in public contracts.
The exploitation of such potential is being increasingly regarded as vital for fostering a sustainable public procurement paradigm in which social inclusion is an achievable outcome.
Keywords: Social public procurement; social inclusion; human dignity.
Introdução
A contratação pública revela-se um instrumento apto a gerar mais-valias para o bem-estar das sociedades modernas, movendo-se no esbatimento das inquidades que lhes subjazem.
Com efeito, a utilização deste instrumento para a a prossecução de interesses públicos de feição social assume crescente preponderância na promoção de um modelo contratual-público sustentável e capaz de propulsionar um sem-número de inúmeros adventos societários tais como a integração de grupos sociais desfavorecidos, a promoção de condições de trabalho digno, a igualdade de género no emprego ou a inserção laboral de cidadãos deficientes.
Os contratos públicos não só podem, como devem revelar-se socialmente responsáveis e inclusivos, assentando por completo no respeito pelos direitos humanos, e pelos direitos sociais e laborais básicos, bem como lhes subjazendo todo um potencial reformador da sociedade num sentido integrador e diluidor de assimetrias sociais, que urge aproveitar.
Assim, os contornos da revisão do Código dos Contratos Públicos português (CCP), em sequência da transposição das diretivas da União Europeia da contratação pública (2014), pautam-se pela dedicação estratégica a essa natureza de variáveis.
Metodologia
Com vista a que nos seja possível inteligir como podem as entidades adjudicantes promover uma contratação pública socialmente responsável e inclusiva, cumpre densificar quais as sedes procedimentalmente mais apropriadas para a realização de políticas sociais ao abrigo do CCP, exercício a adensar com a convocação de elementos jurisprudenciais e doutrinários que relevam em tal sentido cognoscitivo.
Resultados e Discussão
De acordo com o n.º1 do artigo 1º-A do Código dos Contratos Públicos, na formação e na execução dos contratos públicos existe um conjunto de princípios fundamentais a respeitar. No âmbito do estudo em apreço interessam-nos em especial o princípio da prossecução do interesse público e o princípio da sustentabilidade.
O princípio da prossecução do interesse público encontra-se consagrado no n.º1 do artigo 266º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e é concretizado no artigo 4º do Código do Procedimento Administrativo (CPA). Enquanto princípio norteador de todo o agir administrativo, enforma transversalmente a contratação pública. A composição do interesse público sindica pela maximização da utilidade social gerada, no quadro de uma despesa pública eficiente e racional.
No mesmo sentido teleológico se inscreve o princípio da sustentabilidade, o qual pressupõe o equilíbrio entre os elementos económicos, sociais e ambientais na contratação; equilíbrio, por tal, inatingível caso sejam descuradas as preocupações de índole social nos contratos públicos. Aqui chegados, urge, então, em atinência à vocação pragmática do desiderato em apreço, densificar os momentos-chave para a inclusão de critérios sociais pelas entidades adjudicantes no seio das suas compras públicas, os quais são, por excelência: (i) o planeamento contratual e a definição do objeto do contrato, (ii) as especificações técnicas), (iii) a qualificação e a exclusão dos operadores económicos, (iv) os contratos reservados, (v) o critério de adjudicação e (vi) as condições de execução contratual
(i) Planeamento contratual e decisão de contratar
Previamente à definição do objeto contratual, as entidades adjudicantes devem auscultar as respetivas necessidades aquisitivas, o que poderá contemplar o recurso a consultas preliminares do mercado (artigo 35º-A do CCP), nomeadamente no que concerne ao contacto com potenciais fornecedores, auscultando a disponibilidade, o custo e alternativas com vista à contratualização de bens, obras ou serviços dotados de mais-valias sociais.
Independentemente do recurso ou não a tal instrumento, as entidades adjudicantes dispõem de um vasto potencial para moldarem embrionária e integralmente os procedimentos de contratação pública no sentido de uma crescente responsabilidade social, através da decisão de
contratar, exercendo uma função reguladora nesse domínio.(1)
Com efeito, os benefícios de índole social podem traduzir-se no pressuposto essencial da decisão de contratar, sem o qual aquela nunca teria sido tomada. Pensemos, verbis gratia, num contrato de formação socioprofissional para refugiados ou num contrato de aquisição de equipamento específico para pessoas com deficência.
(ii) Especificações técnicas
As especificações técnicas, a constar obrigatoriamente do caderno de encargos, definem as características exigidas para os bens, obras ou serviços em causa, e encontram-se reguladas no artigo 49º do CCP. Na redação das especificações técnicas, as entidades adjudicantes densificam o objeto do contrato, materializando, em moldes tecnicamente precisos, os objetivos sociais
concebidos a montante, na fase do planeamento de determinado contrato público.(2)
Cumpre referir que, em relação a todos os contratos cujo objeto se destine a ser utilizado por
pessoas singulares, quer seja o público em geral, quer seja o pessoal das entidades adjudicantes, as especificações técnicas devem ser formuladas de modo a ter em conta os critérios de acessibilidade para pessoas com deficiência ou de conceção para todos os utilizadores.
Não obstante, as especififcações técnicas permitem ainda a promoção da contratação pública socialmente responsável e inclusiva em domínios muito extravasantes das exigiências normativas em matéria da deficiência, podendo, inclusivamente, visar o próprio processo produtivo. Assim, num contrato de empreitada de obras públicas pode ser exigida a inclusão de requisitos
destinados a salvaguardar a saúde e a higiene dos trabalhadores, e a evitar acidentes laborais. Ou, num contrato para a prestação de serviços de catering para uma universidade em que a diversidade cultural seja premente, a entidade adjudicante pode exigir que os alimentos sejam confecionados ao abrigo de determinados métodos, compatíveis com a consciência ética dos diferentes credos professados pelos estudantes daquele estabelecimento de ensino superior.
(iii) Qualificação e exclusão dos operadores económicos
Nos procedimentos de adjudicação que incorporem uma fase de qualificação prévia podem ser exigidos pelas entidades adjudicantes aos operadores económicos requisitos mínimos de capacidade técnica que se prendam a fatores sociais, em contratos cujo objeto os possa justificar. Esta é uma matéria regulada no artigo 165º do CCP, ao abrigo do qual tais requisitos podem, para o que nos interessa, prender-se aos recursos humanos e técnicos, à experiência curricular dos candidatos, e ao modelo e capacidade organizacionais dos mesmos.
Com efeito, existem contratos cuja natureza exige um savoir faire específico em matéria social
e em que, por isso, a consideração de tais variáveis se revela premente.(3) Um exemplo nesse
sentido seria a exigência de a empresa proponente ter ou de deter acesso a equipamento adequado para crianças num contrato para a gestão de um orfanato.
Por seu turno, no que atine à exclusão dos operadores económicos dos procedimentos de contratação, cabe referir que o artigo 55º do Código dos Contratos Públicos estabelece um rol de motivos determinadores de um tal afastamento, relevando as infrações sociais nessa sede.
Em abono do rigor, à aplicação de uma sanção administrativa por falta grave em matéria profissional ou à condenação por sentença transitada em julgado por crime que afete a honorabilidade profissional do operador económico – ambos motivos excludentes dos procedimentos contratuais – podem subjazer violações de direitos sociais e laborais básicos, tais como a discriminação dos trabalhadores em razão da raça ou da orientação sexual, ou o desrespeito pelo direito à greve. Tais impedimentos persistem pelo prazo de três anos, contado a partir da falta grave em matéria profissional ou da data da sentença transitada em julgado, respetivamente.
Constituem, outrossim, impedimentos de participação a aplicação de sanção judicial ou administrativa, há menos de dois anos, pela utilização de mão-de-obra clandestina (pelo prazo de três anos) e a sentença por decisão transitada em julgado por trabalho infantil e outras formas de tráfico de seres humanos, sendo que este último subsiste pelo prazo de cinco anos a contar da data de condenação por sentença transitada em julgado.
(iv) Contratos reservados
Com vista a facilitar o acesso ao mercado dos contratos públicos a entidades que enfrentam dificuldades estruturais nesse sentido, à luz do artigo 54º-A as entidades adjudicantes podem reservar a possibilidade de ser candidato ou concorrente a entidades cujo objeto principal consista na integração social e profissional de pessoas portadoras de deficiência ou de pessoas
desfavorecidas (como, por exemplo, desempregados de longa duração, membros de minorias desfavorecidas ou grupos sociais marginalizados).
(v) Critério de adjudicação
A proposta economicamente mais vantajosa é aferida com base em uma das seguintes modalidades: o preço ou o custo mais baixo; ou a melhor relação qualidade/preço (n.º2 do artigo 74º do CCP). Caso a opção das entidades adjudicantes recaia sobre a segunda modalidade, fatores e subfatores de teor social podem ser considerados.
Para a consolidação de um tal caminho legislativo, radicado dos ditames transpositivos das diretivas de 2014, contribuiram fundamentalmente os arestos do Tribunal de Justiça da União
Europeia – entre outros, mas sobretudo o acórdão Nord-Pas de Calais(4) e o acórdão Concordia
Bus Finland(5) - assumindo-se o critério de adjudicação como uma das sedes mais voltadas para a
atinência às preocupações sociais na contratação pública.
Com efeito, ao abrigo do n.º2 do artigo 75º do CCP podem – para o que aqui releva - ser consideradas variáveis qualitativas como a acessibilidade e conceção para todos os utilizadores, as características sociais ou de inovação social, e a sustentabilidade social do modo de execução dos contratos, desde que ligados ao objeto contratual, previamente publicitados no programa do procedimento e respeitadores dos princípios do direito da contratação pública.
Entre a miríade de possibilidades aqui suscitadas, poderá, mesmo, estar em causa a consideração de aspetos relacionados com o fornecimento e a utilização de produtos provindos do
comércio justo, tal como radicado do acórdão Max Havellar.(6)
(vi) Condições de execução contratual
Desde o acórdão Beentjes(7) – em que estava em causa uma condição relativa à contratação
de desempregados de longa duração – tem-se admitido que assistem potencialidades promotoras de uma contratação pública socialmente inclusiva através das condições de execução contratual. Assim, o n.º6 do artigo 42º do CCP dispõe que podem ser incluídas, no caderno de encargos, condições de natureza social e laboral como aspetos de execução contratual, contanto que relacionadas com os contratos em causa (e conformes aos princípios da contratação pública). O Código refere-se, ainda, à possibilidade de previsão de condições que se destinem a favorecer: a aplicação de medidas que se destinem a favorecer a igualdade de género e a igualdade salarial no trabalho, o aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho, a conciliação da vida pessoal com a vida familiar e pessoal dos trabalhadores afetos à execução contratual, e a inclusão de pessoas com deficiência no mercado laboral.
As condições de execução contratual podem visar esses desideratos sob moldes múltiplos, tais como através da imposição de aprovação de planos de igualdade a aplicar no âmbito da execução dos contratos, ou através da exigência de realização de cursos de formação em matéria de igualdade de género e de assédio sexual no trabalho com vista à execução dos contratos públicos
Conclusão
O Código dos Contratos Públicos português permite a promoção de uma contratação pública socialmente responsável através de vários momentos-chave do ponto de vista procedimental, revelando-se inúmeras as problemáticas da vida em sociedade que podem ser eficazmente visadas através deste instrumento de políticas públicas.
Por conseguinte, cumpre apostar na profissionalização das entidades adjudicantes e na sensibilização das mesmas para a sustentabilidade económica, social e ambiental sob a égide da qual a contratação pública se deve realizar holisticamente.
Com efeito, o modelo contratual-público exigido hodiernamente não é senão aquele que logra compatibilizar a racionalidade económico-financeira com a observância dos direitos humanos, do núcleo essencial dos direitos sociais e laborais, e que se revela apto a inserir o indivíduo na sociedade. Faça-se, então, uma contratação pública socialmente inclusiva.
Referências
(1) RODRIGUES, NUNO CUNHA. A Contratação Pública como Instrumento de Política
Eco-nómica. Coimbra: Almedina, 2013, p. 237.
(2) CARANTA, ROBERTO. Sustainable Procurement. In TRYBUS, M.; CARANTA, R.;
EDELS-TAM, G. (org.). EU Public Contract Law: Public Procurement and Beyond. Bruxelas: Bruy-lant, 2013, p. 171.
(3) DRAGOS, DACIAN; NEAMTU, BODOGNA. Sustainable public procurement in the EU:
experi-ences and prospects. In LICHÈRE, F.; CARANTA, R.; TREUMER, S. (ed.) Modernising
Pu-blic Procurement: the New Directive. Copenhaga: DJOF, 2014, p. 321.
(4) UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão Nord Pas-de Calais.
Pro-cesso C-225/98. 26 de setembro de 2000.
(5) UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão Concordia Bus Finland.
Processo C-513/99. 17 de setembro de 2002.
(6) UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão Max Havelaar. Processo
C-368/10. 10 de maio de 2012.
(7) UNIÃO EUROPEIA. Tribunal de Justiça da União Europeia. Acórdão Gebroeders Beentjes v.
Países Baixos. Processo C-31/87. 20 de setembro de 1988.
(8) GARÍN, BEATRIZ BELANDO. La contratación pública como instrumento de promoción de la
igualdad entre hombres y mujeres. In FELIÚ, J.M.G. (dir.). Observatório de los Contratos
Públicos 2016. Burgos: Thomson Reuters Aranzadi, 2016, p. 439.
Agradecimentos
Um agradecimento muito sentido à Universidade de Fortaleza, à qual nos dirigimos com o maior respeito pelo percurso institucional meritório que lhe corresponde e em votos de todo o sucesso no acolhimento do 6ºCongresso Internacional do Direito da Lusofonia.