www.rbceonline.org.br
Revista
Brasileira
de
CIÊNCIAS
DO
ESPORTE
ARTIGO
ORIGINAL
Mojuodara:
uma
possibilidade
de
trabalho
com
as
questões
étnico-raciais
na
educac
¸ão
física
Gabriela
Nobre
Bins
a,∗e
Vicente
Molina
Neto
baSecretariaMunicipaldeEducac¸ão,PortoAlegre,RS,Brasil
bUniversidadeFederaldoRioGrandedoSul(UFRGS),ProgramadePós-Graduac¸ãoemCiênciasdoMovimentoHumano,Porto
Alegre,RS,Brasil
Recebidoem26desetembrode2016;aceitoem8defevereirode2017 DisponívelnaInternetem3demaiode2017
PALAVRAS-CHAVE Relac¸ões
étnico-raciais; Educac¸ãofísica; Valorescivilizatórios afro-brasileiros
Resumo Esteartigoapresentaadiscussãosobreaspossibilidadesdotrato comasquestões
étnicasnaeducac¸ãofísicadaredemunicipaldeensino dePortoAlegre.Eleépartedeuma
dissertac¸ãocujotemaéaeducac¸ãofísicaeasquestõesétnico-raciaisetem comoobjetivo
analisarosdadosqueemergiramatravésdeumestudodecasoetnográfico.Elerelataa
expe-riência deum professordaredemunicipal dePorto Alegre queusaosvalores civilizatórios
afro-brasileiroscomometodologiadetrabalhoparaestruturarsuapráticapedagógica.
©2017Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Este ´e
umartigoOpenAccesssobumalicenc¸aCCBY-NC-ND(http://creativecommons.org/licenses/
by-nc-nd/4.0/).
KEYWORDS Racialethnic relations;
PhysicalEducation; Civilizingvalues African-Brazilians
Mojuodara:apossibilityofdealingwithracialethnicissuesinPhysicalEducation
Abstract ThisarticlediscussesthepossibilitiesofdealingwithracialethnicissuesinPhysical
EducationinthemunicipalPortoAlegreprimaryschools.Itispartofamaster’sdegreethesis
whoseaimwastolookintophysicaleducationandracialethnicissuesandanalyzethedatathat
emergedthroughanethnographiccasestudy.ItreportstheexperienceofaPortoAlegre
muni-cipalteacherwhousesAfricanBraziliancivilizingvaluesasapedagogicalmethodtostructure
histeachingpractice.
©2017Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublishedbyElsevierEditoraLtda.Thisisan
openaccessarticleundertheCCBY-NC-NDlicense(
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/).
∗Autorparacorrespondência.
E-mail:ganobre@hotmail.com(G.N.Bins). http://dx.doi.org/10.1016/j.rbce.2017.02.009
PALABRASCLAVE Relacionesétnicasy raciales;
Educaciónfísica; Valorescivilizadores afrobrasile˜nos
Mojuodara:unaposibilidaddetrabajarconcuestionesétnicasyracialeseneducación física
Resumen Enesteartículosepresentaundebatesobrelasposibilidadesdehacerfrentealas
cuestionesétnicasyracialeseneducaciónfísicaenlasescuelasmunicipalesdePortoAlegre.
Formapartedeuntrabajodetesiscuyotemaeslaeducaciónfísicaylosproblemasracialesy
étnicos,ytienecomoobjetivoanalizarlosdatosquesurgieronenunestudiodecasoetnográfico.
ExplicalaexperienciadeunmaestropúblicodePortoAlegrequeutilizalosvalorescivilizadores
afrobrasile˜noscomométododetrabajoparaestructurarsuprácticadocente.
©2017Col´egioBrasileirodeCiˆenciasdoEsporte.PublicadoporElsevierEditoraLtda.Estees
unart´ıculoOpenAccessbajolalicenciaCCBY-NC-ND(http://creativecommons.org/licenses/
by-nc-nd/4.0/).
AXÉ
Este artigo é fruto da pesquisa de mestrado intitulada ‘‘Mojuodara:aeducac¸ãofísicaeasrelac¸õesétnico-raciais naredemunicipaldeensinodePortoAlegre’’.Aolongode maisde15anosdeexperiênciadocenteemescolaspúblicas, constatamoscomfrequênciaepisódiosemqueodispositivo escolarinviabilizaareflexãosobreasquestõesétnicasnas quaisosalunosealunasnegrasestãoenvolvidos.Nabusca decompreenderessefenômeno,apesquisatevecomofoco aeducac¸ãofísicaeasrelac¸õesétnico-raciaisnarede muni-cipaldeensinodePortoAlegre(RME-POA).
O Brasil é o país de maiorconcentrac¸ão de populac¸ão negra fora do continente africano, 50,7% da populac¸ão sãonegros.EmPortoAlegre,essepercentualdiminuipara 18%;porém,desses18%agrandemaioriaestáconcentrada nos bairros periféricos da cidade, onde estão as escolas municipais.Essa populac¸ão negra é o público das escolas municipais e esse corpo negro carrega uma história, um conteúdo; mas esse conteúdo é raramente incorporado na escola e nas aulas de educac¸ão física. Assim, estudar asrelac¸õesétnico-raciaisna escolaé algocomplexo,pois a escola reflete e contribui com a estrutura racista e discriminatóriadanossasociedade.
O problema de estudo que norteou este trabalho foi ‘‘Quaisos limitese as possibilidades para que o trabalho ouodesenvolvimentodasquestõesétnico-raciaisacontec¸a nas aulas deeducac¸ão física da RME-POA’’; e teve como objetivos identificar e compreender como os professores deeducac¸ão físicadasescolas municipaisdePorto Alegre abordamasquestões étnico-raciaisem suas aulas e quais dispositivos político-pedagógicos municipais, estaduais e federais interferem nessa abordagem. Para isso, busca-mos identificar e analisar os elementos que definem os conteúdos e os enfoques que o professorado desenvolve nas aulas de educac¸ão física; identificar na experiência vividadosprofessoresosdispositivosparapensarotrabalho pedagógico com as questões étnico-raciais na escola; e identificar como os dispositivos legais (leis 10.639/03 e 11.645/08)afetamapráticapedagógicadoprofessoradode educac¸ão física.Nointuitodedarcontadesses objetivos, formulamos as seguintes questões de pesquisa: O que os professores ensinam nas suas aulas e o que orienta
ou define suas escolhas? Que mecanismos, no percurso pessoal e profissional, foram importantes para pensar ou nãooensinorelacionado comasquestõesétnicas?Deque formaos professores sãoafetadospelas políticas públicas paraasquestõesétnico-raciais?QuaisaspolíticasdaSMED POAparaasquestõesétnico-raciais?
Apesquisa, decaráterqualitativo,é constituídadeum questionáriodiagnósticoe umestudo decaso etnográfico. Elegemos o professor para a etnografia pelaindicac¸ão da assessoria para asrelac¸ões étnico-raciaisda SMED e pela representatividade tipológica, isto é, o fato de o profes-sorpautarsua práticapedagógicanasrelac¸õesétnicasna escola. Distribuímos questionários nas 56 escolas munici-pais:50deensinofundamental,quatroespeciaiseduasde ensinomédio.Obtivemosumretornode58%dosprofessores darede.Osdadosdosquestionáriosservirampara apresen-tarumavisão geraldos professores deeducac¸ãofísicada redeetriangularcomosdadosdaetnografia.
Nestetexto,focamosnaapresentac¸ãodosdadosda etno-grafia. O estudo decaso etnográficoconcentra-se em um professordeeducac¸ãofísicadeumaescoladarede muni-cipaldePortoAlegrequeusaosvalorescivilizatórioscomo metodologiadetrabalho.Paraalémdosconteúdosda cul-tura corporal negra ou indígena, o diferencial na prática desse professor é que ele estrutura suas aulas pautado pelos valores civilizatórios. Foram seis mesesde trabalho decampo; observamosaulas dasturmasde 2◦ ciclo, B10,
B20 e BP, além de saídas pedagógicas das turmasde BP1 e um seminário em São Paulo, noqual o professorBaobá (pseudônimo escolhido para ele) participou como pales-trante, durante todo o segundo semestre de 2013, que totalizaram32 observac¸ões. Aprática doprofessorBaobá é umexemplo de uma experiência positiva no trato com asquestõesétnicaseumanovapossibilidadedesepensar essasquestõesnaeducac¸ãofísica.Aseguir,descrevemosos princípiosnosquaisoprofessorestruturasuasaulas.
1As escolas do munícipio de Porto Alegre são organizadasem
Ubuntu
---
Eu
sou
porque
nós
somos
Ubuntuéumconceitofilosófico quepermeiao continente africano,a palavrasignifica‘‘eusouporquenóssomos’’. ‘‘Esseconceitotentaexplicar arealidadesocial emqueo selfnãoexisteanãoserporproduto’’(Turrion,2013,s.p.). Ele foca nas alianc¸as e nos relacionamentos das pessoas umascomasoutras,emumarelac¸ãoderespeito,apoio, par-tilha,comunidade,cuidado,confianc¸aealtruísmo.Segundo
Tutu(1984), umapessoacom ubuntuestá abertae dispo-nívelaosoutros,nãopreocupadaemjulgarosoutroscomo bonsoumaus,etemconsciênciadequefazpartedealgo maiorequeétãodiminuídaquantoosseussemelhantesque sãodiminuídosouhumilhados,torturadosouoprimidos.
NasaulasdoprofessorBaobá,foipossívelperceber cla-ramenteaintenc¸ãopedagógicadeensinaressafilosofiaaos alunos. Isso desde a forma como osalunos saíamde sala deaula;nãoeramdivididosem filasseparadasporgênero comonormalmenteacontecenasescolas,massimem gru-pos,todosmisturados.Quandoporalgummotivoprecisavam fazer fila, essas filas não eram divididas por gêneros. A seguir,umaaulanaqualesseconceitodoubuntuestá repre-sentado.
UmaatividadefeitaporBaobáfoiumjogodepega-pega paralíticoe algumas variac¸ões. Osalunos fizeramo pega--pegaparalíticonormal,porémcomdoispegadores.Depois o professor colocou a variac¸ão de que quem fosse pego estenderiao brac¸o eparaser salvotinha quereceberum apertodemão.Apróximamodificac¸ãofoificaremdebrac¸os abertosparaseremsalvosporumabrac¸o.Todomundo con-tinuava a participar, fugiam correndo de um lado para o outro,mastambémsempreatentosparaachar umcolega parasalvar.Todoserampegosesalvossemmaiores contra-tempos.Oprofessorfezentãomaisumamodificac¸ão,dessa vezoalunopegoseagachavaeparasersalvoprecisavaque alguémficasseagachadonoseulugar.Ouseja,alguémtinha quesesacrificarparalibertar ooutro.Nessemomento,já pudemosobservarváriosalunosqueficarammaistempo aga-chadoseunsqueescolhiambemcomquemelesiriamtrocar delugar.Emumcantodaquadrahaviaquatroalunos aga-chados,poishaviam sidopegos,umameninacorreunessa direc¸ãoe elespedirampara queela trocassecomeles. A meninaparou,olhoubemparaverquemeramoscolegas, pensouumpouco,masnãotrocoucomninguém, voltoua correr atéachar uma colegaagachada maisnocentro da quadracomquemelafinalmentetrocou.
Finalmente,oprofessorfezaúltimavariac¸ão.Segundo osalunos, o momento maisdifícilda aula. Para sersalva apessoatinhaquereceberumbeijonabochecha.Quando oprofessorfaloucomoseriaabrincadeira,foiumrebolic¸o naturma, unsgritaram,outrosriram, váriosdisseramque nempensar.Umalunoperguntouaoprofessorsenãotinha algo maisnojento para eles fazerem. Nessahora, muitos foram pegos e muito poucos salvos.Nenhum aluno parou debrincar,ouseja, todoscorrerame fugiram, masquase ninguémsalvoualguém.
O professor Baobá explicou que trabalha com essas variac¸õesparapoderestimularodesenvolvimentode valo-rescomoacooperac¸ão,asolidariedadeeoafeto.Segundo ele,paratrabalharosvalorescivilizatóriosnãofuncionasó conversar,temquevivenciá-losnaprática,nocorpo.Silva (2011)chamaaatenc¸ãoparaanecessidadedeprestarmos
atenc¸ão à formadeos nossos alunos aprenderem,formas essasquepassamtambémpelocorpo.Paraaautora,vários exemploscomoodepovosindígenas,quilombolase habitan-tesdeoutrosterritóriosnegrosapontamquenãoésomente comainteligênciaquesetemacessoaoconhecimento.Ao analisarasexperiênciasdessespovos,percebemosqueéde corpointeiroqueensinamos,aprendemosedescobrimoso mundo,éatravésdofísico,dainteligência,dos sentimen-tos,dasemoc¸õesedaespiritualidade.Masparaoprofessor Baobátambémé preciso falaro quesefaz, senão muitas vezeselesnempercebemoquefazem.
Nas aulas observadas, ficou evidentea importância de valorizaraparticipac¸ão.Como,porexemplo,emumjogo,o fatodeoprofessoreosalunosnãoenfatizaremaquestãodo ganharouperder,masvalorizaremqueocoleganãoqueira sairdojogo,valorizaremadiversãoemsi;éimportante tra-balharefazerosalunosentenderemoubuntu.Entenderem essafilosofiade‘‘eusouporquenóssomos’’.
A
roda
UmdospressupostosqueoprofessorBaobátempara desen-volverseu trabalhopedagógico é a roda,a circularidade. Todasassuasaulasiniciamsempreemroda,quandoaaula énaruaarodaéfeitanopátio,quandoaaula éna sala, na maioria das vezes osalunos fazem um círculo com as cadeiras.Aformac¸ãoemroda,acircularidade,éumvalor civilizatóriomuitoimportanteparaoprofessor.Segundoele:
[...]ocírculo,alémdeserdanossaancestralidade,ser dospovosmaistradicionaiscomoospovosindígenas,os povosafricanos,eletemumvalormuitogrande, queé ovalorquetodomundoseenxerga,todomundoseolha etodomundoocupaumlugarigualnocírculo,diferente dasaladeaula ondenósestamosnaquelepanótipoem queoprofessorvêtodomundoetodomundonãosevê (informac¸ãoverbal).2
Ocírculoentãoprecisasersentidoe vividoe foioque observamosaconteceremváriasaulas.Osalunosjásabiam queasaulasiniciariamemcírculoe seorganizavamassim automaticamente,tambémentendiamoporquêdesse pro-cedimento.Maisdeumaveznasaulasoprofessorperguntou seelessabiamporqueestavamemrodaeprontamenteeles responderam.A seguir,umexemplo do usodaroda como estratégiapedagógica.
02/09/2013---Aula 2---ChegamosàsaladaBPeo pro-fessorexplicouaosalunos que eles nãodesceriampara o pátio, ficariam na sala e dariam continuidade à roda de discussão sobre o curta-metragem que faziam. Os alunos levantaram e colocaram as cadeiras em círculo enquanto oprofessorpegavaa filmadoraparafilmara rodade con-versas.Comec¸aramafalarsobreonomequeumdosalunos tinhasugeridopara o filme: ‘‘Apele negra’’.O professor pediuqueeleexplicasseoporquêdotítuloeperguntouse osalunosconcordavameoqueentendiamdele.
Algumasalunasfalaramqueéporqueumaspessoas bran-casqueremsernegraseoutrasnegrasqueremserbrancas.
2Informac¸õesfornecidaspeloprofessorBaobáem4dejaneirode
Agrande maioria daturmaparticipou dadiscussão, todos tinhamumaopiniãoeapesardealgunsnãoquererem apa-recernasfilmagens,davamsuaopiniãoassimmesmo.Volta e meia o professor tinha que intervir para não perder o focodadiscussão.Elesdiscutiamquemiriamentrevistare umaalunaapresentouumalistadeperguntas.Oprofessor pediuque osalunosdiscutissem asperguntas etentassem respondê-las.Pediu tambémque eles pensassem comose sentememrelac¸ãoaoseucorpo,àsuaorigem.Algumasdas perguntasforam:Oqueéracismo?Oqueédiscriminac¸ão?O queépreconceito?Édifícilsernegra,verdade?Comovocê sesentecom asuapele? Oque é cabeloduro? Porque o negrotemmenoschancesdoqueosbrancos?
Alémdisso,surgiramnadiscussãofalascomo:‘‘Nas nove-las o negro é sempre empregado, não tem negro rico’’. Quandodiscutiramsobrechanceseoportunidadesdenegros ebrancosumalunonegrodisse:‘‘Eutenhomuitaschances! Chancesdedescerparaadirec¸ão...Vouláumasduasvezes pordia’’.Eleetodososalunosacharamgrac¸adessafala.
Noexemplo apresentado, o professor propiciou que os alunosvivenciassemesentissemaroda,quenelase situas-seme entendessemoporquêdasuaexistência.Essevalor civilizatórioémuitoimportantenaculturaafricanaenegra brasileira,poisapontaparaomovimento,acircularidade, orespeito,arenovac¸ão,oprocesso,acoletividade.O prin-cípiodacircularidadeestáintimamenterelacionadoauma visãocomunitáriadavida,afilosofiadoubuntu,naqualo homemestáintegradoaouniverso.‘‘Enquantoo comunita-rismovalorizaavivênciacoletiva,visandoaobem-estarde todosedecada um,a circularidadepropõea horizontali-dadenasrelac¸õeshumanas,acirandadossaberes’’(Rocha, 2011,p.34).
Oralidade
e
ancestralidade
Aoexplicarcomoestruturavasuasaulas,oprofessorBaobá frisou que procura trabalhar comos alunos e asalunas a corporeidadee usa os princípios civilizatórios como prin-cípiosmetodológicosparaassuas aulas.Inicia sempreem roda, promove a valorizac¸ão da oralidade e o respeito à ancestralidade.
Apalavra é umvalor civilizatório muitoimportante na cosmovisãoafricana.ParaOliveira(2006),p.47,‘‘Ohomem, aosercriado,recebeaforc¸avitaleopoderdapalavra,que sãoequivalentes,vistoqueapalavraéconcebidacomouma energiacapazdegerarcoisas’’.Osprincípiosdaoralidadee daancestralidadesãomuitoimportantesnassociedades tra-dicionaisafricanas,poisfirmam-senatradic¸ãoenorespeito aoqueétransmitidopelosmaisvelhos.Osmaisvelhos assu-mematarefadetransferiraosmaisjovensoconhecimento, osritoseasabedoriacontidanatradic¸ão.
Apalavra dos‘‘velhos’’assumeprerrogativade conhe-cimento; ‘‘é palavra viva’’, pois ensina os saberes antepassados,estabeleceelosentreopassadoeopresente e projeta esperanc¸as. ‘‘A oralidade assume a func¸ão de suporte para a transmissão, preservac¸ão e transformac¸ão dessessaberes’’(Rocha,2011,p.43-44).
Segundo o professorBaobá, umaquestão muito traba-lhadapor ele nasaulas foi a valorizac¸ão dapalavra e da escuta;masconformeele,nãoadapalavraedaescutapor
serdoprofessor,masporseralgomuitoimportante quea gentedeverespeitar:
Explicopraelesadiferenc¸aentreescutareouvir,explico praelesqueouvirqualquerumouve,maspassa desperce-bido,apessoanãoseimplicacomoqueestáacontecendo e escutar érealmente seinteressarporaquilo,mesmo queapessoanãoconcordedepoiseéclaroqueeu pro-curodiscutiressasquestõesdeacordocomcadaturma, deacordocomcadamomento...háturmasemqueisso ficasupertranquilo de fazer,a gente fazia as rodas de conversasuperdinâmicas...agenteconseguia...àsvezes trabalhava com a questão dealgum objetoparaquem estácomapalavra...então quemestácomochocalho indígenaficacomapalavraeosoutrostêmqueesperar eleterminardefalarpradevolver(informac¸ãoverbal).3
Essaestratégiadeusarumelementoquemarcassequem estavacom opoderdapalavra esteve presenteem várias aulas. Umdia, em umaturma deB10,nomeioda aula o professorreuniuaturmamaisumaveznarodaeconversou comosalunos.Avaliouaaulaatéaquelemomentoe pergun-touoquetinhasidomaisdifícildefazereoqueelesmais haviamgostado.Chamouaatenc¸ãoqueoprofessorteveo cuidado de preservara fala de cada ume para organizá--la passavaa bolaparao alunoque iafalar, indicava que eleestavacomapalavraeosoutrosdeveriamouvir.Outra estratégiadevalorizac¸ãodaoralidadeusadapeloprofessor foi pedir aosalunos que perguntassem em casa sobresua origem e sobrejogos e brincadeiras que seus paise avós brincavameentãoguardassemnamemóriaparacontarem salanapróximaaula.
Aancestralidadeeravivenciadanasaulasatravésdo res-peitoaomaisvelho.Porémnãoumrespeitosóporquese temquerespeitaromaisvelho,masumrespeitoàsabedoria eàancestralidade.
Aancestralidade tambéméumelemento constantena culturaafricana ecolaboracomacomunidade,orienta suas ac¸ões. A preservac¸ão da memória dos antepassa-dos não levasomente a olhar o passado, mastambém aestabelecerdiálogoscomele,absorveasabedoriados ancestrais,queabriramcaminhosparaosnovostempos (Rocha,2011,p.34).
Essa noc¸ão de ancestralidade o professor colocava em práticanascaminhadasquefaziacomosalunospelobairro. Durante os seis meses em que ficamos na escola para as observac¸ões,tivemosoportunidadedeacompanharas tur-masmaisdeumaveznessascaminhadas.
30/09/2013---Fomosparaopátioeosalunosfaziamuma pesquisa, entrevistavam aspessoas com asseguintes per-guntas: Existeracismo?Existepreconceito?Vocêjásofreu preconceito? Qual a sua origem? O professor me explicou queelesconstruíramessasperguntasemumarodade con-versasemsaladeaula.Depoisdealgumtempoaentrevistar aspessoasnaescola,oprofessorreuniuogrupoe organizou--osparasairdaescola,combinoucomosalunosocaminho que elesfariam edeu algumasinstruc¸õesdecomo proce-deriamnasentrevistas.Perguntamosaelecomofaziacom
asautorizac¸õeseeleexplicouquenoiníciodoanoospais assinaramumaautorizac¸ão parasaídas pelo bairroparao anotodo.
Assim,saímosdaescola,osalunosradiantes,loucospara encontrar pessoas e fazer sua pesquisa. Uns correram na frente para serem os primeiros a interpelar os transeun-tes.Foramentrevistadosatéosalunosdaautoescola(CFC) que faziam aula de baliza na rua. Entraram no posto de saúde,ondeatéummeninofoi atendido,poisna correria caiu e machucou a mão. Passaram pelo projeto Renascer daEsperanc¸aeasuafundadora,umalídercomunitáriade renome nobairro, correu para falar com o professor.Ela contouquena Esplanadahaviaumaplacaem homenagem aZumbidosPalmares,queahistóriadobairroRestingaera tambémahistória dopovonegroe falouqueachoumuito legal a atividade doprofessor, que era muito importante osalunos falarem e escutaremsobre oracismo. Ela cum-primentouoprofessoresecolocouàdisposic¸ãodosalunos pararespondermaisperguntas.Aturmaaindaandou pelo bairromaisumpoucoedepoisretornouàescola.Naescola, em umaroda, o professorcombinou que na próximaaula iriam discutir as entrevistas (trecho do diário de campo, 30/09/2013).
Emoutrascaminhadas,osalunosencontraramoutras pes-soasimportantesna comunidadequepreservamahistória do bairro, como Maria Clara e Beleza,duas pessoas mais velhasqueviramobairronasceretrazemnasuamemória ahistória doRestinga.O professorcontoutambémocaso deumadascaminhadas emquenãoestávamospresentes, quandoencontraramumrapazquerecolhiaolixoedeuum problemão. Umdos alunosdebochou dele eeleveio tirar satisfac¸ão.Esse foi,segundoo professor,ummomentode aprendizadomuitolegal,porquenessemomentoeles con-versaram com o rapaz, ele tinha transtorno mental e os alunosdemoraramacompreender,masquando compreen-deramseacalmaram.Então,eleconseguiubotarparafora todaaraivaquetemdaspessoasquedebochamdelenarua paraosalunoseissofezpartedeváriasconversasnasaulas. Outraformadetrabalharasquestõesdaancestralidade edaorigemdosalunosedopovobrasileiroobservamosna aulaaseguir.
Em 30 de setembro de 2013 fomos para a B10 e o professoriniciouotrabalhocomumbingo.Distribuiuuma metade de folhade ofício e pediu que eles a dobrassem váriasvezes.Nofim,aoabriremafolhahavia12quadrados. Oprofessor distribuiutambémumafolhamenor paraque eles fizessem12 bolinhas e enquanto os alunos faziam as bolinhaselecolocouaspalavrasnoquadro.
Abacaxi, candomblé, bantos, Ibiúna, angola, acarajé, caxixi, yaki, peteca, batuque, cac¸ula, guri, banzé, axé, pajé,exu,baobá, zã,bagunc¸a,taba,timbó,beiju,zipue dengoso.
Osalunosliamaspalavraseunsdiziamquenãosabiamo queera.Umaalunagritouparaooutro:‘‘Batuquetusabeo queé!’’Elerespondeu:‘‘Eunão,eunãosoubatuqueiro’’. Osalunos tinhamque escolher11palavrasparapreencher nosquadroseo12◦ elesdeveriampreenchercomumx.O
professorexplicouquenãotinha problemaelesnão sabe-remo significadodas palavrasporqueeles iriamaprender durante o jogo. Um aluno perguntou por que o professor tinha escolhidoaquelaspalavras e ele explicouque essas palavraseramdeorigemafricanaeindígenaefazemparte
daancestralidadedopovobrasileiro.Oprofessorfalou tam-bémqueemvezdegritarembingoosalunosgritariamiê!Iê éumaexpressãodacapoeiraquesignificapare.Eleexplicou quenacapoeiraquemdiziêéomestre,masnessa brinca-deiratodospodemdizeriê.Emseguidaoprofessorexplicou quetirouaspalavrasdoslivrosdoprojeto‘‘Acordacultura’’ equeantesdefalaraspalavraseleleriaosseussignificados. Ojogo roloue osalunos participavamatentos, comen-tavamas palavrase juntavam ossignificados àspalavras. Os alunos se divertiram muito, uma menina com feic¸ões indígenasacadapalavradeorigemindígenasealegravaao dizerquesabiaoqueelaqueriadizer.Oprofessorteveque pedir para que osalunos se acalmassem um pouco; disse queentendia oentusiasmoe euforiados alunos, masque precisavade um poucode silêncio para explicar as pala-vras.Quandooprofessorfalouqueeraumestilodecapoeira umaalunagritou‘‘angola’’,pulouegritouiê,iê!Depois,à medidaqueoprofessorexplicavaoutraspalavras,osalunos pulavamegritavamiê.
Trabalharaoralidadeeaancestralidadeéummovimento de valorizac¸ão de outras raízes brasileiras que não só a europeia.Umapossibilidade pedagógicadeconstruc¸ãode conhecimentoatravés dos valores civilizatórios africanos, comoreivindicaMunanga(2005).
Mais
do
que
um
conteúdo
---
Uma
metodologia
---
Uma
visão
de
mundo
Aprimeiraindicac¸ãosobreotrabalhodoprofessorBaobá,lá noiníciodapesquisa,quandohouveaindicac¸ãodoassessor daSMEDdeumprofessorcomexperiênciadeensinopositiva sobrequestõesétnicas,foique eleusavaosvalores civili-zatóriosafricanoscomo metodologia detrabalho. Depois, logonosprimeiroscontatosquetivemoscomele,o profes-sorexplicouque nãotrabalhavaasquestõesétnicascomo umconteúdo,massimcomometodologia.Eleusaos valo-rescivilizatórioscomométododetrabalho,comoformade pensareestruturarsuasaulas.
Apossibilidadedetransformac¸ão,demudanc¸ade para-digmaedarupturacomumavisãoeurocêntricademundo pormenor quesejafoi o queficou maisevidentena prá-ticaenasfalasdoprofessorBaobádurantenossotrabalho decampo. Para ele, toda essa possibilidade era fruto de umprocessodeconstruc¸ãoemsaladeaula.Eraevidenteo esforc¸oqueelefaziaemsuasaulas,nassuasposturas,para desconstruircomosalunosaideiadesuperioridadeou infe-rioridadedeumpovoem detrimentodeoutros,deque o brancoeuropeu émaisvalioso.Esseprocessodetentativa dedesconstruc¸ãodesseeurocentrismohegemônicocolocao povonegroemoutrolugar.
negroemumoutrolugaranteseissoéumaconstruc¸ão, nãoésimples(informac¸ãoverbal).4
Pensar então os valores civilizatórios como metodo-logia que incorpore nas aulas a filosofia do ubuntu, a circularidade, oralidade, ancestralidade, musicalidade e corporeidadevaiaoencontroaoqueestáestabelecidonas diretrizes curriculares nacionais para o ensinode história da África e cultura negra brasileira e africana (CNE/CP n◦3/2004), que salienta ‘‘[
...] que o processo dese edu-carasrelac¸õesentrepessoasdediferentesgruposétnicas tem início com mudanc¸as no modo de se dirigirem umas àsoutras,a fim que desde logo se rompa com sentimen-tosdeinferioridadeesuperioridade’’(Silva,2011,p.12).É umaposturapedagógicaquebuscaoutrasformasdevere valorizaroaluno.Umaposturaque,conformeAbramowicz etal.(2010),p.92,‘‘[...]reclamanovosafetos,umanova formadeserelacionarcomo estrangeiro,ouseja,coma diversidade,com o outro quenão émais um‘mesmo’de mim’’.
Porém,trabalharosvalorescivilizatórioscomo metodolo-giaqueestrutureasaulasnãoimpossibilitaquesetrabalhem tambémasquestõesétnicasenquantoconteúdo.Osvalores civilizatórios são umadimensão maior; trabalhá-los como metodologiaampliaemudadeperspectivaadiscussãosobre asquestõesétnicas,maspode-setambémtrabalhar conteú-doscomoadanc¸a,acapoeira,petecaououtrosconteúdos daculturacorporalafricanaeindígenaafimdedartambém visibilidadeaessasculturas. ConformeoprofessorBaobá: ‘‘Podefazer? Pode...eu adoro fazer, trabalharmáscaras, trabalhardanc¸as...podeeélegalpracarambaporqueaitu dácorpoparaaquilo,masnãoadiantasótudarcorposenão tiverespírito’’(trechodaentrevistadoprofessorBaobá).E éatravésdessauniãodecorpo(conteúdo)eespírito (valo-rescivilizatórios como metodologia) que seconstroem no diaadiaemsaladeaulaasmudanc¸aseastransformac¸ões. UmexemplodissoaconteceunaturmaBP.Noiníciodoano, quandooprofessorcomec¸ouotrabalhocomaturma,quase nenhumalunoseautodeclaravanegro,aopreencherem for-mulários no quesito cor eles colocavam: moreno, sarará; mesmo que fenotipicamente muitos pudessem ser vistos comonegros;enofimdoano,depoisdetodootrabalhoe todaadiscussãofeitosemaula,muitosjáseautodeclararam negros.
Chegava na hora de dizer quem era negro, quem era branco,depreencherumpapelqueperguntavacor,na pri-meira vez quase ninguém se diz negro; tem pardo, tem moreno, tem branco, tem morena, menos negro; já na segundavez,agrande maioria sediznegro,issobastante tempodepois...e alémdesedizer negroaindareforc¸aa questãoquandoalguémnãosediznegro.Fala:ah,masse eusounegroesoumaisclaroquetu?Aíentraaquestãoque negronãoestásónacordapele,masnaquestãode valori-zarasuaancestralidade,oseupai,asuamãe...(informac¸ão verbal).5
SegundoSacristán(1995),p.84,‘‘aescolatemse con-figuradoem umaideologiae em seususosorganizativos e pedagógicos, como uminstrumento dehomogeneizac¸ão e
4Idem. 5Idem.
deassimilac¸ãoàculturadominante’’.Nessesentido, acredi-tamosqueaposturapedagógicadoprofessorBaobádeusar osvalorescivilizatórioscomometodologiadetrabalhoserve comoumarupturaeumatentativadeconstruc¸ãodeoutra visão de mundo. Uma visão demundo que apontepara a possibilidadedadiversidadesemhegemonias,deummundo mais solidário, sustentávele pacífico.E também se esta-belece como umapossibilidadedeenegrecera educac¸ão, comorefereSilva(2010).Paraessaautora:
[...]éimportantedesdecedoesclarecerquenãosetrata deabolirasorigenseuropeiasdaescoladasquaistodos somostributários.Comoenegrecimentodaeducac¸ãose propõe uma escola em que cada um se sinta acolhido e integrante, onde ascontribuic¸ões de todos os povos paraa humanidadeestejampresentes, nãocomolista, sequência de dados e informac¸ões, mas como motivos emeiosqueconduzamaoconhecimento,compreensão, respeito recíprocos, a uma sociedade justa e solidária (Silva,2010,p.41).
Aideiade enegreceraeducac¸ão seaproxima davisão afrocêntrica de africanizar ou reafricanizar a ciência e a educac¸ão.Asante(1990)refletesobreaimportânciadese adotarempensamentoseprocedimentosoriundosdos prin-cípiosevaloresafricanosparaorientaraproduc¸ãocientífica edesereconhecerosconhecimentosretiradosdasabedoria africanaqueforamassimiladospelaciênciaocidental.A prá-ticadoprofessorBaobáéembasadanateoriaafrocêntrica etentatrazerparaocotidianodaescolaessesprincípiose valoresafricanos,numatentativadequeosprópriosalunos possamcontarsuashistórias.
Muitomaisdoquesimplesmenteserincluídacomo con-teúdo no currículo, as questões étnicas podeme devem, como nosmostrao exemplodoprofessorBaobá,servirde metodologiaparaapráticapedagógica;possibilitama vivên-ciade novosvalores, construirnovase diversas visões de mundo. Deum mundo maisjusto, solidário, afetivo e de paz.
Conflitos
de
interesse
Osautoresdeclaramnãohaverconflitosdeinteresse.
Referências
Abramowicz A, OliveiraF, Rodrigues, TC. A crianc¸a negra, uma crianc¸a negra. In: Abramowicz A, Gomes NL, organizadores. Educac¸ãoerac¸a:perspectivaspolíticas,pedagógicaseestética. BeloHorizonte:AutenticaEditora;2010.
AsanteMK.Afrocentricityand knowledge.Trenton:AfricanWorld Press;1990.
Munanga K, organizador.Superando o racismo na escola. 2.ed. Brasília:Secretaria de Educac¸ão Continuada,Alfabetizac¸ãoe Diversidade,MinistériodaEducac¸ão;2005.
OliveiraDE.CosmovisãoafricananoBrasil---Elementos parauma filosofiaafrodescendente.Curitiba:GráficaPopular;2006. RochaRMC.Apedagogiadatradic¸ão:asdimensõesdoensinaredo
aprendernocotidianodascomunidadesafrobrasileiras.Paideia 2011;8:31---52.
aos estudos culturais em educac¸ão. Traduc¸ão: Tomaz Tadeu Silva.Petrópolis:Vozes;1995.
SilvaPBG.EstudosAfro-Brasileiros:africanidadesecidadania.In: Abramowicz A, Gomes NL, organizadores. Educac¸ão e rac¸a: perspectivaspolíticas,pedagógicaseestéticas.BeloHorizonte: AutenticaEditora;2010.
Silva PBG. Aprender, ensinar e relac¸ões etnico-raciais no Bra-sil. In: FonsecaMV, SilvaCMN, FernandesAB, organizadores.
Relac¸õesetnico-raciaiseeducac¸ãono Brasil.Belo Horizonte: MazzaEdic¸ões;2011.
TurrionMJ.NelsonMandela---PoderUbuntu.2013[acessadoem23 de junho de 2014]. Disponível em: http://blogs.elpais.com/ historias/2013/12/nelson-mandela-poder-ubuntu.html. Tutu D. Ubuntu. 1984 [acessado em 03 de fevereiro de