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DIREITO E ECONOMIA: A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

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Academic year: 2022

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DIREITO E ECONOMIA: A APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

Taís Nader Marta

Doutoranda em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – pela ITE (Instituição Toledo de Ensino) de Bauru/SP. Advogada. Coordenadora da Escola Superior da Advocacia (ESA) de Bauru/SP. Professora em Cursos de Graduação e Pós-Graduação.

Thiago Munaro Garcia

Doutorando em Direito – Sistema Constitucional de Garantia de Direitos – pelo CEUB – Centro Universitário de Bauru. Advogado.

Professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Bauru, mantida pela ITE – Instituição Toledo de Ensino.

SEÇÕES DO ARTIGO 1. Introdução

2. A Relação entre Direito e Economia 3. A Função Estrutural como

Acoplamento entre o Direito e a Economia 4. O Conteúdo Econômico

das Constituições 5. Do Comércio à Empresa 6. Função Social da Empresa

como Princípio 7. Compliance como

Instrumento Jurídico para Consagração da Função Social da Empresa 8. A Necessária Intersecção

entre Direito e Economia: a Recuperação Judicial como Forma de Preservação da Função Social da Empresa 9. Considerações Finais Referências Bibliográficas Notações

RESUMO

Partindo da interrelação existente entre os sistemas jurídicos e econômicos, à luz da teoria dos sistemas de Luhmann, este artigo busca definir a função social da empresa como princípio norteador de toda a atividade econômica. Analisa o conteúdo econômico da Constituição com enfoque na livre iniciativa e na busca do pleno emprego. Do assento constitucional da função social da propriedade se extrai a função social da empresa e sua aplicabilidade através dos programas de compliance e dos mecanismos de sua preservação, notadamente o de recuperação judicial.

PALAVRAS-CHAVE

Empresa. Direito. Função. Social. Sistemas. Constituição.

ABSTRACT

Based on the existing interrelationship between legal and economic systems, in light of Luhmann's systems theory, this article seeks to define the social function of the company as the guiding principle of all economic activity. Analyzes the economic content of the Constitution with a focus on free enterprise and the pursuit of full employment. From the constitutional position of the social function of property, the company's social function is extracted and its applicability through compliance programs and mechanisms for its preservation, notably that of judicial reorganization.

KEYWORDS

Company. Right. Function. Social. Systems. Constitution.

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1. Introdução

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o mundo moderno não mais se pode conceber a empresa como instrumento único de geração de riquezas e distribuição de lucros aos empreendedores. A empresa possui, sem embargo de dúvida, uma função social. E a par do que a Constituição Federal estabelece como princípios da ordem econômica, sacramentando a interrelação existente entre Direito e Economia, é que se pode afirmar a função social da empresa como princípio.

Partindo da premissa acerca da necessária relação existente entre Direito e Economia, a luz da teoria dos sistemas, este artigo busca identificar as balizas do princípio da função social da empresa, seu conteúdo jurídico e sua aplicabilidade no direito brasileiro através dos programas de compliance e da preservação da empresa pelo instituto da recuperação judicial.

2. A Relação entre Direito e Economia

Há intrínseca relação entre o Direito e a Economia. Nem sempre, porém, os sistemas jurídico e econômico foram vistos como interligados ou mesmo interdependentes. Almejou-se, num primeiro momento, a identidade e a autonomia de cada uma das disciplinas. A Economia, fundada por Adam Smith, foi concebida como singular forma de organização das sociedades em torno da mão-de-obra. Em sua “Riqueza das Nações”, SMITH expõe a relação entre o homem, a riqueza e o trabalho.

Buscava-se, no passado, o desenvolvimento das áreas do saber emancipando-as das demais disciplinas sociais, de modo a aferir-se os diversos contextos dos sistemas sociais e de comunicação.

Dessa forma, desenvolveu-se a economia como ciência que se ocupa da escassez dos recursos sociais, derivando do grego oiko e nomus, sua finalidade surge do estudo da economia doméstica, como célula inicial da sociedade.

Depois, a economia passou a abranger todos os outros quadrantes econômicos da sociedade, buscando aferir a forma – ou a melhor forma

– como cada sociedade regula o controle dos meios-de-produção e a mão- de-obra. Estava-se diante da equação capital e trabalho.

Essa regulamentação é transeunte conforme o modelo estatal adotado pelo ordenamento jurídico vigente sociedade em determinado espaço e tempo, ou seja, período e época de evolução da civilização. “Cada fase histórica expôs o seu figurino de influência dominante” (BONAVIDES, 2010, p. 53).

Dessa forma, os sistemas sociais, dentre eles o direito e a economia, desenvolveram-se paralela e mutuamente, descortinando as necessidades da população em cada canto das cidades.

Há, então, íntima relação entre a forma como o Estado organiza a produção da riqueza na sociedade e a maneira pela qual esta riqueza se desenvolve de modo independente e a partir de suas próprias regras.

As decisões tomadas sob a ótica da causalidade jurídica podem prejudicar ou facilitar os comandos do sistema econômico, incluindo, aí, as finanças públicas.

Adam Smith exprime como a força de trabalho determinou a forma como a relação entre as pessoas se regulava a partir do exercício do poder econômico. Segundo ele, “compreenderemos mais facilmente os efeitos produzidos pela divisão do trabalho na economia geral da sociedade, se considerar de que maneira essa divisão do trabalho opera em algumas manufaturas específica” (SMITH, 1996, p. 65).

O trabalho evoluiu desde o antigo sistema de manufatura, apresentando características de escalonamento, hierarquia, enfim, relação de poder entre a dominação daquele que detém a força do trabalho e o detentor do capital, na relação de venda em troca da percepção de uma remuneração:

No momento em que o patrimônio ou capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algumas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, fornecendo-lhes matérias- primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este trabalho acrescenta ao valor desses materiais (SMITH, 1983, p. 102).

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Economia, pois, depende de força de trabalho. A relação entre o trabalho e o resultado econômico, o investimento e o lucro, é o que move a sociedade e possibilita que os particulares e o próprio Estado cumpram suas tarefas de aquisição de bens e suprimento de suas necessidades.

A atividade econômica é um interesse público que se espraia por todos os membros da sociedade e pelos detentores do poder, que passam a dispor e regular a forma de como será exercida.

Deter os bens de produção é o que distingue o trabalhador do proprietário da riqueza, e que pode, em pequena ou grande escala, ditar as regras de distribuição do produto econômico.

Os episódios após a Revolução Industrial demonstraram a abusividade com que os detentores do capital são capazes de sujeitar os trabalhadores:

Embora os salários fabris tendessem a ser mais altos que os da

‘indústria doméstica’ (exceto os pagos a trabalhadores manuais altamente qualificados e versáteis), os trabalhadores relutavam em trabalhar nelas, pois ao fazê-los as pessoas perdiam aquele direito com que haviam nascido – a independência. Na verdade, essa era uma das razões por que se contratavam de preferência mulheres e crianças, mais dóceis: em 1838 apenas 23% dos trabalhadores das fábricas de tecidos eram homens adultos (SMITH, 1983, p. 102).

Evidentemente, o Direito se ocupa da regulação da vida humana de forma que o convívio social seja possível sem que uns se sobrepujem de forma voraz e iníqua sobre os outros.

Assim, a regulamentação da forma como a Economia se desenrola na sociedade não é uma questão de interferência no domínio do capital, mas, sim, sobre o domínio da própria pessoa. Não há economia livre e eficaz sem o resguardo aos interesses de sua mola propulsora: o trabalhador.

Nos Estados Liberais, em que vige a livre iniciativa, a empresa se torna o centro da economia, eis que é o modelo mais eficiente de produção e circulação de riquezas.

Por isso, desde a tarefa básica de regulamentar as condições pelas quais as pessoas podem iniciar e encerrar uma atividade econômica, até a forma como os lucros são distribuídos, economia e direito convergem para evitar que o sistema se torne predatório e, com isso, inviável.

A forma como o indivíduo pode iniciar a atividade empresária, quem pode exercê-la, a contratação da mão-de-obra, quais os direitos e obrigações do trabalhador e empregador, como o Estado pode interferir na economia ditando regras para estimular e desestimular certos setores em busca de um equilíbrio: em todas as tarefas é a lei que cumpre sua função de ordenar a vida em coletividade.

A Economia se ocupa do estudo da escassez. Ela busca traçar planos e metas de como evitar que as pessoas fiquem sem os bens necessários para a sobrevivência, desde o alimento até o meio de locomoção ao trabalho. O Estado, por sua vez, regula o exercício da atividade econômica a fim de evitar abusos de toda espécie, sempre em defesa do ser humano.

Os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.

(BOBBIO, 1992, p. 05)

Um dos grandes desafios do direito contemporâneo é se autodeterminar frente ao sistema econômico, de modo que se consiga buscar o atingimento das finalidades sociais, sem que se torne um emaranhado de leis abstratas, sem reflexo na vida das pessoas.

É nesse contexto, de proteção aos direitos humanos, que os sistemas jurídico e econômico se interlaçam.

3. A Função Estrutural como Acoplamento entre o Direito e a Economia

Considerando que a empresa desempenha função no Direito e na Economia, é preciso enxergar esta relação a partir da Teoria dos Sistemas de Luhmann, para quem a sociedade é composta de comunicação.

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Essa comunicação se dá em nível interno com a linguagem de cada sistema, e no nível externo com o meio, através da irritação entre os sistemas, por meio de acoplamento das estruturas que se influenciam e se corrompem.

Assim, a despeito de a economia se constituir em um sistema próprio, que regula a escassez de seus meios, não é menos certo que recebe os influxos do direito, que regula os agentes do meio econômico, conforme respalda Luhmann “ao mesmo tempo em que o sistema jurídico materializa a autorreferência por meio de conceitos, ele constrói sua heterorreferência através da assimilação de interesses” (NEVES, 1994, p. 120).

Com isso, o direito não deixa de interessar-se pelo meio econômico no qual a empresa é exercida, porém, se regula por sua própria linguagem do Ser/Dever/Ser (Sem/Sollen, de Kelsen).

Logo, é por meio da regulamentação da função social da empresa que o Direito consegue acoplar-se aos instrumentos econômicos para dirigir a empresa ao atingimento de seus objetivos constitucionais e fundamentais, conforme a doutrina traz à lume:

Esse acoplamento serviria à promoção e filtragem de influências e instigações recíprocas entre sistemas autônomos diversos, de maneira duradoura, estável e concentrada, vinculando-os no plano de suas respectivas estruturas, sem que nenhum desses sistemas perca a sua respectiva autonomia. (NEVES, 2009, p. 35)

O acoplamento filtra, por meio dos agentes jurídicos, os influxos do sistema econômico, alternando a linguagem jurídica para que seus comandos busquem a otimização da empresa para servir ao propósito de ambos os sistemas sociais, o jurídico e o legal.

Esse filtro é desempenhado pelo intérprete legal original, os juízes, que se deparam com o caso envolvendo a empresa e a crise econômica instalada, buscando, com o acoplamento entre ambos, a aplicação do princípio da função social em atendimento aos fundamentos próprios do direito, e não apenas econômicos.

4. O Conteúdo Econômico das Constituições

Qual a tarefa da Constituição na regulamentação da atividade econômica e, por conseguinte, na atividade empresarial? Qual o papel do Estado quando dita regras e define os fundamentos jurídicos do mercado?

O Direito é ciência social aplicada, razão pela qual possui linguagem, método, conceito e finalidade próprios. Manifesta-se por meio do fenômeno legal, tal como cunhado por Hans Kelsen:

Quando a si própria se designa como pura teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito.

(KELSEN, 2000, p. 01)

Do tecnicismo jurídico surge a grande tensão entre Direito e a Economia, uma vez que no balanço do pêndulo histórico, por meio da aplicação da lei, busca-se proteger a classe dominada quanto aos favorecimentos da classe dominante.

A atividade econômica é essencial à existência do Estado, seja por sua própria manutenção através da arrecadação de tributos, seja pela manutenção do seu povo que, pelo trabalho, alcança sua fonte de sustento.

O Estado, por sua vez, se impõe pelo Direito.

Toda a conjuntura econômica e como ela é exercida afeta a própria soberania do Estado, uma vez que, frente ao comércio internacional, as sociedades importam e exportam mercadorias e serviços.

A globalização afetou sobremaneira a atividade econômica e a independência dos Estados que, agora, produzem a partir das necessidades não apenas de seu povo, mas de comunidades internacionais:

Neste cenário altamente cambiante, o direito positivo – tal qual tem sido entendido convencionalmente, como o ordenamento jurídico do Estado- nação – passou a enfrentar o dilema cruel: se permanecer preocupado com sua integridade lógica e com sua racionalidade formal, diante de todas essas mudanças profundas e intensas, corre o risco de não acompanhar a dinâmica dos fatos, de ser funcionalmente ineficaz e, por fim, de acabar

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sendo socialmente desprezado, ignorado, e (numa situação-limite) até mesmo considerado descartável; caso se deixe seduzir pela tentativa de controlar e disciplinar diretamente todos os setores de uma vida social econômica e política cada vez mais tensa, instável, imprevisível, heterogênea e complexa, substituindo a preocupação com sua unidade dogmática pela ênfase a uma eficiência instrumental, diretiva e regulatória, corre o risco de ver comprometida sua identidade sistêmica e, como consequência, de terminar sendo desfigurado como referência normativa. (FARIA, 2002, p. 09) Nesse talante há que se considerar que o desempenho da atividade econômica passa a interessar à sorte do Estado, e não apenas aos envolvidos em determinada atividade empresarial. É exatamente nesse contexto de “dependência” do Estado da atividade econômica que surge a preocupação com a função que a empresa exerce na sociedade, já que, como dito, é ela, pequena ou grande, o centro da economia.

O que se busca com a regulamentação da empresa é o grau de eficiência necessário para que a legislação seja respeitada no que concerne ao recolhimento de tributos aos cofres públicos e manutenção de salários adequados à dignidade da pessoa humana.

A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer os princípios gerais da atividade econômica, fez questão de fundá-la na livre iniciativa e, também, na valorização do trabalho humano, com o objetivo de assegurar a todos uma existência digna conforme dos ditames da justiça social.

Estão aí assentadas as premissas do que chamaremos de princípio da função social da empresa.

5. Do Comércio à Empresa

Breve digressão conceitual é imperiosa para o prosseguimento do presente manuscrito, eis que, a atividade econômica nem sempre se exerceu pelo modelo atualmente conhecido como empresa.

No sistema feudal, que perdurou na Europa por toda a Idade Média, parcelas da terra eram cedidas, pelos senhores feudais e pela Igreja, aos

vassalos que a exploravam, produziam riqueza e retinham consigo mínima participação destinada à sua sobrevivência. O instituto jurídico da enfiteuse, expressamente previsto no Brasil pelo Código Civil de 1916, que vigorou até 2003, era resquício deste modelo feudal.

A pirataria e as grandes navegações deram origem a pequenos amontados de pessoas que recebiam as mercadorias dos navegantes e ali vendiam em seus povoados, como destacam os historiadores:

A Fenícia vivia em absoluto estado de esplendor graças ao intenso comércio e à dedicação às navegações marítimas, que legaram à sua gente uma sólida reputação nesse campo. Com muita habilidade e coragem ímpar, os fenícios ousaram singrar os oceanos a bordo de embarcações bem construídas. Fundaram colônias no Norte da África, dentre as quais Cartago se evidencia. (PALMA, 2011, p. 42)

Da mesma forma, as mulheres e crianças teciam objetos manufaturados, como vestimentas, e vendiam em lojas ou feiras. Esses aglomerados se denominavam burgos:

Muitos anos após, no Império Romano, berço da Civil Law, com sua estrutura social fundada sobre a propriedade e atividade rural, ainda não havia surgido o Direito Comercial como ramo autônomo do direito. Até mesmo por seu caráter social aristocrático, os Senadores e Patrícios eram proibidos de exercer atividade mercantil, restringindo-se tais práticas aos escravos. Em Roma encontravam-se algumas normas fragmentadas que versavam sobre a regulação do comércio, porém nada substancial capaz de caracterizar o nascimento de um ramo autônomo do direito. (ALEJARRA, 2013, p. 02) Atividade econômica, portanto, começa a se destacar pelo seu instrumento principal: o comércio. Até mesmo as pessoas foram objetos de mercancia, vide o triste capítulo da escravidão, a mais nefasta violação á dignidade humana de que se tem notícia.

No Brasil, a primeira legal a dispor da atividade mercantil foi o Regulamento 737 de 1850, trazendo rol taxativo de atividades que se consideravam comerciais:

Artigo 19. Considera-se mercancia:

§1º – A compra e venda ou troca de efeitos móveis ou para os vender por grosso ou a retalho, na mesma espécie ou manufaturados, ou para alugar o seu uso;

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§2º – As operações de câmbio, banco e corretagem;

§3º – As empresas de fábricas, de comissões, de depósitos, de expedição, consignação e transporte de mercadorias, de espetáculos públicos;

§4º – Os seguros, fretamentos, risco e quaisquer contratos relativos ao comércio marítimo.

§5º – A armação e expedição de navios.

Assim, a lei arrolava quais atividades se consideravam mercantis, e, por consequência, quem eram os comerciantes, sendo que atividades fora deste dispositivo eram simples prestações de serviços.

A grande diferença à época dizia respeito à forma pela qual os litígios eram resolvidos, uma vez que em se tratando de questões comerciais existiam tributais especializados. O Tribunal Comercial exercia a função de decidir os litígios mercantis, e, além disso, contava com instrumental especial, pois, suas decisões se tornavam vinculantes aos casos posteriores:

Regulamento 738. Art. 12. Os referidos assentos serão publicados pela imprensa; e seis meses depois da sua publicação estabelecerão regra de direito para decisão das questões, que no futuro se suscitarem sobre os usos commerciaes a que os mesmos assentos se referirem: e todos os Juizes e Tribunaes, arbitros, e arbitradores serão obrigados a regular por elles as suas decisões, em quanto não forem derogados ou alterados por decisão do Poder Legislativo.

A grande questão é que o comércio foca na pessoa que exerce a atividade, mas não se destaca pela sua repercussão na sociedade. Significa dizer, o conceito de comerciante é introspectivo.

Foi somente em 1942 com o Código Civil italiano, sob a pena de Alberto Asquini, que a empresa se desprende da atividade comercial, para tornar-se foco principal da análise econômica.

Asquini, em trabalho intitulado Perfis da Empresa, desenvolve seu estado na atividade exercida e nas consequências que lhe são relacionadas entre as pessoas e a sociedade como um todo.

É dizer, escapa do exame apenas do indivíduo que a exerce, e passa o Direito a se interessar pelo que é exercido, como e para que se exerce a atividade empresária:

O conceito econômico de empresa — como organização dos fatores da produção de bens ou de serviços, para o mercado, coordenada pelo empresário, que lhe assume os resultados — tem sido fonte de contínua discussão sobre a natureza jurídica da empresa, entre os autores que já não consideram suficiente a lição de Vivante, aliás, consagrada na doutrina brasileira, de que ‘o direito faz seu aquele conceito econômico’.

Entretanto, suscitada na hermenêutica dos códigos comerciais do tipo francês, e acirrada pela exegese no novo Código Civil italiano, a disputa encontrou afinal seu remanso. Segundo esclareceu Asquini

— apresentando o fenômeno de empresa, perante o direito, aspectos diversos, não deve o intérprete operar com o preconceito de que ele caiba, forçosamente, num esquema jurídico unitário, de vez que empresa é conceito de um fenômeno econômico poliédrico, que assume, sob o aspecto jurídico, em relação aos diferentes elementos nele concorrentes, não um, mas diversos perfis: subjetivo, como empresário; funcional, como atividade; objetivo, como patrimônio;

corporativo, como instituição01.

O Código Civil Brasileiro de 2002 encampou expressamente a teoria da empresa, conforme se extrai pela redação do artigo 966: “Considera- se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços”.

Logo, a empresa é a atividade econômica e organizada, cuja finalidade é a produção ou circulação de bens, mercadorias ou serviços, com isso, significando que ela é objeto isolado do Direito.

A partir de então, os estudos da empresa, sobretudo com as lentes do Direito Constitucional, se voltam a emprestá-la o valor social imprescindível para a eliminação de desigualdade social, fim da sonegação fiscal, busca do pleno emprego, enfim, restabelecimento de uma ordem social econômica, conforme se extrai de diversos dispositivos constitucionais.

Por isso, diz-se que, ao lado do princípio da função social da propriedade, disposto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal, sobressalta o princípio da função social da empresa como decorrência lógica do impacto que a propriedade econômica tem para a sociedade.

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6. Função Social da Empresa como Princípio

A função desempenhada pela atividade econômica passa a interessar ao Direito e, para este, passa a servir de instrumento para realização dos fins sociais. Por isso, a forma como a atividade econômica é exercida, sua iniciativa, responsabilidade dos agentes envolvidos, observância da necessidade do mercado internacional, tudo toca ao Direito e essa transformação é observada pela doutrina:

A transformação a que refiro se dá no instante em que as precedentes ordens econômicas (mundo do dever-ser) passam a instrumentar a implementação de políticas públicas. Vale dizer: no instante que a ordem econômica – parcela da ordem jurídica – , já instalada no nível constitucional, passa a predicar o aprimoramento da ordem econômica (mundo do ser), visando à sua preservação. O Direito é afetado, então, por uma transformação, justamente em razão de instrumentar transformação da ordem econômica (mundo do ser). (FERSMANN, 2014, p. 70.

O giro hermenêutico do Direito Empresarial é justamente tratar a empresa a partir da importância atribuída pela Constituição Federal à propriedade privada, que tem sua função social. A passagem jurídica de maior ênfase e significação para a defesa de um princípio da função social da empresa está prescrita na Lei de Falências e Recuperação de Empresas, que a par de assegurar mecanismos de preservação da empresa, expressamente enaltece sua função social:

Lei n. 11.101/05. Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Veja-se no final do dispositivo a menção à “função social”, logo, há de se destacar que toda a Lei de Recuperação de Empresas tem por finalidade preservá-la a fim de que cumpra sua função social.

A empresa, portanto, deixa ser instrumento que interessa unicamente à economia e aos empreendedores e passa a ser encarada através de sua importância para toda a sociedade e, por consequência, ao próprio Estado.

A propriedade, de onde de extrai os elementos para exercício da empresa, fogem do âmbito estritamente privado e alçam a sua função social, conforme destaca abalizada doutrina:

A propriedade deixa de ser concebida em termos de direito privado, passando a ser entendida em termos de função social. Se alguém duvidar disso, que medite sobre a recente legislação sobre aluguéis, que trata, com jeito, o aluguel e o arrendamento de casas como assunto afetado ao interesse público, em que tarifas de aluguel razoáveis devem ser fixadas, como se se tratasse de serviço de utilidade pública. (CRETELLA JUNIOR, 2001, p. 257)

A função social constitui-se em uma dimensão abstrata, genérica e, ao mesmo tempo, redimensionadora da aplicação de regras relacionadas ao exercício da empresa, as ferramentas de sua recuperação judicial e da otimização da falência. No âmbito da função social não se fala em aplicação meramente subjuntiva da norma, que já exige do aplicador do direito uma análise conjuntural.

Invocar função social como regra é um vazio. Não poderia o legislador enumerar, por maior que seja o esforço hercúleo, quando a empresa desempenha função social. O abismo é sem fim.

Por isso, a regra acima descrita, contida no art. 47 da Lei n. 11.101/05, muito mais se alinha ao que a doutrina abalizada reconhece como um princípio, uma norma de escalão superior:

Princípios têm uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios de intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um.

Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia. Não obstante, essa dimensão é parte integrante do conceito de um princípio, de modo que faz sentido perguntar que peso ele tem ou quão importante ele é.

(DWORKIN, 2010, p. 42-43)

A função social da empresa, portanto, não é regra, mas é princípio. Sua dimensão não é meramente orientadora, mas define, no embate entre

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regras, qual conclusão deve prevalecer, por isso, ao contrário do que afirmam alguns, o princípio não é generalista, mas é finalístico:

As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação demandam uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção. (ÁVILA, 2015, p.193)

Assim, a função social da empresa se espraia para outros campos do direito, não se limitando ao direito comercial propriamente dito, eis que, em todas as áreas quando a empresa estiver sob risco e discussão, deve ser trazida a busca finalística de sua existência.

A dimensão de peso não retrai, mas irradia a eficácia do princípio da função social da empresa, aumentando o campo de proteção da atividade empresarial frente às outras áreas do direito. É na ressonância dos atos empresariais em relação a terceiros e à sociedade que se concebe o princípio da função social da empresa, conforme lições da doutrina:

Por função social, deve-se entender, no estágio atual do nosso desenvolvimento socioeconômico, o respeito aos direitos e interesses dos que se situam em torno da empresa. Daí a doutrina brasileira assinala essa função relativamente aos trabalhadores, aos consumidores e à comunidade, o que parece evidente. (BULGARELLI, 1985, p. 284).

A visão de Bulgarelli é lapidada pela doutrina hodierna que busca na harmonização da livre iniciativa com os valores sociais do trabalho e os demais interesses fundamentais sociais o fundamento da função social da empresa:

Afinal, a função social não tem a finalidade de anular a livre iniciativa nem de inibir as inovações na órbita empresarial, mas sim de assegurar que o projeto do empresário seja compatível com o direito de todos os membros da sociedade de também realizarem os seus respectivos projetos de vida.

(FRAZÃO, 2011, p. 193)

Sobretudo na atualidade, em que se passa a exigir do administrador o cumprimento de relevante papel na fiscalização dos atos praticados pelos demais administradores e diretores, a busca pela performance da função social adquire grande relevância jurídica.

Assim, para que a Companhia se desenvolva na plena realização da função social, faz-se necessário que o acionista controlador e os administradores respeitem os direitos de todos os envolvidos na empresa, os direitos dos trabalhadores, os acionistas minoritários, os investidores de mercado e de toda a comunidade na qual está instalada e envolvida em relações.

Nota-se que o escopo da Lei das S.A. encampa os princípios constitucionais da ordem econômica, como a defesa do emprego e o desenvolvimento sustentável com respeito ao meio ambiente e a comunidade que com ele interage. “No que toca à tutela dos trabalhadores, não há dúvidas de que se trata de uma das principais consequências da função social da empresa”.

(FRAZÃO, 2011, p. 195)

No processo de tomada de decisão, havendo o acionista ou administrador que decidir entre o que lhe é melhor e aquilo que mais atende à coletividade, deve optar por esta última, isto é, “havendo eventual conflito entre o interesse do acionista enquanto sócio e do acionista enquanto terceiro, o primeiro deve ser privilegiado”. (EIZIRIK, 2011, p. 653)

A função social da empresa se manifesta mediante um conjunto de ações e pela postura ativa e emprenho da Companhia na busca pela transformação do meio no qual está inserida a atividade econômica que desenvolve, para que a comunidade e todos os envolvidos tenham seus direitos respeitados, conforme destaca Ana Frazão:

Daí porque o princípio da função social da propriedade e da empresa pode ser considerado como uma forma que a Constituição encontrou de condicionar o exercício da atividade empresarial à justiça social sem ter que recorrer a nenhum compromisso previamente determinado. (2011, p. 199) Concretizar a função social pressupõe o ato de assumir a responsabilidade social pelo papel desempenhado pela empresa na sociedade e na vida de todos envolvidos, com a ressignificação de

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sua relevante posição para a transformação da vida das pessoas, dos empregados e das famílias envolvidas:

Responsabilidade social pode ser definida como o compromisso que uma organização deve ter para com a sociedade, expresso por meio de atos e atitudes que a afetam positivamente, de modo amplo, ou a alguma comunidade, de modo específico, agindo proativamente e coerentemente no que tange a seu papel específico na sociedade e a sua prestação de contas para com ela. (ASHLEY, 2003, p. 06)

É a mudança de postura que importa no cumprimento da função social da empresa, que deve ser buscada com a modificação do status quo das regras, normas e contratos, a fim de que a empresa possa efetivamente ter relevante papel na sociedade, que não apenas a geração de fonte econômica.

Sem a mudança do sistema jurídico para a construção de ferramentas que culminem na exigibilidade da responsabilidade social por parte dos dirigentes das empresas, a função social estará relegada a segundo plano, para depois da busca pela realização do lucro, como adverte a doutrina:

É imperioso reconhecer, por conseguinte, a incongruência em se falar numa função social das empresas. No regime capitalista, o que se espera e exige delas é, apenas, a eficiência lucrativa, admitindo-se que, em busca do lucro, o sistema empresarial como um todo exerça a tarefa necessária de produzir ou distribuir bens e de prestar serviços no espaço de um mercado concorrencial. Mas é uma perigosa ilusão imaginar-se que, no desempenho dessa atividade econômica, o sistema empresarial, livre de todo controle dos Poderes Públicos, suprirá naturalmente as carências sociais e evitará os abusos; em suma, promoverá a justiça social. (COMPARATO, 1996, p. 45)

A doutrina faz assim um corte na linha temporal da evolução do Direito Empresarial, passando do mero contratualismo no qual as relações entre os sócios e o capital era meramente um problema particular, para o institucionalismo no qual a função da empresa passa a interessar à comunidade.

Segundo Fábio Comparato, a passagem do contratualismo para o institucionalismo iniciou-se no direito anglo-saxão ainda no século XX, por meio de decisões jurisprudenciais que afirmavam o poder dos diretores de

se recusarem a cumprir decisões da assembleia geral, sob o fundamento de que seriam prejudiciais à empresa. (FRAZÃO, 2011, p. 122).

Aos poucos, a arbitrariedade das decisões tomadas sobre o destino do capital da empresa passou a ser notada pelo Poder Público. No dirigismo do Estado em relação à proteção dos direitos sociais fundamentais, sobretudo, repousa o nascedouro da função social da empresa.

É nesse compasso que Ana Frazão sintetiza o que se pode compreender pela fórmula da função social da empresa a partir do momento em que o institucionalismo obtempera a rigidez dos interesses privados do capital:

Assim, por mais que não se possa definir ou conceituar o interesse social a partir de fórmulas fechadas, algumas noções passaram a ser aceitas por influência do institucionalismo e da função social da empresa, tais como: I) a de que o interesse social abrange interesses outros que não apenas dos acionistas, ainda que subsistam dúvidas quanto aos caminhos adequados para a compatibilização de tais interesses, e II) A de que a racionalidade empresarial precisa direcionar- se igualmente para o atendimento de padrões mínimos de justificação.

(FRAZÃO, 2011, p. 206)

Como dito alhures, também a lei 11.101/05 traz à lume a função social da empresa. Diferentemente das pretéritas leis de falência que traziam em destaque o procedimento da liquidação e execução coletiva e, somente em segundo plano, a concordata, a Lei de Recuperação Judicial em vigência prioriza a recuperação da empresa, considerando sua proteção sistêmica e, mais ainda, tendo em vista a superação de um conceito subjetivo de proteção intrínseca da figura do comerciante, conforme se vislumbrou em legislações outrora vigentes.

Apesar de seu caráter eminentemente simbólico, a circunstância de ser a lei denominada de “Lei de Recuperação”, afasta, por si só, a traumática figura da falência como objetivo primeiro do legislador.

Se a empresa possui uma função social, então, antes de extirpá- la do mundo jurídico, é imperioso considerar os impactos de sua retirada da sociedade na qual inserida, tarefa esta que não cabe aos

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administradores ou acionistas controladores. Cabe ao Estado na figura do Legislador determinar as medidas e ferramentas para que o procedimento recuperacional privilegie de fato a empresa, e não os interesses subjetivos – e, por vezes, oculto – dos sócios.

O legislador ordinário que editou a atual Lei de Recuperação priorizou a coletividade e deixou para segundo plano, na impossibilidade de recuperação viável da empresa, a instauração do concurso de credores – em que se busca a satisfação do interesse de crédito individual.

Claramente, a Lei de Recuperação de Empresa representou salto exponencial na construção da responsabilidade social dos empreendedores, avançando o sistema jurídico na proteção da função social da empresa.

Se o que se pretende é transformar a realidade econômica do país, faz- se necessário pensar na empresa como a principal fonte produtora de economia, por meio da qual há geração de empregos, colocação de bens no mercado, e por meio de cujo capital processado o Estado faz a arrecadação tributária como instrumento de política, sendo o esteio e engrenagem essencial ao funcionamento de todo o subsistema econômico. Assim:

Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua influência, dinamismo e poder de transformação, sirva de elemento explicativo e definidor da civilização contemporânea, a escolha é indubitável:

essa instituição é a empresa. É dela que depende, diretamente a subsistência da maior parte da população ativa deste país, pela organização do trabalho assalariado. A massa salarial equivale, no Brasil, a 60% da renda nacional.

Entrementes, apesar dos avanços, as transformações sociais, a corrupção, a mudança do mercado e a globalização implicam no aparecimento de pontos críticos que devem ser colmatados para que a recuperação da empresa possa retomar seu importante papel social.

Por sua vez a utilização cada vez maior do sistema de compliance mostra que é possível conciliar o capitalismo com a sua função social, de modo que os empreendedores possam obter lucro, porém sem infringir o sistema jurídico.

7. Compliance como Instrumento Jurídico para Consagração da Função Social da Empresa

As empresas não podem mais ser vistas como atividade voltada unicamente para a busca desenfreada de lucros. Ao contrário, atualmente possuem função social clara, atuando para a geração de riquezas não apenas aos seus sócios ou acionistas, mas para toda a sociedade, através da criação de novas tecnologias, geração de empregos e pagamento de tributos ao Estado.

E não é só: cada dia mais o mercado consumidor busca empresas que demonstrem responsabilidade social. Não basta que a empresa possua bons produtos e serviços, ou preços considerados justos, a nova geração de consumidores vem demonstrando nítida preferência por marcas e empresas com programas claros de responsabilidade social, tais como a preocupação com o meio ambiente e a sustentabilidade, diversidade étnica e sexual entre trabalhadores e executivos, igualdade salarial, e o não-envolvimento com práticas de corrupção, dentre outros aspectos relevantes.

E tal movimento não passou despercebido aos olhos do mercado financeiro em geral, a nível mundial. A grande pauta dos últimos anos e que e que continua em ascensão, são os investimentos em empresas que adotam práticas do chamado “ESG – Environmental, Social and Corporate Governance”, ou, em tradução livre, Governança Ambiental, Social e Corporativa, entendido como índice de sustentabilidade de uma empresa em diversos aspectos.

Mede-se, por exemplo, o comprometimento da empresa e, sobretudo, de sua alta direção com condutas corporativas; relações éticas e transparentes com o Poder Público; com a promoção de desenvolvimento econômico sustentável; emissão de poluentes e outros resíduos; adequação às leis, inclusive trabalhistas, consumeristas e de proteção de dados pessoais.

E as novas tendências não passaram despercebidas no Brasil. Já há muito a B3, bolsa de valores brasileira, incluiu dentro de seus segmentos de listagem a categoria “Novo Mercado”, destinado apenas às companhias

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com as melhores práticas de governança corporativa, inclusive ainda mais rígidas que às previstas na legislação brasileira.

À título de exemplo, exige-se das companhias listadas no “Novo Mercado”

que seu capital social seja composto exclusivamente por ações ordinárias, com direito a voto, protegendo-se os acionistas minoritários, e a instalação de programas de Auditoria Interna e de Compliance.

Importa-nos o denominado Compliance, que significa em síntese estar em conformidade. Um bom programa de Compliance busca conformidade entre as condutas adotadas pela empresa com suas regras internas e com todas as normas jurídicas dos locais em que atua.

Em resumo, de forma literal, o termo compliance tem origem no verbo inglês to comply, que significa agir de acordo com a lei, uma instrução interna, um comando ou uma conduta ética, ou seja, estar em compliance é estar em conformidade com as regras internas da empresa, de acordo com procedimentos éticos e as normas jurídicas vigentes. No entanto, o sentido da expressão compliance não pode ser resumido apenas ao seu significado literal. Em outras palavras, o compliance está além do mero cumprimento de regras formais. Seu alcance é muito mais amplo e deve ser compreendido de maneira sistêmica, como um instrumento de mitigação de riscos, preservação dos valores éticos e de sustentabilidade corporativa, preservando a continuidade do negócio e o interesse dos stakeholders.

[...]

Podemos entender, portanto, que o compliance integra um sistema complexo e organizado de procedimentos de controle de riscos e preservação de valores intangíveis que deve ser coerente com a estrutura societária, o compromisso efetivo da sua liderança e a estratégia da empresa, como elemento, cuja adoção resulta na criação de um ambiente de segurança jurídica e confiança indispensável para a boa tomada de decisão.

Esse sistema interno também pode ser chamado de programa de integridade ou programa de compliance com a finalidade de prevenir, detectar e corrigir atos não condizentes com os princípios e valores da empresa, assim como perante o ordenamento jurídico vigente (BERTOCELLI, 2020, p. 40).

Bem por isso, surge a necessidade do Compliance nos mais variados níveis do Direito, como o Compliance empresarial, trabalhista e tributário, e até mesmo dentro da contabilidade como o Compliance contábil.

Nada mais é do que a necessidade da empresa em cumprir com as normas jurídicas referentes à Governança Corporativa, leis trabalhistas e tributárias, assim como se adequar aos padrões internacionais de contabilidade como o International Financial Reporting Standards ou Normas Internacionais de Relatório Financeiro, dependendo da empresa.

Surge, então, a questão: como o Compliance pode consagrar a função social das empresas? E a resposta demonstra-se simples. Uma empresa com um bom programa de Compliance estará sempre em busca da adequação às normas jurídicas existentes.

À título exemplificativo, ao cumprir e estar em conformidade com a legislação trabalhista, a empresa gerará empregos dignos, contribuirá para o pleno emprego da população, auxiliará na distribuição de renda e no combate à miséria e à fome.

Ao cumprir com a legislação tributária, com seu adequado planejamento tributário, a empresa contribuirá com os cofres públicos através de seus tributos e contribuirá com o Estado na consecução de seus objetivos, como os programas sociais e as políticas públicas em geral.

Em síntese, um programa de Compliance bem executado terá condão de adequar a empresa às normas jurídicas existentes, diminuindo os riscos da atividade empresarial, criando condições para continuidade do negócio, e, ainda, auxiliará a empresa na consagração de sua função social.

Não se olvide, ainda, que a existência de um rigoroso programa de compliance, notadamente fiscal e contábil, será ponto essencial para a superação de eventual crise econômico-financeira da empresa, já que a Recuperação Judicial, como veremos a seguir tem por objetivo último a função social da empresa.

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8. A Necessária Intersecção entre Direito e

Economia: a Recuperação Judicial como Forma de Preservação da Função Social da Empresa

Direito e Economia encontram-se intrinsicamente ligados, existindo verdadeira intersecção entre as duas ciências. E é no Direito Empresarial que essa ligação fica ainda mais evidente, uma vez que empresas são os motores da economia, especialmente em um mundo altamente conectado e globalizado como no Século XXI.

Empresas movem a economia, estão no centro do capitalismo e dão vida ao princípio constitucional da livre iniciativa. Empresas, no entanto, não são imunes às crises que, aliás, estão cada vez recorrentes, vide os tempos de inegável recessão econômica em razão da pandemia de coronavírus que assola e desestabiliza o mundo. A crise de natureza econômica rapidamente migra para a crise financeira, caracterizada pelo inadimplemento das obrigações e ausência de caixa. Se não tratada em tempo e modo adequado, a crise financeira evolui para a crise patrimonial e, aí, infelizmente a falência bate à porta da empresa. E a falência, quase sempre, é o caos. Todos perdem na falência. Os trabalhadores perdem os empregos. A economia perde uma de suas principais molas propulsoras e o Estado perde em arrecadação.

A falência em si, notadamente a que decreta a lacração dos estabelecimentos e a paralização das atividades é ato contrário à função social da empresa e, por isso, deve ser evitada. É nesse contexto que surge o instituto da recuperação judicial, este sim centrado integralmente no princípio da função social da empresa.

Através da recuperação judicial, nos termos da Lei nº 11.101/05, busca- se preservar uma empresa em situação de crise econômico-financeira, assegurando, assim, os empregos dos trabalhadores, interesse dos credores e o estímulo à atividade econômica.

Não é outro o entendimento de Pozzo ao apresentar trechos do parecer nº 534/2004 da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal, que originou a redação original da Lei nº 11.101/05:

Quanto à preservação, o parecer citado assim dispunha:

1) Preservação da empresa: em razão de sua função social a empresa deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento do País. Além disso, a extinção da empresa provoca a perda do agregado econômico representado pelos intangíveis como nome, ponto comercial, reputação, marcas, clientela, rede de fornecedores, know-how, treinamento, perspectiva de lucro futuro, entre outros.

Do excerto se pode depreender, portanto, que a ratio da recuperação é a função social adstrita ao exercício da atividade econômica organizada para a produção ou circulação de bens ou serviços, à luz dos danos potenciais que sua extinção acarreta, ainda que em prejuízo dos credores que terão seus direitos alterados. Sobreleva o aspecto implícito da função social da empresa, dele derivando o princípio da preservação (POZZO, 2020, p. 176-177).

E neste sentido é o artigo 47 da Lei nº 11.101/05 ao dispor que a recuperação judicial tem objetivo de viabilizar a superação da crise econômico-financeira, promovendo a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

Já foi dito que este artigo trouxe a maior significação para a defesa de um princípio da função social da empresa. Entretanto, é ele que igualmente demonstra a intersecção entre a Economia e o Direito, tratando a empresa como um fator de estímulo às atividades econômicas.

Sem a pretensão de esgotar o tema, o Direito, por meio da regulamentação da função social da empresa, consegue acoplar-se aos instrumentos econômicos para dirigir a empresa ao atingimento de seus objetivos constitucionais e fundamentais, como acima descrito.

E a função social da empresa move a economia, gerando renda aos trabalhadores e credores, gerando tributos e contribuindo para o desenvolvimento da sociedade, sobretudo quando falamos de organizações de grande porte.

Bem por isso, a existência de mecanismos de recuperação judicial eficazes, com razoáveis possibilidades de êxito e de preservação das

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empresas, demonstra-se imprescindível para a o exercício de sua função social e para o desenvolvimento da Economia e da sociedade.

9. Considerações Finais

O direito como instrumento de regulamentação social sofreu os influxos científicos da Sociologia com a obra de Maturama e Varella, a respeito dos sistemas biológicos.

Migrada para o Direito, por meio da obra de Niklas Luhmann, a Teoria dos Sistemas torna possível o exame dos fenômenos sociais a partir de sistemas com linguagem própria.

Os sistemas sociais caracterizam-se cada qual por sua linguagem própria, que o discerne do meio no qual está inserido, e reclama, para seu correto funcionamento, o respeito à autorreferência de sua linguagem.

Assim, a dinâmica enfrentada pelo direito nos últimos séculos e, com maior ênfase, nas últimas décadas, diz respeito em como autorreferenciar- se em meio à sociedade pós-moderna.

O impacto econômico no cumprimento das obrigações legais é extremamente forte, assim como, a escassez de recursos faz das garantias constitucionais sociais tábula rasa de promessas vagas.

Por isso, é preciso realinhar a análise da compreensão da função social da empresa não apenas como princípio, que já o é consagrado, sobretudo, pela Lei n. 11.101/05 no Brasil, mas que tem sua repercussão social reconhecida com grande ênfase pela Comunidade Europeia.

Os programas de compliance, nesse sentido, são instrumentos eficazes de adequação e implementação da função social da empresa. Os mercados têm dado ênfase à empresas que possuem rígidos programas de conformidade, o que se igualmente têm se verificado em relação aos próprios consumidores.

Em situações de crise, a aplicação do princípio da função social da empresa tem o condão de evitar a quebra da empresa de modo a prover sua preservação através de sua recuperação judicial ou extrajudicial.

Dessa forma, visualizar a função social da empresa como acoplamento estrutural entre o Direito e a Economia possibilita estabelecer o campo de atuação do intérprete jurídico.

Igualmente, torna possível fixar limites a partir e até onde o jurista pode mobilizar a lei para que a função social da empresa seja resguardada, ou, a partir de que momento, se observa que sua linguagem é corrompida por escusos interesses manifestados por meio do processo jurídico.

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Notações

01. Exposição de Motivos Complementar apresentada pelo Prof. Sylvio Marcondes — responsável pela elaboração do Livro II — “Direito da Empresa” no anteprojeto do Código Civil/2002.

Referências

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